Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

"Na medida em que a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo, a desintegração da fantasia pode ter consequências desastrosas". (Slavoj Zizek)




A Dança da Morte

 

 

Uma jovem que faz vídeos de TikTok e que conta com quase 200 mil seguidores foi alvo da indignação, do repúdio e da desaprovação dos internautas, após um vídeo que ela fez no quarto de hospital onde sua mãe, em estado terminal de câncer, viria a falecer no dia seguinte. O acontecimento protagonizado pela jovem foi avaliado negativamente por meio das expressões “falta de respeito”, “absurdo”, “irresponsabilidade” (e imagino que os seguidores da jovem tenham usado outros tantos índices de avaliação negativa análogos). Permitam-me fazer uma interpretação do caso que torne visível aquilo que as manifestações simbólicas do senso comum não trouxeram à luz. Que os lacanianos me perdoem se, por ventura, me valendo dos três registros com que Lacan pensa a existência humana, eu ignore um ou outro aspecto da problemática por que eles respondem na teoria deste psicanalista francês.

Para Lacan, o imaginário, o simbólico e o real são os três registros fundamentais que estruturam a existência humana. Eles são as dimensões fundamentais em que um ser humano habita. Os três termos estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano. O imaginário, para Lacan, recobre a ordem do sentido. O imaginário é o domínio da nossa experiência vivida imediata da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelos. O imaginário é o imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o natural. Em suma, o imaginário, grosso modo, é o domínio do modo como as coisas aparecem para nós. O registro do simbólico, por seu turno, é o que Lacan chama “o grande Outro” - o outro invisível que estrutura nossas experiências da realidade. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real. A entrada do sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A linguagem, inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse campo. Em suma, “o grande Outro”, que é o simbólico, é uma complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que vemos da maneira como o vemos ( e o que não vemos da maneira como não vemos). Por fim, temos o real . O real de que fala a psicanálise não se identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, o real é um encontro traumático, que não pode ser simbolizado, de extrema violência que desestrutura e fragiliza inteiramente nosso universo de significado. O real não é a coisa-em-si kantiana; não é uma coisa externa que resiste a ser apanhado na trama do simbólico, mas são as fissuras, os vestígios e as consequências, os efeitos que se deixam discernir na rede simbólica. O real é um efeito das lacunas e das incoerências da rede simbólica.

Nós nunca encontramos o real diretamente. Na verdade, nosso encontro com o real traumático é evitado pela fantasia.  Como diz Zizek, "a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo". ( 2017, p. 31). O real é o acontecimento - a morte da mãe, a perda definitiva no nunca mais, a ruptura de um vínculo no vazio do sem sentido do real. Tudo que o homem pode experienciar é da ordem do simbolizável; a ordem simbólica é fundante; ela sempre já existiu. A dancinha da jovem busca reinscrever o real traumático, o sem sentido no registro do imaginário-simbólico. E todas as avaliações negativas (expressas pelos significantes “absurdo”, “desrespeito”, e outros mais) que foram dispensadas sobre a jovem que fez a dancinha de TikTok, momentos antes da morte da mãe, são tentativas de reestruturar o domínio imaginário-simbólico, para que a morte encontre nele sentido, um registro significativo. A dancinha da jovem se inscreve na ordem simbólico-imaginária do banal, do trivial, do comum, do lúdico, da indiferença. Essa dimensão do banal, do comum, do lúdico absorve o acontecimento, diluindo o real traumático da morte. A morte é da ordem do sem sentido , da quebra, do corte com a ordem simbólico-imaginária. Quando vamos a um enterro, participamos de um evento de ritualização da morte. Nas práticas funerárias,  inserimos a morte na ordem simbólico-imaginária que estrutura a realidade comum vivida. A morte, tão banal e comum a todos os viventes , deixa de ser um evento da ordem natural simplesmente (morre-se e isso é tudo), para fazer parte da ordem simbólica (cultura). Assim, evitamos o confronto violento com o real da morte. Em nossa cultura cristã, a morte não é o fim da vida; a morte é ressignificada, semiotizada, como uma passagem, um acesso a outro modo de existir, a um além-mundo onde os mortos que enterramos viverão. A morte é, assim, um intervalo que interrompe, por certo período de tempo, a convivência daquele que deixa este mundo com aqueles que nele ficam. Tais formas de representar a morte expressam os modos como o evento da morte é inscrito na ordem simbólico-imaginária; em outros termos, as diferentes representações culturais da morte são as formas como o evento da morte passa a integrar os universos simbólicos, culturalmente construídos, no interior dos quais toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. 

O que causou indignação pública, ou mesmo escândalo, na dancinha de TikTok em face da mãe moribunda é menos a irrupção do domínio íntimo e privado na esfera pública do que o real da morte que ficou muito aparente. A insistência do real em se deixar ver, em aparecer nas fissuras do simbólico, provocou a reprovação do grande Outro. O grande Outro precisou intervir, com seus significantes, para restituir o modo simbólico-imaginário como o sujeito tem de experienciar o acontecimento da morte da mãe. Pois a dancinha expunha o que não pode ser tolerado, porque é real demais: a insignificância radical da existência e a banalidade da morte. A dancinha de TikTok continuaria a ser feita depois do sepultamento da mãe, porque, afinal, o banal da vida resiste, insiste e prossegue depois que a ‘seriedade’, a solenidade, o respeito, a deferência profunda à figura do morto e o assombro em face da inexorabilidade da morte são suspensos, são novamente afastados de nossa consciência imediata do mundo. Enterramos os mortos para que o horror do real que representam não nos atormente e não perturbe o curso normal e banal de nossas vidas. A vida precisa continuar significa precisamente isto: a morte e os mortos precisam deixar de perturbar, de desestabilizar a ordem simbólica e imaginária que nos permite levar adiante a vida. A dancinha do TikTok antecipou aquilo que tem de ser, de qualquer modo, feito: o mortos precisam deixar de nos perturbar, a morte deve manter-se afastada, por um longo tempo, da rede simbólico-imaginária que torna possível a vida social, e a banalidade do viver deve prevalecer sobre a insignificância radical da existência humana, que é demasiado real para ser encarada.

  

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"A ideologia funciona muito mais por meio do bloqueio da percepção de outras possibilidades, de outras realidades..." (Silvio Gallo).





       O LOUCO e a MORTE

 

A morte é um escândalo! Acordem! A vida é nua e ostenta sua nudez pavorosa e abissal!

E não me venham com este papinho disfarce: “vivamos intensamente o dia de hoje porque amanhã tudo poderá acabar”!

Mas tudo já está acabado. O decreto foi emitido há 14 bilhões de anos. Vivemos como os desavisados (ou fingidos?) que não conseguem ver que “o rei está nu”. Nossa morte herdamos quando nascemos. Contraímos uma dívida e vivemos como endividados que protelam o tempo de saldá-la. O credor, no entanto, não dá aviso prévio e não admite calote.

Ao romper o ventre materno fomos condenados a ela. Não há meios para apelação!

Tudo é pó, tudo é pó! Cinzas, poeira estelar! O silêncio da imensidão que ignoramos e que nos ignora há de calar nosso burburinho. Deixamos em cada passo que damos o rastro de nossa sepultura, em cada passo alimentamos a avidez dos vermes que nos consumirão. A morte nos engravidou de si quando nascemos. Somos todos defuntos adiados, como bem escreveu o poeta.

A perspectiva de nossa morte como um destino implacável e inevitável dá a tudo que fazemos um aspecto de porosidade, de precariedade, de fragilidade, de uma vacuidade ritualística fúnebre. Em face do Inevitável e Insondável, todos os nossos esforços se tornam radicalmente desimportantes e nossos atos cotidianos se perfazem como pretextos para não encarar o horror de nossa condição existencialmente trágica. Realizamos meros atos cênicos de uma performática teatral cosmologicamente insignificante. Atuamos, quase sempre, ou por costume ou por fraqueza, ou por covardia.

Cumulamos coisas que durarão mais do que nós mesmos. E nos apegamos a coisas das quais necessariamente nos separaremos. Mortos, é como se nunca estivéssemos existido. A morte não concede memória, não faz inventário. Ela simplesmente revoga tudo, dá a tudo o caráter de inanidade. A perspectiva de nossa morte torna a vida semelhante a um sonho. Mas o despertar deste sonho não é outra vida (fantasia dos crédulos). É o nada que não podemos conceber, o nada que sequer podemos imaginar. O nada é o sussurro do túmulo a nos lembrar de que, num nível fundamental, não somos mais do que “fluxo de eventos, processos que por um breve tempo são monótonos”. Somos um vibrar de ‘quanta’ que, por um tempo, conserva uma identidade antes de se dissolver no seio da natureza.

A couraça da loucura normal impede-nos de nos apreender como os atores que encenam uma tragédia, cujo desfecho é reencenado há milhões de anos...

jogamos um jogo do qual somos necessariamente os perdedores... quem ousa dizer que venceu na vida não compreendeu absolutamente nada...

A crença de que os mortos habitam outro lugar, de que vivem em outro mundo é um sintoma de nossa incapacidade de lidar com o nada, com a injunção do nunca mais. Cremos na vida pós-túmulo, porque nos recusamos a aceitar a nossa finitude, porque não queremos aceitar que a morte é o fim definitivo, o maior de nossos tormentos. Todo viver cotidiano é uma fuga persistente à morte que nos persegue como nossa sombra. Pomo-nos em fuga no esquecimento de que somos passageiros com destino para o cemitério. Viver como quem está continuamente a se despedir para nunca mais retornar é esta a única maneira de não nos levarmos muito a sério, de aceitarmos que precisamos de uma dose de loucura para não sucumbir ao desespero total e paralisante.

 

 

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte.”

Sigmund Freud

 

 

“A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal.”

Raul Seixa 






Gozem! Gozem! Gozem!

 

A “irracionalidade” do sucesso ou do fracasso do capitalismo de mercado oferece-nos um único benefício: permitir que percebamos nosso fracasso (ou nosso sucesso) como “imerecido”, contingente. A própria injustiça do capitalismo é uma marca essencial que o faz ser tolerável para a maioria das pessoas, dado que nós podemos aceitar nosso fracasso mais facilmente, desde que saibamos que ele não se deve às nossas qualidades inferiores, às nossas incompetências e fraquezas, mas ao acaso. Lacan comunga com Nietzsche e com Freud na tese de que a justiça, tal como a igualdade, está assentada na inveja: na inveja que sentimos do outro que tem o que não possuímos e que se deleita com isso. A demanda da justiça é, em última instância, a demanda de restrição ao gozo excessivo do outro, de sorte que, restringindo-se o gozo do outro, todos tenhamos igualmente acesso ao gozo. Mas essa demanda produz um resultado necessário: o ascetismo. Na impossibilidade de impor um gozo igual, resta impor uma proibição, igualmente partilhada, ao acesso ao gozo. No entanto, contraditoriamente, nossas sociedades do espetáculo atuais pedem a todos uma única coisa: Gozem! Essa é a injunção generalizada que está no cerne da espetacularização de toda vida nas sociedades contemporâneas de mercado. Gozem, Gozem, Gozem! Com a condição de que tudo que se ofereça ao gozo seja desprovido da substância que o torne perigoso.





A ordem simbólica: o sujeito suposto crer

 

 

“A verdade tem a estrutura de uma ficção” (Lacan)

 

As emoções que enceno através da máscara que visto (a falsa persona) contém mais verdade do que posso admitir em meu foro íntimo. A polidez ilustra muito bem isso. Se, ao encontrar um conhecido, lhe estendo uma das mãos, dizendo “É um prazer revê-lo! Como vai?”, fica claro para nós dois que eu não estou genuinamente falando sério (se o meu conhecido desconfiar de que estou genuinamente interessado, pode até se sentir incomodado com meu atrevimento em querer tomar par de sua intimidade). Não é que eu seja necessariamente hipócrita, já que realmente sinto prazer em revê-lo. Apenas celebramos a renovação de um pacto entre nós dois. Sinto prazer em revê-lo e finjo estar interessado em saber sobre sua vida, mas nem ele espera que eu insista em querer saber demais (e verdadeiramente) sobre a vida dele nem eu espero que ele desfie para mim tudo o que lhe aconteceu durante o longo tempo em que estávamos distante. No ciberespaço, é o próprio fato de eu estar ciente de que me movo num espaço de ficção que posso expressar meu “verdadeiro eu”. Nos “reality shows”, os participantes do programa representam a si mesmos tais como se representam na “vida real”. A lógica aparentemente absurda do modo como funciona a ordem simbólica é esta: a máscara social que um indivíduo usa importa mais do que a realidade mesma deste indivíduo. Freud chamou essa estrutura de “renegação fetichista”: “sei muito bem que as coisas são como as vejo, que a pessoa diante de mim é um covarde corrupto, mas mesmo assim eu o trato respeitosamente, porque ele usa a insígnia de um juiz, de modo que, quando ele fala, é a lei que fala através dele”. Acredito, de certo modo, nas palavras dele e não em meus olhos. Quando um juiz fala, há, de certo modo, mais verdade em suas palavras (palavras estas da instituição da lei) que na realidade de sua pessoa. O cínico falha justamente aí quando se detém a considerar os fatos incontestes. A cultura, portanto, nada mais é do que o nome que damos a coisas que praticamos sem, de fato, acreditar nelas, sem levá-las inteiramente a sério.






A BUSCA ILUSÓRIA DO “ser si mesmo”

 

 

Toda cultura produzida segundo a lógica do capital é cultura capitalista. Félix Guattari, aliás, considera descabido opor uma cultura erudita a uma cultura popular. Para ele, só há uma cultura: a cultura capitalista - etnocêntrico e logocêntrica. Toda sociedade territorializa os indivíduos, isto é, insere-os num território dentro do qual eles podem viver, estabelecer relações e produzir tanto como sujeitos da produção material quanto como sujeitos a serviço da canalização, da codificação e da recodificação dos fluxos desejantes. A essência do capitalismo reside na abstração: tudo é desorganizado para ser novamente reordenado segundo a lógica do capital. A única coisa que não se transforma continuamente é o capital. A moeda continua soberana impondo seu regime a todos os fluxos de desejo, transformando-os em mercadorias, em dinheiro abstrato. Os indivíduos experienciam ilusoriamente sua subjetividade como se ela correspondesse ao seu “si mesmo”, ignorando o fato de que a subjetividade é de natureza maquínica, porque produzida pelas máquinas de territorialização. O que Guattari chama de “produção de subjetividade” é o modo como os indivíduos são fabricados socialmente, são normalizados, inseridos em relações uns com os outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão - estes não são visíveis e explícitos, mas sutis e dissimulados. A produção de subjetividade se dá em vários níveis da produção e do consumo, inclusive no nível inconsciente. Segundo Deleuze & Guattari, a máquina capitalista produz até aquilo que acontece quando sonhamos, quando fantasiamos, quando desejamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. No capitalismo, a produção da subjetividade é mediatizada pelo capital. O homem se torna mais abstrato do que nunca; sua subjetividade é produzida por representações, por aparências vazias que alimentam o mundo das máquinas da megaprodução. É assim, portanto, que a sociedade “penetra” no indivíduo; é a assim que a ideologia fábrica o indivíduo de que a sociedade necessita para produzir e reproduzir a sua estrutura. Para Guattari, desde a infância, o indivíduo é fabricado por uma máquina de produção de subjetividade capitalista por meio de processos de inserção gradativa dele em seus modelos tanto técnicos quanto imaginários. A sociedade, portanto, fixa as referências, cria as coordenadas por meio das quais os indivíduos se orientam, se reconhecem facilmente e se produzem, reproduzindo, ao mesmo tempo, a maquinaria de produção que os fabricou como sujeitos. Portanto, a percepção que o indivíduo tem de si mesmo é socialmente fabricada. Situando a questão no âmbito da psicanálise, Zizek diria que o “si mesmo” não é nada mais do que a textura simbólica da identidade do sujeito, que é, em todo caso, um constructo. O sujeito puro, em psicanálise, é nada ou uma forma de nada. Em seu ponto zero, o sujeito é como uma casa vazia na qual “não há ninguém”. O sujeito só emerge quando o indivíduo se vê privado de seu conteúdo substancial (que é imaginário). Como uma ameba descomunal, a sociedade estende seus pseudópodes sobre cada indivíduo, fagocitando-o, digerindo-o e transformando-o numa de suas múltiplas partes.

 


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

"Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto." (Sartre)

 




A um amigo enlutado

 

Supondo oportuno este momento em que você ainda está em trabalho de luto, compartilho alguns sentimentos angustiantes que me são familiares e que, de um tempo para cá, têm se me tornado mais dilacerantes e assíduos. Estou eu cá com um livro, como de costume, envolvido em uma leitura densa... E subitamente sou tomado por uma carreata estrondosa de pensamentos e sentimentos que me levam a me questionar por que me dedico tanto aos livros, por que os cumulo, para que leio tanto, para que tenho tantos livros, se só tenho uma vida apenas, tão débil e incerta, que pode ser mais breve do que eu esperaria que fosse e que, portanto, pode apagar-se, a qualquer momento, como a chama de uma vela? Sartre dizia que a morte é absurda... sim, de fato... a morte é um corte muito profundo e irremediável, uma ruptura definitiva com tudo aquilo que valorizamos e amamos na vida... a morte não só nos priva do convívio com as pessoas que amamos, mas também com aquele mundo de coisas e atividades que apreciamos, como a leitura, por exemplo... quando eu morrer, não poderei mais ler os livros que gostaria de ler ou continuar lendo... e estes livros que hoje me valem tanto terão um destino que ignorarei, porque os mortos têm uma inveterada e impertinente mania de serem indiferentes, de serem desapegados, de serem insensíveis... ( e os livros serão doados? Vendidos? Destinados ao lixo? - que me importa!)...nunca mais os reencontrarei, nunca mais terei o prazer de lê-los... nunca mais estarei aqui com eles ao redor disponíveis para que eu os leia e me demore na nudez de suas páginas durante horas... nunca mais, nunca mais, nunca mais... a morte também me priva de tudo que eles me oferecem e me possibilitarão, dos saberes que esperava compartilhar... saberes que morrerão comigo... Quando envelhecemos, deveríamos nos habituar ao desapego... o envelhecimento é um processo de desligamento, de despedida gradativa de tudo aquilo que outrora superestimávamos... nós deveríamos evitar cumular coisas à medida que envelhecemos (embora eu conheça velhos que não fazem senão acumulá-las, num ato inconsciente de protesto e resistência vã contra o processo de desfazimento da vida)... mas eu também acumulo... acumulo livros que provavelmente se tornarão coisas inúteis, quinquilharias que o tempo, o mofo e as traças consumirão... à medida que os anos passarem, que as rugas fizerem sulcos em meu rosto, que o meu corpo ficar ressequido, debilitado, carcomido e que o sentimento da vanidade de tudo tornar-se o sentimento soberano e uníssono em minha existência, nem mesmo os livros valerão o tempo que lhes dedico... quando jovens, raramente o temos, tudo tem graça, vibração, colorido e sentido... mas o envelhecimento vai erodindo uma a uma nossas ilusões sobre a vida... “Amadurecer é aproximar-se da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”, escreveu Pondé... Como o negar?

terça-feira, 11 de maio de 2021

"A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre." (Oscar Wilde)

 

                                                                        


 

 

A vida como destino para a morte

 

 “A Vida se transmite como uma lepra: criaturas demais para um só assassino.”

 Cioran

Eis o essencial:

           

 

A vida é um trabalho permanente (batimentos cardíacos, circulação sanguínea, respiração pulmonar) de consumo de energias durante o qual a vida é conduzida à morte. Morte e vida são inseparáveis. Como ensina Bichat, a vida é o conjunto das forças que resistem à morte. A vida é, portanto, também um trabalho permanente de luta contra a morte. A vida, ao consumir suas energias, carece de se alimentar. Assim, todos os seres vivos se esforçam para adquirir o alimento que reponha suas energias. A evolução dotou animais de nadadeiras, ou de patas para que alcançassem esse objetivo. Animais predadores consomem outros animais. A atividade da vida produz a morte a que tanto resiste aniquilando outras vidas. Nos seres pluricelulares, a morte inscreve-se em seu organismo na forma de aniquilação das células, as quais são substituídas por outras novas. Quanto mais complexa se tornou a vida, mais se fragilizou, mais se viu ameaçada pela morte, mais se organizou para lhe fazer resistência. A morte é o preço pago para viver. Na luta contra a morte, a vida devora a si mesma.

A vida é um fenômeno marginal e extraordinário no seio do mundo físico. A vida é inteligente, engenhosa, criadora, mas também incompreensível, absurda, insana e horrível. Se a organização dos seres vivos exibe espantosas engenhosidade e complexidade, a vida é loucura. Quando examinada nos detalhes e acuradamente, a vida não segreda nenhum sentido último. O sentido da vida é a morte e viver por viver é a finalidade que se esconde na absurdidade da vida.

 


 






  

A política do senso comum

 

 

Diz o ditado que “futebol, política e religião não se discute”, e não se discute porque tais temas, supostamente, mobilizam, nos interactantes, paixões exacerbadas, incendiárias, que poderiam levá-los facilmente a inimizades e, no limite, a agressões mútuas que encerrariam a discussão. Mas, no caso específico da política, o que a torna tão pouco discutível no domínio do senso comum é que os interactantes, geralmente, estão muito pouco capacitados para um debate equilibrado e fundamentado teoricamente. A política, enquanto área do saber humano, também tem seus especialistas (cientistas políticos, sociólogos, filósofos...), os quais dispõem das ferramentas conceituais para realizar uma análise crítica do fenômeno político. O fenômeno político, como todo fenômeno humano-histórico, é complexo e, por isso, demanda daqueles que ousam convertê-lo em tema ou em assunto de debate nos encontros casuais da cotidianidade mediana, certo repertório de saberes e conceitos que devem ser sistematizados e definidos na discussão. Mas é justamente deste repertório e desta competência para a sistematização e para a definição dos termos empregados que carece o senso comum. E essa carência é uma das razões por que me sinto desencorajado a me embrenhar em “discutir política” no domínio do senso comum. No domínio do senso comum, ao se levantar um tema político, os interactantes não especialistas fazem desfilar, em suas falas, uma série de dislates disfarçados de bazófias, que transformam o que deveria ser um debate num falatório de velhas rabugentas que, em certa altura, já não sabem mais sobre o que realmente estão discutindo. A sobriedade dos espíritos que reconhecem ser o real mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele é, quase sempre, asfixiada pelos dizeres balofos e enervados de certezas absolutas. Um professor de filosofia que tive, a quem admiro, certa feita, ensinou que filósofos devem fugir de debates, de discussões cujo propósito é decidir ao fim e ao cabo quem tem razão. Desde então, tomei esta lição como um princípio ético-metodológico. É que aos filósofos - ele ensinou - importa o pensamento, o exercício do pensamento. E a única coisa que não se exercita nas cenas cotidianas de “debate político” é o pensamento. Não, exercitar o pensamento não é vomitar lugares-comuns, preconceitos, crenças infundadas e ideologicamente orientadas típicas do imaginário coletivo, a fim de medir forças com o interlocutor para impor sua visão pessoal sobre um estado-de-coisas. O senso comum aspira ao monopólio da opinião correta, verdadeira, que deve ser tomada como dogma inquestionável. A tendência do senso comum é sempre simplificar uma problematicidade que, por definição, é complexa. O senso comum não admite a pluralidade de perspectivas (como nos ensina Nietzsche), os múltiplos olhares, a dúvida como princípio metodológico. O senso comum tem a presunção de saber tudo, de esgotar tudo o que se pode saber em algumas concatenações verbais semanticamente insuspeitas na aparência, mas grávidas de pressupostos equívocos. Em matéria política, o senso comum de nossa sociedade, confunde, com frequência, conceitos que não descrevem o mesmo fenômeno. Por exemplo, confunde Estado com Governo. E é comum que, se a questão formalmente socrática “o que é?” é levantada neste domínio do discurso, o silêncio predomine até o momento em que é entrecortado por dizeres evasivos de ataque pessoal ao interlocutor... E, se um dos interlocutores ousar definir os termos relevantes na discussão, atrairá sobre si as suposições de pedantismo. Chamar o outro de pedante, de pernóstico, de enfatuado é a estratégia comum da burrice que se institucionalizou neste país para desqualificar o contraditório. É difícil, eu sei, manter um silêncio monástico quando nossos ouvidos são atravessados e perturbados, e nosso espírito é afrontado por dizeres que carreiam tolices, clichês, preconceitos, despautérios, mas pretender lançar luzes sobre as avenidas escuras e os atalhos sinuosos do senso comum é arriscar-se na paralisia do pensamento, porque o senso comum é como um lodaçal onde o pensamento fica estagnado, atravancado, onde ele não consegue avançar, alçar voos, onde ele não encanta, não semeia o espanto, a admiração. O homem comum é o coveiro do pensamento, e o senso comum é seu cemitério.

 

 

 

 


domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.