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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Duas coisas enchem o coração de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e sempre crescentes, à medida que a reflexão nelas se detém e a elas se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim" (Immanuel Kant)

                                  


                                  A questão da moral
   Por que Deus não pode servir de fundamento para a moral?


O subtítulo deste texto introduz a questão central que será discutida: por que Deus não pode servir de fundamento para a moral? A forma em que ela se apresenta marca o pressuposto com base no qual se orientará toda a minha argumentação: Deus não pode servir para fundamentar a moral.
Antes de atacar essa questão, será necessário definir alguns conceitos que estão, necessariamente, implicados no tratamento do tema deste texto. Considerem-se, portanto, os conceitos de fundamento, moral, cultura e domínio objetivo. Passo, então, a defini-los a seguir:

a) Fundamento

Segundo Japiassú & Marcondes (2008), fundamento é “aquilo que fornece a alguma coisa sua razão de ser ou que confere a uma ordem de conhecimento uma garantia de valor e uma justificativa racional” (p. 118).
O problema da fundamentação dos valores morais diz respeito, portanto, à busca por determinar uma base de justificação racional para a existência de tais valores. O problema consiste, então, em determinar, em última instância, a sua origem, a qual é entendida como critério seguro para distinguir entre o certo e o errado. Há diversas teorias morais, muito embora, neste texto, me proponha delinear duas apenas: a teoria moral cristã e a teoria moral kantiana.
No mundo moderno, da discussão sobre a fundamentação da moral, que é uma questão especialmente filosófica, tomam parte também ciências como a biologia e a psicologia evolucionistas, que, em linhas gerais, assumirão que há fundamentos naturais e neurobiológicos que justificam a conduta humana e que, portanto, explicam o surgimento do comportamento moral nos seres humanos. Dados os limites desta exposição, não contemplarei a contribuição dos estudos de vertente evolucionista para a compreensão das bases do comportamento moral humano. Não obstante, os refiro, de passagem, a fim de lembrar que a discussão sobre a possibilidade mesma de fundamentar os valores morais não se circunscreve à oposição entre os que apelam a uma heteronomia transcendente (Deus) e os que advogam a relatividade dos valores morais à sociedade ou à cultura.
Eu assumirei que os valores morais ou a moral é uma construção cultural, que o que se entende por normalidade é culturalmente definido e que, portanto, a moral difere de uma sociedade para outra. Assim, a moral é resultado de hábitos sociais instituídos e aprovados historicamente, conquanto, ao endossar essa posição, eu não pretenda rejeitar a hipótese da existência de uma base intercultural comum que refletiria a universalidade de aspectos neurobiológicos e/ou naturais à luz dos quais se pode explicar o comportamento moral.

b) Moral

A moral compreende um conjunto de normas que definem ideias fundamentais sobre o que é considerado certo e errado, louvável ou repugnante, numa dada sociedade. As normais morais ou mores regulam o comportamento humano e servem de fonte de coesão social.
Fazem parte do escopo da moral normas que proíbem o incesto (proibição esta universal), o assassinato, a traição, o abandono das obrigações familiares, a profanação de símbolos religiosos e civis, etc. Os mores assumem, dada a sua importância, a forma de leis que implicam sanções, tais como prisão, exílio, ostracismo e execução.
Dentre as características básicas da moral, destaca-se o fato de suas normas serem vivenciadas como sagradas, ou seja, como provindas de uma heteronomia transcendente. Do ponto de vista sociológico, as normas morais são consideradas mutáveis e inerentes à vida social.

c) Cultura

Entendo por cultura o domínio fundamentalmente simbólico que marca a descontinuidade do homem em relação à natureza. Ela se constitui de sistemas mais ou menos coerentes de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se em face do Absoluto e reproduzir-se. A cultura constitui o modo próprio de ser do homem. Ela é responsável não só por ordenar o pensar, o agir, as formas de os seres humanos se relacionarem entre si e com o entorno biofísico, como também por fornecer os valores que servem para dar coerência a essa totalidade de vivências e para justificá-la.


d) Domínio objetivo

O que queremos dizer quando nos referimos a valores morais objetivos? O que o adjetivo objetivo significa nesse sintagma? Objetivo é tudo aquilo que existe independentemente do pensamento e que possui uma realidade autônoma no mundo externo. Tudo que dizemos pertencer à esfera da realidade objetiva (em oposição à realidade subjetiva) se nos apresenta como coisas independentes de nós, coisas que existem e se põem no exterior de nossa consciência como dados do mundo cuja existência nos limitamos, em geral, a constatar. Se dizemos, habitualmente, portanto, que há valores morais objetivos, queremos com isso dizer que tais valores existem independentemente das práticas humanas e que eles se impõem à consciência humana como dados por uma heteronomia (que um dos dois braços que formam a cultura ocidental – a tradição judaico-cristã - identificou com Deus).


Como eu esteja entendendo os valores como instituição social, faz-se mister destinar uma seção para o esclarecimento da noção de instituição.

1. A instituição
1.2. A sociedade como realidade objetiva


Em A construção social da realidade (2007), Berger & Luckmann introduzem o tema das origens da institucionalização, dando-nos a conhecer a diferença existente entre os modos de o homem e de os animais não-humanos se relacionarem com o ambiente em que vivem. Os animais não-humanos mantêm relações biologicamente fixas com o ambiente. Eles vivem, quer como indivíduos, quer como espécies, em mundos fechados, de tal modo que a organização de seus mundos é predeterminada pelo equipamento biológico inato presente nas diferentes espécies. O organismo deles é uma extensão do ambiente natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a relação do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão entre dois fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,

“(...) a experiência que o homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)


Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a compreensão do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão de atividades de produção de significados subjetivos, quando se considera essa especificidade da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre essas consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem é sempre uma atividade que se faz com outros, é sempre, portanto, uma atividade social; 2) os seres humanos produzem um ambiente humano em conjunto, em interação com outros seres humanos; 3) essa produção do ambiente humano não se dá sem uma totalidade de formações socioculturais e psicológicas de que os homens tomam parte; 4) quando se lançam olhares sobre os fenômenos humanos, claro fica que se está diante de um reino social; 5) humanidade e sociabilidade estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma direção e uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa estabilidade da ordem humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão chamando a atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento individual do organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para exteriorizar-se nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a ordem social é que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a transforma. A ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo, biologicamente determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É assim que a ordem social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a conduta humana (Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada biologicamente, nem redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não faz parte da natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do ambiente natural do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a forma da ordem social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem social é produto unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os autores:

“Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)


Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados biológicos, não se pode negar que a necessidade dessa ordem social provém do equipamento biológico humano (p. 77).

Como se dá a institucionalização? À página 77, escrevem os autores: “toda atividade humana está sujeita ao hábito”. O hábito é um aspecto fundamental do processo de fabricação da realidade institucional. Toda ação que se reitera muitas vezes molda-se num padrão, que passa, então, a ser reproduzido com economia de esforço e que é compreendido como padrão por quem a executa. O hábito torna possível que a ação seja reproduzida também no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço que o foi no passado. Isso é verdade tanto para a atividade social quanto para a atividade não-social. Mesmo um indivíduo solitário realiza ações habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de significado para o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no conjunto de conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são avaliados como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras. Acerca do valor do hábito, esclarecem-nos os autores:

“O hábito fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos”.
(p. 78)


Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para decisões que se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade de que cada nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma grande quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser antecipada.
Os processos de formação de hábitos estão na origem de toda institucionalização. Isso vale também para o caso hipotético de um indivíduo isolado. Não se pode ignorar que esse indivíduo solitário, supondo-se a formação de um “eu”, também terá de converter em hábito sua atividade, em consonância com a experiência biográfica construída num mundo de instituições sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas tipificações constitui uma instituição. Para efeitos de compreensão da institucionalização, não só a reciprocidade das tipificações importa, mas também a tipicidade das ações e dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas instituições – ou melhor, que são as instituições – são partilhadas entre os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e a própria instituição tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é ilustrada de modo bem simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:

“A instituição pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do tipo x. Por exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão decapitadas de maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos determinados de indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros de uma casta impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram designados por um oráculo)”.
(p. 79)


Como se vê, é a própria instituição que regula as ações desempenhadas pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na estrutura institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann, “implicam (...) a historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as tipificações das ações se constituem no curso de uma história de que tomam parte os agentes sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto dessa história. Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma instituição sem lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por força mesmo de sua existência, controlam a conduta humana, fixando-lhe previamente padrões na base dos quais ela se desenvolverá. A direção da conduta humana coloca-se sob o governo desses padrões. Isso evita que a conduta dos indivíduos tome outras direções potenciais mas não desejáveis para uma instituição. O caráter controlador é inerente, portanto, à instituição e é anterior a quaisquer dispositivos de sanções mobilizados para produzir apoio à instituição. O controle está entranhado na realidade de qualquer instituição, conforme notam Berger & Luckmann abaixo:


“Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)



Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta a Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade. Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu, embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar, claro é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social. No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é produto social (Berger & Luckmann, p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma análise pode negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:

1) sua realidade objetiva. O mundo institucional é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como uma realidade marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do indivíduo e cujas origens ele ignora;

2) sua perpetualidade. Toda instituição se perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do indivíduo, mas também porque continuará existindo depois de sua morte;

3) a sua historicidade. A própria história desse mundo institucional é dotada de objetividade. A biografia de um indivíduo se reduz a um episódio situado na história objetiva de sua sociedade.

4) sua facticidade inegável. As instituições com que se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles as percebem como tais.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão aí, exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou não” (p. 86). As instituições  resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre os indivíduos, quer devido ao seu caráter de facticidade (elas estão aí como “já dadas”), quer por força dos mecanismos de controle que lhes dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se impõe, mesmo que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de funcionamento. Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender muitos aspectos da ordem social e pode considerar opressivas as formas como eles se lhe apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.

“Existindo as instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)


A linguagem desempenha um papel fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me deter a avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso compreender a função da legitimação, como um fenômeno, necessariamente dotado de materialidade linguística, que atenderá às necessidades de permanência da instituição e seu reconhecimento pela geração futura.
Legitimação. O mundo social existe somente na medida em que é transmitido a uma nova geração. Esse processo de transmissão se realiza na forma de interiorização pelos indivíduos, na socialização, das estruturas institucionais (suas normas, ideias, valores, ideologias...). Portanto, o mundo social existe apenas quando do surgimento de uma nova geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do aparecimento de uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois, os modos pelos quais o mundo social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação na conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração recebe a realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos indivíduos. Vou ilustrar essa inacessabilidade da realidade da instituição à consciência dos indivíduos, pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento de pensamento. Imaginemos que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e Maria, não sendo criadores originais do mundo social (como também não o são os seus pais, é claro) não podem ter acesso direto ao significado das instituições. O conhecimento que se lhes tornam acessível o é por um “ouvi dizer”. O significado original das instituições deve ser interpretado para eles por meio de várias fórmulas legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação do mundo social, servindo para explicá-lo ou justificá-lo para as novas gerações, visam também a provocar nelas um consenso acerca da validade dos modos de funcionamento da própria instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam Berger & Luckmann,

“Segue-se que a ordem institucional em expansão cria um correspondente manto de legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e normativas”.
(pp. 88-89)


A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular a conduta dos indivíduos na ordem social.

“A nova geração engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem institucional exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre o indivíduo, independentemente das significações subjetivas que este passa a atribuir a qualquer situação particular”.
(p. 89)


As definições institucionais previamente existentes devem ser protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de instituição que capta dois aspectos básicos dela: sua padronização de hábitos e sua objetividade irredutível à consciência individual.

“[instituições] são as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)



Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um “fato social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas, cabe destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos sociais congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do processo de educação. Segundo ele,


“Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros tempos de sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas. Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc.”
(p. 35)


Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina Durkheim, é que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem. Mas é a própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências individuais, acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.

A objetivação pela linguagem. Tenho repisado a ideia de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas experiências de mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas orientando-a no sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela linguagem no processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de nossas experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de conhecimento) que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em nossos discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a linguagem objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a todos os indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um estoque de conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias pelas quais se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são incorporadas ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger & Luckmann lançam uma luz sobre a importância da linguagem no processo de objetivação de nossas experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão” (p. 96). E prosseguem:

“Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência, ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar um profundo laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência designada e transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)


Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida na/pela linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir um caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral, mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações coletivas assumem a forma de ideologias.

“(...) Tendo a origem real das sedimentações perdido importância, a tradição pode inventar uma origem completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi objetivado. Em outras palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras, de vez em quando outorgados novos significados às experiências sedimentais da coletividade em questão”.
(pp. 97-99)



1.3. O que é, então, uma instituição?


Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre si e que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade. As instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram. As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas Simbólicas (2011), a respeito da influência que as estruturas sociais exercem na formação da consciência dos indivíduos:

“Se levarmos a sério (...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em classes, somos, necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre as estruturas sociais (em termos mais precisos, as estruturas de poder) e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)


Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor dissimuladamente princípios que regulam a estruturação da percepção e do pensamento do mundo, particularmente, do mundo social, por meio da imposição de um sistema de práticas e de representações cuja estrutura se calca objetivamente sobre uma base de divisão política que espelharia a estruturação dos domínios natural e sobrenatural do cosmos.


2. A problemática

O argumento moral em favor da existência de Deus encontra abrigo no pensamento de muitos filósofos, dentre os quais destacarei, para efeitos desta exposição, Immanuel Kant. O argumento moral apela às intuições das pessoas comuns e repousa sobre a crença de que a existência de valores morais objetivos e de toda a ordem moral objetiva se justifica melhor se Deus existir.
O argumento prende-se à experiência moral de muitos de nós e suscita a questão, de cujo desdobramento vou me ocupar neste texto: há valores morais objetivos? Convém não confundir essa questão com outra que ela suscita, a saber, a questão que consiste em determinar qual a melhor forma de justificar valores morais objetivos. Há, portanto, duas questões que se impõem ao exame reflexivo de quem quer que se debruce sobre o problema da objetividade dos valores morais: a questão que consiste em saber se podemos falar realmente em valores morais objetivos e a questão que consiste em determinar qual é a melhor forma de justificar valores morais objetivos. São essas as duas questões de cujo desenvolvimento me ocuparei.
Os partidários do argumento moral em favor da existência de Deus rezam que valores morais objetivos só podem ser justificados se supusermos a existência de Deus, isto é, de uma heteronomia transcendente que serve de fundamento para a ordem objetiva dos valores morais. Eu não só rejeito a necessidade de pressupor a existência de Deus, como também estendo minha rejeição à suposição de que há uma ordem objetiva de valores morais. Na medida em que encaro os valores morais como fatos sociais, sustento a tese de que a objetividade social é ela mesma produzida no domínio intersubjetivo, de modo que a objetividade resulta da intersubjetividade e nela se baseia. O que chamamos de objetividade em termos sociológicos (não nego, em princípio, a objetividade do mundo natural) é este espaço do entre-sujeitos, do inter-subjetivo, das práticas humanas socialmente determinadas, que, por força da repetição, por ocasião de processos educativos, vão-se objetificando e passam a ser percebidas pelos sujeitos sociais como integrantes de uma esfera cuja estrutura é independente deles.
Tal como exposta a problemática, duas questões se impõem à discussão:

a) A objetividade que costumamos atribuir aos valores morais não decorreria senão do modo como os experienciamos?

b) Quem é esse Deus que se pretende seja o fundamento da moral?

A primeira questão procura suscitar uma reflexão sobre a distinção entre uma objetividade a priori (por exemplo, a objetividade desta montanha que existe independentemente de mim e continuará existindo sem mim) e uma objetividade que julgamos existir nos valores morais, por força do modo como os experienciamos. A suposta objetividade dos valores morais se funda no esquecimento ou, para usar um termo marxista, num processo de fetichização, segundo o qual, uma vez instituídos tais valores, eles passam a ser percebidos pela consciência dos indivíduos como se existissem independentemente das práticas sócio-históricas em cuja origem estão os próprios homens, os verdadeiros criadores dos valores. Os indivíduos se esquecem de que o trabalho de criação dos valores morais é responsabilidade de muitas gerações de seres humanos. A primeira questão orienta, portanto, o argumento segundo o qual a objetividade dos valores morais é uma construção fundada no domínio da intersubjetividade, nesse lugar-entre que abriga as práticas intersubjetivas historicamente determinadas. Esse ‘lugar-entre’ é o lugar da objetivação das experiências humanas; é nesse lugar-entre que os valores adquirem o caráter de objetividade, muito em função das práticas discursivas.
A segunda questão alicerça o desenvolvimento do argumento segundo o qual postular Deus como fundamento dos valores morais é firmar uma perspectiva que, afirmando a absolutidade dos valores morais – absolutidade esta pressuposta no apelo à autoridade de um Deus supremo -, está, paradoxalmente, agasalhando a tese do relativismo moral. Esclarecendo este ponto, se o Deus a que Kant – e com ele os herdeiros da tradição das Luzes – faz apelo, na tentativa de estabelecer a justificação última da ordem moral, é o Deus bíblico, segue-se daí que se esquece de que esse Deus foi social e historicamente produzido e que sua suposta existência está intimamente associada à fé religiosa que marcou profundamente a cultura ocidental. Nesse sentido, o fundamento que se pretende encarne e garanta a natureza objetiva dos valores morais é ele mesmo relativo a uma tradição sócio-histórica cujas raízes remontam a aproximadamente 14 mil anos, tempo em que, no Antigo Oriente Próximo, foi-se desenvolvendo, pouco a pouco, a ideia de Deus.
Decerto, o esquecimento que está na base da postulação de Deus para fundamento da moral não é o único problema que deverá ser atacado. Veremos que uma breve incursão na história do desenvolvimento da ideia de Deus é suficiente para mostrar que Deus não é o melhor candidato para ocupar o estatuto de fundamento da moral.
Preciso frisar que o argumento de Kant em favor da existência de Deus é consequência de sua teoria ética, que será apresentada, em linhas gerais, mais adiante. Por ora, quero esboçar a estrutura de seu argumento.
Segundo Kant, uma vez que estamos comprometidos com valores morais objetivos e que os consideramos a forma mais racional de viver, temos de acreditar em um Deus pessoal, um sujeito transcendente que fez as leis e forneceu os valores. Esse sujeito é a fonte dos valores morais que tomamos por objetivos. O que, talvez, passe despercebido, no cerne deste raciocínio, é que a origem de valores morais objetivos se identifica com um sujeito, com uma pessoa, que se toma como autoridade transcendente. Isto é, a objetividade dos valores é garantida, em todo caso, pela subjetividade, pela arbitrariedade de uma heteronomia. Deus é o sujeito absoluto donde provém a objetividade dos valores.
Uma crítica desmitificadora, que se alinhasse com o pensamento de um Feuerbach, por exemplo, não veria nessa fonte absoluta da objetividade dos valores, ou seja, em Deus, senão uma forma de projeção da essência humana (ou da consciência) que, fora do homem, passa a ser adorada como Deus. Não encontrando nem na natureza nem em si mesmo as condições que justifiquem seu comportamento moral, o homem concebe na imaginação um Outro de si, que situa na transcendência para além de si mesmo e do mundo, e lhe confere a autoridade sobre a objetividade dos valores morais, que ele, homem, experiencia como tal, em virtude de não lhe ser acessível à memória a gênese histórica de tais valores .
Consideremos, doravante, as duas teorias da moral, a que já aludi, no limiar deste estudo: a teoria moral cristã e a teoria moral de Kant. Essas duas teorias da moral baseiam-se na ideia de dever.
As teorias morais assentadas sobre a noção de dever mantêm que cada indivíduo tem certos deveres, ou seja, ações que devem ou não executar – e que agir moralmente significa cumprir nosso dever. Não importam as consequências que decorrem disso. Consoante essas teorias, algumas ações são absolutamente certas ou erradas independentemente das consequências que resultam delas. As teorias baseadas no dever se dizem também ontológicas. É justamente porque elas não se preocupam com as consequências que resultam da realização das ações que se distinguem das teorias morais consequencialistas.

3. Teorias morais baseadas no dever

3.1. A moral cristã

O ensino moral cristão formou a base de nossa compreensão ocidental de moralidade. A influência da doutrina cristã na constituição de nossa concepção de moralidade é tal, que mesmo as teorias morais de base ateia lhe são fortemente devedoras.
Os Dez Mandamentos, por exemplo, abrigam variados deveres e atividades proibidas. Esses deveres se impõem independentemente das consequências que decorrem de seu cumprimento. Quem quer que acredite ser a Bíblia a palavra de Deus não tem dúvida sobre o que é certo e errado. Certo é aquilo que está de acordo com a vontade de Deus; e errado, o que está em desacordo com a sua vontade. Para essa pessoa, a moral se resolve na obediência a ordens absolutas, em cuja origem está uma autoridade transcendente, chamada de Deus.
Estou consciente de que a moralidade cristã é mais complexa do que deixa entrever essa descrição que dela fiz. Não obstante, o essencial não se perdeu: ela é um sistema do que é permitido e do que é proibido. Isso é extensivo a outras morais de base religiosa, que não a cristã.
Pontuarei, a seguir, algumas dificuldades suscitadas pela moral cristã, sem pretender, contudo, me estender sobre elas. A primeira dificuldade diz respeito à questão de como saber qual é, na verdade, a vontade de Deus. Os cristãos podem tentar dar conta dessa questão recomendando a leitura da Bíblia, mas a Bíblia dá margem a interpretações conflitantes e está eivada de incoerências. A segunda dificuldade toca ao que ficou conhecido em Eutífro, de Platão, como Dilema de Eutífro. Consiste esse dilema na questão de decidir se o que Deus ordena ou ama é moralmente bom ou se o fato de Deus ordenar ou amar é que torna as coisas moralmente boas. Se aceitamos a primeira via da questão, a saber, aquilo que Deus ordena é moralmente bom, então a moralidade se torna independente de Deus. Nesse caso, os valores morais preexistiriam no mundo e Deus amaria ou ordenaria aqueles que já são bons previamente. Deus não os criaria, mas os descobriria. Se admitirmos a segunda via da questão, então a moralidade fica ao abrigo da arbitrariedade de Deus, o qual poderia, em virtude de seu poder absoluto, decidir que o assassinato é moralmente bom. É claro que um cristão poderia objetar que Deus nunca aprovaria o assassinato porque Deus é bom. Mas, nesse caso, se com “bom” quer-se dizer “moralmente bom”, segue-se daí que Deus estaria aprovando a si mesmo. De qualquer modo, se Deus nunca pudesse aprovar o assassinato porque Deus é bom, segue-se que, de algum modo, o valor moralmente negativo do assassinato está prefixado em contraste com a bondade inerente de Deus.
Há, decerto, problemas mais graves quando se pretende tomar o Deus judaico-cristão, o Deus pessoal bíblico, para fundamento da moral. A ideia de direitos humanos naturais não se encontra na Bíblia, muito embora, em seu germe, ela se encontrasse na profissão cristã. Mas sua versão laica, que suprime a referência à supremacia da lei divina, só se formalizaria na modernidade, com os racionalistas dos séculos XVII e XVIII.
Basta lermos a Bíblia para nos apercebermos de que Deus, mormente a representação que dele se acha na Bíblia hebraica, é uma entidade que aprova a escravidão e a inferioridade das mulheres. Deus também ordenava a matança indiscriminada de crianças, homens e mulheres inocentes, como na destruição de Jericó e Ai (Josué 6-8).

“Depois incendiaram a cidade inteira e tudo o que nela havia, mas entregaram a prata, o ouro e os utensílios de bronze e de ferro ao tesouro do santuário do Senhor” (Josué 6:24).


No relato do Êxodo (3:19-22), Deus instrui os hebreus a roubarem os egípcios. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo envia um escravo fugidio de volta para o seu senhor e declara que os escravos devem obedecer a seus senhores e as esposas a seus maridos. Encontramos em Efésios (6:5-6) – uma carta que muito provavelmente não foi de autoria de Paulo – a recomendação de que os escravos obedeçam aos seus senhores.
Essa rejeição de Deus como fundamento da moral deve ser entendida à luz da crítica materialista que faz ver Deus como dispositivo ideológico a serviço da construção da história de um povo, de sua identidade nacional. No mundo antigo, era comum a escravidão, e Deus surge no registro bíblico como um dispositivo ideológico, discursivamente acionado, para legitimá-la.


4. O argumento moral de Kant

Com a teoria moral de Kant – que aqui será apresentada de modo bastante esquemático -, em cujo desenvolvimento se acha a influência decisiva do pensamento de Rousseau, a ideia de virtude reside na ação ao mesmo tempo desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem comum e “universal”. O desinteresse e a universalidade passariam a constituir os dois pilares principais do que podemos chamar de a moral moderna.
Daí que a ação verdadeiramente moral, a ação verdadeiramente humana será, antes de tudo, ação desinteressada, a saber, aquela que expressa o que é próprio do homem – liberdade. A liberdade é, portanto, entendida como a faculdade de se libertar do programa codificado pela natureza. O reino da liberdade é o do próprio arrancamento do homem em relação à sua herança de instintos naturalmente codificada.
Não se nega que o homem é também um animal, e, portanto, que é um organismo natural, mas se afirma, fundamentalmente, pelo menos enquanto hipótese, a possibilidade de ele escapar às pressões do programa nele instalado pela natureza. Pela liberdade e graças a ela, nós nos distanciamos do particular para nos ocupar e nos preocupar com os outros. A liberdade nos faz reconhecê-los como seres racionais dotados de direitos, porque igualmente livres.
O homem é, por conseguinte, um ser moral, porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante.  A liberdade é independência de determinações empíricas ou estranhas; é autodeterminação. Para Kant, a liberdade não só é o fundamento da prática, mas também de todo o seu sistema crítico. Não há ação sem liberdade.
O que me interessa, no entanto, não é discorrer, com pormenores, sobre a teoria moral kantiana. Pretendo insistir em que ela culmina com o argumento segundo o qual, para crer em valores morais objetivos, é necessário supor a existência de Deus, o que equivale a dizer tomá-lo como fundamento último da ordem moral objetiva. Kant crê ser razoável acreditar que a melhor explicação para a ordem moral objetiva é que ela foi planejada por Deus e posta em prática durante a criação.
Urge pontuar, contudo, que a Ideia de Deus, após o trabalho de desconstrução levado a efeito pela primeira Crítica (a da Razão Pura), foi destituída de conteúdo objetivo. A Ideia de Deus passou a ser entendida como uma Ideia da Razão, como um princípio regulador da pesquisa científica. Na teoria do conhecimento de Kant, a ideia de Deus sofreu uma secularização. Para Kant, a Ideia de Deus é uma ideia necessária da razão. A existência que atribuímos, necessariamente, a Deus não deixa de permanecer como uma existência ideal, uma existência apenas em pensamento, e não como uma existência real. Na Crítica da Razão Pura, o divino se reduz a uma Ideia da razão humana.
É preciso, contudo, lembrar que Kant fora cristão e permaneceu cristão, sem embargo de ter colocado entre parênteses a religião quando se debruçou sobre o problema, eminentemente filosófico, da fundação da ética humanista.



5. Um punhado de História: a materialidade histórica da ideia de Deus

Ao revisitar o que chamo de materialidade histórica da ideia de Deus, proponho que se pense que, ao se pretender estabelecer Deus como fundamento da moral, está-se sustentando, ainda que implicitamente, uma visão etnocêntrica que torna a moral das sociedades ocidentais superior à de outras comunidades, inclusive à de uma comunidade indígena como a dos Piarrãs que habitam regiões do estado do Amazonas e que não acreditam em nada que não possam tocar, ver, enfim, sentir.  Outrossim, ao retornar às raízes históricas da ideia de Deus, pretendo, no quadro da discussão aqui empreendida, argumentar que só se pode conferir a Deus o estatuto de fundamento da moral pelo esquecimento das condições sócio-históricas em que a ideia de Deus se desenvolveu e entrou a fazer parte da estrutura da consciência religiosa, historicamente determinada, como ente superior e universal, transcendente ao homem e ao mundo.
Aqui, orquestro a perspectiva com a qual me alinho, ao retomar o conceito de materialidade histórica da ideia de Deus. É com base na perspectiva materialista que sustento ser o homem quem cria os valores. O materialismo, de que é um exemplo a biossociologia contemporânea, reza que os valores são radicalmente imanentes à realidade material do ser humano. O homem não descobre os valores; ele os inventa, é seu criador, seu fundamento último, conquanto não se dê conta disso e creia, de modo fetichista, que os valores tenham uma existência independentes dele. Portanto, no cerne da atitude moderna da suspeita ou da desconstrução, repousa a crítica ao fetichismo que desembocará no postulado segundo a qual os valores são relativos ao humano, visto que é o ser humano, no trabalho histórico, que os produz.



5.1. A Bíblia é uma obra humana, demasiado humana

Toda vez que se afirma Deus existe, pelo menos nas sociedades de tradição monoteísta, particularmente cristã, essa elocução faz falar um esquecimento que resulta da combinação de três operações mistificadoras: 1) conversão; 2) descolamento; e 3) inversão. Por conversão, entendo a transformação, operada pela consciência, da ideia de Deus em um ente objetivamente existente, ainda que sua existência não seja acessível à experiência sensorial humana. Pela conversão, portanto, a ideia, produto do pensamento, se converte em ente, que existe independentemente do pensamento. Por descolamento, entendo o ato de descolar a ideia de Deus, já concebida como ente objetivamente existente, das condições sócio-históricas reais em que ela foi gestada e convertida em ente. Finalmente, por inversão, entendo o ato de pensar tal ente como causa, origem, princípio primeiro da existência do homem, delegando a este o lugar de criatura. Essas três operações da consciência mistificada são historicamente determinadas, porque a própria consciência é produto sócio-ideológico. A própria consciência humana se constrói e se desenvolve nas práticas sociais e históricas concretas.
Um fato que pode ter sido decisivo para a realização na consciência dessas três operações, mormente da operação que chamei de descolamento, foi o surgimento da escrita e o domínio dela pelas autoridades hebraicas. Consoante assinala o filósofo Régis Debray, em seu Deus: um itinerário (2004),

“Só um texto, paradoxalmente, pode descontextualizar e, dessa maneira, engendrar uma crença desembaraçada de sua inscrição espaço-temporal [histórica]. Enquanto houver somente troca verbal “em situação”, entre coexistentes, uma entidade não tem como isolar-se do seu meio de nascimento, nem como transmitir-se sem sofrer alteração. Em contrapartida, a transcrição corta a palavra de quem fala e a põe do lado de fora. Desprendida de seu emissor, ela pode voar com as próprias asas. Autonomiza-se. Absolutiza-se ( grifos meus, p. 121-122).


Quando consideramos a Bíblia, aprendemos que o povo que ficou conhecido como os antigos israelitas era uma confederação de vários grupos étnicos, ligados, sobretudo, por sua lealdade a Javé, o Deus de Moisés. Ocorre, contudo, que a história bíblica foi escrita por volta do século VIII a.C., embora, sem dúvida, inclua fontes narrativas de períodos precedentes. No século XIX d.C, estudiosos bíblicos alemães cunharam um método crítico que discerne quatro fontes diferentes nos cinco primeiros livros da Bíblia – que, reunidos no século V a.C., formam o Pentateuco. Esse método foi alvo de ataques, mas permanece, ainda hoje, como o dispositivo de investigação mais satisfatório para explicar por que há duas versões bastante diferentes de acontecimentos bíblicos extremamente importantes como a Criação e o Dilúvio, e por que a Bíblia, às vezes, se contradiz.
Os dois primeiros autores bíblicos, responsáveis pelo Gênesis e pelo Êxodo, escreveram, provavelmente, no século VIII a.C., embora alguns estudiosos pensem que o período em que escreveram é anterior ao século VIII.
Um desses autores ficou conhecido como J, porquanto chama seu Deus de Javé; e o outro, como E, porquanto preferiu chamar seu Deus de Elohim. No século VIII a.C, os israelitas haviam dividido Canaã em dois reinos separados. J escrevia no reino de Judá, localizado ao sul; e E era do reino de Israel, ao norte.
É interessante observar que, em Israel, foi somente no século VI a.C., que houve um verdadeiro interesse pela Criação, no momento em que o autor P  (Pentateuco) escreveu sua grandiosa narrativa conhecida como Gênesis. J, por seu turno, não estava absolutamente certo de que Javé era o único criador do céu e da terra. J percebia como distintos o homem e o divino. O homem (adam) não se constitui do material divino de seu deus, mas pertence à terra (adamab).
É suficiente dizer que J, contrariamente ao que criam seus vizinhos pagãos, não tomou a história secular como profana, frágil em comparação com o tempo sagrado, primordial dos deuses. É no momento em que relata o chamado de Abraão que J estabeleceu a cadência da futura história do Deus, chamado Javé. Esse Deus, na época em que vivera J, era o Deus de Israel.
A religião israelita era pragmática e não tinha maior interesse no tipo de detalhe que nos preocupa hoje. Não devemos supor que Abraão ou Moisés acreditassem em seu Deus como muitos de nós acreditam. Muitos de nós acreditamos que os três patriarcas de Israel – Abraão, Isaac e Jacó – eram monoteístas, acreditavam num único Deus. Não parece ter sido este o caso. Na verdade, é mais provável que esses hebreus fossem pagãos que partilhavam muitas das crenças religiosas de seus vizinhos. Decerto, eles acreditavam na existência de deuses como Marduc, Baal e Anat. É possível que não adorassem o mesmo Deus. O Deus de Abraão, chamado Temor, ou o Deus de Isaac, conhecido como Parente, ou ainda o Deus de Jacó, chamado o Poderoso, talvez fossem três deuses distintos.


5.2. O Antigo Israel


Israel nasceu num mundo já antigo. Quando os primeiros israelitas se organizaram em clãs familiares, na região de Canaã, entre o Mediterrâneo e o rio Jordão (cerca de 2000-1500 a.C.), duas grandes civilizações já floresciam no chamado Oriente Médio: o Egito, ao ocidente, e as civilizações da Mesopotâmia, ao oriente.
A Bíblia, que não pode servir de fonte histórica fidedigna, relata que a formação de Israel se iniciou com a migração dos patriarcas hebreus da Mesopotâmia para Canaã. Essa migração, que se deu aproximadamente na primeira metade de 2.000 a.C.,foi determinante do início da história de Israel.
O Gênesis, do capítulo 12 ao 50, narra a odisseia da saída de Abraão da Mesopotâmia em direção a Canaã, a formação das tribos de Israel e o crescimento de seu povo no Egito. Tais narrativas não constituem documentos históricos contemporâneos aos acontecimentos narrados. Essa é a visão já bem estabelecida pela crítica bíblica desde a última metade do século XIX, quando a Bíblia deixou de ser vista pelos estudiosos como verdade pronta e revelada e foi submetida aos métodos crítico-históricos modernos.
Com base no método crítico-histórico, os estudiosos bíblicos passaram a encarar os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó não mais como figuras históricas, mas como antepassados epônimos de clãs, ou ainda figuras mitológicas. Há historiadores que chegam a afirmar a inexistência desses patriarcas.
Saliente-se, de passagem, visto se tratar de um aspecto importante recoberto pelo que tenho chamado de materialidade histórica da ideia de Deus, conceito que recobre todos os acontecimentos políticos, econômicos, sociais, ideológicos, em suma, históricos que tornaram possível o surgimento e o desenvolvimento da ideia de Deus no Antigo Oriente Próximo, que o relato do texto bíblico abriga grandes migrações de clãs em toda a região canaanita, invasões de povos e guerras sangrentas.
É certo que nem tudo que há na Bíblia é história, mas uma porção significativa de seu texto refere-se a eventos e pessoas reais, que precederam o desenvolvimento da literatura bíblica.
A base da sociedade israelita é nômade e consanguínea. Jacó, neto de Abraão, tem seu nome mudado para Israel (“guerreiro de Deus”) e seus filhos formaram as doze tribos israelitas, cada um dos quais ficou encarregado de administrar um território após a conquista de Canaã. Apenas a tribo de Levi foi designada para os serviços religiosos na nação.


5.3. O Deus supremo

A última subseção deste texto deriva sua importância do fato de trazer à cena da argumentação um recorte do desenvolvimento da ideia de Deus, patenteando seus contornos semânticos e articulando-os com dois acontecimentos que foram fundamentais na sua consolidação.
Começo, pois, por notar que a religião israelita assenta na ideia de que Deus é supremo. Sendo Deus supremo,  não há nenhum reino acima ou além dele que ponha limite a sua soberania. Esse Deus é um Deus absoluto e transcendente. É completamente distinto e diverso do mundo. Essa ideia, segundo o teólogo Yehezkel Kaufmann, surge de uma intuição original, e não foi produzida por uma especulação intelectual, à moda grega, ou por uma meditação mística, à maneira indiana.
Se é verdade que a Bíblia enfatiza a unicidade e supremacia de Deus, é igualmente verdadeiro que ela sublinha o contraste entre o seu novo conceito de divino e a essência mitológica do paganismo. O monoteísmo jamais recebeu uma formulação sistemática e abstrata entre os israelitas. A religião, entre eles, formou-se por símbolos, dentre os quais o mais importante era a imagem de um Deus supremo e onipotente, sagrado, aterrador e ciumento, cuja vontade era a lei maior.
Não se pode esquecer que essa nova ideia de Deus firmou-se, sob seus vários aspectos, com a contribuição da criatividade da população. O Deus de Israel – que nada tinha do caráter universalizante que assumiria com o advento e o desenvolvimento do cristianismo, muito tempo depois – não tinha nenhuma linhagem, pais ou gerações. Isso explica o fato de o repertório de lendas bíblicas carecer do mito da teogonia pagã. Por outro lado, ajunte-se que o relato bíblico é abundante de lendas a respeito de Deus, ainda que diferente, em gênero, dos mitos pagãos.
É bastante, para os meus propósitos, destacar os dois acontecimentos que contribuíram decisivamente para a consolidação da ideia de Deus. Esses acontecimentos estão, naturalmente, recobertos pelo conceito de materialidade histórica da ideia de Deus. O primeiro acontecimento diz respeito à experiência israelita de seu Deus. Viver em conformidade com a vontade de Deus era a aspiração mais profunda dos hebreus. Javé ou Elohim habita seu povo, onde tem uma casa (o tabernáculo, na época nômade) e depois o templo de Jerusalém.
O segundo acontecimento toca ao advento da monarquia de Israel (1.000 a.C), acontecimento este que constituiu um marco na vida dos israelitas. Suas consequências não foram só políticas, nacionais, culturais, militares e econômicas, mas também foram significativas na história do Javismo. O reinado de Saul, primeiro rei, constituiu um estágio de transição entre a forma de governo tribal do período dos Juízes e o estabelecimento de um Estado verdadeiro, com os reinados de Davi e Salomão.
Em suma, quando insisto em que é necessário reconhecer as raízes históricas de Deus, estou interessado em contribuir para o trabalho de desmitificação da consciência religiosa. Entendo que é parte desse trabalho recordar os acontecimentos históricos que estão na base do desenvolvimento da ideia de Deus.
Por fim, oportuno é aqui referir um excerto da crítica antropológica da ideia de Deus, levada  a efeito por Feuerbach, em seu Preleções sobre a essência da religião (2009):


“Já observei que a meta de meu tratado sobre a essência da religião, e consequentemente, também destas preleções, não é outra senão mostrar que o Deus da natureza ou o Deus que o homem distingue de sua essência e que pressupõe esta como a causa ou origem nada mais é do que a própria natureza, e que o Deus humano ou o Deus espiritual ao qual atribui predicados como consciência e vontade que ele imagina como um ser semelhante a si, distinto da natureza enquanto entidade destituída de vontade e consciência, nada mais é do que o próprio homem ( grifo meu, p. 180)



Feuerbach, fiel à crítica desmitificadora do materialismo moderno, denuncia o antropomofismo que está na base da ideia do Deus judaico-cristão, bem como desmonta aquilo que a consciência religiosa dicotomizou, no momento em que ele, Feuerbach, viu em Deus a hipóstase da própria essência do homem. Deus é o próprio homem, e não um ente radicalmente distinto como aparece para a consciência mistificada dos crentes. Trata-se – eu acrescentaria – de reposicionar na origem o homem, de ver a história como trabalho e realidade humana, e Deus como um produto imaginário da consciência humana historicamente constituída nas práticas reais e concretas das quais os seres humanos são os únicos e verdadeiros agentes (embora também se insiram, no processo histórico, como produtos). A ideia de Deus é, portanto, produto de determinadas condições históricas da existência humana. Feuerbach não cansou de insistir em que suas ideias tomam corpo na consideração de “fenômenos históricos e empíricos” (ib.id.), razão por que conseguiu repor no lugar próprio aquilo que a consciência religiosa tratou de mudar de lugar, na medida em que estabeleceu para Deus o lugar de causa, de criador; e ao homem, o de resultado, produto ou criatura, na invenção recontada ad nauseam da Criação.