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sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Mais um ano longe de ser criança? Isso não me parece ser o mesmo que crescer." (Richard Bach)


                             Sobre o crescimento humano

  

Uma pessoa só cresce (e refiro-me a crescimento espiritual, à maturidade), quando capaz de reconhecer que o mundo não se dobra em face de seus desejos. Somos seres desejantes, e não há como deixar de sê-lo. O desejo nos impulsiona a viver; calado o desejo, resta a apatia, a melancolia. O desejo está no princípio; a ação vem depois. Nem sempre agimos segundo desejamos, a experiência no-lo prova. E não podemos ter tudo que desejamos. É preciso domar o desejo (e não me refiro ao que pode nos levar à ruína, mas ao desejo que visa a algum benefício). Para isso, há a cultura e seu produto psíquico, o superego – que comanda e censura, impedindo a plenitude da satisfação dos desejos. Há uma compensação à castração do desejo - o princípio de realidade, que nos impele a buscar para o desejo objetos  substitutivos, cuja fruição  esteja adequado às exigências do superego; afinal, é ele quem comanda.

Dei passos largos e me perdi. Volto ao que me interessa. Não o desejo que transgride às exigências do superego (que é o juiz social em nossa mente); mas o desejo realizável, embora limitado por pressões externas. Portanto, é do desejo frustrável que se trata. Amadurecemos quando nos damos conta de que entre o desejo e a realização há uma série de condições adversas que devemos nos esforçar por superar, embora, não raro, a superação não esteja ao nosso alcance. Não é raro que, nesses casos, o desejo nos conduza à utopia (que nada mais é do que o “não-lugar, o lugar nenhum). Mas, então, me lembro do poema de Eduardo Galeano, cujos versos finais nos ensinam que devemos caminhar:  “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Transcrevo-o abaixo na íntegra:



A utopia está lá no horizonte

Me aproximo dois passos,

Ela se afasta dos passos.

Caminho dez passos

E o horizonte corre dez passos

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.



(Eduardo Galeano)



Vemos, assim, que a utopia, embora, por definição, infactível, ajuda-nos a avançar. Nesse sentido, ela nos leva a resistir à apatia. Ela nos move para frente e é possível que, durante o percurso tenhamos razões para nos contentar. Se nosso crescimento, eu dizia, depende de que reconheçamos, como cantava Cazuza, que aquele garoto que pretendia mudar o mundo agora está deitado num divã, não se segue daí que devemos concordar plenamente com ele; afinal, se queremos resistir ao conformismo, não podemos deixar o tal garoto em cima do muro, como mero espectador no teatro da existência, um coadjuvante no palco da vida. O Dasein pressupõe a transcendência do homem no mundo. A apatia é o efeito das frustrações que experimentamos por força das coerções sociais. A vida precisa superá-las. Para viver, precisamos resistir a elas. Digo às frustrações, é claro.

Tendo já a maturidade limado as suntuosas estruturas de nossos desejos de primavera, o que nos resta, no final das contas? O que, afinal, importa? Ter nosso cantinho, nosso cônjuge, possivelmente filhos, um carrinho na garagem e um emprego (porque é preciso, não há como viver sem trabalhar, embora o desejemos, nos lembra Sponville). E, a esta altura, quero fazer eco a Sponville – e me perdoem a pequena digressão (mas se verá que ela não perturba o itinerário deste comboio de palavras). Lê-se, na página 26, de seu livro Bom-dia, angústia (2010), o seguinte:



“O trabalho é um esforço, um sofrimento, uma fadiga. A riqueza, um luxo e um descanso. “O dinheiro não traz felicidade”, dizem, e isso é muito claro pois que nada o traz. Mas que luxo, porém, a preguiça, e que prazer o luxo!”.





Permita-me o leitor que eu me detenha um pouco nesse trecho. Percebo coisas interessantes nele, e quero trazê-las à sua consciência. O uso das aspas destacando o enunciado “O dinheiro não traz felicidade” serve de índice do que se costuma chamar, em Análise do Discurso, de “heterogeneidade mostrada”. Trata-se da recuperação explícita de outro discurso. Apreende-se, pelos recursos da linguagem, a presença do Outro (que é fundante de todo ato de linguagem). Esse discurso é atribuído a um enunciador genérico, que chamarei, seguindo a tradição desse campo, de “Vox populi”. É a voz popular que o diz, e o autor adere a esse discurso (e à perspectiva que se enuncia). E justifica sua adesão evocando Freud. Não explicitamente, é claro, mas quem leu O mal-estar na cultura (2010) sabe que, nessa obra, Freud advoga ser a felicidade inalcançável ao homem, dadas as condições repressivas da cultura. Na verdade, para Freud “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (p. 63). Entenda-se tanto a constituição física quanto psíquica. Citando esses breves excertos de Freud, ocorre-me que a leitura daquela obra é extremamente importante para a compreensão da natureza humana. Contemplamos nela a dimensão visceral de nosso sofrimento. Nela, o drama nu de nossa condição!

Eu dizia que, se, no final das contas, desejamos ter uma família, uma moradia e um emprego (e um carro na garagem, talvez), haverá ainda espaço para o desejo? Se o trabalho é uma obrigação enfadonha, da qual não podemos escapar, se quisermos sobreviver, resta ainda espaço para um desejo que vai além de uma melhor remuneração? Devemos lembrar, e para tanto me apoio na argumentação de Sponville, que o valor do trabalho se acha fora dele. Ou seja, se acha na sua recompensa, qual seja, no dinheiro que se ganha, no salário que se recebe. Não me alongarei na discussão sobre o valor social do dinheiro, para a qual remeto o leitor à obra aqui referida de Sponville. Nela, se topa um capítulo, intitulado de O dinheiro, do qual, aliás, extraí aquele excerto. Convém, desde já, alertar o leitor sobre o perigo do reducionismo, particularmente, em matéria de interpretação textual. Preciso ser mais claro: devemos ter o cuidado para não fragmentar o discurso do outro ao pretender evocá-lo ou explicitá-lo em nosso texto, visto que podemos  deturpar o pensamento do autor. Em todo caso, não há como evitar o fato de que sempre procedemos tentando adequar as passagens citadas ao curso argumentativo que tomamos, para, assim, validar nossas conclusões. Cuido que Sponville diz, a seguir. o essencial a respeito do trabalho, em seu livro A Vida Humana (2009). Atente-se para o excerto:



“Engana-se sobre o trabalho quem vê nele apenas um fim em si ou mesmo um valor moral. É o que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho, considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é um dever. Por isso tem um preço.”



(p. 58)



Note-se bem que, ao se perguntar “quem não prefere o repouso, o lazer e a liberdade?” ao trabalho, Sponville nos deixa entrever um questionamento: há possibilidade de alguma liberdade no trabalho? Liberdade é incompatível com trabalho? Talvez, ainda, uma questão prévia se nos imponha ao espírito: há alguma forma de experimentar liberdade na vida em sociedade? Em que medida somos verdadeiramente livres? Não pretendamos dar respostas definitivas; não é a isso que se propõe a filosofia. Não é essa a sua lição fundamental. Mais valem as questões do que as respostas. E estas, quando dadas, abrem oportunidade para novas questões. E a busca pela verdade é um movimento incessante! De fato, a liberdade no trabalho não é plena; por vezes, muito limitada, ou quase nenhuma. Poderá refutar-me o leitor, observando, estando o trabalhador reduzido ao cumprimento de suas obrigações, sem qualquer liberdade de ação divergente de tal condição, resta-lhe a liberdade de escolher deixar o emprego. Tão-logo, no entanto, atentamos mais de perto para o drama humano, reconhecemos que esse trabalhador terá sua liberdade ainda mais limitada pelas condições externas, pois que precisa sobreviver, precisa do dinheiro para sustentar a si e a sua família (caso a tenha). As contas ignoram nossa liberdade!

No magistério – quem é professor bem o sabe -, precisamos acalentar desejos e nos esforçar por realizá-los. Sabemos outrossim que as condições administrativas da instituição são adversas. Lembro-me de que, tendo apresentado um projeto de um curso de leitura na faculdade onde trabalhava, e a despeito do reconhecimento de sua qualidade e validade, o curso nunca fora implantado, por razões organizacionais (parece que o programa curricular não deixava margem à inserção de uma nova disciplina, reconhecidamente importante!). Na ocasião, argumentei, me respaldando na constatação da baixa qualidade da compreensão textual e produção escrita dos alunos nos cursos que ministrei, entre os quais os ministrados na cadeira de Letras, que era urgente que se oferecesse um curso destinado tão-só ao trabalho com leitura e compreensão textual (aí implicadas as atividades de produção escrita). Era preciso exercitar a prática de leitura crítica e o exercício da escrita contínua, dizia eu, como uma tentativa de amenizar um problema, certamente mais grave e anterior, a baixa qualificação escolar de nossos estudantes. Atrelado a esse difícil problema, havia outro, a saber, a admissão desses estudantes para os cursos superiores. Todos sabíamos (os professores que o digam!) que muitos estudantes que ali estavam não dispunham de uma competência textual e de leitura satisfatória para avançar no percurso de sua formação acadêmica. Culpá-los por isso é um erro, embora despercebido por alguns professores. São esses estudantes antes vítimas! Se uma instituição de ensino privado, como um mercado, precisa de lucro para se manter, não havendo alternativa senão admitir o maior número de estudantes possível (a quantidade faz o lucro!), resta aos profissionais diretamente ligados ao ensino (nós, professores), ou nivelar nossas aulas por baixo (para que não haja um grande índice de reprovação e possível evasão), ou esforçarmo-nos por oferecer um curso com um mínimo de qualidade, buscando angariar apoios daqueles que são responsáveis pela administração (coordenadores, diretor, reitor...). A nossa liberdade, como se vê, está limitada na própria constituição desse sistema hierárquico; acima de nós, o coordenador do curso; acima deste, o diretor de um departamento; e acima deste o sub-reitor; e acima deste o reitor...

Eis, então, algo que preciso aprender com a maturidade: a desenvolver o sentimento de comando numa escala hierárquica. Não lido bem com a condição de estar acima de outros, de comandar, de submeter decisões à minha aprovação. Não porque eu seja incapaz de exercer comando, mas porque prefiro o estreitamento de vínculos, o espírito de congregação, que é próprio da sala de aula. Não nego a hierarquia também nesse espaço, é claro. Não há como escapar a ela. Estruturas hierárquicas estão na base das vivências sociais. Isso é inegável! Mas, por outro lado, sabemos que a relação professor-aluno, em nossa cultura, é marcada não pelo distanciamento, mas pela proximidade. Por isso, o estudante se dirige ao professor empregando a forma “você”, em geral. E o professor não se aborrece com isso! O “você” é a forma não-marcada para a hierarquia. Com ela, estabelecemos uma relação de proximidade com o interlocutor.

Malgrado o fato de nunca ter podido ministrar o curso previsto em meu projeto, ainda acalento o desejo de reunir numa sala de aula leitores, cujo objeto de sua atenção serão os textos. Um trabalho que, necessitando recompensa, tendo um preço, traria prazer. E eis que a voz de Freud ecoa-me na alma: “há sempre a frustração do prazer! A infelicidade é mais gorda; a felicidade mais magra!” Mas aí me lembro de que há o desejo e a sua inevitabilidade; e também a utopia, que nos faz avançar.