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sexta-feira, 10 de junho de 2022

"Não é a satisfação da vontade que é a causa do prazer (...), mas o fato de que a vontade quer ir avante e quer ainda assenhorear-se do que encontra em seu caminho" (Nietzsche).

 




              O prazer e a dor à luz do perspectivismo nietzschiano

 

“O homem – escreve Nietzsche – não busca o prazer e não se esquiva do desprazer”[1]. O homem quer o mesmo que o mais rudimentar organismo vivo quer: um aumento de potência. Ao ter como fim o aumento de potência, é inevitável que na busca desse aumento de potência concorram o prazer e o desprazer. O desprazer é necessário para toda vontade de potência que deve opor resistência a um obstáculo. O desprazer é, assim, um “ingrediente” normal de todo fenômeno orgânico, de sorte que o homem não foge do desprazer, mas tem necessidade dele. O prazer e a dor, segundo Nietzsche, não são contrários. Não raro, o prazer se faz acompanhar de uma série de desprazeres que leva a um crescimento da vontade de potência. A vontade de potência que “quer” aumentar sua potência deve impor resistência a toda sorte de obstáculo. Assim, no fragmento 304 de Vontade de Potência, observa Nietzsche:

 

Há casos em que uma espécie de prazer é condicionada por uma certa sucessão de pequenas crispações de desprazer: atinge-se, assim, a um crescimento bastante rápido , do sentimento de potência, do sentimento de prazer. (...). Um pequeno obstáculo é suplantado, mas imediatamente segue-se outro que também é suplantado – esse jogo de existências e vitórias estimula ao máximo o sentimento geral de potência, supérfluo e excessivo; constitui precisamente a essência do prazer. (ênfases no original).

 

Para Nietzsche, a essência do sofrimento não consiste numa diminuição da vontade de potência, ou “do sentimento de potência”. A dor pode ser um estimulante para o acúmulo de potência, ao menos para o tipo humano afirmador. O que determina o que provoca prazer e o que provoca desprazer é o grau de potência de uma vontade de potência, de tal sorte que “a mesma coisa, em relação a uma pequena quantidade de potência, manifesta-se como um perigo e a necessidade de evitá-lo logo que possível pode, quando se tem consciência de uma potência maior, trazer consigo uma excitação voluptuosa, uma sensação de prazer”. (ibid., § 306).

O prazer não se dá como resultado da satisfação da vontade; a satisfação da vontade repousa sobre o fato de ela superar-se, de ela querer assenhorear-se “do que encontra em seu caminho”. (ibid.). O prazer reside justamente nesse avanço da vontade de encontro com aquilo que se lhe apresenta como obstáculo ao qual ela impõe resistência; o prazer já se encontra no embate da vontade contra um adversário. Para Nietzsche, o “homem feliz” que se reconforta na ataraxia é o ideal do rebanho. Tomar como critério de avaliação do mundo a quantidade de prazer alcançado é uma atitude própria do tipo humano cansado da vida, para quem “o mundo é algo que razoavelmente não deveria existir porque ocasiona ao sujeito sensível mais desprazer que “prazer””, visão esta a que Nietzsche acrescenta o seguinte comentário – “semelhante palavrório chama-se hoje pessimismo”. (ibid. § 312).

O pessimista, que desaprova a existência em virtude da quantidade de desprazer e/ou de dor que ela abarca, não vê que toma como causa de sua rejeição apreciações de valor. O desprazer e a dor são valores com os quais ele julga nociva a existência. Mas esse julgamento tem como base o sentimento. Nietzsche é incisivo ao rejeitar tal julgamento de superfície: “Eu desprezo este pessimismo da sensibilidade: é um traço de profundo empobrecimento vital”. (ibid.).

Pretender determinar se a vida tem ou não valor segundo a quantidade de prazer e/ou desprazer que ela encerra é ignorar que, na avaliação, o indivíduo se vale de sentimentos como meios pelos quais ele julga a vida. Mas pergunta-se Nietzsche como podemos determinar o valor do valor. O valor do valor não pode ser determinado segundo tais sentimentos agradáveis e/ou desagradáveis. Disso resulta que é somente a quantidade de poder aumentada e organizada que pode determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Em outras palavras, o homem habitualmente decide sobre o valor ou não da existência com base em sua consciência, a qual não é mais do que um instrumento a serviço da vontade de potência . Nietzsche considera como erro o assumir a consciência, mero instrumento da vida em geral, como valor superior da vida, como medida para avaliá-la. Quem toma a consciência como medida para julgar a existência toma a parte (consciência) pelo todo (vontade de potência).

 

A “negação da vida” considerada como finalidade da vida, como finalidade da evolução! A existência como grande tolice! Uma interpretação tão louca é somente o produto monstruoso de uma avaliação da vida por meio de fatores da consciência (prazer, desprazer, bem, mal)

(...) Mas o defeito de uma tal interpretação reside precisamente no fato de que em vez de procurar a finalidade que explica a necessidade de semelhantes meios, pressupomos, de antemão, uma finalidade que os exclui: quer dizer que consideramos como normas nossos desejos em relação a certos meios (meios agradáveis, racionais, virtuosos), estabelecendo, segundo eles, a finalidade em geral que é desejável...  (ibid., § 315, grifo nosso).

 

 

A expressão “negação da vida” que encabeça o excerto supramencionado sinaliza uma crítica às formas que assumem o instinto de decadência (por exemplo, a filosofia pessimista de Schopenhauer, o cristianismo, o budismo...) que tomam como critério de valoração da vida a quantidade de desprazer que ela provoca. Cada uma das formas que assume o instinto de decadência é uma vontade de potência, embora fraca. Cada uma dessas formas do instinto de decadência que toma como finalidade da vida “a negação da vida” constitui uma interpretação da vida, a qual reflete uma vontade de potência enfraquecida, esgotada. Todas essas formas condenam a vida em favor de alguma outra coisa. No pessimismo de Schopenhauer, a vida é condenada em favor da supressão de todo desejo, de todo querer; no cristianismo, em favor do além-mundo, do Reino de Deus; no budismo, em favor do Nirvana.

Sabe-se que o sofrimento para Nietzsche não deve ser razão suficiente para desaprovar a existência; ao contrário, o sofrimento deve ser para o tipo de homem forte – dionisíaco - um fortificante para a vida, para “mais vida”, não porque se deve amar o sofrimento, mas porque se deve dizer “sim” à vida, se deve querê-la, amá-la incondicionalmente, deve-se rejubilar-se em ser mais fecundo na dor. A vida do sacerdote ascético, a vontade de potência que ele afirma, por outro lado, é uma vontade corrompida, decadente; uma vontade que se volta contra si mesma, que enfraquece a vida. O sacerdote ascético é um valorador, mas seus valores são valores que conduzem o homem ao afastamento niilista da vida. O sofrimento que o sacerdote ascético causa a si próprio é um instrumento de punição. Esse homem doente transformou-se em pecador: o que ele quer não é mais vida, é mais dor; nele se enraizou o desejo de mais dor. Como vontade de potência, o tipo vital que é o sacerdote ascético também interpreta. Ele reinterpretou o sofrimento como castigo. Com o sacerdote ascético, a má consciência se chama pecado; nele se dá o agravamento mais nefasto da doença do espírito.

 



[1] Vontade de Potência 2011, § 303.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

"O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta." (Charles Darwin)

 


Manual contra a megalomania humana em uma lição

 

E pensar que, estando eu diante de outro ser humano enfatuado e crente de sua ancestralidade divina, exibindo seu ego hipertrofiado, vejo diante de mim apenas uma forma orgânica complexa que evoluiu, ao longo de milhões de anos, a partir de uma célula bacteriana.

 

 




A LUCIDEZ NIILISTA

 

No meu esforço por pensar o niilismo como campo hermenêutico, como um fenômeno histórico-antropológico que diz respeito à constituição social do homem como ser alienado de sua condição natural e animal, tenho como escopo o modo como as significações instituídas, geradas na instituição do imaginário-simbólico, produzem o homem, cunham seu modo de ser imaginário, um modo de ser que se representa na ilusão de sua superioridade em relação aos demais seres vivos. É necessário, para tanto, compreender como as significações, como a linguagem simbólica, sem a qual aquelas não seriam possíveis, constituem o homem como um ser à parte, como um ser que se acredita divorciado do resto da vida natural e animal, da totalidade cósmica. Como lembra Castoriadis, a significação apenas parece estar ligada a algo - ser natural, objeto material fabricado, entidade lógica. Esse “algo” só tem “ser” para uma sociedade que o investe de significado. Fora da significação, esse “algo” simplesmente não existe para a sociedade em questão. As signifcações imaginárias centrais ou primárias - ensina-nos Castoriadis - é que criam os objetos que se dão à cognição humana. Essas significações primárias organizam o mundo - mundo “exterior” à sociedade e o mundo social propriamente dito, estabelecendo entre eles uma relação recíproca. Um exemplo de um objeto criado pelas significações instituídas no social-histórico é Deus. Lembra Castoriadis que Deus carece de referente. Deus tem apenas um significado como Deus; e esse significado aparece cada vez que é reproduzido, reativado, “posto” pela sociedade - e eu diria - em suas práticas discursivas. O que me interessa, especialmente, enquanto questão fundamental da abordagem do niilismo como processo de desmitificação do homem, está bem resumido no seguinte passo de Castoriadis:



“ O “referente” que seriam as representações individuais de Deus (ou dos deuses) é criado mediante a criação e a instituição desta significação imaginária central que é Deus. A significação Deus é ao mesmo tempo criadora de um “objeto” de representações individuais e elemento central da organização do mundo de uma sociedade monoteísta, posto que Deus é colocado como ao mesmo tempo fonte do ser e ente por excelência, norma e origem da Lei, fundamento último de todo valor e pólo de orientação do fazer social (...)”. (p. 407).

 

 

Entendo que “ser colocado como fonte do ser e origem da Lei” quer dizer é criação do imaginário-simbólico instituído pela sociedade. É nesse sentido que falo de Deus como ficção tanto quanto é ficção a ordem jurídico-legislativa. Tanto um quanto a outra são efeitos, produtos do magma de significações imaginárias sociais que forma, por assim dizer, as “entranhas” do próprio fazer social.

Importa, tendo em vista o exemplo da instituição de Deus como objeto de um imaginário social, pensar o niilismo como um fenômeno inerente ao trabalho genealógico (de inspiração nietzscheana) que se interroga sobre as origens da significação e sobre seu funcionamento como dimensão essencial do mundo experienciado pelo homem. Bem entendida essa ligação inerente entre niilismo e projeto genealógico que interroga o modo de se dar a significação, é fácil estabelecer uma continuidade de sentido (coerência) entre a minha proposta de interpretação do niilismo e o que Giacoia diz acerca do modo como Nietzsche o entendeu, a saber, como “experiência histórica da ausência de fundamento”. Se o niilismo expressa a ausência histórica de fundamento, é porque o niilismo desvelou o caráter de constructo, de ficção, de significação fabricada do próprio fundamento cujo valor a tradição metafísica postulou como transcendente ao homem e ao mundo. O que chamo de Lucidez niilista nada mais é, portanto, do que a exposição, o desvelamento dos mecanismos imaginário-simbólicos que estão na origem de tudo aquilo que o homem concebe e trata como algo que se originou de uma instância estranha a ele, quer seja esta instância a objetividade de uma ordem social que se impõe a ele como já pronta, definida e rígida desde sempre, quer seja esta instância um ‘lugar’ metafisicamente imaginado.

 









SEDUÇÃO VERBAL

 

Do latim seductio -onis, sedução significa ‘separação’ ‘tomar à parte’. Dutcio formado a partir de ducere, forma arcaica de dūcō, que significa ‘conduzir’, ‘levar’, ‘puxar’, ‘atrair’, tem também o sentido poético de ‘escrever’, ‘compor’. O verbo ou a linguagem verbal seduz, portanto, quando nos aparta, nos separa do mundo comum do trabalho, da cotidianidade mediana. Ela nos seduz porque nos conduz para outros lugares simbólico-imaginários, porque nos leva para longe deste mundo das ocupações que compartilhamos com os demais seres humanos ( mundo das contas que nos fazem ser sempre endividados até o túmulo, da azáfama do dia a dia, que nos põe na condição de operários a cumprir prazos de um tempo fugidio). A sedução verbal é o deleite com a concatenação dos signos, com a articulação de significantes pelos quais vazam significados imprevistos, escorregadios, não totalmente controlados . Na sedução verbal, experiencia-se o êxtase da incompletude que constitui a linguagem, o êxtase da impossibilidade de esgotar o sentido, mesmo com a pretensão de gozá-lo. A linguagem nos constitui como animais excêntricos, extravagantes, não fixados, como animais que se habituaram a crer que o mundo da linguagem é coextensivo à realidade como um todo, que este mundo do discurso totaliza tudo que há. Paul Veyne, referindo-se à noção de discurso em Foucault, comparava os discursos a aquários: o homo loquens é como peixes no aquário. Somos prisioneiros desse aquário (discurso) cujas paredes sequer percebemos. Não temos acesso à verdade “verdadeira”, a um mundo já ordenado atrás e para além do discurso.

Mas há os que, cientes disso, jogam o jogo da sedução verbal como a criança que forja mundos imaginários pelo puro prazer de brincar; e há aqueles que, compondo a maioria dos animais simbólicos, creem que a sedução verbal os levará a acocorar-se junto à verdade. Estes se deixam seduzir pelos trajes metafísicos que insinuam a nudez da linguagem. Mas, tão logo se detenham a examiná-la, descobrem que a linguagem nada tem a desvelar, que um signo tem como interpretante outro signo num processo semiótico ad infinitum, no qual “a coisa” mesma que se esconde sob máscaras, sob disfarces, não é ela mesma, mas outro signo; estamos sempre em busca de um objeto perdido que, na verdade, nunca existiu; buscamos algo por trás da semiose que insiste a furtar-se a nós, porque não há este algo que surpreenderíamos por trás da trama simbólica. A sedução verbal é uma promessa de completude, de deleite pleno lá onde o que nos aguarda é a incompletude e o fracasso de quem busca o impossível.

 

 





NIETZSCHE COMO ANTIMETAFÍSICO

 

UM DIÁLOGO

 

De acordo: pode-se ser ateu e, não obstante, pensar Deus como problema filosófico. Mas, nesse caso, Deus é pensado como ideia ou conceito. Nietzsche negou todas as objetividades da metafísica, Nietzsche negou a metafísica e sua pretensão de absolutizar os valores, de tomar como coisas existentes em si e por si mesmas o que é da ordem das ficções humanas. Para Nietzsche, o homem inventou a metafísica porque não suporta a sua finitude, porque não suporta o efêmero, porque teme a própria morte. Divino, Deus, Sagrado são ideias, ou ficções humanas, ficções (no sentido etimológico de “criação, fabricação”) de cuja origem o homem não se reconhece como agente. O sagrado é um valor que o imaginário-simbólico constitutivo da ordem social objetivou, de modo que os seres humanos não mais o reconhecem como valor instituído pela própria atividade deles. Nietzsche, nesse sentido, foi o grande desmitificador do homem, aquele que pretendeu levar o homem a se aperceber de que aqueles supremos valores em que até então acreditaram como existentes independentemente de si e em nome dos quais a existência humana se orientava, se normatizava eram criações suas; e não só: - eram criações que enfraqueciam a vida, que a negavam. O Deus cristão bem como a moral cristã para Nietzsche, eram a antítese da vida. Nietzsche foi um antimetafísico contumaz: em sua crítica corrosiva da metafísica platônico-cristã, ele nos fez ver duas coisas: 1) que tudo aquilo que a metafísica tomava como dotado de caráter de substância, de essência, ou seja, como coisas que existem por si e em si mesmas, são ficções simbólico-imaginárias, são produtos da atividade humana; 2) que aquelas ficções da metafísica se instituíram contra a vida, que aquelas ficções levaram ao adoecimento do animal humano e ao enfraquecimento da vontade de potência ou da própria vida. Em nome daquelas ficções em cuja origem o animal humano não se reconhece como criador, o homem se pensou como um ser superior na natureza, o homem se acreditou como ser dotado de algum privilégio metafísico, o homem negou em si a animalidade e a vida mesma. Portanto, a metafísica edificou catedrais como signos da elevação metafísica do homem, como signos da crença humana em sua superioridade em relação ao todo natural existente. As catedrais são signos da megalomania metafísica humana. Em suma, eu diria a você, que também em nome do sagrado o homem se sacralizou, se distanciou de suas origens animais, se compreendeu como o ser superior em relação aos demais seres, negou a vida instintiva. E isso Nietzsche não perdoou. Se Nietzsche disse só acreditaria num deus que soubesse dançar, é porque um deus dançarino é a antítese do Deus metafísico, o deus da dança é deus da potência, da alegria, é deus do movimento, do devir, é deus da leveza que quebra a tirania do ressentimento, que supera o dualismo entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente. O Divino, em Nietzsche, só poderia ser pensado nesse registro da superação da forma-homem cunhada pela tradição metafísica. Toda tentativa, meu caro amigo, de conciliar, de algum modo, Nietzsche com a metafísica e suas criações é não só não compreender profundamente Nietzsche, como também distorcer sua obra. Até hoje, não ousamos realizar a grande transfiguração pretendida por Nietzsche no modo de ser do homem, até hoje não ousamos dar à luz este novo homem que Nietzsche imaginou, que Nietzsche desejou: um homem verdadeiramente livre e conciliado com a vida e com sua existência mundana.

 

 

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

"(...) a existência, tal como é, sem fim nem objetivo, mas inevitavelmente retornando, sem um finale no nada: "o eterno retorno"". (Nietzsche)

 



                      Quando a loucura chega ao poder

 

Em meio a essa insanidade coletiva, tenho me sentindo intelectual e emocionalmente asfixiado. E não é figura de linguagem ou força de expressão: tenho somatizado tudo que estamos vivendo em manifestações sintomáticas de ansiedade e desânimo cognitivo. Minha estratégia para não sucumbir a um estado de ansiedade generalizada ou irromper em fúria, é ler para entender, por exemplo, como é possível que o animal humano seja capaz de tanta loucura e estupidez. Mas, em vez de me aliviar, ler para entender intensifica minha perturbação e perplexidade, porque estudos em psicologia parecem confirmar que os animais humanos não são naturalmente predispostos a buscar a verdade. Há várias teorias, em psicologia comportamental, que buscam explicar por que muitas pessoas simplesmente se recusam a mudar suas opiniões, porque continuam a se comportar em conformidade com suas crenças estúpidas, irracionais, mesmo diante de evidências que as contrariam, que as invalidam. Em suma, tentar entender como é possível a estupidez humana generalizada não tem me ajudado muito emocionalmente. Muito pelo contrário, além de intensificar o sentimento de perplexidade e inquietação, lança por terra a minha confiança na racionalidade e na razão discursiva como ferramentas de combate. Sim, devemos admitir que nos enganamos quando acreditamos ser possível combater a desrazão com a razão, quando pressupomos que basta o diálogo logicamente organizado para extirpar a loucura das massas, para trazer de volta à lucidez uma pessoa que age e pensa em desconformidade com o bom senso. Já escrevi aqui que Descartes se enganou a respeito da distribuição igualitária do bom senso. Não é o bom senso o que é distribuído justamente entre os homens; mas a estupidez. A considerar o que nos ensinam os estudos em psicologia comportamental, os seres humanos não estão naturalmente predispostos à verdade, eles querem vencer discussões, querem proteger sua autoestima, seu ego, evitando o confronto com aquilo que lhes mostre que estão errados. O conhecido efeito Dunning-Kruger, por exemplo, nos diz, grosso modo, que “quanto mais burro você for, mais confiante você será de que não é realmente burro”. As pessoas sofrem de muitos vieses que funcionam como mecanismos psicológicos de preservação do valor próprio delas. Mas além desses vieses, devemos admitir que nem todos são inteligentes o suficiente para reconhecerem que estão errados, para reconhecerem sua própria estupidez (sim, os burros existem e não há nada que possamos fazer!). Nem mesmo sabendo disso, sinto-me mais aliviado, porque são minhas crenças iluministas básicas que estão em jogo, crenças inegociáveis, porque são elas que me motivam para o exercício da filosofia. Ora, vejam, estou me dedicando a uma pesquisa de doutoramento em filosofia em que procuro pensar o niilismo como condição de possibilidade para a desmitificação do homem, para seu retorno à vida da Lucidez, porque, na maior parte das vezes, esse animal estúpido e doente vive na Caverna de Platão. Como continuar acreditando ser possível essa travessia, esse resgate em face do caos de dissonância cognitiva, de insanidade, de irracionalidade em que vivemos? Talvez seja isto: o animal humano é terminantemente doente e irreversivelmente louco, sua condição insana é incurável.

Resta aos sãos de corpo-espírito tocar o barco...



(...)


Neste cair da noite, revisitando as páginas de Nietzsche, supero, momentaneamente, aqueles sentimentos diurnos de cansaço, fraqueza e desespero, ao recordar que o mundo, para Nietzsche, é um  processo cujas forças múltiplas combatem umas com outras sem trégua. Recordo, em suas páginas, que a vontade de potência precisa daquilo que lhe faz resistência para se autossuperar. Que a vontade de potência é uma força plástica e criadora. Que a luta que se trava entre as vontades de potência não visa a metas ou a objetivos, mas expressa o caráter agonístico e a pluralidade beligerante do mundo enquanto criação e destruição contínuas. Se Nietzsche sofreu, soube ser combatente de seu sofrimento, combatente de todas as manifestações de fraqueza, de degenerescência das vontades de potência infestadas pela negatividade. Em suma, o vir-a-ser do mundo é o do conflito, da guerra sem trégua entre os contrários e a afirmação deste mundo exige-nos uma única tarefa inalienável: “ser o que sempre deve superar a si mesmo” (Zaratustra)




                                  A lucidez niilista


Situado numa abordagem dialógica das filosofias de Nietzsche, Schopenhauer e Cioran, o niilismo é, em nossa pesquisa, encarado como a condição sine qua non do pensamento, na medida em que pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante. Assumindo esse pressuposto, propomo-nos discutir a problematicidade do niilismo compreendendo-o, na esteira de Nietzsche, como um fenômeno polimórfico e polissêmico que, não podendo ser reduzido à lógica do movimento agonizante dos valores superiores, nem ao próprio movimento histórico-cultural que leva à aniquilação todo um imaginário-simbólico plasmado na interpretação socrático-platônico-cristã moral de mundo, descerra a sua própria Lucidez como a qualidade que leva o homem a despertar-se, a desenganar-se, a desiluniosar-se acerca de sua condição como ser no mundo. Habitando a Lucidez niilista, o homem pode reconhecer-se como um animal integrado à natureza, como um fio da teia da vida. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Nós, homens e mulheres do Ocidente, vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo, como pensava Nietzsche, é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. É esta a qualidade que tem o niilismo também no pensamento de Schopenhauer e Cioran, conforme se mostrará. Este trabalho de desmitificação do homem, no entanto, não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. O niilismo ativo também deve ser ultrapassado para que se perfaça o niilismo extremo, este sim a variante de niilismo que torna possível ao homem assumir-se como criador, como artista de sua existência. Articulada ao atual contexto pandêmico da Covid-19, nossa pesquisa nos leva a questionar não só o estatuto metafísico-imaginário que o homem atribui a si mesmo crendo-se o ápice da Evolução ou a coroa da Criação, como também nos incita a pensar nos impactos de suas ações predatórias sobre o ecossistema do qual ele não se reconhece como parte, por força de sua constituição como ser social ou cultural alienado. Nesse contexto de questionamento, é possível pensar o niilismo como a condição histórico-antropológica para a abertura de uma visão de mundo calcada sobre uma ecologia profunda, à luz da qual o mundo é uma totalidade integrada e os seres humanos não são seres apartados do meio ambiente natural, mas um fio da grande teia da vida.