A crença em Deus
E o apagamento da memória histórica
1. Primeiras palavras
A confecção deste texto se me afigura oportuna agora. Durante algum
tempo, precisei protelá-la, já que urgiam outras incumbências. Outrossim,
precisei protelá-la – devo dizer – porquanto meu espírito não estava
inteiramente animado para aplicar-se a esse trabalho laborioso. É chegado o
tempo de retornar às palavras, de envolver-se no labor da escrita, com vistas a
distrair o intelecto dos atos rotineiros e regulares da vida cotidiana. Direi
melhor: é preciso desvencilhá-lo da esquemática dos atos habituais, dos
pensamentos comuns e emagrecidos, dos assuntos entretecidos da banalidade da
vida nossa de cada dia.
Escuso-me de fazer circunlóquios; atacarei o tema,
não sem introduzi-lo mediante uma ilustração. Em algum lugar do hemisfério
ocidental do globo terrestre, é possível surpreender alguém enunciando a frase:
“eu acredito em Deus” – ou uma equivalente como “Deus existe”. Já se contam
mais de 5.000 anos (isso é uma estimativa; é possível que chegue a 6.000 anos
(Debray, 2004: 32)), desde que a crença em um único Deus, criador do Universo e
Todo-poderoso, foi apregoada pelos antigos hebreus que viveram no Antigo Oriente
Próximo; e, não obstante a idade avançada desta ideia, ela exibe, ainda hoje,
uma força incrivelmente atraente e desfruta de um vigor jovial, que resiste às
forças propulsoras que levam as massas de indivíduos a desejar sofregamente o
novo; forças estas que tão profundamente marcam a chamada era pós-moderna. De
passagem, preciso salientar que, no tocante ao período em que a ideia de Deus
surgiu e se desenvolveu paulatinamente no antigo Oriente Médio, segundo
estimativa de Karen Amstrong, em seu livro Uma
história de Deus (2008: 16), já se vão cerca de 14 mil anos. Para Amstrong, Deus tem idade muito mais avançada,
portanto.
Em nossa era, também denominada de “hipermodernidade”
(Lipovetsky, 2004), em que tudo se torna obsoleto, descartável num tempo muito
curto – curto o suficiente para evitar que os consumidores se apeguem aos bens adquiridos
-, a ideia de Deus, tão farta e cotidianamente consumida, parece ser o único
bem de consumo que não toma parte na engrenagem consumista dos bens destinados
a serem esvaziados de seu valor de uso rapidamente. Deus está aí entre nós
ainda; firme e forte, resistindo às fortes correntezas sociais que lançam tudo
quanto é produto socialmente fabricado à lixeira do efêmero. Esse Deus
envelhecido, que, entanto, não ostenta sulcos da idade e que, certamente, não é
o único dentre os que os homens inventaram, goza da virilidade de um
adolescente e não cessa de engravidar novos adoradores. Esse Deus tem o poder
de um rei carismático e a vivacidade de um menino peralta.
A questão, então, que se me impôs ao espírito
foi a seguinte: o que torna possível a
uma pessoa que vive em uma de nossas sociedades do século XXI aderir tenazmente
à crença na existência de um Deus único, criador do Universo e Todo-poderoso? Não estou a sugerir que haja uma única
resposta a essa questão. É provável que haja muitas respostas – e estou
convencido de que tal é o caso. As razões pelas quais se pode explicar o fato
de essa crença ter chegado até nós e sobrevivido em nossas sociedades
secularizadas são diversas. Todavia, procurarei mostrar que não importam quais e
quantas sejam essas razões todas elas são de natureza histórica; ademais,
pretenderei sugerir que a sobrevivência dessa crença se deve muito ao
apagamento da memória histórica por força do trabalho das forças doutrinadoras
ao longo dos séculos.
2. Arando o terreno
Antes de fazer incursão pelos vastos, sinuosos
e diversos caminhos através dos quais procurarei conduzir o leitor ao
esclarecimento sobre acontecimentos, fatos e transformações que configuraram
uma história de Deus, cuido necessário situar a questão fulcral com base na
qual minhas reflexões neste texto tomarão forma. Eu o farei convidando o leitor
a que me acompanhe no desdobramento do que se segue.
Proponho que atentemos para o seguinte: quem
diz eu creio em Deus acredita
que esse Deus é o único verdadeiramente existente. Essa pessoa, por uma
implicação lógica, formalizável como “se p,
então não-q”, terá de concluir pela
inexistência dos deuses de outras inúmeras tradições religiosas, quer tenham
sucumbido, quer ainda subsistam, mesmo nos lugares mais remotos do globo
terrestre.
Essa pessoa, ao acreditar que existe um único
Deus e que ele é o Deus criador do Universo terá também de aceitar a conclusão
de que ele é responsável por tudo quanto acontece, inclusive, pelos
acontecimentos da História humana. Essa conclusão, no entanto, leva a uma
primeira dificuldade notável, que toca à observação de que a História humana
nos oferece um gigantesco universo de divindades. Uma pessoa minimamente
esclarecida sobre História Mundial deverá reconhecer que os coletivos humanos,
em diferentes épocas e lugares, cultuaram diversos deuses; e deverá reconhecer
igualmente que muitos desses povos desconheceram (e outros tantos desconhecem)
o Deus que se saiu vitorioso na história ocidental.
O problema, portanto, que se impõe a quem quer
que afirme, seguramente e de coração a existência de um único Deus é se expressa na seguinte questão: por que Deus não se revelou aos
demais povos que viveram fora dos limites da Palestina de 1.000 a .C.? Ou ainda: por
que Deus não se fez conhecido de toda a humanidade desde os aborígenes que
habitam as regiões ocidental e meridional da Austrália até os complexos
agrupamentos humanos que formam as sociedades da Ásia Oriental? A resposta
salta evidente: é que o Deus do homem ocidental tem uma História, cujas raízes
se fincam no deserto da Palestina do século VIII a.C.
Como seja vasta e complexa essa história, eu
não poderia aqui senão fazer um recorte que, mesmo sendo mais ou menos
arbitrário, não deixe de acenar aos meus propósitos. O plano argumentativo da
presente exposição prevê a tese já anunciada, mas que retomo a fim de que não
escape à consciência do leitor:
O apagamento
da memória histórica das raízes de Deus, muito graças aos esforços dos
doutrinadores, explica, em grande medida, a sobrevivência da crença, entre nós,
de que só há um único e verdadeiro Deus.
Ponderemos sobre esta tese. Se ela contiver
algum valor de verdade, ou melhor, se ela, no curso deste texto, se demonstrar
sustentável, deverá suscitar ao leitor alguns pensamentos que se costuram
logicamente por força mesmo da validade da tese. Senão, vejamos. A tese
apresenta como causa da sobrevivência da crença em um Deus único o apagamento
da memória histórica das origens desse Deus. No entanto, a tese sugere que
o esclarecimento sobre as origens históricas de Deus é suficiente para que a
crença se desmantele. Mas não parece ser esse o caso, visto que há certamente
pessoas dotadas de erudição nesta seara que, não obstante, conservam a crença
na existência de um único Deus, que se revelou aos patriarcas de Israel em
tempos remotos. Não se segue daí que a tese deva ser rechaçada ou perca
validade, já que, por um lado, não está claro se tais eruditos levam seriamente
em conta as consequências de sua elevada instrução sobre a história que
produziu Deus para a sustentação de sua fé, bem como não deixa de ser verdade
que esse apagamento da memória histórica aconteça, quando levamos em conta que
às grandes massas de fieis leigos é negado o acesso à produção de um
conhecimento histórico sobre as bases de sua fé.
Permita-me dar um novo torneio a estes
enredamentos de ideias. Do que se trata então? O que me espanta ou admira
(porque a reflexão filosófica encontra sementes na admiração, no espanto)? Admira-me
que uma pessoa que afirme existir um único Deus, que afirme ser esse Deus
transcendente, atemporal, embora, ao mesmo tempo, supostamente capaz de
intervir na história humana, não reconheça que 1) esse Deus cuja existência ela
afirma tem uma história, que pode ser conhecida; 2) e que o próprio fato de
haver uma história de Deus supõe a existência de agentes que produziram e
contaram essa história. Antes de trazer à luz pensamentos outros que agora
ficam a dançar-me na alma e que levarão a bom termo os raciocínios
imediatamente precedentes, peço ao leitor que me acompanhe no seguinte
exercício de pensamento.
Imaginemos uma situação em que alguém se
autorrefira enunciando “eu sou Lucas”. O Lucas não deveria se admirar se
alguém lhe perguntasse: quem o diz?
Por um automatismo de sua lógica costumeira, Lucas se apressaria em responder
algo como: “ora, eu mesmo”. E Lucas o faria, não sem lançar suspeitas
sobre o bom-senso de seu interlocutor; talvez Lucas pensasse se tratar de um
brincalhão. No entanto, o que Lucas talvez não soubesse é que uma questão,
aparentemente, despropositada e demandante de uma resposta tautológica, pode
abrir caminhos para vastas e opulentas reflexões. Afinal, quem diz “eu sou
Lucas” é o próprio Lucas seguramente; no entanto, antes de Lucas dizê-lo, uma
comunidade de outros significativos o fez, ou seja, o chamou desse modo. Nosso
Lucas enfeixa vários traços identitários que se foram acumulando para construir
a complexidade de sua identidade, nas inúmeras relações, mediadas
linguisticamente, com os outros significativos, no contexto sociocultural em que nasceu. Caberia, a esta altura, perguntar se existe mesmo um “eu” enquanto
realidade ontológica que diz chamar-se “Lucas”? Em outras palavras, esse Lucas
existe como ser independente das condições socioculturais, familiares,
políticas, etc. em que se desenvolveu?
E esse Lucas é portador de discursos
verdadeiros em si mesmos? Em outras palavras, terá Lucas acesso a alguma
verdade por meio de seus discursos, que não fariam senão lhe fornecer
“fotografias” do real? Esses discursos lhe pertenceriam como lhe pertence a
roupa que veste? Será Lucas senhor absoluto do que diz? Seus pensamentos, suas
crenças, valores, opiniões e – novamente – seus discursos são instrumentos por
ele mesmo forjados para descrever e explicar com transparência (digo sem
distorções, sem um óculos cultural que lhe faça “ver” de determinada maneira
essa realidade), ou serão produtos-instrumentos fabricados nas suas múltiplas
experiências de mundo com os quais ele buscará reconstruir cognitivamente o mundo percebido e vivido?
Se Lucas pensa de tal ou qual modo, onde devemos
buscar as causas dos espectros, dos contornos, das bases de seus pensamentos?
Claro está que a fornalha de nossos pensamentos e discursos, de nossas crenças,
opiniões, ideias e valores é o próprio real, ou melhor, são as nossas
experiências de mundo que só são possíveis pelo corpo em interação com um
entorno biossocial e cultural.
O Lucas de nosso experimento de pensamento
ajuda-nos a compreender que nossos pensamentos, nossas crenças, nossas ideias,
nossas convicções, etc. trazem as marcas que a vida nos legou. E não há como
ser diferente. Antes de falar, é preciso viver; antes de pensar, é preciso
viver. A vida instintiva precede a razão discursiva. E engana-se o homem que
cuida que os produtos simbólicos de seu cérebro não têm nada que ver com a vida
que vive; e tolo será se pensar que as conclusões que atingiu se lhe afiguraram
ao espírito graças a esforços puramente subjetivos e por abstração de um
entorno sócio-histórico em que elas se inscrevem.
Retome-se o fio discursivo. Minha atenção
estava concentrada na justificação da tese. Esta sugere que a restituição da
memória histórica das raízes de Deus enreda a fé do fiel em conclusões que se
impõem à sua razão. É dessas conclusões imperiosas de que trata este texto.
Destarte, quem afirma “Deus existe” deverá reconhecer que a enunciação
(acontecimento sócio-histórico de produção de um enunciado) desse produto
linguístico só foi possível em virtude de dadas circunstâncias sócio-históricas
e ideológicas, que são contingentes e que se inscrevem na forma de uma memória
discursiva, que é social, que é histórica. Note-se que essa afirmação, cada vez
que é enunciada, nega ou torna falsas afirmações correlatas como “Shiva existe”,
“Baal existe”, etc. Se ainda não é claro o fato de que deuses são criados por
seres humanos e de que aniquilado todo um povo ou uma geração, morrem seus
deuses, espero que este texto não deixe qualquer sombra sobre o valor de
verdade dessas assertivas.
Até aqui, empreguei a palavra história, sem me
preocupar com a sua significação. Vou-me deter no exame do significado da
palavra história, à luz da contribuição de Marx. No entanto, não me
aprofundarei no pensamento deste filósofo e cientista social; de seu pensamento
aproveitarei o que me parece pertinente ao bom encaminhamento de minhas
reflexões.
O homem é um ser histórico, disso não há
dúvida. E, para Marx, também não pode haver qualquer dúvida sobre o fato de que
a realidade humana é o conjunto de relações sociais. Um pressuposto está no
cerne dessa compreensão da realidade humana: não há história sem seres humanos. Ora, mesmo que aceitássemos a
crença numa Revelação divina, essa Revelação não se daria sem a existência dos
homens. Curiosamente, só há história de deuses porque há homens que a contam,
embora eu, que sou ateu e não creio no dogma da Revelação do Deus
judaico-cristão, não hesitasse em acrescentar “porque também há homens que a fabricam”. Deuses só têm uma história porque existem ou existiram homens que a
fabricaram e a transmitiram como narrativas às gerações posteriores. Ora, é
forçoso reconhecer que a própria crença na Revelação do Deus judaico-cristão
nos foi transmitida por escritos testamentários cuja autoria supõe a existência
de homens (nesse caso, seres do sexo masculino). Em termos mais informais, a
tal Revelação se nos chegou de segunda e terceira mãos (nesse caso, de muitas
mãos).
É claro que o homem é dotado de uma natureza
biológica e, portanto, é um ser natural; todavia, é inegável que sua existência
está sujeita às determinações sociais. Em seu livro História e Verdade (1983), o marxista polonês Adam Schaff pondera
sobre as consequências do reconhecimento da dimensão histórica da existência
humana:
“O
fato do homem, o sujeito, ser “o conjunto das relações sociais”, comporta
consequências diversas, sensíveis também no domínio do conhecimento. Em
primeiro lugar, uma articulação determinada do mundo – ou seja a maneira de o
aperceber, de distinguir nele elementos determinados, a dinâmica das
percepções, etc. – está ligada à linguagem e ao seu aparelho conceitual que
recebemos da sociedade por intermédio da educação considerada como a
transmissão da experiência social acumulada na filogênese. Em seguida, os
nossos julgamentos são socialmente condicionados por sistemas de valores que
aceitamos e que possuem todos um caráter de classe (...)”.
(pp. 81-82)
Demoremo-nos a apreciar este passo de Schaff. É
preciso ver que o autor considera a problemática de como o sujeito constrói o
conhecimento, tendo em vista a assunção de que o homem “é o conjunto das
relações sociais”. Que implicações tem essa afirmação para a problemática do
conhecimento? Este é o tópico do seu discurso. A primeira observação que o
autor faz, nesse tocante, diz respeito ao fato de o homem ligar-se ao mundo
pela mediação da linguagem, do seu aparelho cognitivo-perceptual e pelo
concurso de processos educacionais. Linguagem, aparelho cognitivo-perceptual e
educação vão condicionar a construção do conhecimento. Nossas percepções são
produtos de nossas experiências culturais. Veja-se que o autor fala em
“sistemas de valores” que “aceitamos” e que condicionam “nossos julgamentos”. O
antropólogo brasileiro Roberto da Matta, em um artigo intitulado de Você tem cultura? (1981), publicado no
extinto Jornal Embratel, ensina-nos de modo claro e sem recorrer ao jargão
acadêmico os diversos significados que assume a palavra cultura, destacando o significado deste termo na abordagem da
Antropologia Social e da Sociologia. Leia-se, então, o passo em que da Matta
define cultura:
“Cultura
é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código
através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam,
modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas
importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com
interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num
grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma sociedade. Podem,
assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que
dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante
de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe
simplesmente. É algo que está dentro e
fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o
entendimento do jogo e, também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha e
torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como
regra) é algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com
o ambiente onde vivem”.
(p.
2)
Destaquei em negrito um trecho que é consonante com a posição de um outro
teórico, chamado Milton Bennett (1998) que, ao considerar o fenômeno da
cultura, distingue entre dois conceitos de cultura: cultura objetiva e cultura
subjetiva. Esta última, segundo o autor, inclui as ideologias, os padrões de
crenças e valores dos grupos de indivíduos que interagem uns com os outros. É nesse
sentido que se pode dizer que a cultura é algo dentro de cada um de nós. Por
outro lado, a cultura constitui também um domínio objetivo, exteriorizado na
forma de produtos do espírito (artes, literatura, música, etc.). A cultura
objetiva também constitui o conjunto das esferas institucionais onde os
indivíduos atuam.
É necessário, portanto, pensar o termo cultura tendo em conta sua dimensão
essencialmente simbólica. A cultura se estrutura em práticas sociais investidas
de símbolos (signos), o que equivale a dizer que se constitui de práticas
simbólicas. Ela também fornece um conjunto de regras para a estruturação e
regulamentação de tais práticas sociais mediadas pela linguagem. A dimensão
simbólica da cultura, que constitui seu cerne, não só permite a elaboração de
um conjunto de regras e valores na base dos quais se desenvolvem as práticas
sociais mediadas pela linguagem, mas também produzem e condicionam nossas
percepções mediante as quais a realidade é (re)construída ou fabricada (Hauser,
2003).
Creio não ser custoso concluir, a esta altura,
que deuses e religiões são instituições culturais. O mundo é, portanto, um
produto da atividade humana concreta, ou seja, em termos marxistas, da práxis.
No marxismo, o conhecimento do mundo percebido na experiência sensível é
resultado de uma atividade prática, isto é, de uma atividade que transforma a
realidade compreendida. Nessa visão, dois elementos se destacam: a concepção do homem como um ser social e
o conceito de conhecimento como prática,
como atividade concreta.
A teoria social de Marx se diz historicista.
Daí podermos falar de um Historicismo de Marx. São dois os pilares de seu
historicismo: 1) a ideia de que a historicidade é inerente à própria realidade,
à própria existência, e não apenas às representações desta realidade no
espírito; 2) a totalidade da realidade é transformação, é processo.
Desse modo, o historicismo marxista reza que
todos os objetos, fenômenos e representações formados no espírito são
processos, transformações, de sorte que o aparecimento de dadas condições, por
meio de uma série de transformações, conduz ao seu desaparecimento e
transformação em uma nova forma. Nossas visões de mundo, nossas concepções da
realidade são consideradas formas de processos, de transformações. O historicismo
marxista supõe a existência de uma realidade material e objetiva,
independentemente de um espírito que a conceba. O historicismo, não se
limitando a enfatizar o caráter dinâmico da realidade em sua totalidade,
abrange a história e a gênese, para dar conta do conhecimento de qualquer
coisa.
Convém pontuar, com base em Schaff (1983), as
seguintes consequências do historicismo marxista:
1) insistência na relação necessária das ideias
e opiniões com as condições sócio-históricas;
2) reconhecimento de que as condições
históricas mudam incessantemente;
3) concepção da realidade como um processo de
mudança constante e de desenvolvimento ininterrupto;
4) concepção de conhecimento como processo
também em mudança constante.
No tocante à consequência 4), saliente-se que o
conhecimento não só é um processo que muda incessantemente porque o seu objeto
reflete uma realidade que muda também incessantemente, mas principalmente
porque o objeto de conhecimento (a realidade) é produto de interações e
correlações de fenômenos suscetíveis à mudança incessante. Assim, com base na
categoria de mudança e na categoria
de totalidade, chega-se à concepção
de conhecimento como processo e ao reconhecimento do caráter concreto de
verdade. Eu não poderia aqui me ocupar da questão da verdade no marxismo; mas
cuido não me equivocar ao dizer que a verdade, em Marx, deve ser entendida como
um processo inscrito num dado contexto histórico. Como processo na história, a
verdade é sempre construída na práxis social.
Avancemos nossas reflexões sobre a concepção
marxista de História. Em o “Manifesto do Partido Comunista”, Marx & Engels
escreveu: “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de
classes”. Assim, em toda sociedade humana, as classes dominadas lutam contra uma
classe dominante para garantir a dominação para si e submeter a sociedade toda
a ela. A concepção materialista de história compreende o processo histórico
relativamente a dois fatores: 1) a objetividade da dialética das forças
produtivas; 2) a objetividade das relações sociais de produção; 3) a
subjetividade da luta de classes.
Sobre o cerne do materialismo marxista reside a
tese de que as condições materiais da prática são determinantes da consciência
humana. No entanto, essa determinação não mascara o fato de que as próprias
condições materiais são produzidas pelas ações humanas na história. Por isso,
embora sejam de natureza material, tais condições são influenciadas por toda
sorte de representações ideológicas.
4. O Sentido de História
Nesta seção tecerei algumas considerações sobre
o significado da palavra História, tendo em vista o trabalho do historiador. A
história, como domínio do conhecimento humano, resulta de esforços despendidos
pelo historiador na tentativa de reconstruir o passado com base nas evidências
disponíveis. Fazer História é, portanto, um trabalho de produção de perguntas
sobre acontecimentos sociais, políticos, culturais, econômicos da vida humana.
Os historiadores estão interessados não só em saber o que aconteceu, mas também
nas razões por que algo aconteceu, no modo como aconteceu e nas consequências
do que aconteceu. As respostas obtidas vão configurar, assim, uma narrativa
contínua que não é imune a divergências. É com base nas perguntas e nas
respostas auferidas, ao longo do trabalho de pesquisa e investigação dos
registros históricos, que o passado é, portanto, reconstruído.
Quer oral, quer escrita, a história se
apresenta à consciência dos historiadores como um quebra-cabeça, um complexo de
fragmentos, um conjunto de palpites ou hipóteses resultante da seleção das
evidências que eles têm à disposição. Antes de me voltar para a discussão de
aspectos atinentes à História de Deus que se confunde com a Saga dos antigos
israelitas e com as relações com povos vizinhos
e com o jugo pela força dos dominadores, bem como com o culto de seus
deuses, recorde-se que alethéia, em
grego, se traduz como verdade. A palavra se compõe do prefixo de negação “-a” e
do radical léthe, que designa o
esquecido. Alethéia é o
não-esquecido. No mito, léthe é o rio
do esquecimento que flui para o mundo subterrâneo, conferindo à alma dos mortos
esquecimento. A verdade não é apenas o que é lembrado, mas também o
inesquecível.
Do exposto acima, segue-se que a História
começa com Homero (séc. VIII a.C), que narra a Guerra de Tróia. Na esteira de
Homero, Hesíodo, também poeta, atribui a si mesmo a tarefa de “celebrar os
deuses” e as façanhas dos homens valorosos. A História e a Escrita da História
iniciam-se, portanto, na Grécia.
No Antigo Egito, registravam-se, em anais, as
ações dos reis mais importantes, muito embora não houvesse uma preocupação em
relatar o passado, mas sim com um desejo de imortalidade. O que animava os
escribas e reis que escreviam a História era a esperança na vida após a morte e
o desejo de construir necrópoles. A Bíblia, por exemplo, cuja fabricação esteve
muito a serviço da memória, não encerra uma preocupação com o passado enquanto
verdade histórica. Voltarei a este ponto, mais adiante. Por fim, cumpre notar
que Aristóteles (séc. V e IV a.C.) entendia que poeta e historiador respondiam
pela conservação das coisas na recordação. Mas, para o filósofo estagirita, o
poeta gozava de maior prestígio, em face do historiador, já que a poesia era
superior à História. Aristóteles considerava que a superioridade da poesia
repousava sobre o fato de ela abarcar o universal, ao passo que a História só
se ocupa do particular, do acontecido.
5. Removendo o véu: revelando a História de
Deus
Topo, em Deus
– um itinerário (2004), do filósofo Régis Debray, o seguinte passo
intrigante: “A Bíblia não é “falsa” – a não ser sob o olhar das nossas ilusões
historicistas. Ela é eficaz”. Ponderando sobre no que consiste essa eficácia,
pareceu-me claro que ela se prende, ao menos em parte, ao fato de o seu uso ter
conseguido lançar sobre a consciência dos fiéis uma espessa cortina de
ignorância e obscuridade sobre a história de sua fabricação. Os fiéis, que mais
honram a Bíblia, são os que mais ignoram as condições sócio-históricas,
teológicas e ideológicas em que foram produzidos os manuscritos que viriam a
resultar nesse que é o livro mais vendido do mundo.
A título de exemplo, considere-se a freqüência
com que a palavra Deus é pronunciada ou escrita. A frequência com que se fala
em Deus é proporcional à extensão da ignorância dos fiéis leigos sobre os fatos
históricos que dizem respeito à origem desse Deus. Provavelmente, escapa à
consciência de uma maioria esmagadora de cristãos o fato de que Jeová competia
com deuses como Il aba acadiano, o deus-pai venerado por Sagão, ao Il-ile
cananeu. Debray nos ensina que o Deus judaico-cristão surge em continuidade a
deuses num mundo “assírio-cananeu-judaico-cristão”. Jeová não era um deus
exclusivo. Havia entre ele e os demais deuses dos povos dominadores uma relação
de parentesco. Muitos desses deuses eram cultuados também pelos próprios
israelitas. Está bem estabelecida entre os especialistas a convicção de que o
que hoje entendemos por monoteísmo resultou da transformação de uma monolatria
(isto é um sistema de crenças em divindades, que, embora admitisse a existência
de todas elas, elegia uma apenas para ser alvo de adoração).
Sabe-se que os hebreus viveram em um ambiente
marcadamente politeísta e que, embora tenham desenvolvido uma religião de forte
apelo nacionalista baseada na crença em um Deus único, tão necessária à
construção de sua identidade, entraram em contato com as religiões dos povos
estrangeiros dominadores. Por exemplo, da religião ariana, sob a dominação da
pérsia, os hebreus aproveitaram a ideia de “sopro de Mazda”, o Espírito
Criador, associando-a a Jeová; o paraíso passou a corresponder ao Jardim do
Éden; o fogo sagrado dos templos persas, à sarça ardente em que Deus aparece.
Por influência da imagem de um Deus bondoso dos persas, paulatinamente, o Deus judaico
foi ganhando uma personalidade mais bondosa e menos irada.
Ainda se atendo ao contexto politeísta em que
se desenvolveu a ideia de um Deus único e grandioso, em meados do século VIII
a.C, considere-se que o profeta Oséias condenava o culto do deus assírio Baal.
A Bíblia conta que até a destruição do templo por Nabucodonosor, em 586. a .C., os israelitas
adoravam um grande número de outras divindades. No século VIII, um pequeno
grupo de profetas se mobilizou para convencer o povo israelita a adorar exclusivamente
Jeová. Naquele tempo, sob a dominação da Babilônia, o povo hebreu recorria ao
deus Baal e à sua irmã-esposa Anat, quando desejava obter boa colheita. Baal
era o deus da fertilidade.
Para um profeta como Oséias, a adoração a
outros deuses era uma forma de prostituição de seu povo. E ele acreditava que
Jeová sentia-se infeliz com isso. Usei a palavra “Jeová”, inadvertidamente,
para se referir a Deus. Gostaria, contudo, de trazer à luz um acontecimento
histórico que explica a sua origem.
Durante muito tempo, os israelitas viviam num
sistema tribal; todavia, por volta do ano 1000 a .C., esse sistema
perdeu seu valor funcional. A solução encontrada foi formar duas monarquias na
região montanhosa de Canaã: o reino de Judá no sul; e o reino de Israel, no
norte. Israel era o maior e mais próspero reino. Judá e Israel produziram
variadas tradições, e os historiadores do século VIII a.C. desenvolveram uma
narrativa coerente dessas tradições. O reino de Judá chamava a Deus de Jeová; o
reino de Israel preferira o termo mais formal Eloim. As duas narrativas, mais
tarde, se combinaram, graças aos esforços de um editor, para formar uma única
história, a qual constitui a coluna vertebral da Bíblia hebraica (Amstrong,
2007, p. 20).
A leitura do livro de Debray ensina-nos muito
sobre as condições materiais, políticas, naturais, culturais, técnicas que
viabilizaram o desenvolvimento da ideia de um Deus único e supremo. Quem é mais velho Deus ou o homem? –
questão inevitável quando da leitura desse livro. O estranhamento suscitado por
essa questão assaz provocativa logo se esvaece, se consideramos as evidências
que confirmam a teoria da evolução. O homo
sapiens sapiens surgiu entre 50 e 100 mil anos. O Deus judaico-cristão tem,
segundo Debray, no máximo, 6 mil anos. Desde o aparecimento do australopiteco
já se vão 3,6 milhões de anos. O Homo
erectus teria surgido há aproximadamente 1, 7 milhões de anos. Nenhum
desses ramos da família do gênero homo
conhecera algum tipo de monoteísmo. Na realidade, o monoteísmo surgiu na Era do
Bronze (2 mil – 1550 anos atrás). Por conseguinte, o homem é mais velho que
Deus. Ou, dito doutro modo, a suposta Revelação de Deus chegou atrasada.
No trecho a seguir, Debray ventila questões que
demandam o reconhecimento de verdades sobre o mundo natural e histórico:
“Por
que o relógio do Grande Relojoeiro está tão atrasado em relação ao mostrador da
espécie quando o contrário teria sido mais compreensível? Por que o homo sapiens sapiens pôde edificar
sociedades variáveis, durante dezenas de milhares de anos, em múltiplos pontos
do globo, sem se referir a um Princípio Único, a um Infinitamente Separado?
(...) A aliança? Um acordo gráfico entre transumantes (em meio semidesértico) e
um escrevente nas alturas (Deus, com seu dedo). Não há pastores sem a criação
de animais, não há criação sem domesticação”.
(p.
37)
Debray destaca a importância das condições
políticas e das inovações técnicas para o surgimento da ideia de Deus. “Não foi
no alto do monte Sinai, numa bela manhã – escreve Debray – que o Todo-poderoso
finalmente encontrou a ocasião apropriada de manifestar-se como tal” (p. 39). E
acrescenta: “Foi um certo uso político, dado a inovações técnicas, que conferiu
consistência e necessidade ao monoteísmo (...)”. À página 38, escreve o
filósofo:
“O
carro com rodas aparece às margens do Nilo e do Eufrates por volta do final do
quarto milênio. A transformação do signo pictográfico para o signo fonético. O
surgimento de carros puxados por bois ou asnos (os cavalos começaram a ser
utilizados 2 mil anos atrás) relaciona-se diretamente à gênese de Deus”.
Em síntese, segundo Debray, a razão pela qual
Deus era desconhecido do homem de Neandertal que ocupou a Ásia e a Europa entre
100 mil e 35 mil anos atrás e que tinha o cérebro do mesmo tamanho que o nosso,
que falava e enterrava seus mortos, bem como cria no Além, está ligada à
domesticação dos animais e à invenção da escrita.
Deus era impensável sem a escrita e a roda, as
quais permitiram ao homem maior independência em relação ao tempo (escrita) e
ao espaço (roda). Assim, segundo Debray (p. 38), Deus é tardio, porque tardias
foram as invenções que possibilitaram a ampliação da memória e a maior
mobilidade em ecossistemas bem definidos.
Se uma de minhas preocupações aqui é remontar
às raízes da ideia de Deus, nada mais apropriado do que lembrar o papel
desempenhado pelo deserto no desenvolvimento do monoteísmo israelita. Não se
pode negar que o deserto desempenhou um papel relevante na história religiosa
do Oriente Médio, pois que serviu de retiro natural para os religiosos
contemplativos e ofereceu abrigo, ainda que temporário, aos heréticos. Debray
lembra que Deus preferia o silêncio do deserto ao estrupido das cidades; as
dunas lhe eram aprazíveis e lá Enoc o invocou. Segundo o filósofo,
“o
Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não
configuram um meio uniforme e sim abstrato”.
(p.
69)
Não lhe agradavam as planícies, tampouco “as
margens pantanosas dos rios” (ib.id.). Eis a missão de Deus: reunir o gado e
impedir sua dispersão.
“Ele
prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa – mas o curral vem depois
do rebanho, que primeiramente deve guiar e salvar. Jeová deve cuidar da
alimentação do homem, deve dar-lhe proteção e nutrir-lhe compaixão”.
(ib.id.)
Se é verdade que no deserto o homem não está a
salvo das tentações, também é verdade que lá ele se sente abandonado à glória
de Deus. Em seu Uma outra História das
Religiões (2002), Vallet observa também a respeito da importância do
deserto para o desenvolvimento do judaísmo e do cristianismo:
“Foi
no deserto que Deus revelou os mandamentos a Moisés. Para lá, o Espírito Santo
levou Jesus, expondo-o às tentações do demônio. Também ali vieram os adeptos de
seitas judaicas (como os essênios, criadores dos manuscritos do Mar Morto) e os
ascetas do cristianismo primitivo, “os pais do deserto”.”
(pp.
16-17)
Embora fosse descrito como um lugar de abandono
e de angústia (veja-se Isaías 30: 6 – “Advertência
contra os animais do Neguebe: Atravessando uma terra hostil e severa, de leões
e leoas, de víboras e serpentes velozes, os enviados transportam suas riquezas
no lombo de jumentos; seus tesouros, nas corcovas de camelos, para aquela nação
inútil”.), a fecundidade não deixava de lhe ser uma característica, em
virtude dos poços e dos sofisticados sistemas de cultivo que aproveitavam a condensação
da água sobre as pedras (Vellet, ib.id.). Os fenômenos de erosão, lá
frequentes, eram interpretados pelos que por lá vagavam como sinais da ira
divina. O deserto deu origem ao nome dos eremitas (do grego érémos), que eram homens que preferiam a
companhia de Deus aos atrativos das cidades.
5.1. De olho na história: observações
importantes
Prossigamos atentos aos registros históricos.
Chamo atenção para o fato de que algumas das histórias mais antigas registradas
pelas primeiras sociedades são as que dizem respeito às suas origens ou aos
seus heróis lendários. Muito poucas dessas narrativas foram tão bem preservadas
quanto as que compõem o Antigo Testamento da Bíblia cristã. É verdade que as
histórias do Êxodo dos judeus e da conquista da Palestina refletiam as
migrações caóticas e a instabilidade política do Antigo Oriente Próximo no fim
do II milênio a.C., mas tais relatos eram muito mais de caráter cultural e
religioso e não tinham qualquer compromisso com a verdade histórica. E já que
mencionei a Bíblia, considere-se a questão: Há
uma História na Bíblia? Vejamos alguns fatos não contados.
Reelaborando a questão, poder-se-ia perguntar
se os autores bíblicos tinham um compromisso em relatar os acontecimentos
reais. O leitor interessado em aprofundar-se nesse assunto poderá encontrar em Como Ler a Bíblia (2007), de Mckenzie um
celeiro de informações esclarecedoras. Segundo Mckenzie, é fato que a Escrita
da História na Bíblia era mais uma atividade da criatividade dos seus autores
do que resultado do esforço por descrever fielmente os fatos históricos. Os
autores bíblicos estavam pouco preocupados com o que realmente aconteceu no
passado. É preciso frisar que não se deve depreender daí que eles nunca
descrevessem o que aconteceu, mas que não constitui isso sua preocupação
principal.
Voltando olhares para o evento do Êxodo, a
Bíblia sugere que a história se deu no reinado de Ramsés, o Grande (1279-1213 a .C.). Mas os mesmos
textos bíblicos não mencionam os nomes dos faraós, o que torna difícil a tarefa
de identificar o faraó que reinava no Egito do período em que se deu o Êxodo.
Ademais, as referências bíblicas desse evento grandioso divergem entre si.
Veja-se que, em Gênesis 15:13, conta-se que o período de opressão no Egito
duraria quatro séculos.
Após Abraão acordar cheio de pavor e medo pelo provável
sonho terrível que teve, Deus, volta a falar com ele, explicando o motivo de
seu momentâneo desespero.
Então o Senhor disse:
_ Quero lhe explicar o motivo de sua agonia, fique sabendo,
com certeza, que a posse da terra prometida não será imediata e que antes disso
os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão escravos e serão
maltratados durante quatrocentos anos.
Mas no versículo 16, supõe-se que durou cento e
sessenta anos, consoante a contagem bíblica de 40 anos para cada geração:
16. Depois de quatro gerações, os seus descendentes voltarão para Canaã, daí
então eu expulsarei os Amorreus daqui.
Faz-se mister dizer que nenhum dos eventos
relacionados ao Êxodo na narrativa bíblica, entre os quais as pragas do Egito e
o evento do Mar Vermelho, em que o exército egípcio foi afogado, deixou
qualquer sinal nos registros egípcios. De fato, há aspectos da história muito pouco
convincentes, como a fuga de aproximadamente 2 milhões de pessoas (600 mil
homens, incluindo mulheres e crianças).
Ex. 12: 37. Os
israelitas foram de Remessés até Sucote. Havia cerca de 600 mil homens a pé,
além de mulheres e crianças.
Num 1:46. Todos os contados
eram seiscentos e três mil e quinhentos e cinqüenta.
Ora, não seria de esperar que um grupo tão imensamente
numeroso que estivesse deixando o Egito nos legasse algum vestígio histórico?
Segundo Mckenzie (p. 69), esse número equivalia a quase um terço da população
egípcia à época. Deveríamos levar em conta as dificuldades de sobrevivência
dessa multidão, durante quarenta anos no deserto do Sinai? Mckenzie (p. 70) diz
ainda haver dúvidas, do ponto de vista arqueológico, sobre a veracidade histórica
da Conquista de Canaã. Os estudos arqueológicos indicam que cidades como Jericó
e Ai tinham poucos ou nenhuns habitantes durante o período em que elas
supostamente teriam sido conquistadas pelos israelitas.
Das considerações desses fatos, é preciso, pois, concluir,
com Mckenzie, que a Escrita da História da antiga Israel tratava-se de um
“prestar de contas do passado”, para, dessa forma, explicar o presente. Em seu
trabalho, o historiador antigo procurava determinar as responsabilidades por e
fazer julgamentos sobre as ações pretéritas da nação israelita. Observa o
autor, no tocante à intenção dos historiadores antigos, o que se segue:
“(...) os
historiadores antigos escreviam para firmar pontos políticos ou teológicos.
Eles não eram repórteres objetivos, tinham interesses pessoais a defender”.
(p. 36)
E cabe acrescentar: defender seus interesses constituía a
razão principal por que escreviam.
Os hebreus quase nunca são mencionados nos registros dos seus
poderosos vizinhos (como o Egito e a Mesopotâmia), de modo que o confronto
entre os relatos bíblicos e outras fontes torna-se praticamente inviável. Por
exemplo, o nome de Abraão não figura em nenhum documento da Mesopotâmia, e
Moisés não é referido nos registros egípcios. Portanto, a descendência de
Abraão, que é aceita pelo judaísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo, tem
mais valor simbólico do que propriamente histórico.
Em Canaã, cada reino tem um deus protetor, e a população se
vale de suas qualidades políticas ou guerreiras. O Israel monárquico abrigava
seu único deus, assim como os moabitas tinham Quemosh; e os edomitas, Quaus.
Esses deuses e homens partilhavam um mesmo território; e os reinos e panteões
também eram muito próximos. A Palestina do século VIII a.C., sob a dominação
assíria, era dividida entre os fenícios, samaritanos, filisteus, amonitas,
moabitas, edomitas e judeus. Por vezes, havia rivalidade entre esses povos,
fusões e alianças dinásticas. Jeová, evidentemente, tomava parte desse jogo
político. Ele serviu de instrumento para a constituição de uma unidade que se
desenvolveu pela ação das forças locais.
Os antigos hebreus viviam, portanto, num universo politeísta;
mas não podemos ignorar o fato de que, conforme nota Debray, politeísmo e
monoteísmo se influenciavam mutuamente:
“O politeísmo, na
abordagem polimorfa do divino, é mais monoteísta do que se crê, e o monoteísmo
é sempre um pouco mais politeísta do que pretende fazer crer (o uno se encontra
no múltiplo e o múltiplo permanece no uno). A lenta emergência realiza-se por desencaixes
sucessivos, a partir de uma religiosidade-mãe na qual cada cultura vem beber e
desenvolver o melhor elemento (o que mais lhe convém). O Eloim de Jerusalém
prolonga e sublima o El cananeu (...). Assim, nós chamamos de monoteísmo a uma
monolatria transformada.”.
(p. 59)
Não obstante essa “osmose” entre o politeísmo e o monoteísmo
no Antigo Oriente Próximo, a religião dos hebreus diferiam das religiões de
seus povos vizinhos fundamentalmente por interpretar e registrar campanhas
militares como História Sagrada. A luta dos hebreus acontecia numa Terra Santa
prometida por Deus a Abraão e a Moisés em Canaã. O Deus dos antigos israelitas
se revelava no tempo e no espaço. “Só há um Deus” (Isaías 45:5) e Israel
deveria adorar apenas ao Senhor (Êxodo 20: 3).As demais nações podiam adorar
outros deuses, mas o povo escolhido para habitar a Terra Prometida não estava
autorizado a adorar outro deus senão o Senhor.
Saliente-se, ainda, que, segundo Amstrong (2008, p. 28), os
patriarcas de Israel (Abraão, Isaac e Jacó) provavelmente não eram monoteístas.
“Na verdade,
provavelmente é mais correto definir esses primeiros hebreus como pagãos que
partilhavam muitas das crenças religiosas de seus vizinhos. Decerto,
acreditavam na existência de divindades como Marduc, Baal e Anat. Talvez não
adorassem a mesma divindade; é possível que o Deus de Abraão, “Temor” ou
“Parente” de Isaac e o “Poderoso” de Jacó fossem três deuses distintos”.
(pp. 28-29)
6. O que concluir?
Estou consciente do fato de que o Deus mais familiar a uma
maioria dos que vivem no Ocidente é o Deus cristão. O Cristianismo legou-nos
uma outra imagem de Deus, a de um Deus dotado de uma personalidade diferente da
personalidade do Deus judaico. Com o advento e desenvolvimento do cristianismo,
não se tratava mais de um Deus dos Exércitos, mas de um Deus de amor e
misericórdia para com todos, inclusive para com os inimigos. Eu não poderia,
num só texto, pretender dar conta da versão de Deus fabricada pelo
cristianismo. Lembro que meu propósito foi revistar as origens, ir às raízes da
História do “EU SOU”.
Uma estimativa feita por David Barret, professor da
Universidade de Regent e especialista em estudos de religião, aponta que devem
existir mais de 10 mil religiões no mundo. Um cristão que afirme que Deus
existe terá de admitir logicamente serem falsas as alegações das outras 7 mil
religiões, excluindo-se das 10 mil religiões o judaísmo e o islamismo. Estou
simplificando, evidentemente (os três monoteísmos não concordam em todos os
aspectos doutrinários). De qualquer modo, conhecendo a história do Deus
judaico-cristão, não há razões para acreditar que somente ele esteja
credenciado a ocupar o cargo de única divindade verdadeira. Não são os deuses,
mas os homens que fazem a História.
Quem quer que afirme “Deus existe” só o faz, esperançoso de
que esta proposição descreva um fato do mundo, por ignorar as condições
sócio-históricas e ideológicas que tornaram possível a enunciação desse
enunciado. Um exame acurado da História do surgimento e do desenvolvimento da
fé em um único Deus não oferece evidências para dar àquele enunciado
sustentabilidade empírica; muito pelo contrário, pode encaminhar conclusões que
o tornam escandalosamente fraudulento.
O ateísmo não precisa ser ofensivo e corrosivo, mas precisa
ser esclarecido; e tanto mais esclarecido será quanto mais se demonstrar
permeável aos conhecimentos produzidos por pesquisas empreendidas pelos
estudiosos cujos trabalhos se alinham com o método histórico-crítico de
interpretação e compreensão da Bíblia e da História dos cristianismos
primitivos.