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domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

"Todo erro é nocivo; é por ter se enganado que o gênero humano se tornou infeliz" (Holbach)




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                  A crítica antimetafísica de Holbach



Paul Heinrich Dietrich, chamado pelos franceses de Paul-Henri Thiry, foi popularmente conhecido como Barão de Holbach (1723-1789). A força de seu pensamento é facilmente sentida na afirmação inquebrantável de um ultramaterialismo a serviço do combate à tirania dos valores, das ideologias, do poder estabelecido, das confabulações da imaginação humana. Na esteira da interpretação deleuzeana de filosofia como “máquina de guerra”, também a filosofia holbachiana, tanto quanto a de Nietzsche, se presta adequadamente a essa interpretação. Com efeito, o pensamento antimetafísico e ultramaterialista de Holbach tem o poder combativo e destrutivo de uma “máquina de guerra”. Nesse tocante, não há diferença significativa entre os pensamentos de Holbach e de Nietzsche, visto que tanto um quanto o outro compartilham entre si o pendor de um pensamento que é, ao mesmo tempo, combativo de uma tradição axiológica, filosófica, religiosa enfraquecedora da vida e inegavelmente afirmativo da vida.
Na apresentação que faremos do pensamento holbachiano, que toma como referência os capítulos 1 e 2 de Sistema da Natureza ou das leis do mundo físico e do mundo moral (2010), buscaremos dar conta dos aspectos que sinalizam para o seu caráter ultramaterialista e, por consequência, de sua força antimetafísica. O caráter antimetafísico do pensamento holbachiano é consequência da constituição de um sistema que se esteia na afirmação segundo a qual a natureza é o grande todo fora do qual nada pode existir. Assim, segundo Holbach, a natureza “é a reunião de todos os seres e de todos os movimentos que conhecemos, assim como de muitos outros que não podemos conhecer, porque são inacessíveis aos nossos sentidos” (p. 44). A natureza, portanto, recobre o domínio de tudo que existe; fora da natureza, nada pode existir. Essa tese é a própria afirmação de um materialismo radical: só existe a matéria ou a substância. Como a crítica antimetafísica de Holbach é consequência das alegações ultramaterialistas de sua filosofia, convém dar a conhecer, em linhas gerais, os postulados da doutrina materialista.
A despeito do fato de existir uma variedade de materialismos, pode-se dizer que o materialismo mantém que a matéria é a causa e o princípio de todas as coisas No Dicionário Básico de Filosofia (2010), de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, topa-se uma definição de materialismo cuja apresentação é pertinente à compreensão do pensamento holbachiano. Segundo os autores, o materialismo é a “doutrina que reduz toda a realidade à matéria”. Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
O materialismo é – parece-nos - mais bem elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o materialismo afirma o primado da matéria. O materialismo se define, negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e legislador. O materialismo é uma filosofia de recusa, de embate. É também um empreendimento de desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo algum, a existência do espírito. O materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo, se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo. A noção de corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material. Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Em suma, o materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma filosofia do corpo. Denominam-se materialistas os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma. Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. 
Supondo suficientemente esclarecida a significação do conceito de materialismo, passaremos, doravante, a considerar, sem aspirar à exaustão, de que modo algumas afirmações fundamentais do materialismo holbachiano culminam com sua crítica ao pensamento metafísico. Em primeiro lugar, devemos ter em mente o fato de que Holbach toma como pressuposto a existência da matéria (obviamente, sem esse pressuposto todo o seu sistema materialista ruiria). Uma vez que existe a matéria, ela deve necessariamente conter algumas qualidades, tais como a impenetrabilidade, a extensão, a densidade, etc. Como no universo, segundo Holbach, tudo está em movimento, segue-se daí que a matéria é matéria em movimento. Assim, “a existência da matéria é um fato; a existência do movimento é outro fato” (p. 59). A existência da matéria pressupõe que a matéria age. A essência da natureza é agir: nada que existe mantém-se em repouso. Segundo Holbach, “tudo aquilo que nos parece em repouso não permanece, portanto, um instante no mesmo estado: todos os seres nada mais fazem que continuamente nascer, crescer, decrescer e se dissipar com mais ou menos lentidão ou rapidez” (p. 48). Holbach não poderia ser aqui mais consonante com o pensamento heraclitiano: tudo é devir. Os movimentos ou as diversas formas de agir da matéria decorrem de suas qualidades, de sua existência ou essência. O movimento é um modo de ser da própria matéria. É importante assinalar o que está em jogo aqui, para efeito de compreensão da crítica antimetafísica holbachiana. Holbach mantém que o movimento é consequência da essência da matéria; a matéria age pelas suas próprias forças; ela não precisa de um agente externo e transcendente para lhe conferir movimento. Em outras palavras, Holbach nega que o movimento e a própria existência da matéria precise de um Primeiro Motor Imóvel (Aristóteles) como o representado pelo Deus metafísico cristão. Para Holbach, é por puro preconceito e ignorância acerca da natureza que os homens supuseram a existência de tal Ser Supremo. Ao contrário, escreve o autor “se tivessem observado a natureza sem preconceito, teriam há muito se convencido de que a matéria age pelas suas próprias forças e não tem necessidade de nenhum impulso externo para ser posta em movimento” (p. 53). É porque negligenciaram o que se lhes apresentava aos sentidos, que os homens foram “buscar fora da natureza uma força distinta dela mesma que a pusesse em ação e sem a qual eles acreditam que ela não podia se mover” (p. 55). Ora, a suposição da necessidade da existência de tal força distinta e transcendente é produto do erro humano. Erra quem supõe que a natureza é “um amontoado de matérias mortas, desprovidas de todas as propriedades, puramente passivas” (ibid.). Somente se assim fosse, teriam razão aqueles que buscam “fora da natureza o princípio dos seus movimentos”. Sucede, contudo, que, para Holbach, a natureza é “um todo do qual as diversas partes têm propriedade diversas, que a partir daí agem segundo essas mesmas propriedades, que estão em ação e reação perpétuas umas sobre as outras, que pesam, que gravitam em direção a um centro comum (...)”. (p. 55-56). Os que creem numa causa exterior responsável pelos movimentos da matéria supõem também que esta começou a existir. A doutrina da criação ex nihilo supostamente presente na narrativa bíblica (crença rejeitada pelo próprio Holbach) está baseada na crença de que a matéria começou a existir. O problema é que essa hipótese jamais fora até hoje demonstrada. Ademais, para Holbach, ela encerra outro problema: como um ser espiritual, ou seja, um ser que não tem extensão, nem partes, e tampouco é suscetível de movimento, pode ter criado do nada a matéria e lhe ter conferido movimento? Holbach, aderindo à posição dos gregos, sustenta o caráter eterno da matéria: “quando perguntarem de onde vem a matéria, diremos que ela sempre existiu”. (p. 58).
Iluminadas, pois, as bases sobre as quais assenta a radicalidade do materialismo sustentado por Holbach, que toma forma no enunciado “não existe e não pode existir nada fora do círculo que contém todos os seres” (p. 31), isto é, nada existe ou pode existir fora da natureza, vamo-nos concentrar na discussão das proposições que conferem à crítica antimetafísica holbachiana seu poder bélico. Tomaremos para consideração o capítulo 1, intitulado Da natureza, no qual Holbach denuncia o fato de os homens até então (diríamos até os dias atuais) terem vivido num profundo estado de ignorância acerca da natureza e de suas origens naturais. Já nesse primeiro capítulo podemos perceber o tom bélico, combativo e pretensamente libertador do pensamento holbachiano, o qual, para citar novamente Schöpke, é “uma espécie de grito de guerra contra a metafísica e a religião que sempre obscureceram a percepção dos homens, levando-os à produção de ideias fantasmagóricas sobre a realidade e si mesmos”.
Começaremos, pois, referindo todo o primeiro parágrafo no mencionado capítulo. Importa que estejamos sensíveis ao tom combativo, ao tom acusador, à força de denúncia que permeia todo o parágrafo. A tese basilar e inicial é demais evidente: os homens viverão sempre equivocados, atolados em erros e embustes sempre que se desviarem da experiência, sempre que ignorarem as evidências fornecidas pelos seus sentidos.


Os homens se enganarão sempre que abandonarem a experiência por sistemas criados pela imaginação. O homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis; ele não pode livrar-se dela, não pode, nem mesmo pelo pensamento, sair dela. É em vão que seu espírito quer lançar-se para além dos limites do mundo visível; ele é sempre forçado a voltar. Para um ser formado pela natureza e circunscrito por ela, não existe nada além do grande todo do qual ele faz parte e do qual sente as influências. Os seres que são considerados acima da natureza ou dela distintos serão sempre quimeras, das quais nunca será possível constituir ideias verdadeiras, tanto do lugar que eles ocupam quanto da sua maneira de agir. Não existe e não pode existir nada fora do círculo que contém todos os seres. (p. 31).



A natureza é constituída por leis inflexíveis; a experiência concreta deve ser sempre o tribunal de nossas crenças e ideias; não é possível ao homem sair da natureza. Determinismo, empirismo e fatalismo enunciados como se formassem uma partitura da música da natureza, música com a qual Holbach pretenderá reconduzir o homem à natureza, ao mundo da experiência sensível, o único verdadeiramente existente. Quanto mais aferrados aos sistemas criados por sua imaginação, forjados por sua tendência a confabulações,  tanto mais os homens continuarão enganados não só acerca da realidade e de si mesmos, mas suscetíveis à dominação pelos poderes constituídos. As ideias forjadas pela imaginação humana são ilusórias, e sempre que os homens insistirem em tomá-las pela realidade, continuarão domesticados, submissos, dominados, escravos daqueles cujo poder só consegue afirmar-se e manter-se tirando proveito da ignorância humana.
Todo erro, segundo Holbach, é nocivo - nocivo, porque, mantendo os homens num estado de ignorância acerca da natureza, torna-os infelizes: “o homem só é infeliz porque desconhece a natureza”. Em termos nietzschianos, podemos dizer que, para Holbach, o homem se tornou cansado de si, esgotado, decadente, despontencializado quando “desprezou as realidades para meditar sobre quimeras”, quando “negligenciou a experiência para se fartar com sistemas e conjecturas”. (p. 25).
A crítica antimetafísica de Holbach alinha-se com o espírito iluminista que marcou profundamente seu tempo. Como iluminista, Holbach manteve a crença no inestimável papel da razão na justa condução do espírito humano e na orientação do homem para a assunção de uma vida virtuosa. O Aufklärung ou o Esclarecimento foi definido por Kant como “a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado”. Para Kant, o Esclarecimento deveria levar os homens a fazer uso do seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Trata-se de conquistar a autonomia e a liberdade de pensamento, livrando-se da submissão a um poder tutelar alheio (heteronomia). Conquanto não estejamos preocupados em rastrear os traços iluministas do pensamento holbachiano, é importante que não nos olvidemos de que Holbach acreditava no poder emancipador da razão – e essa crença é algo de que a crítica antimetafísica nietzschiana não comunga (e veremos em que sentido isso se dá).  Para Holbach, é por terem negligenciado o valor da razão na busca de uma vida sem erros, conciliada com o real e feliz, que os homens permaneceram “em uma longa infância”. O tom iluminista de seu pensamento se deixa ouvir no seguinte excerto.



Foi assim que, por ter desconhecido a natureza e os seus caminhos, por ter desdenhado a experiência, por ter desprezado a razão, por ter desejado o maravilhoso e o sobrenatural, enfim, por ter temido, o gênero humano permaneceu em uma longa infância, da qual se tem tanta dificuldade para tirá-lo. Ele não teve senão algumas hipóteses pueris, das quais nunca ousou examinar os fundamentos e as provas. Acostumou-se a considerá-las sagradas, como verdades reconhecidas, das quais não lhe era permitido duvidar nem por um instante. (p. 39).



Os deuses são seres imaginários forjados em virtude da ignorância humana acerca da natureza. Por força dessa forma de ignorância, os homens esperam desses seres imaginários toda sorte de prazeres e bem-aventurança; a eles também atribuem a responsabilidade por seus infortúnios. Para Holbach, o desconhecimento da natureza como um todo levou os homens a desconhecerem sua própria natureza, suas próprias tendências e necessidades. A ignorância da natureza acarretou uma série de consequências nefastas para a vida humana. Ignorando a natureza, os homens passaram a ignorar seus próprios direitos enquanto seres sociais: passaram, assim, da liberdade para a escravidão. Eles foram forçados a sufocar seus desejos (estes se voltaram contra eles, se lhes tornaram nocivos, envenenados). Os homens passaram a se submeter ao domínio dos seus superiores. Consequentemente, não conseguiram mais reconhecer a finalidade da associação e do governo: se submeteram docilmente a outros homens, aderiram sem reservas aos preconceitos destes, tomaram-nos como seres superiores à semelhança de deuses na Terra. E esses homens superiores se aproveitaram dos erros dos homens submissos para subjugá-los, para corrompê-los, para tornar suas vidas miseráveis. Também a ignorância acerca de sua própria natureza impediu que o homem se esclarecesse sobre a moral. Em suma, seguindo o tom de denúncia de um discurso sóbrio, lúcido mas não menos acusatório, completa Holbach: “Foi ainda por falta de estudar a natureza e suas leis, de procurar descobrir os seus recursos e as suas propriedades, que o homem se estagnou na ignorância e deu passos tão lentos e tão incertos para melhor sua sorte”. (p. 37).
Em vários momentos, no referido capítulo, Holbach exorta seu leitor e todos os homens a que se libertem da ignorância e dos preconceitos que os distanciaram da natureza. Tais momentos de exortação expressam bem a tonalidade afetiva de que estava imbuída a crítica iluminista aos excessos e erros de todo pensamento que ousasse romper os limites da razão e  que ultrapassasse os limites de toda experiência possível. Num desses momentos – na verdade, o último momento em que essa exortação se deixa perceber -, Holbach anuncia os caminhos que devem ser percorridos pelos homens que pretendam tornar-se verdadeiramente livres, potencializados e felizes:



Elevemo-nos, pois, acima da nuvem de preconceito. Saiamos da espessa atmosfera que nos cerca para considerar as opiniões dos homens e seus diversos sistemas. Desconfiemos de uma imaginação desregrada; tomemos a experiência como guia. Consultemos a natureza; tratemos de buscar nela mesma as ideias verdadeiras sobre os objetos que contém. Recorramos aos nossos sentidos, que falsamente nos fizeram considerar como suspeitos; interroguemos a razão, que tem sido vergonhosamente caluniada e degradada. Contemplemos atentamente o mundo visível e vejamos se ele não é suficiente para nos fazer julgar as terras desconhecidas do mundo intelectual. Talvez descubramos que não se tem nenhuma razão para distingui-las e que foi sem motivos que foram separados dois impérios que são igualmente do domínio da natureza. (p. 39-40).



A razão não pode pretender alçar voos que a levem para longe da experiência, sob pena de ela enredar-se em especulações vazias que não fazem senão manter os homens presas da ignorância e do erro. À moda kantiana, numa clara fidelidade ao espírito iluminista, Holbach argumenta que os homens devem se guiar pela experiência a fim de alcançarem um conhecimento verdadeiro do mundo e de si mesmos. É para a natureza que eles devem se voltar se quiserem formar no espírito ideias verdadeiras acerca das coisas existentes. Ademais, é preciso revalorizar os sentidos, os quais, ao longo da tradição metafísica, cuja forma sistemática de constituição remonta a Platão, foram tomados como fonte de erros, como meios inapropriados para atingir o conhecimento verdadeiro. Também a razão – adverte Holbach - foi depreciada, negligenciada em proveito da construção de ficções, de opiniões infundadas, de crenças ilusórias que levaram os homens a projetar suas esperanças num além-mundo, num mundo suprassensível. Fiel aos pressupostos materialistas de sua filosofia, a crítica antimetafísica de Holbach mantém que os sentidos e o intelecto são igualmente partes do mundo natural, não constituindo, portanto, dois impérios separados. Segue-se daí que um sistema metafísico que segmenta a realidade em dois mundos – o mundo sensível e o mundo das Ideias, das Essências -, como a metafísica platônica, ou qualquer sistema metafísico que, por definição, combina a postulação da existência da transcendência (de um mundo verdadeiro, situado para além do mundo sensível) com um dualismo, que supõe a existência de duas substâncias de natureza radicalmente distintas e inconciliáveis, não passam de ficções, de embustes, já que não encontram razão de ser quando nos ocupamos de examinar a natureza; além disso, trazem muitos prejuízos ao homem, pois que os mantêm em estado de ignorância acerca de si mesmos, cansados de si mesmos e divorciados da vida aqui e agora.



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


HOLBACH, Barão de. Sistema da Natureza ou das leis do mundo físico e do mundo moral. Tradução de Regina Schöpke e Mauro Baladi. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010