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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O caso dos verbos auxiliares

                       
                                


                   O caso dos verbos auxiliares
  Alguns critérios para a determinação da auxiliaridade


A auxiliaridade, ou seja, o comportamento estritamente gramatical que certos verbos exibem quando entram a fazer parte do que, tradicionalmente, se tem chamado de locução verbal, é, sem dúvida, um dos tópicos mais controversos em gramática. Tenciono, neste texto, examiná-lo com vistas a avaliar a adequação de um conjunto de critérios sintáticos que nos permitiriam determinar se, dada a proximidade de dois verbos, um dos quais deve ou não ser considerado um verbo auxiliar. A apresentação desses critérios se seguirá a um longo e acurado esforço analítico de uma série de problemas recobertos pelo fenômeno da auxiliaridade.
Minha hipótese inicial é que os referidos critérios sintáticos, em si, isto é, quando tomados sem qualquer referência ao aspecto semântico implicado na questão, não dão conta de todos os casos que a tradição gramatical considera casos de locução verbal. Sem embargo, penso que eles são indispensáveis para que se consiga estabelecer as condições que fazem de uma combinatória verbal um caso de locução verbal.
Antes de encetar a discussão, faz-se mister dar a saber um elenco de conceitos básicos que devem ser, de antemão, conhecidos, a fim de que a própria discussão se torne tanto mais compreensível ao leitor quanto menos dispendiosa para mim. Com a apresentação e definição desse conjunto de conceitos, creio não só contribuir para facilitar o trabalho de compreensão do leitor, como também me escuso da necessidade de fazer, vez ou outra, ao longo da discussão, alguma digressão para esclarecer um conceito circunstancialmente relevante.

1. Conceitos básicos

1.1. O que é gramática?

O primeiro conceito que eu gostaria de esclarecer é o de gramática. Duas acepções do termo gramática estarão pressupostas no desenvolvimento desta exposição. A primeira acepção do termo gramática recobre a ideia de sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse sentido, todas as línguas naturais são dotadas de uma gramática – de um sistema de regras -, que prevê as possibilidades combinatórias que tomam parte da produção de enunciados funcionalmente aceitáveis em cada língua. Assim, por exemplo, a gramática da língua portuguesa – o sistema de regras dessa língua – prevê uma regra que nos obriga a usar a preposição “de” para conectar o verbo “ter” a uma forma de infinitivo, procedimento de que resulta uma locução verbal (conforme veremos). Um exemplo dessa construção é a frase (a), abaixo:

(a) Tenho  de   sair cedo amanhã.
                         inf.

Por outro lado, a desobediência a essa regra gramatical torna a construção agramatical ou inaceitável para os usuários do português (o * marca a agramaticalidade):

(a1) *Tenho  # sair   cedo amanhã.

A segunda acepção do termo gramática que o leitor deve ter em conta ao longo desta exposição é recoberta pela designação gramática descritiva, a qual constitui uma hipótese elaborada pelo linguista com base na qual ele busca descrever e explicar a estrutura e o funcionamento de uma dada língua. A gramática descritiva, enquanto modelo teórico-metodológico, cientificamente construído com base nos postulados da observação e da análise de certo conjunto de “fatos linguísticos”, eles mesmos determinados pelo recorte teórico-metodológico que, por sua vez, norteia a observação e a análise, visa, portanto, à descrição e à explicação da gramática tomada na primeira acepção acima. A rigor, o que o linguista tenta descrever e explicar é esse sistema de regras – a gramática na primeira acepção - que se encontra inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos na forma de um saber que eles dominam intuitivamente.
Já de início, como eu pretenda situar a problemática sobre a qual me debruçarei, buscarei aporte em um exemplar de gramáticas tradicionais do português, chamadas também de gramáticas normativas, as quais, embora encerrem uma porção de descrição, são orientadas fundamentalmente por uma preocupação prescritivista. As gramáticas normativas, que se identificam com nossas gramáticas escolares, isto é, que, tradicionalmente, fornecem insumo ao ensino de língua portuguesa na escola, são manuais que reúnem certo número de regras pelas quais se estabelece “o bom uso” da língua. Assim,  acredita-se que os falantes que pretendem ser socialmente bem avaliados, quando do uso de sua língua materna, deverão pautar seu comportamento linguístico pelas regras prescritas por essa gramática.
É suficiente dizer – já que o território em que se desenvolve esta discussão não carece aqui de ser inspecionado – que os critérios pelos quais esse “bom uso” é estabelecido são não só variados, como também determinados e sustentados por uma argumentação atravessada por pressupostos elitistas ou aristocráticos quase sempre silenciados ou quase nunca acessíveis aos não-especialistas. O “bom uso” é um valor normativo, sociolinguisticamente determinado, inspirado num ideal de correção idiomática que se busca estabelecer, por seleção arbitrária dos usos feitos pelos assim considerados “grandes escritores” da literatura.

1.2. Formas nominais do verbo

Chamam-se formas nominais do verbo às formas que cumulam a função verbal com a de nomes. Significa isso dizer que tais formas preenchem funções sintáticas típicas de substantivo e adjetivo. Essas formas nominais apresentam as desinências –r, -do e –ndo. Dividem-se em infinitivo, que se comporta como um substantivo (cf. Recordar é viver); em particípio, que assume a função típica do adjetivo (cf. homem sabido/ empresa falida); em gerúndio, que assume a função típica de adjetivo (cf. Despeje a água fervendo na vasilha = água fervente) e também de advérbio, muito embora, atualmente, a classe dos nomes recubra apenas o adjetivo e o substantivo, em virtude do fato reconhecido de que eles são praticamente indistintos do ponto de vista morfossintático (cf. Amanhecendo, sairemos = assim que amanhecer, sairemos/ cedo sairemos). Note-se que, nesse último caso, a forma de gerúndio “amanhecendo” ocupa a posição suscetível de ser ocupada por uma oração adverbial ou por um advérbio simples.

1.3. Significado lexical e significado gramatical

O significado lexical recobre o modo como as línguas segmentam nossas experiências de mundo. Trata-se do significado que corresponde à organização do mundo extralinguístico. Por exemplo, o vocábulo “casa” comporta significado lexical, porque descreve um elemento, uma coisa do mundo exterior à língua.  Estou ciente de que simplifico demais a explicação; mas essa simplificação é indispensável para que não percamos de vista o que é necessário reter na distinção que ora procuro apresentar.
Por seu turno, o significado gramatical compreende o conjunto de distinções significativas que pertencem ao domínio estrito da gramática. Tomando-se a forma “casas”, o elemento “-s” marca a noção de pluralidade que está na base da distinção entre os pares “casa/casas”. A distinção singular x plural é marcada pela oposição ‘presença de marca –s’ e ‘ausência de marca -s’. A presença da marca ‘-s’ indica o plural, ou seja, expressa a quantidade ‘mais de um elemento’ relativamente ao ao referente ‘casa’; a ausência dessa marca indica a ausência da noção 'mais de um'. Nos substantivos, a distinção singular/plural é referencialmente motivada: o singular serve à expressão da ideia de unicidade; o plural, à ideia de pluralidade.  Ademais, essa distinção é determinada por condições gramaticais. A forma assumida pelo determinante (artigo, por exemplo) fixará a forma que deverá ser assumida pelo substantivo subsequente. Assim, em “as casas”, a ocorrência da desinência “-s” em “a” determina a ocorrência da desinência “-s” no substantivo “casa”. Por outro lado, a ausência de marca no primeiro elemento do sintagma implica a ausência de marca no segundo elemento (cf. a casa). Naturalmente, essa regra vale para a variedade de prestígio da língua. Em outras variedades, muito estigmatizadas, basta acrescentar o “s” no artigo para indicar que todo o grupo sintagmático foi pluralizado (cf. as casa).
A distinção entre significado lexical e significado gramatical pode ser estabelecida também em termos da distinção entre lexemas e gramemas. Assim, distinguem-se os lexemas, que são morfemas lexicais que comportam um significado de base extralinguística, o qual representa parcelas de nossa experiência de mundo, dos gramemas, os quais comportam significado estritamente gramatical, responsável pelas distinções operadas no interior da gramática. Por exemplo, se os nomes “Alexandre” e “Márcia” identificam entidades do mundo extralinguístico, os pronomes “ele” e “ela” apenas indicam as entidades do discurso, seja essas entidades designadas por substantivos [+ animado], seja por entidades [- animado]. As formas “ele” e “ela” não designam referentes no discurso, mas nos instruem para que os recuperemos no domínio discursivo. A distinção entre “ele” e “ela” repousa no fato de que a primeira forma remete a um referente designado por um substantivo masculino no singular; a segunda, a um referente designado por um substantivo feminino no singular.
Os lexemas pertencem a um inventário aberto, ilimitado de formas; ao contrário, os gramemas pertencem a um universo fechado ou limitado de formas. Verbos, adjetivos, substantivos e advérbios em –mente (felizmente, alegremente, etc.) são exemplos de lexemas. Artigos, preposições, conjunções, numerais e pronomes são exemplos de gramemas.
Essa distinção, conquanto suscite críticas e sem reivindicar qualquer rigor teórico-metodológico, será importante, todavia, para que se compreendam os verbos auxiliares como formas gramaticalizadas, formas que perderam o significado lexical (mas não todo e qualquer significado, conforme veremos) e com ele sua natureza valencial, no ambiente sintático em que se encontram.

1.4. Locução verbal

Por locução, entende-se um grupo constituído por dois ou mais elementos em vias de cristalização, que pode ser totalmente invariável ou pode admitir a pluralização de um de seus elementos constituintes, desde que não seja o último. Essa definição, deveras, abrangente reúne num mesmo elenco construções como “atrás de” e “cesta básica”, “merenda escolar”. Também aí devemos incluir os substantivos e adjetivos compostos, tais como “navio-escola” e “verde-garrafa”, entre outros tantos.
A definição que apresento não pretende dar conta da complexidade envolvida nessa questão. É extremamente difícil determinar a natureza locucional de um grupo de palavras. Essa definição deve ser encarada apenas como um guia para a compreensão do conceito de locução verbal, que é o conceito que convém elucidar para efeitos de discussão.
A locução verbal é uma unidade semântico-sintática formada pela combinação de dois ou mais verbos, um dos quais preserva sua natureza semântico-sintática. Cumpre, então, esclarecer o seguinte. A locução verbal é um complexo constituído por pelo menos dois verbos, o primeiro dos quais perde significado lexical e assume o papel de suporte para a expressão das categorias gramaticais de tempo, número, pessoa, modo e aspecto. O segundo verbo, no entanto, conserva seu comportamento valencial; é ele o predicador, o responsável por determinar a estrutura relacional da oração.
As noções de número e pessoa são reflexos da pessoa e número do sujeito. Destarte, o verbo se flexiona para expressar as categorias de número e pessoa inerentes ao sujeito. Na locução verbal, é ao verbo auxiliar que cumpre manifestar as flexões de tempo, número, pessoa, modo e aspecto.
A categoria de aspecto diz respeito à duração do processo verbal independentemente da instanciação do tempo. O aspecto indica ou não a estrutura temporal interna de um fato (Costa, 1997, p.38). Assim, por exemplo, na oração “O garoto começou a correr”, o aspecto incoativo, ou seja, a expressão da fase inicial do processo de “correr”, é marcado pelo verbo “começar”, que também atualiza as categorias de tempo, número, pessoa e modo.

1.5. Valência

Entendo por valência a propriedade que tem o verbo, por excelência, na condição de predicador, de determinar certo número de lugares vazios passíveis de ser preenchidos pelos seus actantes. A valência é um fenômeno de base semântica que exibe, no entanto, uma dimensão sintática. Além do número de lugares vazios, o verbo determina também as propriedades morfossintáticas e semânticas dos actantes. A valência é uma propriedade semântica também extensiva a certos substantivos e adjetivos, mas é o verbo a forma que mais sistematicamente a manifesta.
Por actante, entendo cada um dos constituintes sintáticos que preenchem os lugares vazios determinados pela valência do verbo. O fenômeno de valência verbal se sustenta pelo princípio da previsibilidade valencial, por mim demonstrado em minha dissertação de mestrado, o qual se define como o fato de o significado do verbo prever certo número de lugares vazios e tipos morfossintáticos e semânticos de actantes.
Cada um dos lugares vazios é representado por uma das variáveis x, y, z, que são marcadores de posição. A variável x corresponde à posição típica do actante sujeito; a variável y, à posição do complemento direto (objeto direto), outro actante; e a variável z , à posição do complemento indireto (objeto indireto), outro actante.
Assim, tomando-se os verbos “construir” e “dar”, temos as seguintes estruturas relacionais formalizadas abaixo:

(b) X  construir Y
(c) X dar  Y  a  Z

Essas estruturas servem de modelos para a produção de um sem-número de frases das quais “construir” e “dar” são predicadores. Vejam-se os dois exemplos abaixo:


(b1) O rapaz construiu a maquete em uma hora.
           X            v              Y

(c1) O pai    deu   a mesada   ao garoto.
           X       v          Y             Z

Acrescente-se que, além de determinar o número de actantes, o verbo “construir” faz restrição de seleção quanto aos traços semânticos que devem comportam seus actantes. Assim, o actante sujeito deve ser preenchido por um substantivo [+ humano], na função semântica de AGENTE (entidade dotada dos traços [+ animação] e [+ intencionalidade]). O verbo “construir” não autoriza a ocorrência de um substantivo como “cachorro”, por exemplo, para ocupar a posição de sujeito. Ora, claro está que “construir” codifica uma experiência complexa que supõe um agente inteligente, dotado de capacidades cognitivas e motoras que lhe permitam praticar a ação de “construir”.
Por seu turno, o verbo “dar”, na acepção com que foi empregado em (c), a saber, na acepção de ‘transferir ou doar o que se possui a outrem’, tem uma seleção menos restritiva, já que autoriza a ocorrência de um sujeito [+ animado], como “cachorro”, desde que o segundo actante designe um elemento que possa integrar a experiência de um cachorro. Naturalmente, “cachorros” não dão mesadas, mas podem ser treinados para “dar” um molho de chaves ao seu dono.
Há que considerar verbos que fazem ainda restrições quanto à forma do sujeito. Um exemplo desse tipo de verbo é o verbo “convir”, que seleciona uma oração  reduzida de infinitivo para ocupar a posição de sujeito.

(d) Convém dizer sempre a verdade.
                         actante-sujeito

Não menos importante é que esse verbo exige que o sujeito lhe seja, sistematicamente, posposto.  Relativamente aos seus actantes, o verbo determina suas (1) propriedades morfossintáticas; (2) propriedades sintáticas; (3) propriedades semântico-categoriais; (4) propriedades semântico-relacionais.
As propriedades do tipo (1) – morfossintáticas -, recobrem a presença ou ausência de marcas preposicionais introduzindo os actantes. Por exemplo, o verbo gostar exige um actante introduzido de preposição “de” (cf. Gosto de sorvete). As propriedades do tipo (2) – sintáticas – recobrem, por sua vez, as diferentes possibilidades de pronominalização dos actantes. Por exemplo, os verbos obedecer e recorrer exigem diferentes formas de pronominalização de seu actante imediatamente posposto. Para uma frase como “Ele obedece ao pai”, temos a correspondente com pronominalização do actante “ao pai” “Ele lhe obedece”. Mas o verbo “recorrer” recusa a forma “lhe” para substituir seu actante lhe posto à direita. Nesse caso, devemos usar a forma “a ele/a ela”: “Pedro recorreu ao pai”/ Pedro recorreu a ele.
Também é uma propriedade sintática a forma assumida pelo  actante por exigência do verbo predicador. Assim, o verbo “alegrar” pode selecionar para acantante sujeito um SN cujo núcleo é um substantivo, como em “Alegra-me a sua vinda”, ou um SN na forma de oração desenvolvida, como em “Alegra-me que você venha”. É possível também construir o verbo “alegrar” com um actante na forma reduzida de infinitivo, como em “Alegra-me cumprimentá-lo”.
As propriedades do tipo (3) – semântico-categoriais – dizem respeito a restrições de seleção dos semas constitutivos do significado do núcleo dos actantes. Por exemplo, o verbo “espantar” exige que o actante correspondente à função de sujeito seja ocupado por um substantivo [+ animado], como em “O garoto se espantou com a atitude do colega”. Esse verbo recusa a ocorrência de um substantivo nessa mesma posição desprovido desse traço, como em “* A cadeira se espantou com o mau tempo”.
Finalmente, as propriedades do tipo (4) – semântico-relacionais – recobrem as funções semânticas que os actantes devem assumir no estado-de-coisas designado. Novamente, é o verbo que determinará essas funções para seus actantes. O verbo “ouvir” fixa a função semântica de “EXPERENCIADOR” para o actante x (sujeito), ao passo que o verbo “arremessar” fixa a função semântica de AGENTE para esse mesmo actante (cf. João ouviu o barulho que vinha da cozinha/ Paulo arremessou a pedra na vidraça).

1.6. Verbos ergativos

O conceito de verbos ergativos também será importante num momento de minha análise. Verbos ergativos são verbos cuja estrutura valencial encerra um sujeito que cumpre a função semântica de PACIENTE.
Cada uma das construções em que se especificam os actantes do verbo e seus respectivos papéis semânticos é uma diástese. Vejamos um exemplo de verbo ergativo:

(e) O tanque encheu.

O verbo “encher” pode assumir uma forma ergativa. Em (e), ele determina a ocorrência de um substantivo no papel semântico de paciente. Coteje-se (e) com (e1):

(e1) O frentista encheu o tanque.

Agora, o verbo “encher” assume um comportamento transitivo. Seleciona um actante sujeito AGENTE e um actante complemento PACIENTE.
Verbos como “encher” são transitivos-ergativos, porque se comportam como transitivos ou ergativos. A esse grupo deve-se acrescentar o verbo “abrir”, que ocorrerá em um dos próximos exemplos que tratarei de examinar neste estudo. A construção ergativa também é determinada pela valência do verbo.


2. Situando a problemática

Em sua Moderna Gramática Portuguesa (2002), o gramático Evanildo Bechara aduz sua definição de locução verbal nos seguintes termos:

“Chama-se locução verbal a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, o gerúndio ou particípio de outro verbo que se chama principal (...) Muitas vezes o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal dando origem aos chamados verbos aspectuais (p. 203)”.

Deve-se notar que a definição de locução verbal de Bechara assenta apenas no domínio formal do fenômeno, ou seja, sua definição descreve a estrutura de uma locução verbal, e nada nos diz sobre o que faz com que um verbo seja considerado verbo auxiliar, questão principal deste trabalho. Tampouco nos dá a razão por que o outro verbo constituinte da locução é chamado de principal.
Bechara ajunta que, entre o verbo auxiliar e o principal na forma de infinitivo, pode ocorrer ou não uma preposição, entre as mais comuns refere as preposições de, em, por, a e para (cf. Tenho de sair/ Estou para conseguir um emprego). Prossegue o autor observando que, na locução verbal, é somente o auxiliar que manifesta as flexões de pessoa, número, tempo e modo (cf. Haveremos de fazer, iam trabalhando).
Veja-se o elenco de verbos auxiliares apresentado por Bechara a seguir:


1) ter, haver e ser

Os verbos ter e haver constituem os chamados tempos compostos, caso em que se combinam com a forma de particípio do verbo principal. Assim, temos “tenho cantado” e “havia vendido”.

O verbo ser se combina com o particípio-adjetivo (porque variável em gênero e número) para a formação da voz passiva, equivocadamente chamada pela tradição passiva de ação. Não nego que, em muitos casos, o verbo ser entra a fazer parte da formação de uma voz passiva de ação, mas isso se dá apenas quando o particípio deriva de um verbo que indica ação ou processo. Por exemplo, em “O carro foi comprado ontem”, há uma voz passiva de ação, já que o verbo “comprar” denota ação. No entanto, em “João é amado por todos”, não há voz passiva de ação, pois que a forma participial “amado” é formada a partir do verbo “amar” que não denota ação, mas uma experiência de ordem psico-física. É lícito dizer – me parece – que “ser amado” encerra um significado estativo, no sentido em que a entidade amada encontra-se no estado de objeto do amor.

2) estar e ficar

Os verbos estar e ficar também formam a voz passiva; estar integra a construção passiva de estado; e ficar, a construção passiva de mudança de estado. Assim, temos “Estou acordado” e “Depois de tanto caminhar, ficou cansado”.
Os verbos estar e ficar também podem-se combinar com gerúndio, como se vê nas frases “Estamos andando o dia todo” e “Ficava conversando sem parar”.

3) auxiliares aspectuais que se combinam com infinitivo ou gerúndio para determinar as fases da duração do fato expresso pelo verbo. Nesse grupo, Bechara inclui os verbos: começar a, por-se a, continuar, estar para, estar (a), andar, vir, ir, tornar a, costumar, acabar, cessar de, deixar de, parar de.
Notemos, de passagem, que os verbos estar e ficar, quando combinados com gerúndio, indicam o aspecto cursivo, ou seja, marcam a ação em seu desenvolvimento, em seu curso, como em “Estou escrevendo este texto agora”.

4) auxiliares modais, que se combinam com o infinitivo ou o gerúndio do verbo principal para marcar as atitudes que o locutor projeta sobre seu enunciado. Na esteira da tradição lógica aristotélica, tais marcas expressam as modalidades fundamentais do possível e do necessário e, por negação, os seus respectivos contrários, o impossível e o contingente. A despeito de sua herança lógica, a modalidade é tratada em Linguística como modalização, que não é pura e simplesmente um novo termo para um já reconhecido fenômeno linguístico, mas uma nova maneira de encará-lo. Basicamente, o que a Linguística fez ver foi a importância de considerar o envolvimento dos interlocutores na tentativa de compreender o fenômeno da modalização. As línguas naturais não conservam as definições estabelecidas pela Lógica, justamente porque o envolvimento de interlocutores, numa dada situação de interação, implica a existência de um contrato epistêmico que redefine as modalidades sentenciais propostas pela Lógica tradicional.
Constituem exemplos de verbos auxiliares modais ter de, dever, precisar, poder. Os três primeiros expressam a modalidade.  deôntica (do dever, do ser necessário); o último a do possível. É claro, no entanto, que a determinação da função modalizadora desses verbos, ou melhor, do seu conteúdo modal depende sempre das condições contextuais. O verbo “poder”, por exemplo, expressa possibilidade e/ou permissão em “Ele pode faltar à aula hoje”, mas ‘capacidade’ em “Ele já pode caminhar sozinho”. O verbo “dever” expressa ‘obrigatoriedade, necessidade’ em “Você deve ajudar os mais velhos”, mas ‘dúvida’, ‘incerteza’, em “Amanhã, devo ir à escola (não sei)”.
Outro verbo que serve para modalizar o enunciado é o verbo “parecer” combinado com infinitivo, como em “Ele parece estar sozinho agora” (expressão de dúvida, incerteza). É preciso entender que é o enunciador que, ao fazer uso de uma forma como “parecer”, projeta sobre o enunciado uma atitude de dúvida ou incerteza sobre o conteúdo comunicado. O fenômeno da modalização já foi objeto de exame em outros textos neste blog, por isso não vou me estender sobre ele. Mas cumpre dizer que a modalização deve ser entendida em termos de mais ou menos adesão do enunciador ao seu enunciado. Quem diz “Ele parece estar sozinho” não se compromete totalmente com o valor de verdade do seu enunciado, não adere totalmente ao conteúdo proposicional. A modalização, nesse sentido, é uma das estratégias de que dispõem os enunciadores para preservar a sua face. Ademais, o fato de o enunciador marcar mais ou menos adesão aos seus enunciados tem claras implicações na orientação argumentativa por ele tomada. O fenômeno da modalização é, portanto, um dentre os recursos de que dispõem os usuários da língua para fazer uso eficaz dela argumentativamente. Por exemplo, se estou insatisfeito com a insistência de minha namorada ou esposa para que vamos à praia amanhã, posso demonstrar meu desinteresse por ir, enunciando que “Parece que amanhã vai chover” (as razões de meu desinteresse podem ser outras, é claro; e isso certamente pode ensejar uma discussão, mas vamos desconsiderar essa possibilidade). O “parece que amanhã vai chover” constitui não só uma estratégia de recusa de um pedido indiretamente, mas, por força da ocorrência de “parecer”, também uma estratégia pela qual não me comprometo, ou melhor, afrouxo minha responsabilidade pela confiabilidade da informação. Manifesto dúvida sobre a possibilidade de chover (ouvi dizer, trata-se de uma previsão meteorológica da qual tomei conhecimento), mas não se me podem imputar a responsabilidade por enunciar uma falsidade caso “amanhã” faça um sol escaldante. O “parece que amanhã vai chover” também dá certa margem de liberdade de escolha a minha interlocutora, que pode se “arriscar” ou não a ir à praia, na esperança de que a previsão falhe. Assim, ao mesmo tempo em que lhe dou uma margem de escolha, busco mascarar qualquer atitude autoritária em minha fala, comunicando-lhe, no entanto e ao mesmo tempo implicitamente, que não estou disposto a me “arriscar”.
Retomando o elenco proposto por Bechara, cabe ainda referir outros conjuntos de verbos considerados por ele como auxiliares. Trata-se de casos, deveras, problemáticos. Vejamos quais são esses conjuntos.

5) Verbos que expressam tentativa ou esforço, em alguns casos seguido de decepção.

Busco escrever
Pretendo viajar
Tento ficar
Ouso reclamar
Procuro examinar


6) Verbos que indicam volição ou desejo:

Quero escrever
Desejo escrever
Odeio estudar

7) Verbos que exprimem consecução:

Consegui terminar
Logrei fazer


8) Verbos auxiliares causativos e sensitivos:

a) causativos: deixar, mandar e fazer;
b) sensitivos: ver, ouvir e sentir.

Todos esses casos merecem uma avaliação crítica, mas vou circunscrevê-la a dois casos que, uma vez se demonstrem incorretos à luz da crítica, os outros dois também estarão. Ater-me-ei aos casos 6) e 8).
Segundo Bechara, verbos como querer, desejar e odiar podem ou não se comportar como auxiliares. Em nota, ele nos dá a conhecer o que é necessário considerar para que estes verbos sejam considerados ou não auxiliares:

“Por exemplo, na frase: queríamos colher rosas, os verbos queríamos e colher constituirão expressão verbal se pretendo dizer que queríamos colher rosas e não outra flor, sendo rosas objeto da declaração. Se, porém, pretendo dizer que o que nós queríamos era colher rosa e não fazer outra coisa, o objeto da declaração é colher rosas e a declaração principal se contém incompletamente em queríamos” (p.233).



Bechara cita aí José Oiticica. Esclareça-se o que nos ensina o gramático. O que está dizendo Bechara é que é a intenção do falante que determinará se, em “queríamos colher rosas”, há uma locução verbal “queríamos colher” ou, ao contrário, uma oração principal “queríamos” a que se articula uma oração de infinitivo “colher rosas”. O problema patente dessa proposta é o total abandono da descrição à arbitrariedade em que se baseia o recurso à “intenção do falante”. É claro que a intenção do falante é um dos elementos importantes a ser considerados quando se descreve a língua em uso, mas a intenção é sempre pensada como um elemento constitutivo da troca verbal, o qual deve, para ter valor epistemológico, ser passível de apreensão pela materialidade linguística. Na esteira da Pragmática, em Linguística, a intenção é realizada por meio de textos; dito de outro modo, os textos realizam a intenção dos falantes e permitem recuperá-la. O que Bechara fez, a meu ver, foi simplesmente renunciar a se decidir sobre a questão. Ele se negou a lançar mão de um critério seguro, tangível ou operancional para determinar se em “queríamos colher rosas”, o verbo “querer” é um verbo auxiliar ou não.
A razão por que a análise mais adequada é a que fixa o caráter não-auxiliar para verbos como “querer” é que esse verbo conserva seu significado lexical e, por consequência, a sua natureza valencial ou predicadora. Substituamos “colher rosas” por “casar com você”, e ajustemos a oração, para vermos que o verbo “querer” seleciona para actante à direita toda a oração “casar com você” (cf. Quero casar com você). Ora, o sintagma preposicional “com você” não está sob a dependência do conjunto “quero casar”, mas apenas de  “casar”. Ele integra a oração de “casar”. O verbo “querer” conserva seu estatuto valencial, selecionando um complemento direto na forma oracional. Mais adiante, veremos se os critérios sintáticos se aplicam satisfatoriamente a esse caso.
Detendo-me doravante no caso dos auxiliares causativos e sensitivos, convém notar que Bechara (p.430), aduzindo os exemplos abaixo,

Vejo abrir a porta
Ouço soprar o vento
Vejo crescer as árvores

mantém que, em “Vejo abrir a porta”, “a porta” é objeto direto de “abrir”, interpretação equivocada, porque, nessas construções, o SN é, sistematicamente, deslocado para a posição posterior à combinatória verbal. Essa possibilidade de deslocamento é garantida pela natureza semântico-sintática do infinitivo. Os verbos “soprar” e “crescer” são verbos que recusam objeto direto; e o verbo “abrir” é um verbo do tipo ergativo-transitivo. Quando ergativo, o verbo “abrir” seleciona um actante sujeito-PACIENTE. Por exemplo, “A porta abriu”. Na construção “Vejo a abrir a porta”, “a porta” é sujeito de “abrir”, que está apenas deslocado de sua posição canônica (cf. Vejo a porta abrir). O verbo “abrir” admite uma diátese transitiva, caso em que se construiria com um sujeito-AGENTE – objeto-PACIENTE, como em “Pedro abriu a porta”.
Apesar do equivoco da análise de Bechara, ele entende que o conjunto formado pelo infinitivo e o SN que o acompanha é uma unidade sintática dependente do verbo “vejo”, do que resulta a admissão de que o verbo “ver” não é um auxiliar.
Um expediente extremamente eficaz para determinar o caráter não-auxiliar dos chamados verbos sensitivos é o desenvolvimento do conjunto formado pelo infinitivo numa oração encetada de “que”. Assim, para “Vejo abrir a porta”, temos “Vejo que abriu a porta (ou que a porta abriu)”. Esse expediente formal é extensivo ao conjunto dos verbos causativos também. Assim, para “Mandei o garoto ir ao mercado”, temos “Mandei que o garoto fosse ao mercado”. A transformação da oração reduzida de infinitivo em uma oração desenvolvida patenteia que ela é um constituinte selecionado pela valência do verbo que a precede (respectivamente, “ver” e “mandar”).


3. Critérios sintáticos para a determinação da auxiliaridade dos verbos

Finalmente, cumpre atentar para os critérios de base formal que podem ajudar-nos na busca por determinar se há, numa dada combinatória de verbos, um verbo auxiliar.

1º critério: existência de um único sujeito para o grupo verbal.

Segundo esse critério, há locução verbal e, portanto, um verbo auxiliar sempre que houver um único sujeito que está em dependência de todo o conjunto verbal. Nesse caso, o sujeito é selecionado pelo verbo principal, o verbo que comporta a função de predicação no conjunto. Seguem-se os exemplos abaixo:

(f) Eu vou correr na Lagoa amanhã.
(g) Ele ficou caminhando o dia todo.

Em (f) e (g), são os verbos “correr” e “caminhar” que selecionam, respectivamente, os sujeitos “Eu” e “Ele”. São esses verbos que conservam significado lexical e, portanto, sua natureza valencial. Comparem-se esses casos como o caso (h), abaixo:

(h) Vejo o menino subindo às escadas.

Em (h), o sujeito de “vejo” é diferente do sujeito de “subindo”. Podemos transformar o conjunto “subindo as escadas” na forma desenvolvida: Vejo que o menino sobe às escadas. Claro está que os sujeitos são diferentes e que, por isso, não há locução verbal.

2º critério: impossibilidade de transformação do verbo pleno numa oração desenvolvida

Só há locução verbal, quando não conseguimos transformar o verbo pleno numa oração desenvolvida, à semelhança do que fizemos acima. No exemplo abaixo, é impossível tal procedimento:

(i) Eu tive de sair cedo.
(i1) * Eu tive de que saí cedo.

3º critério: inserção da negação na tentativa de romper com a unidade do conjunto verbal

Se for possível a inserção da negação no conjunto verbal, sem perturbar sua unidade semântica, não há locução verbal; do contrário, há locução verbal. No exemplo abaixo, a impossibilidade de usar a negação entre os dois verbos indica que se trata de uma locução verbal e que o primeiro verbo é um auxiliar.

(l) A criança está brincando.
(l1) * A criança está não brincando.

Ora, a partícula de negação só pode orbitar o conjunto “está brincado”, donde se segue que seu escopo é todo o conjunto (cf. A criança não está brincando).
Esse critério me parece ser o menos eficiente, já que ele pode não valer para os casos aos quais os outros critérios se demonstraram aplicáveis. Assim é que, em “Deixa o menino brincar”, a inserção da negativa entre “deixa” e “brincar” torna o enunciado inaceitável - “* Deixa o menino não brincar” - ou muito pouco aceitável “ (?) Deixa não brincar o menino”. Não obstante, vimos que construções com verbos como “deixar” seguido de infinitivo não encerram locução verbal. Os critérios 1 e 2 garantem ser este o caso.



                    4º critério: pronominalização

Se o verbo que ocupa a segunda posição na construção supostamente perifrástica for pronominalizável, segue-se daí que esse verbo comporta-se como um actante do primeiro verbo. Assim, não há locução verbal, e o primeiro verbo é também um verbo pleno. Veja-se o seguinte exemplo:

(m) Você sabe agradar ao seu marido.
- Eu o sei.  (o = agradar ao seu marido)

Não há dúvida de que o verbo “saber” não se comporta como verbo auxiliar, não só porque ele conserva seu significado lexical, quando combinado com um infinitivo, mas também porque pode construir-se com uma oração desenvolvida encetada por “que” (ou, se na negativa, com “se”). Por exemplo, temos “Eu sei que o professor dará prova amanhã”. Ademais, em “Você sabe agradar ao seu marido”, “ao seu marido” não é um actante do conjunto “sabe agradar”, mas apenas de “agradar”.


Os critérios aqui elencados, longe de resolver a complexidade do problema de que me ocupei aqui, lança algumas luzes sobre o estudo da locução verbal e das condições que conferem a propriedade de auxiliaridade a um verbo. Creio, no entanto, que a adoção desses critérios não pode levar o estudioso a desconsiderar a raiz semântica do problema, qual seja, a conservação ou não do significado lexical do primeiro verbo do conjunto e de sua natureza valencial. Isso é importante quando queremos determinar, por exemplo, se o verbo “conseguir”, em “Eu consegui namorá-la por dois anos”, é um verbo auxiliar ou um verbo pleno; se há uma locução verbal ou uma oração principal de que depende outra oração dita, por isso, subordinada.