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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

"Regra é, em primeiro lugar, gestão da vida quotidiana." (Max Weber)

                        

"Poder é toda chance, seja ela qual for, de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra a relutância dos outros."
(Max Weber)


                                  A instituição religiosa
            Uma leitura introdutória da sociologia de Max Weber                            


As ideias articuladas por Bryan Magee, em seu Confissões de um filósofo (2001), no excerto abaixo, não me agradam por terem sido, até o momento em que as deparei, desconhecidas de mim, mas, ao contrário,  me agradam justamente por já terem sido, antes mesmo de elas se me depararem nesse livro, trazidas à luz por mim em alguns de meus textos. Não é razoável concluir daí que eu esteja a reivindicar a originalidade de tais ideias (coisa que não me ocorreria fazer, porque tenho consciência de que a originalidade, quando se trata de produção de ideias ou discursos, não passa de uma noção enganosa ou mítica). Se me agrado de tê-las encontrado na pena de Magee, é porque me apercebi da afinidade entre nossos pensamentos. Afinal, quem não se contentaria em topar ideias suas em obras de grandes autores, especialmente se eles são filósofos? Quando esse é o caso, podemos estar seguros de que nosso pensamento vem sendo desenvolvido por um caminho justo e sem desníveis. Atendamos, então, ao que nos escreve o autor:

“(...) Lorde Acton disse que se deveria aprender tanto com a escrita quanto com a leitura. É uma frase profunda. Escrever sobre um tema força a pessoa a estudá-lo de forma organizada e com um objetivo em foco; a ler toda a literatura essencial a respeito dele; a cobrir todo o terreno, sem deixar lacunas substanciais; e essa atividade oferece um forte motivo para esclarecer os detalhes mais triviais, para não deixar passar erros”.
(ÊNFASE MINHA, p. 36)



A ideia básica segundo a qual escrever nos incita a nos deter no estudo prévio de um tema se afina com a ideia de que o próprio trabalho de escrita supõe uma reelaboração do conteúdo compreendido. Durante a atividade de escrita, o conhecimento que adquirimos, depois de algum tempo em que estivemos debruçados sobre um livro, é sistematizado, reorganizado, reconstruído, reconhecido, de sorte a tornar-se ainda mais transparente e aderente ao nosso espírito. Em suma, aprendemos tanto com a leitura quanto com a escrita. Por conseguinte, a ideia de que o exercício da escrita contribui para nos esclarecer ainda mais sobre temas ou questões que nos ocupam conveio a mim, em certa feita, em que me questionava sobre os fins a que servia minha laboriosa dedicação a esse exercício. A minha formação acadêmica, em si mesma, parecia-me insuficiente para lograr a posição de resposta, sem embargo de ela ter-me conduzido, há mais de dez anos, aos jardins verbais onde, desde então, encontro refúgio e contentamento. Dois, são, portanto, os objetivos basilares a que visa o meu trabalho de escrita: instruir-me e contentar-me. Sinto contentamento durante o próprio exercício da escrita e ele se aviva na consciência da instrução que desse exercício decorre.
Este texto destina-se à discussão do tema religião, à luz da sociologia da dominação, proposta pelo sociólogo alemão Max Weber. As questões sobre as quais repousarão minhas reflexões serão duas: 1ª) Qual a visão de Max Weber sobre a religião?; 2ª) De que modo, segundo ele, a religião exerce seu poder sobre seus fiéis?. Proporei uma abordagem do tema que se estruturará nas seguintes etapas: 1) considerarei, em primeiro lugar, o que é pensar dialeticamente, com vistas a chamar a atenção para o fato de que qualquer trabalho intelectual deve ser orientado pela certeza de que a realidade não se esgota na elaboração de nossas sínteses; 2) na segunda etapa, introduzirei o leitor no pensamento de Max Weber, sem visar à exaustão; 3) na terceira etapa, discuto o conceito de instituição; 4) na quarta etapa, me ocupo da discussão do conceito de instituição religiosa; 5) na quinta etapa, retorno a Max Weber, para apresentar sua perspectiva sociológica sobre a religião.


1. Pensar dialeticamente

O conceito de dialética será aqui contemplado tendo em conta as perspectivas de Hegel e Marx. Vou começar por situá-lo no pensamento de Hegel.
Na filosofia de Hegel, a dialética designa um movimento da razão através do qual é possível superar uma contradição. Não sendo um método, a dialética envolve um movimento, em conjunto, do pensamento e do real.
Quando compreendida no domínio da História, a dialética, ensina-nos Hegel, serve para pensar a história como uma sucessão de momentos, que compõem uma totalidade. Cada momento se apresenta em oposição ao momento precedente. Um determinado acontecimento nega as limitações de um momento anterior, superando-o, na medida em que o leva a um estágio superior.
A dialética, na visão de Hegel, possibilita o acesso ao saber absoluto, visto que do movimento do pensamento pode-se deduzir o movimento do mundo. Logo, o pensamento humano pode conhecer a totalidade do mundo.
A dialética marxista, contudo, torna-se um método. Segundo Marx, a dialética leva-nos a considerar a realidade socioeconômica de uma dada época como uma totalidade atravessada por contradições, entre as quais a da luta de classes. Coube especialmente a Engels transformar a dialética no método do materialismo e na forma como se realiza o movimento histórico, no domínio do qual a Natureza constitui uma totalidade coerente, cujos fenômenos se condicionam reciprocamente. Também devemos a Engles a concepção de dialética como estado de mudança e movimento, como espaço onde o processo de mudanças quantitativas produz, por cumulação e avanços abruptos, mudanças de ordem qualitativa. A Natureza é, pois, considerada um lugar de contradições internas, um lugar em que os fenômenos apresentam uma face positiva e outra negativa, um passado e um futuro. As tensões ou oposições que daí se depreendem é que provocam a luta de tendências contrárias. Dessa luta redunda o progresso.
No domínio da dialética marxista – que me interessa aqui -, o conhecimento é entendido como um processo que tende a totalizações. A atividade humana, por sua vez, é concebida como um processo de totalização, que, no entanto, não se finaliza. A realidade é complexa; ela envolve, necessariamente, relações diversas entre seus elementos componentes. A fim de compreender adequadamente essa complexidade, que é inerente à realidade, o homem tem de proceder de tal modo, que construa uma visão de conjunto, a partir da qual possa examinar acuradamente cada elemento da totalidade.
É preciso notar, no entanto, que a complexidade da realidade sempre excede o conhecimento que podemos ter dela. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses. Elaborar sínteses é parte indispensável do trabalho de pensar dialeticamente a realidade. A síntese é a visão de conjunto por meio da qual o homem consegue apreender o significado da realidade sobre a qual se debruça, numa dada conjuntura. A totalidade – é preciso dizer -, não é senão a estrutura significativa percebida quando da construção da visão de conjunto. Em outras palavras, a visão de conjunto nos dá a totalidade (estrutura) da realidade.
Dizer que o conhecimento da realidade é um processo que aponta para totalizações é reconhecer que há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes. Destarte, no trabalho de construção de um pensamento orientado dialeticamente, há que determinar o nível de totalização pretendido. Se estou interessado em examinar, por exemplo, os movimentos de protestos recorrentes no Brasil neste ano, sou forçado a limitar o escopo de minha análise ao conjunto da sociedade brasileira, discriminando, nesse domínio, os aspectos referentes às esferas econômica, política, histórica, sem perder de vista as contradições persistentes nessa sociedade. Se, por outro lado, eu pretendo avaliar esses protestos tendo em conta seu impacto nas relações político-econômicas do Brasil com as grandes potências mundiais, precisarei de um nível de totalização mais amplo.
Ignorando-se o fato de que, na prática, nem sempre temos a necessidade de determinar uma totalidade que recubra um nível máximo de totalização, por exemplo, a filosofia da história, a dialética consiste numa atividade intelectual através da qual o pensamento vai-se construindo por etapas, num trabalho contínuo sobre totalidades de níveis variados de abrangência.
De uma perspectiva dialética, a realidade é estruturalmente constituída de contradições. O todo é compreendido tendo em conta as contradições entre suas partes, e as partes são consideradas em sua relação com o todo. Não se admite, assim, abstrair as partes do todo, nem se admite pensar o todo ignorando as partes.
A realidade é essencialmente contraditória. Eis um princípio que sustenta a dialética. A contradição encontra-se na base do movimento do próprio real. A contradição supõe uma relação em que os elementos se definem em oposição uns aos outros. Os elementos implicados numa relação de contradição se definem sempre negativamente: um se define por aquilo que o outro não é. Assim, o senhor se define na relação com o escravo; e o escravo se define na relação com o senhor. O senhor é aquilo que o escravo não é; e o escravo é aquilo que o senhor não é. Na dialética, a contradição não é um mero erro de raciocínio. Embora não se oponha à lógica, a dialética a ultrapassa.

Princípio básico da dialética marxista: a realidade é uma totalidade sempre aberta; é um processo que nunca se fecha e que jamais se reduz ao conhecimento que se tem dela. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que podemos ter dela.

Tendo em conta as considerações feitas aqui sobre o conceito de dialética, ou melhor, sobre o que é pensar dialeticamente, passarei a concentrar minhas reflexões no tema a cujo desenvolvimento e discussão me proponho neste texto. Esforçar-me-ei por tornar tão menos custosa quanto possível a percepção pelo leitor da orientação metódica de meu pensamento, cujo movimento não cessará de articular domínios mais abrangentes com menos abrangentes. Meu ponto de partida será, portanto, apresentar Max Weber ao leitor não familiarizado com ele. Nessa apresentação, faço um resumo do pensamento sociológico desse autor.

2. Max Weber (1864-1920) e sua sociologia compreensiva

O caminho que se abre me conduzirá a construir uma visão de conjunto da sociologia de Max Weber. Filósofo e sociólogo alemão, nascido em Efurt, Max Weber é um dos principais responsáveis pela formação do pensamento social contemporâneo, sobretudo do ponto de vista metodológico. Uma de suas preocupações foi determinar, para as ciências sociais, um modelo explicativo próprio, que diferisse do modelo das ciências naturais (Japiassú & Marcondes, 2008, p. 281).
Entre suas contribuições, avulta a distinção entre a razão instrumental e a razão valorativa. Ocupando-se da análise da sociedade contemporânea, Weber procurou investigar os traços fundamentais do Estado moderno, da sociedade e da burocracia que exerce naquele um papel central.
Sua obra mais influente é A ética protestante e o Espírito do capitalismo (1904-05), na qual empreendeu um estudo em que visa a demonstrar que, para explicar o aparecimento do capitalismo, é necessário levar em conta os aspectos éticos, religiosos e culturais que o tornaram possível. Assim, na visão de Weber, não se pode examinar o surgimento do capitalismo por uma visão reducionista, qual seja, por uma visão que se limite ao domínio econômico.

2.1. A sociologia de Weber

São vários os interesses de Weber, entre os quais convém mencionar: a preocupação em definir a singularidade do Ocidente moderno; a formulação de uma explicação causal para a gênese da sociedade ocidental; seu empenho em mostrar como a ação se orienta por valores; e sua insistência no modo pelo qual as pessoas, vivendo em diferentes contextos sociais, conferem sentido às suas vidas. Acrescente-se que a religião também figurou na agenda de interesses desse autor.

Metodologia de Weber. Opondo-se aos modelos sociológicos desenvolvidos por pensadores consagrados como Augusto Comte e Èmile Durkheim, Weber propôs uma abordagem crítica de teorias holísticas, à luz das quais as sociedades se concebem como unidades quase orgânicas, cujas partes de inter-relacionam perfeitamente compondo um “sistema” de estruturas objetivas. As escolas afinadas com essa perspectiva holística da sociedade pensam o indivíduo como um sujeito cuja ação é determinada pela estrutura social e a interação social como meras formas particulares de expressão da totalidade social. Weber se opõe à ideia de que as sociedades são totalidades fechadas, cujas partes compõem uma unidade consistente. Ele via, ao contrário, nas sociedades, as possibilidades de tensão, a fragmentação, os conflitos manifestos, a manipulação de poder.
Weber combateu com vigor a perspectiva das escolas positivistas, para as quais as ciências sociais deveriam ocupar-se na construção de sistemas fechados de conceitos apropriados para dar conta da classificação da realidade de um modo definitivo. Para Weber, as causas de eventos individuais só podem ser elucidadas por meio da compreensão de outras estruturações individuais.

Tese de Weber. As pessoas exibem a capacidade de interpretar suas realidades sociais, de atribuir um sentido subjetivo a determinados aspectos delas e de empreender ações independentes. Para Weber, os indivíduos gozam de liberdade para escolher.
Constitui uma proposição fulcral de toda a sociologia weberiana buscar “compreender interpretativamente” as maneiras pelas quais os indivíduos percebem sua própria ação social. Segundo o autor, a ação social é dotada de sentido subjetivo e sobre ela deve recair a atenção dos sociólogos.
Weber, conquanto reconheça que as pessoas são agentes sociais, não as considera apenas na dimensão social. Para ele, elas têm a capacidade de interpretar ativamente as situações, as interações e as relações em que se envolvem, com base em valores, crenças, interesses, emoções, poder, autoridade, leis, costumes, hábitos, ideias, etc. O autor insta em que é possível aos sociólogos compreender o significado da ação dos indivíduos. Essa “compreensão racional” implica uma apreensão intelectual do sentido atribuído pelos atores sociais às suas ações. Também, segundo Weber, é possível aos sociólogos buscar compreender intuitiva e empaticamente o significado da ação dos indivíduos, sempre que se concentrarem na apreensão do “contexto emocional em que se dá a ação” (Kalberg, 2010, p. 34).
O interesse principal de Weber abriga, portanto, o compreender a motivação para uma ação observável; o compreender de que maneira se dá a variação do sentido subjetivo de um ato, tendo em vista suas diversas motivações; o compreender como essas motivações influenciam o curso da ação.
Já vimos que Weber está preocupado em compreender como agem os indivíduos em determinadas situações e quais sentidos eles atribuem às suas ações. Essa preocupação o leva também a buscar explicar de modo causal como se constituem esses indivíduos históricos. É a realidade da vida em que eles estão imersos, é a singularidade característica dela que estão sob o foco da atenção do autor.
Na busca por compreender o significado das ações sociais, excedem em importância os quatro tipos de ação propostos por Weber. Os quatro tipos de ação social são dotados de sentido subjetivo. O primeiro tipo é a ação racional referente a fins. Nesse tipo de ação, levam-se em conta os fins, os meios e as consequências, que são ponderados racionalmente. As pessoas consideram as diferentes relações entre meios e fins e entre fins e suas consequências, bem como a validade de outros fins possíveis (Kalberg, 2010, p. 35). O segundo tipo é a ação racional referente a valores. Nesse caso, a ação se determina por uma crença no valor que tem em si mesma uma conduta ética, estética, religiosa, etc. As perspectivas de sucesso da ação não são tão importantes. Esse tipo de ação envolve sempre ‘ordens’ ou ‘demandas’ (ib.id.). O terceiro tipo é a ação afetiva. Esse tipo de ação é determinado por afetos e estados sentimentais que experimenta o agente no momento mesmo em que atua. A ação afetiva envolve um apego emocional relativamente aos dois tipos de ação anteriores. O quarto tipo é a ação tradicional. Ela é determinada por hábitos arraigados e por costumes seculares. Quase sempre funciona como uma resposta rotineira a estímulos comuns.
A classificação das ações sociais, tal como proposta por Weber, o auxilia na tentativa de compreender orientações difusas de ação (Kalberg, p. 36).
Em suma, o modelo teórico de sua sociologia compreensiva visa a orientar os sociólogos na compreensão da ação social tendo em vista as intenções do próprio agente.


3. A instituição
3.1. A sociedade como realidade objetiva

Em A construção social da realidade (2007), Berger & Luckmann introduzem o tema das origens da institucionalização, dando-nos a conhecer a diferença existente entre os modos de o homem e de os animais não-humanos se relacionarem com o ambiente em que vivem. Os animais não-humanos mantêm relações biologicamente fixas com o ambiente. Eles vivem, quer como indivíduos, quer como espécies, em mundos fechados, de tal modo que a organização de seus mundos é predeterminada pelo equipamento biológico inato presente nas diferentes espécies. O organismo deles é uma extensão do ambiente natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a relação do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão entre dois fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,

“(...) a experiência que o homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)


Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a compreensão do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão de atividades de produção de significados subjetivos, quando se considera essa especificidade da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre essas consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem é sempre uma atividade que se faz com outros, é sempre, portanto, uma atividade social; 2) os seres humanos produzem um ambiente humano em conjunto, em interação com outros seres humanos; 3) essa produção do ambiente humano não se dá sem uma totalidade de formações socioculturais e psicológicas de que os homens tomam parte; 4) quando se lançam olhares sobre os fenômenos humanos, claro fica que se está diante de um reino social; 5) humanidade e sociabilidade estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma direção e uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa estabilidade da ordem humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão chamando a atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento individual do organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para exteriorizar-se nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a ordem social é que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a transforma. A ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo, biologicamente determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É assim que a ordem social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a conduta humana (Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada biologicamente, nem redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não faz parte da natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do ambiente natural do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a forma da ordem social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem social é produto unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os autores:

“Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)


Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados biológicos, não se pode negar que a necessidade dessa ordem social provém do equipamento biológico humano (p. 77).

Como se dá a institucionalização? À página 77, escrevem os autores: “toda atividade humana está sujeita ao hábito”. O hábito é um aspecto fundamental do processo de fabricação da realidade institucional. Toda ação que se reitera muitas vezes molda-se num padrão, que passa, então, a ser reproduzido com economia de esforço e que é compreendido como padrão por quem a executa. O hábito torna possível que a ação seja reproduzida também no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço que o foi no passado. Isso é verdade tanto para a atividade social quanto para a atividade não-social. Mesmo um indivíduo solitário realiza ações habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de significado para o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no conjunto de conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são avaliados como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras. Acerca do valor do hábito, esclarecem-nos os autores:

“O hábito fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos”.
(p. 78)


Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para decisões que se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade de que cada nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma grande quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser antecipada.
Os processos de formação de hábitos estão na origem de toda institucionalização. Isso vale também para o caso hipotético de um indivíduo isolado. Não se pode ignorar que esse indivíduo solitário, supondo-se a formação de um “eu”, também terá de converter em hábito sua atividade, em consonância com a experiência biográfica construída num mundo de instituições sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas tipificações constitui uma instituição. Para efeitos de compreensão da institucionalização, não só a reciprocidade das tipificações importa, mas também a tipicidade das ações e dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas instituições – ou melhor, que são as instituições – são partilhadas entre os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e a própria instituição tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é ilustrada de modo bem simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:

“A instituição pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do tipo x. Por exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão decapitadas de maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos determinados de indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros de uma casta impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram designados por um oráculo)”.
(p. 79)


Como se vê, é a própria instituição que regula as ações desempenhadas pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na estrutura institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann, “implicam (...) a historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as tipificações das ações se constituem no curso de uma história de que tomam parte os agentes sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto dessa história. Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma instituição sem lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por força mesmo de sua existência, controlam a conduta humana, fixando-lhe previamente padrões na base dos quais ela se desenvolverá. A direção da conduta humana coloca-se sob o governo desses padrões. Isso evita que a conduta dos indivíduos tome outras direções potenciais mas não desejáveis para uma instituição. O caráter controlador é inerente, portanto, à instituição e é anterior a quaisquer dispositivos de sanções mobilizados para produzir apoio à instituição. O controle está entranhado na realidade de qualquer instituição, conforme notam Berger & Luckmann abaixo:


“Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)



Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta a Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade. Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu, embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar, claro é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social. No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é produto social (Berger & Luckmann, p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma análise pode negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:

1) sua realidade objetiva. O mundo institucional é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como uma realidade marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do indivíduo e cujas origens ele ignora;

2) sua perpetualidade. Toda instituição se perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do indivíduo, mas também porque continuará existindo depois de sua morte;

3) a sua historicidade. A própria história desse mundo institucional é dotada de objetividade. A biografia de um indivíduo se reduz a um episódio situado na história objetiva de sua sociedade.

4) sua facticidade inegável. As instituições com que se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles as percebem como tais.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão aí, exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou não” (p. 86). As instituições  resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre os indivíduos, quer devido ao seu caráter de facticidade (elas estão aí como “já dadas”), quer por força dos mecanismos de controle que lhes dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se impõe, mesmo que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de funcionamento. Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender muitos aspectos da ordem social e pode considerar opressivas as formas como eles se lhe apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.
“Existindo as instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)


A linguagem desempenha um papel fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me deter a avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso compreender a função da legitimação, como um fenômeno, necessariamente dotado de materialidade linguística, que atenderá às necessidades de permanência da instituição e seu reconhecimento pela geração futura.
Legitimação. O mundo social existe somente na medida em que é transmitido a uma nova geração. Esse processo de transmissão se realiza na forma de interiorização pelos indivíduos, na socialização, das estruturas institucionais (suas normas, ideias, valores, ideologias...). Portanto, o mundo social existe apenas quando do surgimento de uma nova geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do aparecimento de uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois, os modos pelos quais o mundo social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação na conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração recebe a realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos indivíduos. Vou ilustrar essa inacessabilidade da realidade da instituição à consciência dos indivíduos, pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento de pensamento. Imaginemos que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e Maria, não sendo criadores originais do mundo social (como também não o são os seus pais, é claro) não podem ter acesso direto ao significado das instituições. O conhecimento que se lhes tornam acessível o é por um “ouvi dizer”. O significado original das instituições deve ser interpretado para eles por meio de várias fórmulas legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação do mundo social, servindo para explicá-lo ou justificá-lo para as novas gerações, visam também a provocar nelas um consenso acerca da validade dos modos de funcionamento da própria instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam Berger & Luckmann,

“Segue-se que a ordem institucional em expansão cria um correspondente manto de legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e normativas”.
(pp. 88-89)


A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular a conduta dos indivíduos na ordem social.

“A nova geração engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem institucional exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre o indivíduo, independentemente das significações subjetivas que este passa a atribuir a qualquer situação particular”.
(p. 89)


As definições institucionais previamente existentes devem ser protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de instituição que capta dois aspectos básicos dela: sua padronização de hábitos e sua objetividade irredutível à consciência individual.

“[instituições] são as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)


Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um “fato social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas, cabe destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos sociais congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do processo de educação. Segundo ele,

“Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros tempos de sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas. Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc.”
(p. 35)


Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina Durkheim, é que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem. Mas é a própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências individuais, acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.

A objetivação pela linguagem. Tenho repisado a ideia de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas experiências de mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas orientando-a no sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela linguagem no processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de nossas experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de conhecimento) que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em nossos discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a linguagem objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a todos os indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um estoque de conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias pelas quais se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são incorporadas ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger & Luckmann lançam uma luz sobre a importância da linguagem no processo de objetivação de nossas experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão” (p. 96). E prosseguem:

“Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência, ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar um profundo laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência designada e transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)


Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida na/pela linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir um caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral, mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações coletivas assumem a forma de ideologias.

“(...) Tendo a origem real das sedimentações perdido importância, a tradição pode inventar uma origem completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi objetivado. Em outras palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras, de vez em quando outorgados novos significados às experiências sedimentais da coletividade em questão”.
(pp. 97-99)


Comum às formas de ideologia é o apagamento das causas reais de existência de uma dada realidade. O apagamento dessas causas permite que outras causas passem a preencher o seu lugar. A realidade, contudo, se mantém preservada, já que a ideologia a legitima e a reproduz. Para dar um exemplo do modo como a ideologia, apagando as verdadeiras causas que estão na origem de uma coisa, serve para, não obstante, conservá-la e reproduzi-la, considere-se a escrita dos quatro evangelhos que constam do cânone do Novo Testamento. Ao longo de séculos, inúmeros relatos sobre quem foram os autores dos evangelhos contribuíram para sedimentar a crença de que esses autores foram os apóstolos de Cristo. Cada um dos nomes que se estampa nas páginas dos evangelhos parece provar ser verdadeira essa crença. Mas uma leitura cuidadosa dos textos, orientada por um método denominado de crítico-histórico ajuda a desencavar a verdade que tem por hábito esconder-se quase sempre. Em primeiro lugar, deveríamos nos perguntar por que surgiu aquela crença, ou seja, por que se veiculou a ideia de que os evangelhos foram escritos pelas pessoas que foram apóstolos de Cristo? Porque se pretendia garantir aos leitores que esses textos foram escritos por testemunhas oculares. Deve-se ver aqui o pressuposto de que testemunhas oculares são dignas de confiança; portanto, estão comprometidas em contar o que de fato aconteceu. É claro que, na realidade, não se pode confiar que mesmo testemunhas oculares ofereçam relatos históricos precisos. Mas, deixando de lado, essa questão, o primeiro aspecto da verdade (agrada-me pensar a verdade como um caleidoscópio, que nos encanta à medida que se nos revelam suas múltiplas cores e formas) diz respeito ao fato de que os Evangelhos foram escritos anonimamente. O segundo aspecto é que seus autores não alegam ter sido testemunhas oculares. O terceiro aspecto é que os nomes que figuram nas páginas desses livros foram acrescidos posteriormente por escribas e editores, que intentavam informar os leitores sobre quem acreditavam ser os autores dos textos. Note-se que quem quer que tenha realmente escrito o Evangelho de Mateus não escreveria “Evangelho segundo Mateus”. O quarto aspecto é que esse Evangelho foi escrito na terceira pessoa, ou seja, quem o produziu não participa dos acontecimentos relatados; essa pessoa instaura um “eles” na narrativa (“eles” é “Jesus e os discípulos”). Em João (21:24), lê-se: “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro”. Veja-se que se instauram um “ele” (“este é o discípulo”) e um “nós” (“sabemos que...”), de modo que o autor não é o discípulo; aquele alega ter tão-só recebido as informações do discípulo. A verdade não se esgota nesses quatro aspectos, evidentemente. Há as contradições flagrantes quando se dispõem, lado a lado, os quatro evangelhos. A esse fato acrescente-se ainda que o analfabetismo atingia 90% da população do Império Romano e que a minoria rudimentarmente alfabetizada pertencia às classes abastadas. Os apóstolos de Jesus eram, como se sabe, pessoas provenientes das classes populares, falantes de aramaico da Galileia. É bem estabelecido há muito o consenso entre os eruditos sobre o fato de que os Evangelhos foram originalmente escritos em grego, língua que, certamente, não dominavam os apóstolos de Jesus, que eram camponeses das classes menos abastadas e analfabetos. Quem, então, foram os autores? Os próprios Evangelhos auxiliam na construção de hipóteses. Embora não tenham sido os livros mais sofisticados que circulavam no império romano, certamente sua narrativa é bem escrita e estruturada, o que sugere que seus autores eram pessoas com grau de instrução bastante elevado, falantes de grego, que viviam fora das regiões da Palestina. A crença de que eles não eram habitantes da Palestina confirma-se pela observação de sua ignorância sobre a geografia da região e sobre os costumes judaicos, ignorância que se pode deduzir do cotejo do que relatam com o que se sabe sobre a região palestina e os costumes judaicos. Consoante nota Ehrman, em seu livro Quem foi Jesus? Quem não foi Jesus? (2010),

“Quem quer fossem esses autores, eram cristãos de uma geração posterior, com dotes incomuns. Os estudiosos discutem onde viveram e trabalharam, mas sua ignorância da geografia da região palestina e dos costumes judaicos sugere que criaram suas obras em outro lugar do império – possivelmente em uma grande área urbana onde poderiam ter recebido uma educação decente e onde haveria uma comunidade cristã relativamente grande”.
(p.123)


Os quatro evangelhos que entraram a fazer parte do cânone não são os únicos remanescentes; outros muitos foram escritos e associados a outras pessoas que, supostamente, teriam convivido com Jesus. Por razões políticas, ideológicas e teológicas, eles foram rejeitados pelas autoridades proto-ortodoxas. Muitos desses escritos se perderam para sempre, mas outros foram encontrados, como os evangelhos de Pedro, de Judas e de Maria Madalena. Outro aspecto da verdade sobre a produção ou reprodução dos quatro evangelhos canônicos é que os originais se perderam para sempre; os que foram incluídos na Bíblia são cópias de cópias, produzidas por escribas, que alteraram os textos voluntariamente, ou por inaptidão, ou pelo esgotamento provocado pelo próprio trabalho árduo de copiar manualmente palavra por palavra.
Uma sucessão de “apagamentos” fomentou a crença, acalentada por bilhões de pessoas no mundo atual, de que os quatro evangelhos que constam da Bíblia são os textos originais produzidos pelos verdadeiros apóstolos de Jesus. Evidentemente, esses “apagamentos”, produzidos por narrativas ideológicas, se deram e se perpetuaram  a partir de condições sócio-históricas profundamente marcadas por disputas, conflitos, interesses antagônicos que animavam aqueles que tomavam parte das esferas de poder (político, ideológico e teológico).
Na medida em que oculta da consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de uma dada instituição, a ideologia contribui para reforçar atitudes de consenso, de aceitação, de assentimento, desencorajando movimentos sociais insurgentes contra a ordem social estabelecida.

O que é, então, uma instituição?

Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre si e que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade. As instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram. As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas Simbólicas (2011), a respeito da influência que as estruturas sociais exercem na formação da consciência dos indivíduos:

“Se levarmos a sério (...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em classes, somos, necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre as estruturas sociais (em termos mais precisos, as estruturas de poder) e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)


Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor dissimuladamente princípios que regulam a estruturação da percepção e do pensamento do mundo, particularmente, do mundo social, por meio da imposição de um sistema de práticas e de representações cuja estrutura se calca objetivamente sobre uma base de divisão política que espelharia a estruturação dos domínios natural e sobrenatural do cosmos.
Na seção seguinte, vou estender minhas considerações à realidade institucional religiosa.

4. A instituição religiosa

Espero tenha ficado claro até aqui que a instituição, na medida em que se constitui num espaço de relações sociais, transcende os indivíduos. Também não deve restar dúvida sobre a independência da instituição em relação aos indivíduos. As instituições – vale insistir – são exteriores aos indivíduos e diferem da realidade interior deles, ou seja, do conjunto de seus sentimentos, pensamentos e fantasias.
Vimos também que as instituições são sempre objetivas, porquanto valem para todos os indivíduos. Elas funcionam independentemente da vontade deles. O indivíduo é impotente em face da instituição. Sozinho ele não pode mudá-la. As mudanças, quando ocorrem, resultam das próprias formas de funcionamento da instituição.
Considerando-se o que foi dito, proponho a seguinte definição de instituiçãotoda forma de conduta social que, assumindo um padrão, torna-se independente dos indivíduos. As instituições, conforme vimos, são produtos do hábito, da ação ou atividades que se repetem e ganham existência autônoma. Em suma, a instituição não foi criada pelo indivíduo, nem ele pode destruí-la. Ela se estrutura por regras e por mecanismos de coerção.

Comecemos, pois, por admitir um fato inegável: a religião é uma instituição social. Como tal, ela se estrutura por meio de um conjunto de regras que determinam seu funcionamento interno; é relativamente autônoma em relação aos indivíduos que dela participam. Por isso, devemos concordar com Luís Mauro Sá Martino, em Mídia e poder simbólico (2003), ao afirmar que “as igrejas são um tipo específico de “programação de conduta individual imposta por um grupo social” (pp. 21-22). Do mesmo modo, a pertinência da observação de Marx, em Manuscritos Econômicos Filosóficos (2006), sobre a permanente dependência do homem real à religião endossa a ideia de perenidade suscitada pela noção de “programação da conduta individual”:

“A consumação do Estado é o Estado que se reconhece simplesmente como Estado e separa-se da religião dos seus membros. A emancipação do Estado a respeito da religião não é a emancipação do homem real quanto à religião”.
(grifo meu, p. 29)


Note-se a atualidade do pensamento de Marx. Ele ainda nos ajuda a não nos deixarmos chafurdar nos enganos de uma consciência embotada da realidade: a laicidade do Estado não significa a emancipação do homem concreto em relação à religião.
Acima, escrevi ser a religião uma instituição social. Sua natureza institucional é representada na capacidade que tem as igrejas de tipificarem, nas relações que as constituem, os papeis sociais que devem ser assumidos pelos atores que a compõem.
No tocante à especificidade da instituição religiosa, deve-se reconhecer que a definição dada ao sagrado desempenha um papel decisivo, isto é, é a definição que se dá ao sagrado que constitui a especificidade da instituição religiosa. Assim, compete à instituição religiosa determinar as fronteiras entre pessoas, objetos, rituais, modos de proceder, lugares que se situam entre as coisas deste mundo e as pessoas que travam lutas por apropriar-se legitimamente dos bens imateriais. O sagrado pertence ao domínio atemporal, imaterial, sobrenatural, transcendente; as coisas sagradas exigem profunda deferência, adoção de determinados hábitos e atitudes, veneração; o sagrado define a “região” do divino em oposição ao mundo dos homens. O sagrado se define na relação de contradição com o profano (dialética). Profano é tudo que é estranho à religião ou que viola a santidade das coisas sagradas.
Não pretendendo descer a pormenores sobre a questão da definição do sagrado, gostaria apenas de acenar à necessidade de compreendermos a natureza da instituição religiosa, antes de fazermos incursão na abordagem proposta por Weber do fenômeno religioso. Weber escrevia sobre o tema num momento histórico já afetado pelo paradigma da secularização. A secularização é um processo sócio-histórico que privou as religiões da autoridade sobre as prerrogativas que passaram então a ser partes da competência de autoridades laicas. Com efeito, a secularização levou a religião a perder seu lugar privilegiado no mundo, a perder também o monopólio sobre a produção de sentido da vida e dos fenômenos sociais. A secularização tornou a religião, nota Martino, “um acessório, plenamente dispensável para a compreensão do mundo” (pp. 25-26).
A secularização exibe duas marcas que devem ser aqui apontadas:

1ª) ela destituiu a religião ou a Igreja do poder de controlar institucional e juridicamente o funcionamento da ordem social;

2ª) culturalmente, ela privou a Igreja da prerrogativa de construção e reprodução (por coerção) de dominante uma representação do mundo social, da legitimação de suas regras e, mais atualmente, da imposição de uma opinião tomada como verdade indiscutível.

Se nos volvermos às palavras de Marx, anteriormente aduzidas, e as considerarmos à luz do que nos ensina Martino no excerto abaixo, não será custoso entender por que a separação entre Estado e Religião não acarreta o esgotamento do valor desta última, ou melhor, não acarreta o desinteresse do homem comum por ela. O interesse é mantido não só porque a religião dispõe de mecanismos coercitivos sutis para garantir a adesão à sua ideologia e ao seu sistema de práticas e rituais, mas também porque ela ainda responde pelas grandes questões da existência, quais sejam, a do sentido da vida e a do sentido da morte. Não está, evidentemente, entre as atribuições do Estado moderno, o pretender dar conta dessas questões.

“A série de representações, certezas, dogmas oferecidos pela instituição religiosa, embora tendencialmente desprovida de uma base racional, é uma contínua atribuição de significado, que se reflete no fiel como a certeza plena de estar de posse de um conhecimento senão socialmente reconhecido, individualmente capaz de responder as questões existenciais, de maneira a fornecer resposta e sentido à existência”.
(p. 27)


4.1. A visão de Weber sobre o fenômeno religioso

Weber entendia ser a religião uma forma de ação particular numa comunidade. Para ele, à religião compete regulamentar as relações do sobrenatural com os homens. Weber rejeitava a oposição, comumente aceita, entre modernidade e religião, sustentando, ao contrário, que a religião desempenhou um papel importante na emergência da modernidade.
A religião, pela forma específica de agir em comunidade e de dominar alguns grupos, exibe duas características principais: favorece o estabelecimento de vínculo social e exerce um poder que lhe garante a própria existência. Mas Weber não reduzia a função da religião ao estabelecimento de vínculo social. Em sua famosa obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber mostrou que havia uma influência mútua entre as visões de mundo do protestantismo e do capitalismo. Assim, a ação social, que no interior do sistema religioso é orientada magicamente, não leva os fiéis a afastar-se do mundo. Ao produzir uma ética própria que serve à racionalização do mundo, segundo a premissa da salvação, a religião confere poder de ação no mundo ao fiel.
No importante estudo Economia e sociedade, o sociólogo alemão mostra como surgiu a casta sacerdotal, como a magia se transforma em religião e como daí resultou a Igreja. Além disso, definiu e distinguiu as noções de “igreja” e “seita”.
Como Weber entendesse a religião como um modo particular de ação em comunidade, ele sustentou ser necessário estudar as condições e consequências do comportamento religioso. Ele não hesitou em se posicionar contra a visão predominante de que a religião, insistindo na promessa de uma felicidade no além-mundo, levaria os fiéis a se desinteressar pela única realidade verdadeiramente existente. Para ele, mesmo que a religião tome como referencial de seu discurso o além-mundo, não deixa de reportar-se para a vida na terra.
Weber também considerava racionais os atos religiosos, crença que o levou a demonstrar que há diferentes tipos de racionalidade e que a racionalização da religião contribuiu decisivamente para o surgimento da modernidade.
Não me será possível estender-me sobre essas alegações de Weber. Interessam-me, não obstante, temas que se inscrevem numa sociologia da dominação em que se estriba a sociologia das religiões desenvolvida pelo autor.
O primeiro desses temas se desenvolve a partir do conceito de agrupamento hierocrático”, que recobre a ideia de um grupo no qual se exerce uma dominação particular (espiritual) sobre indivíduos. Weber não deixa escapar duas características marcantes da religião: além do vínculo social que ela engendra, ele destacou o tipo de poder que ela exerce. Também se preocupou em distinguir duas formas de objetivação do que chamou “comunalização religiosa”. A primeira dessas formas é a igreja, que se define como uma instituição burocrática de salvação extensiva e receptiva a todos os homens, no interior da qual a autoridade é representada pelo padre. A segunda forma é a seita, que consiste num tipo de associação voluntária pelos crentes que se demonstram dispostos a romper, de modo mais ou menos marcado, com o entorno social. Nesse tipo de associação, a autoridade é exercida por um líder carismático.
É preciso ressaltar, contudo, que, no modelo sociológico de Weber, Igreja e seita são tipos ideias que não encontram repercussão empírica, muito embora sejam úteis como ferramentas para a investigação da realidade empírica.
Finalmente, cabe ainda considerar os tipos de autoridade religiosa identificados por Weber com base na observação sobre as diferentes formas pelas quais o poder é legitimado na vida social. Para o autor, há três modos de legitimação do poder: o primeiro é o modo racional-legal; o segundo é o modo tradicional; o terceiro, o modo carismático.
A legitimação pelo modo racional-legal diz respeito à autoridade administrativa. Essa autoridade impessoal se funda na crença comum no valor dos hábitos, na naturalidade da transmissão de cada função (por exemplo, de um modo hereditário). A autoridade carismática, por seu turno, é um tipo de poder pessoal, cuja legitimidade se calca sobre uma aura reconhecida num dado indivíduo.
No campo religioso, aqueles três modos de legitimação do poder correspondem a três tipos ideias de agentes: o padre, o feiticeiro e o profeta. O padre encarna a autoridade religiosa exercida na esfera burocrática da salvação. O feiticeiro exerce uma autoridade que lhe garante o lugar de portador de uma tradição junto a uma comunidade que o reconhece como tal. O profeta é a autoridade religiosa pessoal que se impõe como fonte legítima de uma revelação que ele mesmo anuncia.
Se a autoridade institucional do tipo “padre” é atribuída ao religioso a quem compete dirigir a comunidade no cotidiano, garantindo sua continuidade por longo tempo, a autoridade carismática do tipo “profeta” se desinteressa pela gestão da vida cotidiana.

Não tive a intenção de me alongar sobre as questões desenvolvidas por Weber em sua abordagem sociológica da religião. Contento-me com a possibilidade de ter conseguido estimular no leitor o interesse por aprofundar seus estudos sobre Weber e sua sociologia.