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sábado, 13 de julho de 2013

Deuses não fazem a História

                                      


                                           
                                             A crença em Deus
                   E o apagamento da memória histórica

1. Primeiras palavras

A confecção deste texto se me afigura oportuna agora. Durante algum tempo, precisei protelá-la, já que urgiam outras incumbências. Outrossim, precisei protelá-la – devo dizer – porquanto meu espírito não estava inteiramente animado para aplicar-se a esse trabalho laborioso. É chegado o tempo de retornar às palavras, de envolver-se no labor da escrita, com vistas a distrair o intelecto dos atos rotineiros e regulares da vida cotidiana. Direi melhor: é preciso desvencilhá-lo da esquemática dos atos habituais, dos pensamentos comuns e emagrecidos, dos assuntos entretecidos da banalidade da vida nossa de cada dia.
Escuso-me de fazer circunlóquios; atacarei o tema, não sem introduzi-lo mediante uma ilustração. Em algum lugar do hemisfério ocidental do globo terrestre, é possível surpreender alguém enunciando a frase: “eu acredito em Deus” – ou uma equivalente como “Deus existe”. Já se contam mais de 5.000 anos (isso é uma estimativa; é possível que chegue a 6.000 anos (Debray, 2004: 32)), desde que a crença em um único Deus, criador do Universo e Todo-poderoso, foi apregoada pelos antigos hebreus que viveram no Antigo Oriente Próximo; e, não obstante a idade avançada desta ideia, ela exibe, ainda hoje, uma força incrivelmente atraente e desfruta de um vigor jovial, que resiste às forças propulsoras que levam as massas de indivíduos a desejar sofregamente o novo; forças estas que tão profundamente marcam a chamada era pós-moderna. De passagem, preciso salientar que, no tocante ao período em que a ideia de Deus surgiu e se desenvolveu paulatinamente no antigo Oriente Médio, segundo estimativa de Karen Amstrong, em seu livro Uma história de Deus (2008: 16), já se vão cerca de 14 mil anos. Para Amstrong, Deus tem idade muito mais avançada, portanto.
Em nossa era, também denominada de “hipermodernidade” (Lipovetsky, 2004), em que tudo se torna obsoleto, descartável num tempo muito curto – curto o suficiente para evitar que os consumidores se apeguem aos bens adquiridos -, a ideia de Deus, tão farta e cotidianamente consumida, parece ser o único bem de consumo que não toma parte na engrenagem consumista dos bens destinados a serem esvaziados de seu valor de uso rapidamente. Deus está aí entre nós ainda; firme e forte, resistindo às fortes correntezas sociais que lançam tudo quanto é produto socialmente fabricado à lixeira do efêmero. Esse Deus envelhecido, que, entanto, não ostenta sulcos da idade e que, certamente, não é o único dentre os que os homens inventaram, goza da virilidade de um adolescente e não cessa de engravidar novos adoradores. Esse Deus tem o poder de um rei carismático e a vivacidade de um menino peralta.
A questão, então, que se me impôs ao espírito foi a seguinte: o que torna possível a uma pessoa que vive em uma de nossas sociedades do século XXI aderir tenazmente à crença na existência de um Deus único, criador do Universo e Todo-poderoso?  Não estou a sugerir que haja uma única resposta a essa questão. É provável que haja muitas respostas – e estou convencido de que tal é o caso. As razões pelas quais se pode explicar o fato de essa crença ter chegado até nós e sobrevivido em nossas sociedades secularizadas são diversas. Todavia, procurarei mostrar que não importam quais e quantas sejam essas razões todas elas são de natureza histórica; ademais, pretenderei sugerir que a sobrevivência dessa crença se deve muito ao apagamento da memória histórica por força do trabalho das forças doutrinadoras ao longo dos séculos.

2. Arando o terreno

Antes de fazer incursão pelos vastos, sinuosos e diversos caminhos através dos quais procurarei conduzir o leitor ao esclarecimento sobre acontecimentos, fatos e transformações que configuraram uma história de Deus, cuido necessário situar a questão fulcral com base na qual minhas reflexões neste texto tomarão forma. Eu o farei convidando o leitor a que me acompanhe no desdobramento do que se segue.
Proponho que atentemos para o seguinte: quem diz eu creio em Deus acredita que esse Deus é o único verdadeiramente existente. Essa pessoa, por uma implicação lógica, formalizável como “se p, então não-q”, terá de concluir pela inexistência dos deuses de outras inúmeras tradições religiosas, quer tenham sucumbido, quer ainda subsistam, mesmo nos lugares mais remotos do globo terrestre.
Essa pessoa, ao acreditar que existe um único Deus e que ele é o Deus criador do Universo terá também de aceitar a conclusão de que ele é responsável por tudo quanto acontece, inclusive, pelos acontecimentos da História humana. Essa conclusão, no entanto, leva a uma primeira dificuldade notável, que toca à observação de que a História humana nos oferece um gigantesco universo de divindades. Uma pessoa minimamente esclarecida sobre História Mundial deverá reconhecer que os coletivos humanos, em diferentes épocas e lugares, cultuaram diversos deuses; e deverá reconhecer igualmente que muitos desses povos desconheceram (e outros tantos desconhecem) o Deus que se saiu vitorioso na história ocidental.
O problema, portanto, que se impõe a quem quer que afirme, seguramente e de coração a existência de um único Deus é se expressa na seguinte questão: por que Deus não se revelou aos demais povos que viveram fora dos limites da Palestina de 1.000 a.C.? Ou ainda: por que Deus não se fez conhecido de toda a humanidade desde os aborígenes que habitam as regiões ocidental e meridional da Austrália até os complexos agrupamentos humanos que formam as sociedades da Ásia Oriental? A resposta salta evidente: é que o Deus do homem ocidental tem uma História, cujas raízes se fincam no deserto da Palestina do século VIII a.C.
Como seja vasta e complexa essa história, eu não poderia aqui senão fazer um recorte que, mesmo sendo mais ou menos arbitrário, não deixe de acenar aos meus propósitos. O plano argumentativo da presente exposição prevê a tese já anunciada, mas que retomo a fim de que não escape à consciência do leitor:

O apagamento da memória histórica das raízes de Deus, muito graças aos esforços dos doutrinadores, explica, em grande medida, a sobrevivência da crença, entre nós, de que só há um único e verdadeiro Deus.

Ponderemos sobre esta tese. Se ela contiver algum valor de verdade, ou melhor, se ela, no curso deste texto, se demonstrar sustentável, deverá suscitar ao leitor alguns pensamentos que se costuram logicamente por força mesmo da validade da tese. Senão, vejamos. A tese apresenta como causa da sobrevivência da crença em um Deus único o apagamento da memória histórica das origens desse Deus. No entanto, a tese sugere que o esclarecimento sobre as origens históricas de Deus é suficiente para que a crença se desmantele. Mas não parece ser esse o caso, visto que há certamente pessoas dotadas de erudição nesta seara que, não obstante, conservam a crença na existência de um único Deus, que se revelou aos patriarcas de Israel em tempos remotos. Não se segue daí que a tese deva ser rechaçada ou perca validade, já que, por um lado, não está claro se tais eruditos levam seriamente em conta as consequências de sua elevada instrução sobre a história que produziu Deus para a sustentação de sua fé, bem como não deixa de ser verdade que esse apagamento da memória histórica aconteça, quando levamos em conta que às grandes massas de fieis leigos é negado o acesso à produção de um conhecimento histórico sobre as bases de sua fé.
Permita-me dar um novo torneio a estes enredamentos de ideias. Do que se trata então? O que me espanta ou admira (porque a reflexão filosófica encontra sementes na admiração, no espanto)? Admira-me que uma pessoa que afirme existir um único Deus, que afirme ser esse Deus transcendente, atemporal, embora, ao mesmo tempo, supostamente capaz de intervir na história humana, não reconheça que 1) esse Deus cuja existência ela afirma tem uma história, que pode ser conhecida; 2) e que o próprio fato de haver uma história de Deus supõe a existência de agentes que produziram e contaram essa história. Antes de trazer à luz pensamentos outros que agora ficam a dançar-me na alma e que levarão a bom termo os raciocínios imediatamente precedentes, peço ao leitor que me acompanhe no seguinte exercício de pensamento.
Imaginemos uma situação em que alguém se autorrefira enunciando “eu sou Lucas”. O Lucas não deveria se admirar se alguém lhe perguntasse: quem o diz? Por um automatismo de sua lógica costumeira, Lucas se apressaria em responder algo como: “ora, eu mesmo”. E Lucas o faria, não sem lançar suspeitas sobre o bom-senso de seu interlocutor; talvez Lucas pensasse se tratar de um brincalhão. No entanto, o que Lucas talvez não soubesse é que uma questão, aparentemente, despropositada e demandante de uma resposta tautológica, pode abrir caminhos para vastas e opulentas reflexões. Afinal, quem diz “eu sou Lucas” é o próprio Lucas seguramente; no entanto, antes de Lucas dizê-lo, uma comunidade de outros significativos o fez, ou seja, o chamou desse modo. Nosso Lucas enfeixa vários traços identitários que se foram acumulando para construir a complexidade de sua identidade, nas inúmeras relações, mediadas linguisticamente, com os outros significativos, no contexto sociocultural em que nasceu. Caberia, a esta altura, perguntar se existe mesmo um “eu” enquanto realidade ontológica que diz chamar-se “Lucas”? Em outras palavras, esse Lucas existe como ser independente das condições socioculturais, familiares, políticas, etc. em que se desenvolveu?
E esse Lucas é portador de discursos verdadeiros em si mesmos? Em outras palavras, terá Lucas acesso a alguma verdade por meio de seus discursos, que não fariam senão lhe fornecer “fotografias” do real? Esses discursos lhe pertenceriam como lhe pertence a roupa que veste? Será Lucas senhor absoluto do que diz? Seus pensamentos, suas crenças, valores, opiniões e – novamente – seus discursos são instrumentos por ele mesmo forjados para descrever e explicar com transparência (digo sem distorções, sem um óculos cultural que lhe faça “ver” de determinada maneira essa realidade), ou serão produtos-instrumentos fabricados nas suas múltiplas experiências de mundo com os quais ele buscará reconstruir cognitivamente o mundo percebido e vivido?
Se Lucas pensa de tal ou qual modo, onde devemos buscar as causas dos espectros, dos contornos, das bases de seus pensamentos? Claro está que a fornalha de nossos pensamentos e discursos, de nossas crenças, opiniões, ideias e valores é o próprio real, ou melhor, são as nossas experiências de mundo que só são possíveis pelo corpo em interação com um entorno biossocial e cultural.
O Lucas de nosso experimento de pensamento ajuda-nos a compreender que nossos pensamentos, nossas crenças, nossas ideias, nossas convicções, etc. trazem as marcas que a vida nos legou. E não há como ser diferente. Antes de falar, é preciso viver; antes de pensar, é preciso viver. A vida instintiva precede a razão discursiva. E engana-se o homem que cuida que os produtos simbólicos de seu cérebro não têm nada que ver com a vida que vive; e tolo será se pensar que as conclusões que atingiu se lhe afiguraram ao espírito graças a esforços puramente subjetivos e por abstração de um entorno sócio-histórico em que elas se inscrevem.
Retome-se o fio discursivo. Minha atenção estava concentrada na justificação da tese. Esta sugere que a restituição da memória histórica das raízes de Deus enreda a fé do fiel em conclusões que se impõem à sua razão. É dessas conclusões imperiosas de que trata este texto. Destarte, quem afirma “Deus existe” deverá reconhecer que a enunciação (acontecimento sócio-histórico de produção de um enunciado) desse produto linguístico só foi possível em virtude de dadas circunstâncias sócio-históricas e ideológicas, que são contingentes e que se inscrevem na forma de uma memória discursiva, que é social, que é histórica. Note-se que essa afirmação, cada vez que é enunciada, nega ou torna falsas afirmações correlatas como “Shiva existe”, “Baal existe”, etc. Se ainda não é claro o fato de que deuses são criados por seres humanos e de que aniquilado todo um povo ou uma geração, morrem seus deuses, espero que este texto não deixe qualquer sombra sobre o valor de verdade dessas assertivas.

3. A História, à luz da contribuição de Marx

Até aqui, empreguei a palavra história, sem me preocupar com a sua significação. Vou-me deter no exame do significado da palavra história, à luz da contribuição de Marx. No entanto, não me aprofundarei no pensamento deste filósofo e cientista social; de seu pensamento aproveitarei o que me parece pertinente ao bom encaminhamento de minhas reflexões.
O homem é um ser histórico, disso não há dúvida. E, para Marx, também não pode haver qualquer dúvida sobre o fato de que a realidade humana é o conjunto de relações sociais. Um pressuposto está no cerne dessa compreensão da realidade humana: não há história sem seres humanos. Ora, mesmo que aceitássemos a crença numa Revelação divina, essa Revelação não se daria sem a existência dos homens. Curiosamente, só há história de deuses porque há homens que a contam, embora eu, que sou ateu e não creio no dogma da Revelação do Deus judaico-cristão, não hesitasse em acrescentar “porque também há homens que a fabricam”. Deuses só têm uma história porque existem ou existiram homens que a fabricaram e a transmitiram como narrativas às gerações posteriores. Ora, é forçoso reconhecer que a própria crença na Revelação do Deus judaico-cristão nos foi transmitida por escritos testamentários cuja autoria supõe a existência de homens (nesse caso, seres do sexo masculino). Em termos mais informais, a tal Revelação se nos chegou de segunda e terceira mãos (nesse caso, de muitas mãos).
É claro que o homem é dotado de uma natureza biológica e, portanto, é um ser natural; todavia, é inegável que sua existência está sujeita às determinações sociais. Em seu livro História e Verdade (1983), o marxista polonês Adam Schaff pondera sobre as consequências do reconhecimento da dimensão histórica da existência humana:

“O fato do homem, o sujeito, ser “o conjunto das relações sociais”, comporta consequências diversas, sensíveis também no domínio do conhecimento. Em primeiro lugar, uma articulação determinada do mundo – ou seja a maneira de o aperceber, de distinguir nele elementos determinados, a dinâmica das percepções, etc. – está ligada à linguagem e ao seu aparelho conceitual que recebemos da sociedade por intermédio da educação considerada como a transmissão da experiência social acumulada na filogênese. Em seguida, os nossos julgamentos são socialmente condicionados por sistemas de valores que aceitamos e que possuem todos um caráter de classe (...)”.
 (pp. 81-82)


Demoremo-nos a apreciar este passo de Schaff. É preciso ver que o autor considera a problemática de como o sujeito constrói o conhecimento, tendo em vista a assunção de que o homem “é o conjunto das relações sociais”. Que implicações tem essa afirmação para a problemática do conhecimento? Este é o tópico do seu discurso. A primeira observação que o autor faz, nesse tocante, diz respeito ao fato de o homem ligar-se ao mundo pela mediação da linguagem, do seu aparelho cognitivo-perceptual e pelo concurso de processos educacionais. Linguagem, aparelho cognitivo-perceptual e educação vão condicionar a construção do conhecimento. Nossas percepções são produtos de nossas experiências culturais. Veja-se que o autor fala em “sistemas de valores” que “aceitamos” e que condicionam “nossos julgamentos”. O antropólogo brasileiro Roberto da Matta, em um artigo intitulado de Você tem cultura? (1981), publicado no extinto Jornal Embratel, ensina-nos de modo claro e sem recorrer ao jargão acadêmico os diversos significados que assume a palavra cultura, destacando o significado deste termo na abordagem da Antropologia Social e da Sociologia. Leia-se, então, o passo em que da Matta define cultura:

“Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam, modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma sociedade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo e, também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha e torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra) é algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com o ambiente onde vivem”.
(p. 2)


Destaquei em negrito um trecho  que é consonante com a posição de um outro teórico, chamado Milton Bennett (1998) que, ao considerar o fenômeno da cultura, distingue entre dois conceitos de cultura: cultura objetiva e cultura subjetiva. Esta última, segundo o autor, inclui as ideologias, os padrões de crenças e valores dos grupos de indivíduos que interagem uns com os outros. É nesse sentido que se pode dizer que a cultura é algo dentro de cada um de nós. Por outro lado, a cultura constitui também um domínio objetivo, exteriorizado na forma de produtos do espírito (artes, literatura, música, etc.). A cultura objetiva também constitui o conjunto das esferas institucionais onde os indivíduos atuam.
É necessário, portanto, pensar o termo cultura tendo em conta sua dimensão essencialmente simbólica. A cultura se estrutura em práticas sociais investidas de símbolos (signos), o que equivale a dizer que se constitui de práticas simbólicas. Ela também fornece um conjunto de regras para a estruturação e regulamentação de tais práticas sociais mediadas pela linguagem. A dimensão simbólica da cultura, que constitui seu cerne, não só permite a elaboração de um conjunto de regras e valores na base dos quais se desenvolvem as práticas sociais mediadas pela linguagem, mas também produzem e condicionam nossas percepções mediante as quais a realidade é (re)construída ou fabricada (Hauser, 2003).
Creio não ser custoso concluir, a esta altura, que deuses e religiões são instituições culturais. O mundo é, portanto, um produto da atividade humana concreta, ou seja, em termos marxistas, da práxis. No marxismo, o conhecimento do mundo percebido na experiência sensível é resultado de uma atividade prática, isto é, de uma atividade que transforma a realidade compreendida. Nessa visão, dois elementos se destacam: a concepção do homem como um ser social e o conceito de conhecimento como prática, como atividade concreta.
A teoria social de Marx se diz historicista. Daí podermos falar de um Historicismo de Marx. São dois os pilares de seu historicismo: 1) a ideia de que a historicidade é inerente à própria realidade, à própria existência, e não apenas às representações desta realidade no espírito; 2) a totalidade da realidade é transformação, é processo.
Desse modo, o historicismo marxista reza que todos os objetos, fenômenos e representações formados no espírito são processos, transformações, de sorte que o aparecimento de dadas condições, por meio de uma série de transformações, conduz ao seu desaparecimento e transformação em uma nova forma. Nossas visões de mundo, nossas concepções da realidade são consideradas formas de processos, de transformações. O historicismo marxista supõe a existência de uma realidade material e objetiva, independentemente de um espírito que a conceba. O historicismo, não se limitando a enfatizar o caráter dinâmico da realidade em sua totalidade, abrange a história e a gênese, para dar conta do conhecimento de qualquer coisa.
Convém pontuar, com base em Schaff (1983), as seguintes consequências do historicismo marxista:

1) insistência na relação necessária das ideias e opiniões com as condições sócio-históricas;

2) reconhecimento de que as condições históricas mudam incessantemente;

3) concepção da realidade como um processo de mudança constante e de desenvolvimento ininterrupto;

4) concepção de conhecimento como processo também em mudança constante.

No tocante à consequência 4), saliente-se que o conhecimento não só é um processo que muda incessantemente porque o seu objeto reflete uma realidade que muda também incessantemente, mas principalmente porque o objeto de conhecimento (a realidade) é produto de interações e correlações de fenômenos suscetíveis à mudança incessante. Assim, com base na categoria de mudança e na categoria de totalidade, chega-se à concepção de conhecimento como processo e ao reconhecimento do caráter concreto de verdade. Eu não poderia aqui me ocupar da questão da verdade no marxismo; mas cuido não me equivocar ao dizer que a verdade, em Marx, deve ser entendida como um processo inscrito num dado contexto histórico. Como processo na história, a verdade é sempre construída na práxis social.
Avancemos nossas reflexões sobre a concepção marxista de História. Em o “Manifesto do Partido Comunista”, Marx & Engels escreveu: “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”. Assim, em toda sociedade humana, as classes dominadas lutam contra uma classe dominante para garantir a dominação para si e submeter a sociedade toda a ela. A concepção materialista de história compreende o processo histórico relativamente a dois fatores: 1) a objetividade da dialética das forças produtivas; 2) a objetividade das relações sociais de produção; 3) a subjetividade da luta de classes.
Sobre o cerne do materialismo marxista reside a tese de que as condições materiais da prática são determinantes da consciência humana. No entanto, essa determinação não mascara o fato de que as próprias condições materiais são produzidas pelas ações humanas na história. Por isso, embora sejam de natureza material, tais condições são influenciadas por toda sorte de representações ideológicas.

4. O Sentido de História

Nesta seção tecerei algumas considerações sobre o significado da palavra História, tendo em vista o trabalho do historiador. A história, como domínio do conhecimento humano, resulta de esforços despendidos pelo historiador na tentativa de reconstruir o passado com base nas evidências disponíveis. Fazer História é, portanto, um trabalho de produção de perguntas sobre acontecimentos sociais, políticos, culturais, econômicos da vida humana. Os historiadores estão interessados não só em saber o que aconteceu, mas também nas razões por que algo aconteceu, no modo como aconteceu e nas consequências do que aconteceu. As respostas obtidas vão configurar, assim, uma narrativa contínua que não é imune a divergências. É com base nas perguntas e nas respostas auferidas, ao longo do trabalho de pesquisa e investigação dos registros históricos, que o passado é, portanto, reconstruído.
Quer oral, quer escrita, a história se apresenta à consciência dos historiadores como um quebra-cabeça, um complexo de fragmentos, um conjunto de palpites ou hipóteses resultante da seleção das evidências que eles têm à disposição. Antes de me voltar para a discussão de aspectos atinentes à História de Deus que se confunde com a Saga dos antigos israelitas e com as relações com povos vizinhos  e com o jugo pela força dos dominadores, bem como com o culto de seus deuses, recorde-se que alethéia, em grego, se traduz como verdade. A palavra se compõe do prefixo de negação “-a” e do radical léthe, que designa o esquecido. Alethéia é o não-esquecido. No mito, léthe é o rio do esquecimento que flui para o mundo subterrâneo, conferindo à alma dos mortos esquecimento. A verdade não é apenas o que é lembrado, mas também o inesquecível.
Do exposto acima, segue-se que a História começa com Homero (séc. VIII a.C), que narra a Guerra de Tróia. Na esteira de Homero, Hesíodo, também poeta, atribui a si mesmo a tarefa de “celebrar os deuses” e as façanhas dos homens valorosos. A História e a Escrita da História iniciam-se, portanto, na Grécia.
No Antigo Egito, registravam-se, em anais, as ações dos reis mais importantes, muito embora não houvesse uma preocupação em relatar o passado, mas sim com um desejo de imortalidade. O que animava os escribas e reis que escreviam a História era a esperança na vida após a morte e o desejo de construir necrópoles. A Bíblia, por exemplo, cuja fabricação esteve muito a serviço da memória, não encerra uma preocupação com o passado enquanto verdade histórica. Voltarei a este ponto, mais adiante. Por fim, cumpre notar que Aristóteles (séc. V e IV a.C.) entendia que poeta e historiador respondiam pela conservação das coisas na recordação. Mas, para o filósofo estagirita, o poeta gozava de maior prestígio, em face do historiador, já que a poesia era superior à História. Aristóteles considerava que a superioridade da poesia repousava sobre o fato de ela abarcar o universal, ao passo que a História só se ocupa do particular, do acontecido.

5. Removendo o véu: revelando a História de Deus

Topo, em Deus – um itinerário (2004), do filósofo Régis Debray, o seguinte passo intrigante: “A Bíblia não é “falsa” – a não ser sob o olhar das nossas ilusões historicistas. Ela é eficaz”. Ponderando sobre no que consiste essa eficácia, pareceu-me claro que ela se prende, ao menos em parte, ao fato de o seu uso ter conseguido lançar sobre a consciência dos fiéis uma espessa cortina de ignorância e obscuridade sobre a história de sua fabricação. Os fiéis, que mais honram a Bíblia, são os que mais ignoram as condições sócio-históricas, teológicas e ideológicas em que foram produzidos os manuscritos que viriam a resultar nesse que é o livro mais vendido do mundo.
A título de exemplo, considere-se a freqüência com que a palavra Deus é pronunciada ou escrita. A frequência com que se fala em Deus é proporcional à extensão da ignorância dos fiéis leigos sobre os fatos históricos que dizem respeito à origem desse Deus. Provavelmente, escapa à consciência de uma maioria esmagadora de cristãos o fato de que Jeová competia com deuses como Il aba acadiano, o deus-pai venerado por Sagão, ao Il-ile cananeu. Debray nos ensina que o Deus judaico-cristão surge em continuidade a deuses num mundo “assírio-cananeu-judaico-cristão”. Jeová não era um deus exclusivo. Havia entre ele e os demais deuses dos povos dominadores uma relação de parentesco. Muitos desses deuses eram cultuados também pelos próprios israelitas. Está bem estabelecida entre os especialistas a convicção de que o que hoje entendemos por monoteísmo resultou da transformação de uma monolatria (isto é um sistema de crenças em divindades, que, embora admitisse a existência de todas elas, elegia uma apenas para ser alvo de adoração).
Sabe-se que os hebreus viveram em um ambiente marcadamente politeísta e que, embora tenham desenvolvido uma religião de forte apelo nacionalista baseada na crença em um Deus único, tão necessária à construção de sua identidade, entraram em contato com as religiões dos povos estrangeiros dominadores. Por exemplo, da religião ariana, sob a dominação da pérsia, os hebreus aproveitaram a ideia de “sopro de Mazda”, o Espírito Criador, associando-a a Jeová; o paraíso passou a corresponder ao Jardim do Éden; o fogo sagrado dos templos persas, à sarça ardente em que Deus aparece. Por influência da imagem de um Deus bondoso dos persas, paulatinamente, o Deus judaico foi ganhando uma personalidade mais bondosa e menos irada.
Ainda se atendo ao contexto politeísta em que se desenvolveu a ideia de um Deus único e grandioso, em meados do século VIII a.C, considere-se que o profeta Oséias condenava o culto do deus assírio Baal. A Bíblia conta que até a destruição do templo por Nabucodonosor, em 586. a.C., os israelitas adoravam um grande número de outras divindades. No século VIII, um pequeno grupo de profetas se mobilizou para convencer o povo israelita a adorar exclusivamente Jeová. Naquele tempo, sob a dominação da Babilônia, o povo hebreu recorria ao deus Baal e à sua irmã-esposa Anat, quando desejava obter boa colheita. Baal era o deus da fertilidade.
Para um profeta como Oséias, a adoração a outros deuses era uma forma de prostituição de seu povo. E ele acreditava que Jeová sentia-se infeliz com isso. Usei a palavra “Jeová”, inadvertidamente, para se referir a Deus. Gostaria, contudo, de trazer à luz um acontecimento histórico que explica a sua origem.
Durante muito tempo, os israelitas viviam num sistema tribal; todavia, por volta do ano 1000 a.C., esse sistema perdeu seu valor funcional. A solução encontrada foi formar duas monarquias na região montanhosa de Canaã: o reino de Judá no sul; e o reino de Israel, no norte. Israel era o maior e mais próspero reino. Judá e Israel produziram variadas tradições, e os historiadores do século VIII a.C. desenvolveram uma narrativa coerente dessas tradições. O reino de Judá chamava a Deus de Jeová; o reino de Israel preferira o termo mais formal Eloim. As duas narrativas, mais tarde, se combinaram, graças aos esforços de um editor, para formar uma única história, a qual constitui a coluna vertebral da Bíblia hebraica (Amstrong, 2007, p. 20).
A leitura do livro de Debray ensina-nos muito sobre as condições materiais, políticas, naturais, culturais, técnicas que viabilizaram o desenvolvimento da ideia de um Deus único e supremo. Quem é mais velho Deus ou o homem? – questão inevitável quando da leitura desse livro. O estranhamento suscitado por essa questão assaz provocativa logo se esvaece, se consideramos as evidências que confirmam a teoria da evolução. O homo sapiens sapiens surgiu entre 50 e 100 mil anos. O Deus judaico-cristão tem, segundo Debray, no máximo, 6 mil anos. Desde o aparecimento do australopiteco já se vão 3,6 milhões de anos. O Homo erectus teria surgido há aproximadamente 1, 7 milhões de anos. Nenhum desses ramos da família do gênero homo conhecera algum tipo de monoteísmo. Na realidade, o monoteísmo surgiu na Era do Bronze (2 mil – 1550 anos atrás). Por conseguinte, o homem é mais velho que Deus. Ou, dito doutro modo, a suposta Revelação de Deus chegou atrasada.
No trecho a seguir, Debray ventila questões que demandam o reconhecimento de verdades sobre o mundo natural e histórico:

“Por que o relógio do Grande Relojoeiro está tão atrasado em relação ao mostrador da espécie quando o contrário teria sido mais compreensível? Por que o homo sapiens sapiens pôde edificar sociedades variáveis, durante dezenas de milhares de anos, em múltiplos pontos do globo, sem se referir a um Princípio Único, a um Infinitamente Separado? (...) A aliança? Um acordo gráfico entre transumantes (em meio semidesértico) e um escrevente nas alturas (Deus, com seu dedo). Não há pastores sem a criação de animais, não há criação sem domesticação”.
(p. 37)


Debray destaca a importância das condições políticas e das inovações técnicas para o surgimento da ideia de Deus. “Não foi no alto do monte Sinai, numa bela manhã – escreve Debray – que o Todo-poderoso finalmente encontrou a ocasião apropriada de manifestar-se como tal” (p. 39). E acrescenta: “Foi um certo uso político, dado a inovações técnicas, que conferiu consistência e necessidade ao monoteísmo (...)”. À página 38, escreve o filósofo:

“O carro com rodas aparece às margens do Nilo e do Eufrates por volta do final do quarto milênio. A transformação do signo pictográfico para o signo fonético. O surgimento de carros puxados por bois ou asnos (os cavalos começaram a ser utilizados 2 mil anos atrás) relaciona-se diretamente à gênese de Deus”.



Em síntese, segundo Debray, a razão pela qual Deus era desconhecido do homem de Neandertal que ocupou a Ásia e a Europa entre 100 mil e 35 mil anos atrás e que tinha o cérebro do mesmo tamanho que o nosso, que falava e enterrava seus mortos, bem como cria no Além, está ligada à domesticação dos animais e à invenção da escrita.
Deus era impensável sem a escrita e a roda, as quais permitiram ao homem maior independência em relação ao tempo (escrita) e ao espaço (roda). Assim, segundo Debray (p. 38), Deus é tardio, porque tardias foram as invenções que possibilitaram a ampliação da memória e a maior mobilidade em ecossistemas bem definidos.
Se uma de minhas preocupações aqui é remontar às raízes da ideia de Deus, nada mais apropriado do que lembrar o papel desempenhado pelo deserto no desenvolvimento do monoteísmo israelita. Não se pode negar que o deserto desempenhou um papel relevante na história religiosa do Oriente Médio, pois que serviu de retiro natural para os religiosos contemplativos e ofereceu abrigo, ainda que temporário, aos heréticos. Debray lembra que Deus preferia o silêncio do deserto ao estrupido das cidades; as dunas lhe eram aprazíveis e lá Enoc o invocou. Segundo o filósofo,

“o Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não configuram um meio uniforme e sim abstrato”.
(p. 69)


Não lhe agradavam as planícies, tampouco “as margens pantanosas dos rios” (ib.id.). Eis a missão de Deus: reunir o gado e impedir sua dispersão.

“Ele prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa – mas o curral vem depois do rebanho, que primeiramente deve guiar e salvar. Jeová deve cuidar da alimentação do homem, deve dar-lhe proteção e nutrir-lhe compaixão”.
(ib.id.)

Se é verdade que no deserto o homem não está a salvo das tentações, também é verdade que lá ele se sente abandonado à glória de Deus. Em seu Uma outra História das Religiões (2002), Vallet observa também a respeito da importância do deserto para o desenvolvimento do judaísmo e do cristianismo:

“Foi no deserto que Deus revelou os mandamentos a Moisés. Para lá, o Espírito Santo levou Jesus, expondo-o às tentações do demônio. Também ali vieram os adeptos de seitas judaicas (como os essênios, criadores dos manuscritos do Mar Morto) e os ascetas do cristianismo primitivo, “os pais do deserto”.”
(pp. 16-17)


Embora fosse descrito como um lugar de abandono e de angústia (veja-se Isaías 30: 6 – “Advertência contra os animais do Neguebe: Atravessando uma terra hostil e severa, de leões e leoas, de víboras e serpentes velozes, os enviados transportam suas riquezas no lombo de jumentos; seus tesouros, nas corcovas de camelos, para aquela nação inútil”.), a fecundidade não deixava de lhe ser uma característica, em virtude dos poços e dos sofisticados sistemas de cultivo que aproveitavam a condensação da água sobre as pedras (Vellet, ib.id.). Os fenômenos de erosão, lá frequentes, eram interpretados pelos que por lá vagavam como sinais da ira divina. O deserto deu origem ao nome dos eremitas (do grego érémos), que eram homens que preferiam a companhia de Deus aos atrativos das cidades.


5.1. De olho na história: observações importantes

Prossigamos atentos aos registros históricos. Chamo atenção para o fato de que algumas das histórias mais antigas registradas pelas primeiras sociedades são as que dizem respeito às suas origens ou aos seus heróis lendários. Muito poucas dessas narrativas foram tão bem preservadas quanto as que compõem o Antigo Testamento da Bíblia cristã. É verdade que as histórias do Êxodo dos judeus e da conquista da Palestina refletiam as migrações caóticas e a instabilidade política do Antigo Oriente Próximo no fim do II milênio a.C., mas tais relatos eram muito mais de caráter cultural e religioso e não tinham qualquer compromisso com a verdade histórica. E já que mencionei a Bíblia, considere-se a questão: Há uma História na Bíblia? Vejamos alguns fatos não contados.
Reelaborando a questão, poder-se-ia perguntar se os autores bíblicos tinham um compromisso em relatar os acontecimentos reais. O leitor interessado em aprofundar-se nesse assunto poderá encontrar em Como Ler a Bíblia (2007), de Mckenzie um celeiro de informações esclarecedoras. Segundo Mckenzie, é fato que a Escrita da História na Bíblia era mais uma atividade da criatividade dos seus autores do que resultado do esforço por descrever fielmente os fatos históricos. Os autores bíblicos estavam pouco preocupados com o que realmente aconteceu no passado. É preciso frisar que não se deve depreender daí que eles nunca descrevessem o que aconteceu, mas que não constitui isso sua preocupação principal.
Voltando olhares para o evento do Êxodo, a Bíblia sugere que a história se deu no reinado de Ramsés, o Grande (1279-1213 a.C.). Mas os mesmos textos bíblicos não mencionam os nomes dos faraós, o que torna difícil a tarefa de identificar o faraó que reinava no Egito do período em que se deu o Êxodo. Ademais, as referências bíblicas desse evento grandioso divergem entre si. Veja-se que, em Gênesis 15:13, conta-se que o período de opressão no Egito duraria quatro séculos.

Após Abraão acordar cheio de pavor e medo pelo provável sonho terrível que teve, Deus, volta a falar com ele, explicando o motivo de seu momentâneo desespero.

Então o Senhor disse:

_ Quero lhe explicar o motivo de sua agonia, fique sabendo, com certeza, que a posse da terra prometida não será imediata e que antes disso os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão escravos e serão maltratados durante quatrocentos anos.

Mas no versículo 16, supõe-se que durou cento e sessenta anos, consoante a contagem bíblica de 40 anos para cada geração:

16.  Depois de quatro gerações, os seus descendentes voltarão para Canaã, daí então eu expulsarei os Amorreus daqui.


Faz-se mister dizer que nenhum dos eventos relacionados ao Êxodo na narrativa bíblica, entre os quais as pragas do Egito e o evento do Mar Vermelho, em que o exército egípcio foi afogado, deixou qualquer sinal nos registros egípcios. De fato, há aspectos da história muito pouco convincentes, como a fuga de aproximadamente 2 milhões de pessoas (600 mil homens, incluindo mulheres e crianças).

Ex. 12: 37. Os israelitas foram de Remessés até Sucote. Havia cerca de 600 mil homens a pé, além de mulheres e crianças.

Num 1:46. Todos os contados eram seiscentos e três mil e quinhentos e cinqüenta.


Ora, não seria de esperar que um grupo tão imensamente numeroso que estivesse deixando o Egito nos legasse algum vestígio histórico? Segundo Mckenzie (p. 69), esse número equivalia a quase um terço da população egípcia à época. Deveríamos levar em conta as dificuldades de sobrevivência dessa multidão, durante quarenta anos no deserto do Sinai? Mckenzie (p. 70) diz ainda haver dúvidas, do ponto de vista arqueológico, sobre a veracidade histórica da Conquista de Canaã. Os estudos arqueológicos indicam que cidades como Jericó e Ai tinham poucos ou nenhuns habitantes durante o período em que elas supostamente teriam sido conquistadas pelos israelitas.
Das considerações desses fatos, é preciso, pois, concluir, com Mckenzie, que a Escrita da História da antiga Israel tratava-se de um “prestar de contas do passado”, para, dessa forma, explicar o presente. Em seu trabalho, o historiador antigo procurava determinar as responsabilidades por e fazer julgamentos sobre as ações pretéritas da nação israelita. Observa o autor, no tocante à intenção dos historiadores antigos, o que se segue:

“(...) os historiadores antigos escreviam para firmar pontos políticos ou teológicos. Eles não eram repórteres objetivos, tinham interesses pessoais a defender”.
(p. 36)


E cabe acrescentar: defender seus interesses constituía a razão principal por que escreviam.
Os hebreus quase nunca são mencionados nos registros dos seus poderosos vizinhos (como o Egito e a Mesopotâmia), de modo que o confronto entre os relatos bíblicos e outras fontes torna-se praticamente inviável. Por exemplo, o nome de Abraão não figura em nenhum documento da Mesopotâmia, e Moisés não é referido nos registros egípcios. Portanto, a descendência de Abraão, que é aceita pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo, tem mais valor simbólico do que propriamente histórico.
Em Canaã, cada reino tem um deus protetor, e a população se vale de suas qualidades políticas ou guerreiras. O Israel monárquico abrigava seu único deus, assim como os moabitas tinham Quemosh; e os edomitas, Quaus. Esses deuses e homens partilhavam um mesmo território; e os reinos e panteões também eram muito próximos. A Palestina do século VIII a.C., sob a dominação assíria, era dividida entre os fenícios, samaritanos, filisteus, amonitas, moabitas, edomitas e judeus. Por vezes, havia rivalidade entre esses povos, fusões e alianças dinásticas. Jeová, evidentemente, tomava parte desse jogo político. Ele serviu de instrumento para a constituição de uma unidade que se desenvolveu pela ação das forças locais.
Os antigos hebreus viviam, portanto, num universo politeísta; mas não podemos ignorar o fato de que, conforme nota Debray, politeísmo e monoteísmo se influenciavam mutuamente:


“O politeísmo, na abordagem polimorfa do divino, é mais monoteísta do que se crê, e o monoteísmo é sempre um pouco mais politeísta do que pretende fazer crer (o uno se encontra no múltiplo e o múltiplo permanece no uno). A lenta emergência realiza-se por desencaixes sucessivos, a partir de uma religiosidade-mãe na qual cada cultura vem beber e desenvolver o melhor elemento (o que mais lhe convém). O Eloim de Jerusalém prolonga e sublima o El cananeu (...). Assim, nós chamamos de monoteísmo a uma monolatria transformada.”.
(p. 59)


Não obstante essa “osmose” entre o politeísmo e o monoteísmo no Antigo Oriente Próximo, a religião dos hebreus diferiam das religiões de seus povos vizinhos fundamentalmente por interpretar e registrar campanhas militares como História Sagrada. A luta dos hebreus acontecia numa Terra Santa prometida por Deus a Abraão e a Moisés em Canaã. O Deus dos antigos israelitas se revelava no tempo e no espaço. “Só há um Deus” (Isaías 45:5) e Israel deveria adorar apenas ao Senhor (Êxodo 20: 3).As demais nações podiam adorar outros deuses, mas o povo escolhido para habitar a Terra Prometida não estava autorizado a adorar outro deus senão o Senhor.
Saliente-se, ainda, que, segundo Amstrong (2008, p. 28), os patriarcas de Israel (Abraão, Isaac e Jacó) provavelmente não eram monoteístas.

“Na verdade, provavelmente é mais correto definir esses primeiros hebreus como pagãos que partilhavam muitas das crenças religiosas de seus vizinhos. Decerto, acreditavam na existência de divindades como Marduc, Baal e Anat. Talvez não adorassem a mesma divindade; é possível que o Deus de Abraão, “Temor” ou “Parente” de Isaac e o “Poderoso” de Jacó fossem três deuses distintos”.
(pp. 28-29)


6. O que concluir?

Estou consciente do fato de que o Deus mais familiar a uma maioria dos que vivem no Ocidente é o Deus cristão. O Cristianismo legou-nos uma outra imagem de Deus, a de um Deus dotado de uma personalidade diferente da personalidade do Deus judaico. Com o advento e desenvolvimento do cristianismo, não se tratava mais de um Deus dos Exércitos, mas de um Deus de amor e misericórdia para com todos, inclusive para com os inimigos. Eu não poderia, num só texto, pretender dar conta da versão de Deus fabricada pelo cristianismo. Lembro que meu propósito foi revistar as origens, ir às raízes da História do “EU SOU”.
Uma estimativa feita por David Barret, professor da Universidade de Regent e especialista em estudos de religião, aponta que devem existir mais de 10 mil religiões no mundo. Um cristão que afirme que Deus existe terá de admitir logicamente serem falsas as alegações das outras 7 mil religiões, excluindo-se das 10 mil religiões o judaísmo e o islamismo. Estou simplificando, evidentemente (os três monoteísmos não concordam em todos os aspectos doutrinários). De qualquer modo, conhecendo a história do Deus judaico-cristão, não há razões para acreditar que somente ele esteja credenciado a ocupar o cargo de única divindade verdadeira. Não são os deuses, mas os homens que fazem a História.
Quem quer que afirme “Deus existe” só o faz, esperançoso de que esta proposição descreva um fato do mundo, por ignorar as condições sócio-históricas e ideológicas que tornaram possível a enunciação desse enunciado. Um exame acurado da História do surgimento e do desenvolvimento da fé em um único Deus não oferece evidências para dar àquele enunciado sustentabilidade empírica; muito pelo contrário, pode encaminhar conclusões que o tornam escandalosamente fraudulento.
O ateísmo não precisa ser ofensivo e corrosivo, mas precisa ser esclarecido; e tanto mais esclarecido será quanto mais se demonstrar permeável aos conhecimentos produzidos por pesquisas empreendidas pelos estudiosos cujos trabalhos se alinham com o método histórico-crítico de interpretação e compreensão da Bíblia e da História dos cristianismos primitivos.