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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

“A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. (Karl Marx)

                                           




                                     



                Resenha crítica de O manifesto comunista

 

 1. Karl Marx


Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis. O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo – tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo, porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.

De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética; no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.  Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas condições reais de existência.

Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo de Marx.

Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.

Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no desenvolvimento da filosofia marxista.

 

 

2. Materialismo histórico

 

Impõe-se-nos esclarecer agora o materialismo histórico. Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.

A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva  segundo a qual a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.

O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.

A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura, a segunda das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral.

Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.

 

 3.  Marxismo

 

Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política, considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e Friedrich Engels.

O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.

 

 

4. O Manifesto  do Partido Comunista: apresentação da obra e de sua estrutura

 

O livro Manifesto do Partido Comunista (doravante, Manifesto) foi redigido por Marx em co-autoria com Engels. Esse trabalho é, a par de O Capital, um marco do desenvolvimento do marxismo. O texto do Manifesto foi responsável por desencadear um movimento comunista moderno muito similar a outros muitos que ocorreram a partir de meados do século XIX. Escrito em 1847 e assumido na íntegra pela Liga dos Comunistas, que se compunha de exilados alemães, o texto do Manifesto veio a lume em 1848, período em que a Europa foi tomada por várias convulsões sociais. Tendo sido derrotado o movimento revolucionário, o Manifesto caiu em ostracismo e assim permaneceu por pelo menos uma década.

Quando a tendência que no Manifesto encontrava sua base teórica – o socialismo científico – tornou-se hegemônica relativamente às demais tendências socialistas, durante a Primeira Internacional (1864-72), Marx passou a ser o grande expoente do movimento comunista. O Manifesto se diz “do Partido Comunista”, porquanto destinado a essa entidade, que não era mais que uma pequena seita clandestina de refugiados. Ao longo da história, os partidos trabalhistas se utilizaram do texto como uma espécie de catecismo destinado à formação política de seus militantes, os quais não chegaram a se assumir como membros representantes de um “partido comunista”, pelo menos até a eclosão da revolução bolchevique em 1917.

O Manifesto é considerado o texto fundador do marxismo e, estruturando-se com base na famosa tese segundo a qual o motor da história é a luta de classes, se pretende um programa político dos comunistas que, àquela altura, já gozavam do poder.

Já de início, o texto dá-nos testemunho de que o comunismo já era conhecido como força política por todas as grandes potências da Europa. Ademais, em consonância com sua natureza, o Manifesto convoca os comunistas a revelar ao mundo inteiro sua visão de mundo, seus objetivos e suas tendências, de sorte que, afirmando-se enquanto agentes políticos, que pretendiam a revolução social, assumissem o combate às falsas concepções comuns, à época, sobre o comunismo.

O Manifesto se compõe de quatro capítulos, o primeiro dos quais, estampando o título Burgueses e Proletários, se destina ao exame da forma antagônica e permanente em que se manifesta o movimento histórico, qual seja, o antagonismo entre burgueses e proletários. È nesse capítulo que encontramos a emblemática asserção que constitui o cerne do método de análise do materialismo histórico, segundo a qual “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”.

Cumpre destacar que, embora reconhecida pelos autores como uma classe que protagonizou, na História, um significativo movimento revolucionário, lançando por terra as relações feudais, patriarcais e idílicas, a burguesia moderna, não podendo subsistir sem revolucionar também, incessantemente, os instrumentos de produção, as relações de produção e todas as relações sociais, se mostrou incapaz de abolir os antagonismos de classe; pelo contrário, ela produziu uma outra classe – a dos proletários – que, sendo produto do desenvolvimento da própria burguesia, se lhe estabeleceu em oposição.

O segundo capítulo, intitulado de Proletários e comunistas, tem como ponto de partida a questão sobre a relação que devem manter os comunistas com os proletários. Nesse tocante, o texto ressalta que os comunistas não constituem um partido oposto aos outros partidos operários, que os interesses dos comunistas não diferem dos interesses do proletariado em geral. O objetivo precípuo dos comunistas é, portanto, o mesmo objetivo perseguido pelos diversos partidos proletários. Esse objetivo se desdobra em três momentos: constituição do proletariado em classe; derrubada da hegemonia burguesa; e conquista do poder político pelo proletariado. Nessa seção, também se definem o comunismo e o capitalismo, tomado o primeiro em declarada oposição ao segundo.

Na tentativa de definir e esclarecer as bases teóricas em que se sustenta o movimento comunista, Marx & Engels se defendem contra a suposição – equivocada, segundo eles – de que os comunistas estariam interessados em abolir a propriedade privada.

No terceiro capítulo – Literatura socialista e comunista -, os autores passam em revista as formas assumidas pelo socialismo, ao longo da História, para o que eles se debruçam sobre a literatura socialista. Ao longo dessa tarefa, são discriminados e comentados o socialismo reacionário, o qual compreende o socialismo feudal, o socialismo pequeno-burguês e o socialismo alemão; o socialismo conservador ou burguês e, por fim, o socialismo e comunismo crítico-utópicos. Ainda que este último tenha logrado alguns avanços em sua empresa, quando cotejado com as formas anteriores de socialismo, todos teriam fracassado na tentativa de, transformando a base material da sociedade, conduzir o proletariado ao poder.

O quarto e último capítulo, cujo título é Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição, encerra a tentativa de situar os comunistas relativamente aos diversos partidos que, no movimento da História e por toda a Europa, insurgiram-se contra a exploração burguesa. Assim é que, reiterando o objetivo central do movimento comunista – a luta pelos interesses da classe proletária – os autores afirmam o compromisso dos comunistas com a defesa e a representatividade das diversas bandeiras com as quais se desfralda o comunismo em diversos países da Europa, não sem descurar de reconhecer aqui e ali quem, dentre os credenciados a aliados, estão a defender verdadeiramente os objetivos do comunismo e, consequentemente, do proletariado, e quem, apresentando-se como representantes da causa, conservam ainda a mentalidade e as condições constituídas pela classe a cujos privilégios os comunistas se opõem.

 

 

5. Comentário crítico

 

Não parece haver dúvida de que o Manifesto constitui um marco na consolidação do que se consagrou chamar de marxismo. Nesse texto, é notável o esforço empregado pelos autores em traduzir em formas práticas o que até então se apresentava como apenas um método de análise histórica – o materialismo histórico. No Manifesto, o materialismo histórico assume a sua força intervencionista no movimento histórico, sem descurar de articular dialeticamente os domínios que já se topavam na origem da constituição desse método: teoria e prática.

O texto, no entanto, não deve sua força, seu impacto à sua alegada cientificidade. Essa força parece dever-se mais à sua retórica, cujo efeito de persuasão assemelha-se à de um texto sagrado.

No momento em que o texto, fixando o lugar dos comunistas na arena histórica, identifica seu adversário – o capitalismo -, ele o faz de modo um pouco apocalíptico. O capitalismo, conquanto dotado de uma realidade objetiva, constitui uma etapa do desenvolvimento histórico, que a revolução comunista trataria de superar. O ter convertido em dogma a inevitabilidade da revolução comunista constitui um problema que parece ter passado ao largo da percepção dos autores. A própria crença de que a história tem um sentido, que se expressa na forma de lutas incessantes de classes, explica o ter assumido como dogma a consolidação da vitória do proletariado sobre a burguesia.

Cuidamos que o Manifesto não deve ser lido como um documento que desvela a inevitabilidade da direção tomada pelo movimento histórico. O programa do comunismo de Marx e Engels e com ele seus valores humanistas devem ser contemplados em consonância com as possibilidades históricas que se faziam presente à época.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 26 de março de 2021

"De todas as coisas tenazes, porém, certamente não há nada mais tenaz do que a burrice" (Casanova)

   
               
 

 

                               Ideologia: múltiplas perspectivas

 

1. Bolsonarismo e ideologia de gênero

 

Há algum tempo, me ressenti da carência de uma abordagem sistemática e acurada do fenômeno da ideologia em meu blog. Discorrer sobre o assunto e disponibilizar as articulações e interpretações que fiz a respeito dele, na forma de um texto que instrua o público em geral, se faz tão necessário quanto oportuno num momento histórico em que o nosso atual Presidente da República não cessa de propalar sua rejeição do que chama – por pura ignorância, diga-se de passagem - “ideologia de gênero” e de insistir em que seu governo não se orienta por um “viés ideológico” que, para ele, é uma herança nefasta da esquerda. Casanova, em seu A persistência da burrice (2020, p. 69), no tocante ao uso indiscriminado do termo “ideologia”, que Bolsonaro, mormente, faz, observa o seguinte:

 

(...) de uma maneira estranha, a palavra ideologia tornou-se um vocábulo muito usado para desqualificar adversários, por mais que invariavelmente tal desqualificação acontece por meio de uma determinada posição francamente ideológica – no sentido marxista do termo.

 

Decerto, sempre que ouço a expressão “ideologia de gênero” proferida por Bolsonaro, se me afigura que sua ocorrência é um sintoma de um discurso ideológico que se produz, que se faz e se mostra paradoxalmente “escamoteado” através de e num sujeito que desconhece a natureza ideológica do discurso do qual ele se crê a fonte, a origem. Uma interpretação orientada pelos conceitos e métodos da Análise do Discurso patentearia como o discurso de Bolsonaro, ou melhor, o discurso em que se inscreve a posição-sujeito representada por Bolsonaro, é ideológico mesmo no sentido pejorativo do termo. Mas não cabe aqui desenvolver uma análise crítica do discurso de Bolsonaro à luz do aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso. Será suficiente, por ora, enfatizar que Bolsonaro, quando diz que vai combater toda “doutrinação ideológica” (nas escolas, por exemplo) , ignora o fato de que, para dizer-se como sujeito, ele precisa inscrever seu dizer numa formação ideológica.  Nesta etapa de minhas reflexões, faço uso deliberado do termo “ideologia” sem me preocupar em especificar em que sentido o considero. Mas há que ficar claro que a ideologia estará sendo pensada como a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. Portanto, situo o conceito de ideologia na conjuntura teórica da Análise do Discurso. Nessa área de estudos do discurso, o conceito de ideologia varia também segundo os teóricos que o empregam. Ademais, o próprio conceito se constitui dialogicamente por remissões a contribuições de outros estudiosos/ filósofos/sociólogos, que não se ocupam diretamente com a questão do discurso. Por exemplo, as contribuições de Louis Althusser, que é marxista, influenciaram diretamente a concepção de ideologia nos trabalhos do filósofo e analista do discurso Michel Pêcheux. Para Pêcheux, ideologia e inconsciente se articulam na forma de estruturas-funcionamentos, de sorte que a ideologia (tal como o inconsciente) dissimula sua existência no modo como funciona, produzindo o efeito de evidência do sujeito e dos sentidos. Ou seja, “evidência do sujeito” significa que já somos sempre sujeitos, em função da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia (Althusser). A ideologia funciona na relação necessária entre a Linguagem e o mundo. Não há, de acordo com essa perspectiva, realidade sem ideologia. Buscarei, mais adiante, lançar mais luzes sobre a compreensão de ideologia em Análise do Discurso.

 Claro que Bolsonaro nunca deve ter ouvido falar dos estudos em Análise do Discurso  e – o que é mais grave, dado seu efeito político imediato e prático – ele ignora completamente a problematicidade conceitual e teórica à qual corresponde a historicidade do termo. Consoante tentarei mostrar, o conceito de ideologia não é unívoco, monossêmico; ao contrário, sua semanticidade foi construída, reconstruída, ao longo da história, pelo concurso de inúmeros discursos teóricos sobre ele. E como toda palavra, “ideologia” não tem sentido em si mesma, mas deriva seu sentido da formação discursiva em que se inscreve, de modo que precisamos estar atentos aos efeitos de sentido que sua ocorrência produz. Por isso, a despeito das “cristalizações semânticas”, historicamente produzidas, os sentidos não estão engessados, já que os sentidos não se acham nas palavras, mas só existem porque há interpretação, só existem como efeitos de sentido no discurso. Para os que, como eu, dedicam sua vida à formação acadêmica, aos estudos aturados e rotineiros, ao convívio íntimo e desinibido com os livros, causa certo embaraço ou incômodo o uso de termos técnicos na fala de quem não se preocupa – deliberadamente ou por insipiência – em precisar, em delimitar a intensão do conceito que aqueles termos descrevem.

É igualmente inegável que Bolsonaro e a maioria de seus apoiadores, não sabendo precisar o que querem dizer com “ideologia”, usam esse termo como um rótulo para simplesmente desqualificar toda posição política, toda “visão de mundo” divergente da sua. Para Bolsonaro e seus apoiadores, toda tomada de posição alinhada com a esquerda política é ideológica, menos, é claro, as práticas discursivas da direita ultraconservadora com as quais ele se identifica. Estou consciente dos riscos que cercam a produção deste texto, um dos quais é a limitada audiência que ele poderá alcançar, outro é a incompreensão ou ruídos que ele pode gerar nessa audiência. Mas o maior risco não é que venha a ser objeto de alguma censura (de uma censura política?), mas que não logre algum êxito no enfrentamento da burrice que se institucionalizou neste país. Escrevo como Sísifo a carregar continuamente sua pedra para o alto da montanha depois de a ter de buscar na estepe, para recomeçar seu trabalho. Tenho plena consciência de que meu lugar de fala é o da academia – de um lugar, portanto, que se estrutura em torno do pensamento crítico -, que não assumo, pelo menos não explicitamente, qualquer posição político-partidária, embora o próprio tratamento que dou ao tema “ideologia”  tenha pressupostos políticos. Não há discurso neutro! Ouso escrever, pois; mas não sem reconhecer que, como ensina Casanova:

 

De todas as coisas tenazes, porém, certamente, não há nada mais tenaz do que a burrice. A economia de suas energias se renova a cada instante, seus arroubos se completam a cada gesto, seus fluxos se ampliam com o movimento respiratório de suas correrias. A burrice não se deixa instruir, não sabe se atenuar, não aceita se calar e a tudo se atira com sete pedras nas mãos. (ibid., p. 116, grifos meus).

 

Antes de me debruçar sobre a discussão do tema da ideologia com o fito de dar a conhecer ao leitor, a partir de certo recorte metodológico, como alguns autores pensaram e definiram esse conceito, vou dispensar atenção, por algum tempo, à questão da operacionalidade ideológica da expressão “ideologia de gênero” que figura numa amostra de discurso de Bolsonaro. O excerto abaixo é parte de um discurso de Bolsonaro na Marcha para Jesus, realizada no dia 10 de agosto de 2019. Na ocasião, Bolsonaro falava a evangélicos. Ao término desta fala, Bolsonaro foi ovacionado pelos que o ouviam.[1]

 

“Não existe essa conversinha de ideologia de gênero. Isso é coisa do capeta. O Estado é laico, mas eu, Johnny Bravo, sou cristão”.

 

A primeira lição importante, que nos vem das contribuições da Análise do Discurso, é que a linguagem não é transparente, e os sentidos não são conteúdos que se encontram nas palavras em si; mas são efeitos de sentido que se produzem aquém e além delas. A literalidade é um efeito da imersão do dizer no anonimato; em outras palavras, embora estejamos habituados a nos preocupar em apreender “o sentido literal” das palavras, esse sentido é, na verdade, um efeito do modo como a ideologia, tal como a entende a Análise do Discurso, opera. A ideologia funciona como memória e esquecimento. Assim, somente quando nos esquecemos de quem disse, quando, onde e porque o disse, é que a ideologia produz o efeito de evidência do sentido, ou seja, é que produz em nós a crença num sentido já dado, já fixado de antemão. A segunda lição importante que devemos reter é que as palavras, não tendo sentidos fixos em si mesmas, mudam de sentido quando são transportadas de uma formação discursiva para outra. Definirei, mais adiante, o que é formação discursiva. Importa ter em mente que as palavras mudam de sentido segundo as posições do sujeito.

Considerando-se o exposto acima, para um analista do discurso, não importa o que um sujeito diz ao empregar, por exemplo, como o fez Bolsonaro, “conversinha”. O vocábulo “conversinha” é, por sua estrutura morfêmica, pejorativo. A pejoratividade é um traço semântico carreado pelo sufixo “-inho” quando de sua articulação à base “conversa” (exemplos correlatos da pejoratividade de “-inho” são as palavras “mulherzinha”, “professorzinho”, “livrinho”, etc). Não se trata de simplesmente compreender que “conversinha” designa “lengalenga”, “conversa fiada”. A questão importante a levantar é: que efeitos de sentido se produz ao dizer “conversinha” numa dada formação discursiva? Devemos levar em consideração o fato de que o sujeito do fragmento discursivo que está sendo submetido à análise não é um sujeito psicológico, um Cogito transparente a si mesmo. Tampouco é o indivíduo empírico que responde pelo nome de “Bolsonaro”. O sujeito, em Análise do Discurso, é uma posição, um lugar. E o sujeito se submete à língua e à história para poder se constituir como tal e para produzir sentido. Sabemos que o sujeito bolsonarista se identifica com determinadas formações discursivas que se articulam internamente em formações ideológicas “conservadoras” alinhadas com o projeto político da extrema direita. O emprego de “conversinha” esvazia a seriedade, a importância, a legitimidade dos estudos de gênero. “Conversinha” instaura um objeto-de-discurso que recategoriza, desqualificando, o referente tácito, silenciado “estudos do discurso”, que, por sua vez, é recategorizado como “ideologia de gênero”. Mesmo que o sujeito bolsonarista não esteja consciente dos sentidos produzidos no uso da expressão “ideologia de gênero”, está claro que é o sentido pejorativo do termo “ideologia” que está sentido reativado, recuperado, ressignificado. Veremos que, entre muitos autores que teorizaram sobre o fenômeno da ideologia, vários conservaram, em certo sentido, o caráter pejorativo do termo que remonta à ressignificação feita dele por Napoleão e, sobretudo, por Marx, que, por seu turno, se aproveita do significado pejorativo consagrado por Napoleão. Entendo que “ideologia de gênero” é, para Bolsonaro, uma prática doutrinária deformadora e ameaçadora (trata-se de um gesto de interpretação que faço, que não é, de modo algum, o único possível!). Mas o que essa prática supostamente ameaça? Ameaça “a família tradicional” (patriarcal) e os “valores cristãos” (ou ocidentais). A expressão “ideologia de gênero” se inscreve numa formação discursiva marcada pelo embate com as posições “comunistas” ou “esquerdistas”, que o sujeito bolsonarista acredita rondar as esferas de poder do Estado, sempre prontas para tomá-las de assalto. Mas essas posições comunistas e “esquerdistas” são representadas, recriadas,  ou mesmo construídas imaginariamente na trama ideológica do discurso bolsonarista.  Tendo a concordar com Ghiraldelli (2019, p. 67), quando diz que “os conservadores não querem ouvir falar em estudos de gênero”. Os partidários da extrema direita não só não querem ouvir falar, mas querem silenciar as vozes engajadas nos estudos críticos de gênero. O uso que fazem da expressão “ideologia de gênero” é uma forma de silenciar, de apagar essas vozes que os contradizem, de silenciar esses atores sociais que se engajam discursivamente na produção de um trabalho contraideológico, contra-hegemônico. É preciso ver aqui um exemplo claro do fato, apontado por Bakhtin, de que cada palavra é uma arena de luta, de entrecruzamento de valores sociais, de posições, de interpretações contraditórias.

Minha proposta de análise não se pretende, de modo algum, exaustiva, e nem poderia sê-lo, porquanto o discurso jamais se fecha. Por isso, vou-me circunscrever a fazer algumas breves considerações sobre a identificação afirmada pelo sujeito bolsonarista com o personagem de desenho animado “Johnny Bravo”, criado em 1997 por Van Partible. Sabe-se que Johnny Bravo – trata-se de um saber que se supõe compartilhado com o interlocutor – é conhecido por seus golpes de karatê, sua forte atração por mulheres e garotas bonitas. Além disso, o personagem é egocêntrico, vaidoso e mulherengo, embora costume ser rejeitado por quase todas as garotas que tenta conquistar. E a rejeição se deve à sua estupidez e a seus modos desagradáveis. Johnny Bravo simboliza o “macho alfa”. Mas ele é burro, infantil, socialmente inapto e narcisista. Ele é o paradigma do que poderíamos chamar, no jargão feminista, de “masculinidade tóxica”. Ao se identificar com “Johnny Bravo”, o sujeito bolsonarista quer ser interpelado como tal (“Johnny Bravo” é usado como “vocativo”). Assim, ele parece dizer, implicitamente, “podem me chamar de Johnny Bravo”, ou seja, de macho alfa, mas também de egocêntrico, burro, narcisista e socialmente inapto! Estranhamente, essa imagem de si construída discursivamente não se ajusta bem à imagem de cristão que o sujeito também constrói para si mesmo. Mas essa combinação de imagens antagônicas e/ou conflituosas esvazia de fidelidade o compromisso do sujeito bolsonarista com o cristianismo de quem ele se afirma como adepto. O sujeito bolsonarista se associa com o cristianismo como quem se identifica com um slogan por conveniência político-ideológica; quero dizer, falta-lhe a adesão de um típico devoto. Por fim, chamo a atenção para o momento em que Bolsonaro diz “O Estado é laico, mas eu (...) sou cristão”. Nesse momento, o sujeito, que é uma posição-sujeito, se desindentificando com o Estado, do qual, constitucionalmente, ele é o maior representante, afirma seu compromisso (ideológico) com os interesses da instituição cristã e com sua moral. Mas o que é “dito” nos silêncios entre as palavras é muito mais que isso: o sujeito bolsonarista se desobriga de guardar a laicidade (formal, é verdade) do Estado; não responde por ela. Como sujeito político e Presidente da República, ele deveria posicionar-se como quem está disposto a garantir a liberdade de culto religioso, como quem garante a expressão da diversidade de credos, inclusive a liberdade de expressão de ateus e agnósticos. É isso que parece estar em jogo e que o sujeito bolsonarista parece recusar. A laicidade do Estado é, na própria Constituição, objeto de controvérsia. O próprio artigo 19 da Constituição é desrespeitado, na prática, por nossos representantes de Estado. Mas este é um terreno de discussão sobre o qual não vou me alongar. Na próxima seção, passo a discorrer sobre o que nos ensinam os “estudos de gênero”.

 

2. O gênero como constructo social

 

Louro (2012, p. 25) aduz-nos, de modo claro e sucinto, a que se propõem os estudos de gênero, no seguinte passo:

 

È necessário demonstrar que não são apropriadamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é o feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente os sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos.

 

Urge aqui notar que os estudos de gênero se filiam a trabalhos de feministas anglo-saxãs que passaram a fazer uso do termo gender como distinto de sex. Duas expoentes se destacam nessa seara: Simone de Beauvoir e Judith Butler. Portanto, é nesse contexto marcado por profunda contestação que se buscará desconstruir o caráter permanente da oposição binária ‘masculino’ e ‘feminino’, com base no pressuposto segundo o qual a sexualidade é uma construção histórica, uma invenção social, porquanto ela se constitui a partir de múltiplos discursos sobre o sexo – discursos que regulam, que normalizam, que instituem saberes, que produzem “verdades” (é evidente aqui a influência decisiva de Foucault). Com a introdução e definição do conceito de gênero, o que os estudiosos e as estudiosas se esforçam por criticar e combater é o essencialismo suposto nas maneiras instituídas de definir a identidade sexual, de operar distinções, avaliações sobre os modos de manifestação social da sexualidade. O essencialismo, nesse contexto teórico, consiste na tendência que os atores sociais têm de caracterizar certos aspectos da vida social como tendo uma essência – natural ou cultural -, que é, por definição, fixa, imutável. Essencialismo é, portanto, aqui, um erro, um equívoco, pois caracteriza a tendência comum de usar categorias sociais como se fossem categorias biológicas.

O gênero é uma construção social. O gênero designa comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que se inscrevem culturalmente no corpo sexuado. O corpo, como pensado nessa perspectiva teórica, não é apenas uma totalidade orgânica, biológica. Ele é provisório, mutável, suscetível a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento científico e tecnológica de cada sociedade. O corpo é um constructo cultural, porquanto é afetado, moldado, constituído pelas leis, pelos códigos morais, pelas representações que a sociedade produz sobre ele, pelos discursos que se produz e se reproduz sobre ele. O corpo é o que se diz dele. Entreponho aqui uma nota de esclarecimento. Ao dizer que as “representações” intervêm na fabricação cultural dos corpos sexuados, entende-se por representação um modo de produção de significados, processo este que se dá por meio da linguagem e que implica, necessariamente, relações de poder. Representação recobre as práticas de significação e os sistemas simbólicos através dos quais os significados – que nos permitem constituir e compreender nossas experiências e o que nós somos – são constituídos. Portanto, o corpo é constituído pela linguagem, pelos discursos. A linguagem tem o poder de nomeá-lo, classificá-lo, de definir-lhe normalidades e anormalidades, de instituir o que é considerado um corpo belo, jovem e saudável.

Em nome da saúde e do bem-estar do indivíduo, o corpo passou a ser o escopo de diversos dispositivos disciplinares, ou seja, de um conjunto de saberes e poderes que produzem seus efeitos no corpo e nele se instauram. Vejam-se, por exemplo, as aparelhagens para corrigir as anatomias defeituosas, os banhos de mar, as medições e classificações dos segmentos corporais, a modelagem do corpo pela atividade física, a classificação das paixões, a distinção do que seriam “desvios” sexuais, etc. Tudo isso compõe um conjunto de saberes e práticas orientados para a educação da gestualidade, a correção do corpo, para a sua assepsia e limpeza. O corpo, portanto,  não é só um sistema orgânico com funções e órgãos, é também o conjunto de signos que compõe sua produção. Por exemplo, a ciência do século XIX que classifica e analisa o corpo vai legitimar uma educação do corpo que visa a torná-lo produtivo e útil. O século XIX constrói o “corpo produtivo” – aquele corpo que não pode desperdiçar suas energias, suas forças, já que ele deve estar apto e bem disposto para o trabalho nas fábricas. O corpo é, então, representado, nos discursos desse momento histórico, como uma máquina produtora de energias.

Os estudos de gênero são, portanto, movimentos contraideológicos, se constituem discursivamente como atos de resistência, na medida em que buscam nos fazer entender que as próprias instituições (suas práticas e redes simbólicas), os símbolos, as normas, os saberes, poderes, leis e práticas políticas de uma sociedade são atravessadas e constituídas por representações (significados) e pressupostos (ideologias) que definem o feminino e o masculino e, ao mesmo tempo, produzem e/ou ressignificam as representações do feminino e do masculino.

A esta altura, convém lembrar que o poder, para Foucault, é produtivo. O poder não funciona apenas por coerção; o poder produz sujeitos, corpos,  saberes, molda e induz comportamentos. Homens e mulheres não se constroem apenas através de mecanismos de repressão ou censura; eles se fazem, se produzem em práticas e em relações que instituem e lhes fixam gestos, modos de ser e estar no mundo, formas de agir e de falar, formas de conduta e de posturas apropriadas. Portanto, os gêneros se produzem nas e pelas relações de poder. Os gêneros se constroem nas relações sociais. Gênero recobre a noção de que, ao longo da vida, em função da atuação das mais diversas instituições e práticas sociais e simbólicas, nos constituímos como homens e mulheres, num processo que nunca é linear, progressivo ou harmônico, e que também nunca está finalizado e completo, já que é uma dimensão de nossa socialização secundária que jamais se completa e que só termina quando morremos.

É sumamente importante que renunciemos a acreditar que “feminino” e “masculino” são categorias biológicas; “masculino” e “feminino” são categorias sociais. Rechaçam-se as afirmações essencialistas, em consonância com as quais existe para todo sempre naturalmente uma oposição binária permanente entre “masculino” e “feminino”. Toda identidade sexual é um constructo, não existe sem negociação ou construção cultural. O conceito de gênero, no quadro teórico dos estudos sobre ele, descerra, portanto, um horizonte de questões e problemas que acenam para o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. Como adverte Ghiraldelli (ibid., p. 63-64), “a direita insiste na ideia de que “sexo é algo biológico” e que só há dois gêneros, masculino e feminino”. E, indo contrariamente às alegações dos estudiosos de gênero, os ultraconservadores definem o masculino e o feminino “por resultados de uma averiguação bem antiquada: há de se encontrar “vagina” e “pênis”, e isso tira qualquer dúvida sobre o que somos e o que podemos ser” (ibid., p. 64).

É claro que, como lembra Ghiraldelli, a direita e, especialmente, a extrema direita ignora completamente do que tratam os estudos de gênero. Os estudos de gêneros são consoantes com o que nos ensina Sloterdijk, que rejeita a dualidade entre cultura e biologia, para esposar uma visão da constituição do homem calcada em “antropotécnicas”, isto é, em técnicas de geração do humano que o próprio homem cria e de que se utiliza. O homem se faz homem. O homem se faz, se constitui a si mesmo.

E se tudo o que se disse até aqui for insuficiente para convencer os espíritos obtusos que, teimosamente, insistem, como o fazem os bolsonaristas e o próprio Bolsonaro, com quem eles compartilham a parvoíce, em apoiar suas alegações essencialistas sobre sexualidade na biologia, na natureza, faço um apelo a que não ignorem as evidências contrárias que nos dá a própria natureza, os próprios organismos naturais (os animais não humanos, as plantas). Quando atentamos para a ordem natural, encontramos um universo vasto de exemplos variados que torna insustentável a crença (ideológica) de que as funções sexuais de macho e fêmea são fixas e invariáveis.

Como nos ensina a bióloga Joan Roughgarden, em seu livro Evolução do gênero e da sexualidade (2005), um organismo não é apenas macho ou apenas fêmea durante sua vida inteira. Para o desagrado dos bolsonaristas e conservadores, a natureza e o seu Criador, o Deus judaico-cristão, segundo creem, contam-nos surpreendentemente que “o mais comum entre as plantas e talvez metade do reino animal é um indivíduo ser macho e fêmea ao mesmo tempo, ou em fases diferentes de sua vida” (ibid., p. 29). A força da experiência faz implodir até as raízes as construções ideológicas em que se organizam o discurso conservador que produz “verdades essencialistas”. Mesmo em condições naturais, não há apenas dois gêneros que corresponderiam a dois sexos. Consoante ensina a autora, “muitas espécies possuem três ou mais gêneros, com indivíduos de cada sexo ocorrendo de duas ou mais formas” (ibid., p. 30). Evidentemente, não espero que os conservadores e o homem comum se dobrem em face destes fatos, já que isso significaria que eles teriam de abandonar o solo ontológico ou metafísico em que se edificou a sua “visão de mundo” mais entranhada e costumeira. Isso significaria que teriam de renunciar a algumas de suas crenças fundamentais e existencialmente estruturantes, como a de que o mundo é criação de um Deus que fez o homem e a mulher e lhes deu uma natureza de macho e fêmea imutável. Não obstante, quando nos damos o trabalho de investigar como os organismos (os animais de outras espécies, e até as plantas) apresentam e expressam seu papel sexual, é difícil esquivar-se da descoberta de que há uma imensa variabilidade na expressão dos gêneros entre esses organismos. E mais, como diz a autora, somos forçados a reconhecer que “os conceitos de gênero e sexualidade que ouvimos desde crianças estão se tornando seriamente inúteis” (ibid., p. 34). Para os estudiosos de gênero, na verdade, já se tornaram!

Os conservadores e bolsonaristas – e na verdade, a maioria das pessoas – tomam “masculino” e “feminino”, “homem” e “mulher” como categorias biológicas e, frequentemente, se habituaram a apropriação ideológica das categorias de “macho” e “fêmea” para caracterizar comportamentos, papéis e identidade sexual. Mas é urgente desfazer algumas confusões impertinentes: “macho e “fêmea” são categorias biológicas, e o critério para classificar um organismo como macho e fêmea tem de ser suficientemente extensivo e funcional para recobrir desde baleias, algas marinhas até vermes e sequóias. Por outro lado, “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino” são categorias sociais. São as sociedades humanas, com suas instituições, com seus discursos, com seus sistemas simbólicos, com seus códigos morais, com suas leis, normas, que definem artificialmente, quem é homem e quem é mulher. Vale meditar sobre o que nos ensina a autora no seguinte excerto:

 

Quando se trata de humanos, o critério biológico de macho e fêmea não coincide 100% com o critério social atual de homem e mulher. Na verdade, usar categorias biológicas como se fossem categorias sociais é um erro chamado “essencialismo”. Essencialismo corresponde a passar a responsabilidade para outro. Em vez de tomar a responsabilidade por quem conta socialmente como homem e mulher, as pessoas dirigem-se para a ciência tentando usar os critérios biológicos de macho, para definir um homem, e de fêmea, para definir uma mulher. Entretanto, a definição de categorias sociais depende da sociedade, não da ciência, e categorias sociais não podem ser feitas para coincidir as biológicas a não ser por decreto”. (ibid., p. 25).

 

 

 Acolho, de bom grado, a advertência que faz a autora sobre a inconveniência teórica e política que consiste em confundir categorias sociais com categorias biológicas; mas a sugestão de que à ciência não compete definir as categorias sociais pode levar a crer que a ciência seria uma atividade desvinculada dos processos de institucionalização da sociedade. A ciência é um produto cultural, quem faz ciência são homens e mulheres situados historicamente como atores sociais. Entendo, portanto, que a ciência pode e deve contribuir para este e outros debates sociológicos, filosóficos, cujos efeitos políticos repercutem no modo como podemos organizar uma sociedade mais justa e menos opressiva. Feita essa ressalva, é certo que, biologicamente, o que define “macho” é o fato de produzir gametas pequenas; e o que define “fêmea” é o fato de produzir gametas grandes. O gameta pequeno é o espermatozoide; o gameta grande é o óvulo. Segundo Roughgarden (ibid.), “biólogos não reconhecem outra diferença universal entre macho e fêmea”. Nos mamíferos, em geral, os machos têm um cromossomo Y; todavia, há machos de algumas espécies de mamíferos que não comportam esse cromossomo. Em pássaros, répteis e anfíbios, o cromossomo Y não ocorre.

Roughgarden também nos dá uma definição de gênero, que ela estende a fim de que seja operacionalizável para explicar o comportamento sexual de outras espécies. Segundo a autora, “gênero é a aparência, o comportamento e a história de vida de um corpo sexual quando classificado com base no tamanho dos gametas que produz”. A autora propõe que se pense o gênero como uma categoria que nos ajude a compreender como um organismo usa sua morfologia, sua cor e forma, e seu comportamento para conduzir seu papel sexual. Mas ela lembra que “gênero”, quando circunscrito ao domínio da existência humana, diz respeito à “maneira como a pessoa expressa sua identidade sexual em um contexto cultural” (ibid., p. 28). E acrescenta: “gênero reflete tanto o indivíduo influenciando as normas culturais quanto a sociedade impondo suas expectativas sobre o indivíduo”.

Os fartos exemplos de intersexos em mamíferos parecem, no mínimo, sugerir que o Criador não se preocupa muito com nossas distinções sexuais baseadas na biologia. Cagurus-ratos são pequenos mamíferos que não são marsupiais, mas roedores nativos do sudoeste americano. Eles saltam com as patas traseiras à semelhança dos cangurus. Tais animais possuem muitos intersexos. Cerca de 16 % deles possuem dutos relacionados a espermatozoides e óvulos. Eles apresentam vagina, um pênis, um útero e testículos no mesmo indivíduo (Roughgarden, ibid., p. 39). Fêmeas de primatas, como galagos, primatas noturnos da África Central, que se assemelham a esquilos, possuem pênis. Todas as fêmeas das espécies galagos conhecidas possuem “um clitóris grande com uma uretra que se estende pela ponta, para que possam urinar por ela” (ibid., p. 42). Golfinhos listrados exibem genitais femininos juntamente com testículos e canais internos masculinos. Baleias franca possuem indivíduos com genitália externa feminina e glândulas mamárias, combinadas com cromossomos masculinos e testículos e canais internos masculinos. Todas as fêmeas da hiena pintada da Tanzânia possuem pênis muito semelhantes ao que possuem os machos. Segundo Roughgarden, “uma fêmea de hiena pintada cruza e dá à luz por meio do canal de seu pênis. Ao cruzar, a fêmea retrai o pênis para si mesma, “de forma muito parecida à de um puxar as mangas de camisas” e cria uma abertura onde o macho insere seu pênis”. (ibid., p. 40).

Mesmo em espécies cujos membros mantêm um único sexo por toda a vida, encontramos, frequentemente, papéis sexuais bastante diferentes do padrão esperado. Assim, em algumas dessas espécies, machos (independentemente de produzir espermatozoides) se comportam como fêmeas de outras espécies, e as fêmeas (independentemente de produzir óvulos) comportam-se como machos de outras espécies.

Ora, se a vida em estado “selvagem”, natural não pode fornecer um modelo normativo para legitimar a distinção binária da sexualidade humana em “masculino” e “feminino” como propriedades essenciais, então cabe a questão: como é possível que grupos religiosos cristãos e conservadores ainda insistam em legitimar essa distinção com base num modo de ser natural? Penso que a resposta a essa questão é bem encaminhada se consideramos a ideologia como uma relação imaginária dos indivíduos com sua existência. Creio que se deve buscar entender que, se as pessoas ainda insistem em explicar fenômenos com base em suposições equivocadas sobre o funcionamento do mundo, é que suas explicações são efeitos de um imaginário social, de cuja produção se encarrega a ideologia. A polaridade rígida dos gêneros calcada sobre a crença numa essência biológica é um efeito do modo como os animais humanos se relacionam imaginariamente com as suas condições reais de existência. Esse efeito é ideológico, no sentido de Althusser.

Consoante nota Eagleton, ao referir-se à concepção de ideologia de Althusser (1997, p. 30):

 

 

A ideologia para ele refere-se principalmente a nossas relações afetivas e inconscientes com o mundo, aos modos pelos quais, de maneira pré-reflexiva, estamos vinculados à realidade social.

 

Ao cabo desta etapa de minha discussão, está claro para mim que o homem comum e os apoiadores de Bolsonaro continuarão a repisar a ideia de que “estudos de gênero” é doutrinação ideológica, lavagem cerebral, engodo, porque, como lembra, com razão Ricouer (2008, p. 86), “(...) a ideologia é um fenômeno insuperável da existência social, na medida em que a realidade social sempre possui uma constituição simbólica e comporta uma interpretação, em imagens e representações, do próprio vínculo social”. É oportuno evocar aqui a contribuição de Ricouer, porque um dos traços que caracterizam a ideologia, segundo ele, é a sua operacionalidade. A ideologia é operatória; ela opera atrás de nós; jamais a possuímos como objeto de pensamento, mas é a partir dela que pensamos. Como código interpretativo, a ideologia é algo em que os homens habitam. Mas a ideologia não é apenas uma espécie de “falsa consciência” da realidade, conforme veremos. Apresso-me em me debruçar sobre a historicidade conceitual de ideologia doravante.

 

3. A ideologia: polissemia e perspectivas teóricas

 

Seria muito pouco factível listar e abordar separadamente os muitos autores que, ao longo da história, se dedicaram a teorizar sobre a ideologia. É imperioso estabelecer um “recorte”, um método para que o próprio trabalho que consiste em revisitar a plurivocidade do conceito de ideologia seja tanto menos árduo quanto menos confuso. O caminho esposado por mim é iluminado pela contribuição de John Thompson (2011), a quem devemos o mérito de distinguir entre duas concepções correntes de ideologia: uma concepção crítica ou pejorativa e uma concepção neutra. Evidentemente, essa distinção é bastante esquemática e ajuda-nos a reunir autores segundo sua vinculação com uma ou outra qualidade da concepção. Assim, por exemplo, Marx seria partidário de uma concepção pejorativa de ideologia, e Lênin tanto quanto Lukács e Gramsci estariam associados com uma concepção neutra. Segundo Thompson, a pejoratividade da concepção de ideologia decorre do fato de seus autores caracterizarem o fenômeno como ilusório, como capaz de produzir engano. Tais concepções pejorativas ou críticas de ideologia esteia-se na proposição segundo a qual “a própria caracterização de fenômenos como ideologia carrega consigo um criticismo implícito ou a própria condenação desses fenômenos” (Thompson, 2011, p. 73).

Por outro lado, a concepção neutra de ideologia não implica a suposição de que esse fenômeno é uma espécie de ilusão, ou que estaria ligado a interesses de alguns grupos sociais em particular. Uma concepção neutra de ideologia estriba-se na visão de que ideologia é uma dimensão da vida social entre outras. Assim, a ideologia pode tanto servir à manutenção de condições de opressão quanto à luta contra uma ordem social que se afigura injusta para os grupos dominados. Lênin, Lukács, Gramsci e alguns teóricos da Análise do Discurso, como Bakhtin comungam entre si dessa perspectiva.

Deve-se ainda acrescer que não é possível elaborar uma definição única e unívoca de ideologia, razão por que sempre que usamos o termo “ideologia”, em contextos de discussão teoricamente bem fundamentada, precisamos acenar com a perspectiva teórica na qual o situamos. É evidente que, nos domínios discursivos do senso comum e da política, esse cuidado com a precisão conceitual, com a delimitação do domínio de referência à luz do qual empregamos o termo, é sistematicamente ignorado. Mas devemos estar atentos quando essa negligência é proposital, é intencional, porque as palavras nunca são “inocentes”, elas dizem sempre muito mais do que supomos que elas dizem. No tangente à impossibilidade de não dispormos de uma definição unificadora e adequada de ideologia, Eagleton, adverte-nos o seguinte:

 

(...) o termo “ideologia” tem toda uma série de significados convenientes, nem todos eles compatíveis entre si. Tentar comprimir essa riqueza de significado em uma única definição abrangente seria, portanto, inútil, se é que é possível. A palavra “ideologia” é, por assim dizer, um texto, um tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes histórias (...). (ibid, p. 15).

 

A imagem de ideologia como texto como a concebe Eagleton é, deveras, ilustrativa da trama polifonicamente construída do conceito de ideologia. É também uma imagem que elucida o que chamei historicidade do conceito de ideologia. A historicidade do conceito de ideologia é esta trama polifônica e dialógica de discursos que articulados formam a memória discursiva do conceito de ideologia. Essa trama polifônica e dialógica é a base da polissemia do termo ideologia. A despeito disso, Eagleton lista 16 definições de ideologia, dentre as quais destaco dez, a fim de que o leitor tenha alguma noção da extensão e complexidade do terreno teórico por que estamos transitando:

 

1) Ideologia como processo de produção de significação, signos e valores na vida social;

2) Ideologia como um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social;

3) Ideologia como ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante;

4) Ideologia como ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante;

5) Ideologia como comunicação sistematicamente distorcida;

6) Ideologia como aquilo que confere certa posição a um sujeito;

7) Ideologia como formas de pensamento motivadas por interesses sociais;

8) Ideologia como pensamento de identidade;

9) Ideologia como ilusão socialmente necessária;

10) Ideologia como conjuntura de discurso e poder.

 

Para Eagleton, mais importante do que buscar uma síntese dessas diferentes definições de ideologia numa teoria global é determinar o que em cada uma delas é vantajoso reter e o que deve ser abandonado.

 

3.1. Ideologia: da cientificidade de Tracy à condenação napoleônica

 

É após a Revolução Francesa (1789), no início do século XIX, na França, que o termo “ideologia” figura pela primeira vez. Seu registro se verifica no livro de Destutt de Tracy, em 1801, intitulado de Eléments d’Idéologie (Elementos de Idelogia). Em parceria com o médico Cabanis, com De Gérando e Volney, Destutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias, as quais seriam concebidas como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente.  De Tracy se consagra na elaboração de uma teoria sobre as faculdades sensíveis responsáveis pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória). De Tracy pertencia a um grupo de pensadores conhecidos como “ideólogos” franceses, os quais se identificavam como antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos. O fato de serem antimonárquicos lhes custaria muito caro. Segundo Chauí (2006, p. 25), esses pensadores

 

(...) eram críticos de toda explicação sobre uma origem invisível e espiritual das idéias humanas e inimigos do poder absoluto dos reis. Eram materialistas, isto é, admitiam apenas causas naturais físicas (ou materiais) para as ideias e as ações humanas e só aceitavam conhecimentos  científicos baseados na observação dos fatos e na experimentação. (grifo no original).

 

 Os pensadores franceses que pertenciam a esse grupo de ideólogos integravam o partido liberal e esperavam que o progresso das ciências experimentais, assentadas exclusivamente na observação, na análise e síntese dos dados observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e a uma nova moral. De Tracy chega a propor, contra a educação religiosa e metafísica que sempre esteve a serviço do poder político de um monarca, o ensino das ciências físicas e químicas para “formar um bom espírito”. Formar um bom espírito era entendido como formar uma inteligência apta para decompor e recompor os fatos, sem deixar-se seduzir por devaneios metafísicos vazios, nem comover-se com explicações teológicas ilusórias. O espírito positivista já impregnava o audacioso projeto de De Tracy. Ele considerava a monarquia um regime opressor, porque é calcado sobre a articulação entre poder político e poder religioso. O rei se dizia portador de um poder recebido diretamente de Deus (um poder espiritual absoluto e invisível). Por isso, podia exigir obediência de seus súditos, podendo, inclusive, decidir sobre a vida e a morte deles.

De Tracy, em seu Elementos de Ideologia, dedica-se a investigar como as instituições sociais e o trabalho atuam sobre o indivíduo e sobre a massa. Os ideólogos foram partidários de Napoleão Bonaparte e o apoiaram no golpe de 18 Brumário, quando Napoleão toma o poder e institui o Consulado. Até então, Napoleão era visto como um guardião e continuador das ideias da Revolução Francesa. Quando se achava na condição de Cônsul, ele nomeou vários ideólogos senadores ou tribunos. Todavia, não tardou para que eles se decepcionassem com Bonaparte, apercebendo-se de que ele não era mais do que um restaurador do Antigo Regime, isto é, a monarquia que tanto lhes desagradavam. Como os ideólogos se opusessem às leis referentes à segurança do Estado, foram exonerados do Tribunado, e sua Academia foi fechada. Os decretos napoleônicos destinados à fundação da Universidade Francesa investiam de plenos poderes os inimigos dos ideólogos, que se viram forçados, então, a passar para o partido de oposição.

A concepção negativa ou pejorativa do termo “ideologia” entranha-se na nervura do tecido histórico graças a Napoleão. Coube a ele fixar o caráter pejorativo do termo, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, no qual declarou:

 

“Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história”.

 

Destarte, Napoleão Bonaparte deturpava a imagem que os próprios ideólogos tinham de si mesmos: eles, que se consideravam materialistas, realistas e antimetafísicos, passaram a ser chamados perniciosamente de “tenebrosos metafísicos” que ignoram o realismo político que adapta as leis ao coração humano e às lições da história. Magia do símbolo, está claro: os ideólogos passam a significar de outro modo, passam a se constituir, enquanto sujeitos, de um modo diferente do que cuidavam ser. Suas identidades simbólicas, discursivas foram definitivamente alteradas. E é com estas novas identidades que eles e todos os ideológos seriam e são lembrados na história pelo senso comum. Marx, aliás, conservará o significado napoleônico do termo “ideologia” e verá no ideólogo aquele que inverte as relações entre as ideias e o real. Assim, consoante sublinha Chauí,

 

(...) a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de ideias condenadas a desconhecer sua relação real com a realidade. (ibid., p. 28).

 

O termo “ideologia” aparece também na obra Cours de Philosophie, de Auguste Comte,  com os dois significados seguintes:

 

1) atividade filosófico-científica que estuda a formação das ideias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, para o que se consideram as sensações como ponto de partida;

2) o conjunto de ideias de uma época, tanto como “opinião geral”, quanto como elaboração teórica dos pensadores dessa época.

 

Em 1), Comte recupera a concepção original de De Tracy. Em 2), ideologia passa a significar tanto o senso comum de uma sociedade quanto a atividade de teorizar, de filosofar.

Durkheim, por seu turno, chama de ideologia as ideias antigas, pré-científicas, bem à moda positivista, os preconceitos, as pré-noções subjetivas, individuais que integram uma tradição. Assim, para ele, um pensador assume uma atitude ideológica sempre que: a) não toma distância da sociedade que vai estudar e fornece opiniões subjetivas e tradicionais sobre ela; b) deixa o trabalho científico impregnar-se de pré-noções ou preconceitos provenientes de seu background cultural; c) se vale de palavras vazias e as coloca no lugar dos fatos que deveria examinar. Para Durkheim, a ciência deveria orientar-se pelos fatos a fim de explicar as ideias. O procedimento inverso torna o cientista um ideólogo, pois que ele parte das ideias para descrever/explicar os fatos.

A partir de agora, discriminarei as perspectivas teóricas sobre ideologia, apresentadas e discutidas sempre segundo o critério de distinção fornecido por Thompson, em seções separadas. Principio por considerar a contribuição de Marx e Engels.

 As perspectivas pejorativas

 

3.2. A ideologia segundo Marx e Engels

 

Embora nos forneça a sua própria definição de ideologia, que não escusarei de referir no momento oportuno, Chauí nos servirá de fonte para compreender o que Marx entendia por ideologia. É bem verdade que não constitui tarefa simples identificar qual é a concepção marxiana de ideologia, porque, como assinala Thompson (2011) , há uma ambiguidade no conceito de ideologia adotado por Marx. Sem pretender me estender sobre os detalhes, Thompson reconhece, na obra de Marx, várias concepções de ideologia, duas das quais valem ser examinadas. Thompson nos diz que os escritos de Marx ocupam uma posição central na história e no desenvolvimento do conceito de ideologia. Com Marx, o conceito adquiriu um novo estatuto como instrumento essencial de um novo sistema teórico. Mas, malgrado a importância do trabalho de Marx nesse tocante, as maneiras como ele empregou o conceito e as maneiras diversas como ele se ocupou dos vários assuntos e pressupostos relacionados ao tema não são claras. No contexto da polêmica com os jovens hegelianos, por exemplo, Marx e Engels empregaram o termo ideologia para designar uma doutrina teórica e uma atividade que assume erroneamente as ideias como autônomas e eficazes sem compreender as condições reais da vida sócio-histórica em que elas foram produzidas. É nesse contexto de análise que se pode situar a ideologia, em Marx, como uma forma de dissimulação, como uma imagem invertida de nossa própria posição na sociedade. A ideologia é, então, o mecanismo de ocultação e de apagamento das contradições que são inerentes à sociedade. A ideologia é a separação que se opera entre a produção das ideias e as condições sócio-históricas concretas em que elas são gestadas, elaboradas. Para Marx e Engels, o que as ideologias fazem é colocar os homens e suas relações com a realidade de cabeça para baixo. A consciência ideológica envolve, assim, um duplo movimento: o de inversão e o de deslocamento. Na inversão, as ideais ganham prioridade na vida social, pois o espírito parte das ideias para explicar a realidade. Já no deslocamento, as ideias se desconectam da vida social, da realidade concreta onde os homens vivem. Na mistificação ideológica, as ideias se tornam a fonte do processo histórico, e os determinantes sociais são apagados. Consoante observa Eagleton (ibid., p. 76), “a ideologia é essencialmente algo sobrenatural: uma resolução imaginária de contradições reais que cega homens e mulheres para a dura realidade de suas condições sociais”.

A ideologia, para Marx, quando situada, portanto, no contexto de sua crítica ao idealismo dos jovens hegelianos, pode ser definida como o processo pelo qual a realidade é derivada das ideias. Assim, num dos sentidos de ideologia de Marx, a ideologia recobre as crenças ilusórias ou socialmente desvinculadas que são tomadas como fundamento da história e que desviando os homens e mulheres de suas reais condições materiais de existência, servem para sustentar um poder político opressor. Mas as regiões em que as diferentes concepções de ideologia em Marx se espraiam não têm fronteiras bem marcadas; ao contrário, quando pensamos estar diante de uma concepção bem delimitada de ideologia, vemo-nos como invadindo o terreno conceitual de outra. Por exemplo, para Thompson, há, em Marx, o que ele chama de concepção epifenomênica de ideologia, que constituiria um domínio à luz do qual a ideologia seria vista como um sistema de ideias que expressa os interesses da classe dominante, mas que representa as relações de classe de modo ilusório. Thompson qualifica de “latente” a concepção marxiana de ideologia como “um conjunto de fenômenos sociais sem nomeá-los” (ibid., p. 58). Nos contextos em que essa concepção aparece, segundo Thompson, Marx usa as noções de “ilusões”, “ideias fixas” no lugar de “ideologia”. Na concepção latente de ideologia, a ideologia se define como “um sistema de representações que servem para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para o passado, em vez de para o futuro, ou para imagens e ideias que escondem relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social”. (ibid.). Mas como não vê nessa concepção de ideologia o espectro da concepção epifenomênica que Thompson acredita identificar? De qualquer modo, sendo ou não válidas tais distinções propostas por Thompson, o fato é que o conceito de ideologia, em Marx, não constitui uma unidade facilmente delimitável.

A ideologia não refletiria o real no cérebro dos homens, mas é o modo ilusório (isto é, abstrato e invertido) pelo qual eles representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Chauí parece anuir a essa visão de ideologia. Para a autora, ideologia é uma ilusão, não porque seja um erro ou uma falsidade; mas porque opera por abstração e inversão. Ilusão, segundo a autora, deve ser entendido como abstração e inversão. Abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se dá a nossa experiência imediata como algo dado, acabado, “sem nunca indagarmos como tal realidade foi concretamente produzida”. (ibid., p. 93). Inversão é confundir os efeitos com as causas, é tomar as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Quando, por exemplo, os seres humanos acreditam que são criaturas de Deus em vez de se reconhecerem como os inventores, os criadores da ideia de Deus, eles vivem sob o modo ilusório da operação ideológica caracterizado pela inversão: assumem Deus como causa e tomam a si mesmo como efeitos.

Ao se referir ao fato de a ideologia resistir a toda tentativa de ser superada, Chauí elabora uma explicação para isso com base em três aspectos, dos quais refiro dois: 1) a ideologia envolve a suposição de que as ideias existem em si e por si mesmas desde sempre. A ideologia assenta sua força na separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, na separação entre trabalhadores e pensadores. Ela conserva sua existência e função mantendo separados (alienados) os trabalhadores definidos como “aqueles que não pensam” e os pensadores como “aqueles que não trabalham”.  2) A ideologia se objetiva na forma da alienação, ou seja, no processo pelo qual as condições reais da existência social dos indivíduos se lhes afiguram ou são por eles percebidas como condições que existem independentemente de sua atividade. Na alienação, os homens não se percebem como produtores do mundo histórico, do mundo social, das condições da existência social, e passam a acreditar que a origem de tal mundo, de tais condições são forças alheias a eles, tais como os deuses (o Deus judaico-cristão), a Natureza, a Razão, o Estado, o destino. Como enfatiza a autora, “a ideologia cristaliza em “verdades” a visão invertida do real”. (ibid., p. 80).

Marx também mantém que a ideologia opera transformando as ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que exerce dominação no plano econômico, social, político (material) também domina no plano espiritual (das ideias). A ideologia deve ser entendida aqui como um instrumento de dominação de uma classe sobre a outra. É nesse contexto, que Chauí, define o que me parece ser sua definição de “ideologia” como

 

um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar, como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. (ibid., p. 108).

 

 

Claro deve estar que Chauí considera a ideologia como um todo estruturado, explicativo e prático, de caráter prescritivo, normativo e regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes “uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção”. (ibid., p. 109). Vale insistir em que, na concepção latente de ideologia em Marx, a ideologia consiste num sistema de representações que mascaram, ocultam e enganam, e que servem para manter relações de dominação.

Crendo suficientes as considerações que fiz sobre ideologia a partir de Marx, desço a urdir, na próxima seção, reflexões sobre a ideologia em Althusser, um filósofo francês marxista, que elaborou uma interpretação influente do pensamento de Marx a partir de uma perspectiva estruturalista. Althusser também aproveitou de Marx o caráter pejorativo do conceito de ideologia.

 

 

3.3. A ideologia segundo Louis Althusser

 

Seguindo as pegadas de Marx, Althusser também entende que o Estado é uma máquina de repressão.  O poder estatal se materializa em dois tipos do que Althusser chama de “Aparelhos”: os Aparelhos repressivos de Estado (ARE) e os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). A diferença fundamental entre eles é que os Aparelhos repressivos de Estado funcionam predominantemente pela violência (física ou administrativa), ao passo que os Aparelhos Ideológicos funcionam predominantemente pela ideologia. Os Aparelhos repressivos de Estado compreendem o governo, os ministérios, o exército, a polícia, os presídios, os tribunais, etc. Os Aparelhos Ideológicos de Estado abrigam a escola, a igreja, a família, os sistemas políticos, partidários, jurídicos, a imprensa, o sindicato, as manifestações culturais, como arte, literatura, filosofia, esportes, etc. Althusser lembra que não se pode falar em Aparelhos puramente Ideológicos; no limite, estes também podem funcionar por alguma forma de violência. Não convém aqui adentrar nos meandros desta distinção. Ela interessa na medida em que descerra a existência material da ideologia. Para Althusser, a ideologia existe sempre em um aparelho e em práticas, e, por isso, ela tem uma existência material. Isso significa dizer que a ideologia existe em suas relações com relações de produção e as relações de classe. Althusser concebe a ideologia como uma deformação imaginária das relações reais dos sujeitos com suas condições de existência. Mas essa deformação imaginária que se expressa na forma de relações imaginárias com as relações reais (ideologia) tem uma existência material. As ideias de um sujeito são seus atos materiais, inseridos em práticas materiais governadas por rituais materiais, os quais, por sua vez, são definidos pelos aparelhos ideológicos materiais. As ideias que este indivíduo nutre não acontecem espontaneamente, por força de sua consciência autônoma, mas derivam de um Aparelho ideológico. A definição já clássica que nos dá Althusser de ideologia é a seguinte:

 

 Ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas reais condições de existência. (Althusser, 1996, p. 126).

 

 

Para Althusser, portanto, os homens representam para si mesmos suas condições reais de existência sob o funcionamento do imaginário. A ideologia é uma representação imaginária que deforma o mundo real. Nas palavras do filósofo,

 

(...) toda ideologia representa, em sua deformação imaginária, não as relações de produção existentes (e outras relações que delas decorrem), mas, acima de tudo, a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações que delas decorrem. O que é representado na ideologia, portanto, não é o sistema de relações reais que regem a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais em que vivem. (ibid., p. 128).

 

 

Para que não reste algum embaraço, que pode derivar da proximidade das expressões “relações reais” e “relação imaginária”, o que Althusser afirma é a intervenção do imaginário (e do inconsciente) no modo como nós experimentamos nossas relações reais (materiais) com a nossa própria existência enquanto sujeitos historicamente situados. Mas, como a ideologia tem uma existência material, ou seja, existe sempre encarnada em um aparelho e em práticas, a relação imaginária que ela representa tem existência material. O que a ideologia representa, segundo Althusser, é a relação imaginária dos indivíduos com as relações reais com a sua existência.

Ainda segundo Althusser, “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” (ibid., p. 131). “Interpelar” é chamar,  ato de fala que pode ser ilustrado na situação em que um policial diz: “ei, você aí!”. Se esta cena ocorre na rua, o indivíduo chamado se voltará para aquele que o chama, porque, de fato, reconhece que quem é chamado é ele mesmo. Na interpelação ideológica, reconhece-se e fixa-se um lugar (social) no mundo para o indivíduo que, por força da interpelação, se transforma em sujeito. Por conseguinte, só existe ideologia para sujeitos concretos e a ideologia só se manifesta e se destina pelo funcionamento da categoria sujeito. O sujeito age na medida em que nele e através dele age um aparelho ideológico material que lhe prescreve práticas materiais governadas por rituais materiais. Tais práticas existem nos atos materiais de um sujeito que age conscientemente e em consonância com sua crença, como fazem os católicos que, num dado período da missa, se ajoelham diante do altar.

 

  As perspectivas neutras

 

3.4. A ideologia segundo Thompson

 

 

Vale lembrar que, na concepção latente de ideologia em Marx, de que nos fala Thompson, a ideologia consiste num sistema de representações que mascaram, ocultam e enganam, e que servem para manter relações de dominação. Mas esta não é exatamente a concepção de ideologia de John Thompson. Sua concepção de ideologia se filia a uma tradição de análise linguística da ideologia, muito embora me pareça que sua abordagem do problema fica a meio caminho entre uma concepção crítica ou pejorativa e uma concepção neutra. Para Thompson, a ideologia encerra as maneiras como o sentido é mobilizado, através do que chama de formas simbólicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação.  Destarte, para o autor, estudar ideologia “é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (Thompson, ibid., p. 76).  Por dominação, Thompson entende as relações de poder quando estabelecidas sistematicamente de modo assimétrico. Nas relações de dominação, grupos particulares de atores sociais possuem poder de uma maneira permanente, em grau amplo, e o exercem de modo a excluir das esferas de poder outros grupos de agentes. Por formas simbólicas, Thompson entende “um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos”. (ibid., p. 79). As formas simbólicas, como se pode depreender, compreendem tanto textos, expressões linguísticas, atos de fala, como formas não verbais de significação, como uma imagem visual, um quadro, uma pintura, uma placa de sinalização de trânsito, etc. Importa acrescentar que as formas simbólicas e seu sentido estão sempre inseridos em contextos sociais e circulam no mundo social.

Thompson distingue entre cinco modos gerais por meio dos quais opera a ideologia, a saber: 1) legitimação; 2) dissimulação; 3) unificação; 4) fragmentação; 5) reificação. Para cada um desses modos gerais de operação da ideologia, o autor define um número de estratégias típicas de construção simbólica. Para dar um exemplo de um dos modos como opera a ideologia, tome-se o modus operandi da dissimulação. Através da dissimulação, a ideologia oculta, obscurece as relações de dominação que se estabelecem e se sustentam justamente pelo fato de não aparecerem como tais. A ideologia as representa de tal modo que distrai nossa atenção. Uma das estratégias empregadas nesse modo de operar da ideologia é o deslocamento. Pelo deslocamento, um termo comumente usado para se referir a um referente (um objeto, pessoa, conceito determinado) é usado para se referir a outro referente, carreando conotações positivas ou negativas do termo para o objeto a que se aplica. É o que acontece com a expressão “ideologia de gênero”, embora minha interpretação seja diferente da de Thompson. O que sucede no caso de “ideologia de gênero” é que “ideologia” passa a integrar a intensão semântica, ou o domínio semântico do conceito de “gênero”, compondo um sintagma que se refere a, ou que recategoriza outro objeto-de-discurso, a saber, “estudos de gênero”. Sintaticamente, “ideologia de gênero” se forma pela “expulsão” do núcleo “estudos” do sintagma “estudos de gênero” para que esse lugar de núcleo seja preenchido pelo vocábulo “ideologia”. Essa “expulsão” do núcleo no sintagma original corresponde, discursivamente, à construção de outro objeto-de-discurso (diferença) – “ideologia de gênero” – que, por força do imaginário e da natureza do discurso autoritário que o construiu, passa a significar o mesmo (por sinonímia) que “estudos de gênero”.  Somente o olhar crítico não se deixa desvirtuar do que está em jogo aqui: a tentativa deliberada e autoritária de impor “o mesmo” apagando a “diferença”, o “diverso”, “o outro”. Em suma, para mim, não se trata de simples deslocamento de propriedades semânticas de um termo para outro, ou da rotulação de um referente já dado feita através de outro signo, como quer Thompson; mas da construção de outro objeto-de-discurso que se quer seja o mesmo, que apaga a diferença no real da língua, no real do discurso, que assimila o outro na mesmidade imaginária que se manifesta, linguisticamente, na sinonímia (embora, discursivamente, não haja sinônimos absolutos, identidade de significação em estado de dicionário). Trata-se, é claro, nesse caso, de uma sinonímia que se faz por efeito da posição do sujeito, das relações de poder de que ele participa (poder que produz efeitos de verdade), já que é efeito de um discurso autoritário que tende a fixar a monossemia e que mais exibe suas formas de dominação.

Acrescente-se que, para Thompson, as formas simbólicas só são ideológicas quando servem para estabelecer e sustentar relações de poder sistematicamente assimétrica. Elas não são inerentemente ideológicas. Portanto, nem todo signo é ideológico, para Thompson.  Segue-se daí que Thompson admite a possibilidade de os atores sociais mobilizarem formas simbólicas contestatórias. Em suma, o conceito de ideologia, segundo Thompson, deve chamar-nos a atenção para os modos como o sentido é ativado, mobilizado, produzido, transmitido a serviço de indivíduos e grupos dominantes, em contextos particulares, para estabelecer e sustentar relações sociais de poder assimétricas das quais alguns indivíduos ou grupos têm interesse de conservar, enquanto outros procuram contestar.

 

 3.5. A Ideologia segundo DeSousa Filho

 

 

Em seu livro Tudo é construído! Tudo é revogável (2017, p. 240), DeSousa Filho compreende a ideologia como “ o fenômeno social – comum às diversas sociedades e culturas – que corresponde às significações e representações imaginárias e simbólicas que tendem sempre à naturalização, eternização e à autonomização de toda a realidade social em relação à própria sociedade e seus agentes”.

DeSousa Filho pensa a ideologia como uma forma de discurso (o discurso ideológico) que se realiza e funciona através de diversos saberes, técnicas, práticas e dispositivos de produção de ideias e sujeitos numa sociedade particular. Tal modo de discurso manifesta-se em muitas esferas da vida social. A ideologia recobre, então, os processos de fundação, legitimação, sancionamento, consagração mediante o imaginário e o simbólico, dos sistemas sociais. Disso se segue que a ideologia conserva sempre os indivíduos num estado costumeiro de desconhecimento da origem das instituições sociais, com vistas a assegurar a existência delas. Por outro lado, a ideologia acena sempre com a eufemização da sujeição, com certo modo de suavizar, de disfarçar a dominação a que os indivíduos estão submetidos sob o controle das instituições. A ideologia, para DeSousa Filho, compreende os processos que tornam possível a sujeição ou a dominação dos sujeitos pelas estruturas culturais, simbólicas, econômicas e políticas. A ideologia garante o assujeitamento dos indivíduos aos processos de socialização, de subjetivação, os quais lhes fixam subjetividades, identidades, categorias, normas, etc., sem que, nesses processos, se apercebam dessa sujeição e dominação, porque a ideologia não as faz aparecer como tais. Para DeSousa Filho, portanto,

 

São ideológicas as ideias e suas práticas, instituições, dispositivos, cujos efeitos simbólicos tornam-se naturalizações e eternizações de práticas, relações e instituições de alienação, submissão, sujeição ou dominação de pessoas, grupos ou classes. (ibid., p. 244).

 

 

 

 

 

 3.6.  A ideologia segundo Lukács e Gramsci

 

 

Lukács e Gramsci estão entre os autores aos quais Thompson associa a concepção neutra de ideologia. Se, nos escritos de Marx, o conceito de ideologia conservou um sentido negativo, herança do discurso napoleônico, na literatura marxista posterior e nos trabalhos em ciências sociais, é possível discernir uma concepção não marcada ou “neutra” de ideologia. Se, em Marx, ideologia designa um conjunto de ideias, crenças ilusórias, ou que expressam os interesses das classes dominantes e se punham a serviço da manutenção do status quo, em Lênin, por exemplo, pode-se encontrar uma definição de ideologia socialista, à qual Lênin atribuía a missão de combater a influência perversa e dominante da ideologia burguesa. Essa ideologia socialista, mesmo que não organizada espontaneamente pelo proletariado, deveria expressar e promover os  seus interesses na luta de classes.

Como marxista, o filósofo húngaro György Lukács, alinha-se com o pressuposto de que a consciência é parte integrante da realidade social; é uma força dinâmica na transformação em potencial dessa realidade. Não faz sentido, para ele, falar em ideologia como “falsa consciência”, visto que as ideias nunca estão em desacordo com a realidade, nunca a “traem”. Todas as formas de consciência de classe são ideológicas, mas algumas são mais ideológicas que outras. O que é especificamente ideológico na burguesia é a sua incapacidade de compreender a estrutura da formação social como um todo, em função dos efeitos nefastos da reificação. A reificação fragmenta e desloca nossa experiência social, de sorte que, sob a sua influência, esquecemos que a sociedade é um processo coletivo e inacabado, e passamos a vê-la como uma coisa ou uma totalidade dotada de uma espessura institucional imutável. Ideologia, para Lukács, é uma forma de sinédoque, a figura de linguagem pela qual tomamos a parte pelo todo. A ideologia é, portanto, um discurso que apreende a realidade de modo superficial, limitado, parcial, fragmentado, pois que, por força do modo do funcionamento ideológico, os indivíduos tendem a ignorar constumeiramente a complexidade e as relações mais profundas que constituem a trama do real. Portanto, para Lukács, ideologia não é um  erro ou uma ilusão. Como nos ensina Eagleton, para Lukács, “(...) a ideologia é antes um campo de significado complexo e conflitivo, no qual alguns temas estarão intimamente ligados à experiência de classes particulares, enquanto outros estarão mais à deriva”. (ibid., p. 96). A ideologia é um domínio de contestação e negociação, em que se dá um tráfego constante de significados e valores usurpados, transformados, recriados, cedidos, refletidos, recuperados através das fronteiras de diferentes classes e grupos. Assim é que uma classe dominante pode moldar seu modo de viver pela apropriação da ideologia de uma classe previamente dominante (dominante em outra época). Pode também incorporar à sua ideologia as crenças, os valores, os preconceitos da ideologia da classe subalterna, e vice-versa. Lukács é hegeliano também por sua convicção segundo a qual a verdade é o todo. Assim, pode-se dizer que, para ele, nossa consciência, historicamente determinada, imersa no viver cotidiano, é inerentemente ideológica em função de sua apreensão parcializada da realidade. Como adverte Eagleton,

 

Não que os enunciados que fazemos nessa situação sejam necessariamente falsos; antes, são verdadeiros apenas em um sentido superficial, empírico, pois são julgamentos a respeito de objetos isolados que ainda não foram incorporados a seu contexto global. (ibid., p. 93).

 

 

Por isso, a emancipação de certos grupos ou classes depende da necessidade de eles articularem compreensivamente sua condição com um contexto mais amplo, porquanto só assim poderão modificá-la. Ao fazê-lo, tais grupos ou classes poderão confrontar a consciência daqueles que têm interesse em impedir esse saber emancipatório. Para Lukács, a crítica da ideologia tem como objetivo examinar os fundamentos sócio-históricos do pensamento. Eis aqui um ponto sumamente importante: o pensamento não se realiza num vácuo, não se realiza descolado das condições concretas de existência daquele que pensa; o pensamento tem suas raízes fincadas no solo histórico.

Para Lukács, a verdade é sempre relativa a uma situação histórica particular, nunca um problema metafísico ou trans-histórico; no entanto, o proletariado está posicionado historicamente de modo “privilegiado”, porque é capaz, em princípio, de desvelar o segredo nefasto do capitalismo como um todo.

O italiano Antonio Gramsci tem como carro-chefe de seu pensamento não a categoria de ideologia, mas a de hegemonia. Cingir-me-ei a dar a conhecer a distinção entre os conceitos de hegemonia e ideologia, em Gramsci.

Hegemonia, para Gramsci, designa a maneira como o poder governante conquista o consentimento dos governados ou subjugados a seu domínio. Ocasionalmente, Gramsci reúne no conceito de “hegemonia” as noções de consentimento e coerção. A hegemonia é uma categoria analítica semanticamente mais ampla do que a de ideologia: a hegemonia inclui a ideologia, mas não se reduz a ela. A primeira diferença entre elas é que as ideologias podem ser impostas à força. A hegemonia, por sua vez, pode ser produzida quer por meios ideológicos, quer por meios políticos e econômicos. Por exemplo: um grupo ou classe dominante pode assegurar o consentimento alterando o sistema de tributação de modo a favorecer os interesses de um outro grupo de cujo apoio necessita. Nas sociedades democráticas modernas, o poder hegemônico reforça a ilusão de autogoverno da população. Nessas formações sociais, vige a crença hegemônica segundo a qual as pessoas governam a si mesmas. Na verdade, em tais sociedades, espera-se que as pessoas acreditem que governam a si mesmas. A hegemonia conquista-se politicamente também quando se convence a maior parte da sociedade da neutralidade do Estado. A hegemonia não é apenas um tipo de ideologia bem-sucedido; ela pode se manifestar fragmentariamente em nas dimensões ideológica, cultural, política e econômica. A ideologia recobre a maneira como as lutas de poder são levadas a efeito no nível da significação.

A hegemonia pode ser definida, então, como um espectro inteiro de estratégias práticas pelas quais um poder dominante obtém ou conquista o consentimento, a adesão ao domínio daqueles que subjuga. Conquistar a hegemonia é, para Gramsci, estabelecer uma liderança moral, política e intelectual na vida social, difundindo uma visão de mundo totalizante pelo tecido da sociedade como um todo, fazendo com que o próprio interesse dos dominantes se identifique com o da sociedade em geral. Essa é uma estratégia empregada pelos políticos, de modo geral, e por Bolsonaro, de modo notável, mas também por grandes empresários e banqueiros. O domínio por meio do consenso não é uma peculiaridade do capitalismo. Toda e qualquer forma de poder político só pode garantir sua durabilidade e solidez se conseguir conquistar certo grau de consentimento das massas. Todavia, é lícito dizer que, nas sociedades capitalistas, especialmente, o consentimento predomina sobre a coerção. O controle social é exercido mais permanentemente pelas instituições da sociedade civil, tais como família, escola, igreja, meios de comunicação, etc.

Como se pode ver, Gramsci rejeita o emprego pejorativo do termo “ideologia”. É preciso, segundo ele, distinguir entre ideologias “historicamente orgânicas”, que são necessárias a uma dada estrutura social, e a ideologia como especulações subjetivas e arbitrárias de indivíduos. Gramsci também rechaça qualquer visão economicista de ideologia como epifenômeno da infraestrutura. Para ele, as ideologias devem ser consideradas como forças ativamente organizadoras da vida social, forças que são psicologicamente funcionais, porque moldam o terreno no qual os homens e mulheres atuam, lutam e desenvolvem a consciência de suas posições sociais. É com Gramsci que se faz a transição do conceito de ideologia como “sistema de ideias” para o de ideologia como “prática social vivida, habitual”. Nesse sentido, ideologia funciona nas estruturas inconscientes ou não manifestas da experiência social. Althusser, para quem a ideologia é largamente inconsciente e sempre institucional (material), aproveitará os dois acentos gramscianos: a do funcionamento ideológico em instituições formais e a do funcionamento ideológico nas dimensões inconscientes do sujeito.

Os dois autores aqui examinados alinharam seu pensamento com a ideologia do historicismo, que marca profundamente o marxismo. Segundo o historicismo, a sociedade é vista como uma totalidade circularmente expressiva; a história, um fluxo homogêneo de tempo linear; a filosofia, uma autoconsciência do processo histórico; a luta de classes, um combate de sujeitos coletivos; o capitalismo, um universo essencialmente definido pela alienação; e o comunismo, um estado de salvação/ libertação humanista do calvário da alienação.

 

 As perspectivas semióticas

 

Ocupo-me agora da discussão sobre a ideologia como um fenômeno discursivo ou semiótico. Isso significa que se deve enfatizar sua materialidade discursiva (já que os signos são entidades materiais) e reforçar a tese segundo a qual a ideologia diz respeito essencialmente a significados.

Assim, para os autores que abordam a ideologia de uma perspectiva semiótico-discursiva, termos como “consciência” são resíduos de uma tradição idealista do pensamento, ainda que Bakhtin fale em consciência, mas não nos termos do idealismo. Abordar signos e discursos é considerar as condições sociais e práticas de seus usos.

 

 

3.7. Ideologia segundo Bakhtin

 

Em seu Marxismo e filosofia da linguagem (2006), Bakhtin declara audaciosamente “sem signos não há ideologia”. O domínio dos signos e o da ideologia são coextensivos. A ideologia expressa-se como luta de interesses sociais antagônicos no âmbito do signo. Como escreve Bakhtin (ibid., p. 47), “(...) em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditório. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Ou ainda: “a palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais contraditórios”. (p. 6, grifo meu).

A consciência só pode surgir na corporificação material dos significantes; e, como esses significantes são, em si mesmos, materiais, não são apenas “reflexos” da realidade, mas uma parte integrante dela. A palavra, diz Bakhtin “é o fenômeno ideológico por excelência” (ibid., p. 36).  A própria consciência é apenas a internalização de palavras, é uma forma de discurso interior. Em outras palavras, a consciência não é propriamente algo dentro de nós, mas algo ao redor de nós e entre nós, uma rede de significantes que nos constitui inteiramente. Segundo Bakhtin, “os sujeitos não “adquirem” sua língua materna: é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência”. (p. 111, grifo meu).  A consciência toma a sua forma e existência dos signos criados e usados por um grupo organizado no curso das relações sociais. Segundo Bakhtin, “os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis”. (p. 36).

Bakhtin não separa, portanto, a ideologia da realidade material do signo, nem dissocia este das condições concretas da interação social. É ele que também insiste em que “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”. (p. 42). A palavra é sempre um indicador sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas ínfimas, que não chegam a tomar forma em sistemas ideológicos bem estruturados. O signo reflete e refrata a realidade em transformação. Para Bakhtin, “a realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais”. (p. 36).

Se a ideologia não pode ser divorciada do signo, o signo também não pode ser dissociado das formas concretas da interação social. O signo e as situações sociais em que é usado estão inextricavelmente ligados. Um signo particular é sempre disputado segundo os interesses sociais em competição. Cada signo é entretecido por uma multidão de acentos ideológicos que representam a realidade a partir de um lugar valorativo. Para Bakhtin, as menores e mais ínfimas mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos interactantes inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, nos índices de valores, as mudanças sociais.

A palavra é produto ideológico, porquanto ela acumula as entonações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo tempo, ela pressiona uma mudança nas estruturas sociais estabelecidas. A palavra constitui o único meio de contato entre a consciência do sujeito, constituída de palavras, povoada por elas, e o mundo exterior fabricado com o concurso das palavras.

Bakhtin se afasta da visão marxista tradicional de ideologia como ocultamento das contradições da realidade social, para defender a distinção entre dois níveis de ideologia: a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial.

A ideologia do cotidiano nasce e se desenvolve nos encontros casuais e corriqueiros dos sujeitos sociais uns com os outros. Ela é o solo onde nascem os sistemas de referência. A ideologia do cotidiano se desenvolve na vizinhança social com as condições de produção e reprodução da vida. Ela é um acontecimento relativamente instável, quando comparada à ideologia oficial, relativamente mais estável. Por seu turno, a ideologia oficial é relativamente dominante e procura fixar uma visão única da produção do mundo social. É no solo da ideologia oficial que trafegam e circulam os conteúdos ideológicos que já passaram por todas as etapas de objetivação social, ou seja, já se tornaram acessíveis como parte do estoque social de conhecimento. Esses conteúdos integram então um sistema ideológico especializado e formalizado, que se expressa na arte, na moral, na religião, no direito, na ciência, na filosofia, etc. Os conteúdos da ideologia oficial já se encontram mais estabilizados e mais aceitos pela sociedade como um todo; resistiram, por assim dizer, aos testes dos acontecimentos e se encontram, pois, aprovados pelos jogos de poder.

Evidentemente, esses dois níveis da ideologia se relacionam de modo permanente e dessa relação constante resulta a formação de um conjunto ideológico que se apresenta como único e indivisível para a sociedade. Mas não se trata de uma totalidade engessada, petrificada, cimentada, inerte. O conjunto ideológico resultante está em constante movimento, é dinâmico, pois que é sensível às transformações que ocorrem nas esferas da produção.

A ideologia é, portanto, um sistema de representação social, de constituição de mundo dinâmico, constituído com base nas referências criadas e recriadas nas interações e nas trocas linguísticas de que participam grupos sociais organizados. É assim que se poderia falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo ou grupo social organizado; é assim que se pode falar de sua linha ideológica, pois esta apresenta um núcleo relativamente estável e durável de sua orientação social, ela mesma formada, constituída nas interações sociais ininterruptas, nas quais, a todo momento, significados são construídos e negociados, rejeitados, destruídos, reinventados. E tais significados são os significados que estruturam o mundo e constituem os sujeitos. Em suma, para Bakhtin, a linguagem é o lugar mais claro, imediato e completo da materialidade do fenômeno ideológico.

 

 3.8 A ideologia segundo a Análise do Discurso

 

 

O emprego, no singular, da designação Análise do discurso, embora corrente na literatura especializada, não pode levar a crer que haja um campo homogêneo e unificado de estudos do discurso a que essa designação se aplicaria. Há muitas Análises do Discurso, que se orientam por métodos e enfoques diferentes na busca por compreender o funcionamento histórico do discurso. Ao considerar a questão da ideologia no âmbito da Análise do Discurso, precisarei fazer um recorte que inclui um autor como Michel Pêcheux proveniente da tradição francesa da Análise do Discurso e um autor como Norman Fairclough, que se situa na escola inglesa da Análise Crítica do Discurso. Tal recorte é indispensável por duas razões: 1) primeiro, porque não é possível fazer, nos limites deste estudo, um levantamento exaustivo das diferentes abordagens do discurso que levem em conta a questão da ideologia; 2) segundo, porque essas duas orientações de Análise do Discurso ilustram bem a razão por que não é possível mais pensar a ideologia ignorando seu vínculo necessário com o discurso. Conforme lembra Orlandi (2013, p. 45), “um dos pontos fortes da Análise do Discurso é re-significar a noção de ideologia a partir da consideração da linguagem”.  O que pretende Orlandi e a Análise do Discurso é oferecer uma definição de ideologia.

Há duas teses que precisam ficar explícitas, desde já, a fim de que se compreenda a densidade e alcance da abordagem da Análise do Discurso do fenômeno da ideologia.

 

1) O fato de que não há sentido sem interpretação evidencia a presença da ideologia;

 

2) Não só não há sentido sem interpretação, como também, em face de qualquer objeto simbólico, o homem é instado a interpretar, a colocar-se a questão: o que isto quer dizer?

 

Acontece, porém, que a própria questão “o que isto quer dizer?” sugere a forma costumeira com que fazemos a experiência do sentido. Em outras palavras, tal como formulada, a questão implicita a evidência do sentido. Na sua relação espontânea e “natural” com o objeto simbólico, o ser humano crê que sempre capta um sentido já dado de antemão. Nessa atitude semiótica “ingênua”, espontânea, interpretar é captar um sentido previamente dado, fixado, alocado num texto, numa forma simbólica. Assim, naturaliza-se o que é justamente produzido na relação com o histórico e com o simbólico.

A ideologia opera aqui por meio do mecanismo de apagamento da interpretação, processo pelo qual se produz a evidência do sentido – que faz com que uma palavra designe uma coisa. Apaga-se, nesse processo ideológico, o caráter material do sentido. Na ideologia, o sentido aparece como transparente, evidente,  e não mais como algo que se constitui pela remissão a um conjunto de formações discursivas. A crítica da ideologia se faz, nesse contexto teórico, como um trabalho que consiste em patentear que as palavras recebem seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem.

Por conseguinte, a ideologia é responsável pelo efeito de evidência do sentido e do sujeito. Essa evidência produzida ideologicamente expressa-se na forma da saturação dos sentidos e dos sujeitos, resultante do apagamento de sua materialidade. Os sentidos e os sujeitos são des-historicizados. A saturação dos sentidos e dos sujeitos significa a) a ilusão de que o sentido é único, é aquele já dado (posto num texto pelo autor); b) a ilusão de que o sujeito é único, indiviso e origem do que diz.

A ideologia produz também a evidência do sujeito (além da evidência do sentido, conforme vimos). Isso significa dizer ela apaga o fato de que já somos sempre sujeitos; apaga o fato de que o indivíduo é interpelado pela ideologia (Althusser). Assim, a ideologia não é ocultação (Marx), mas função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. A ideologia não é falsa consciência; ela não oculta uma realidade previamente dada. Não há, aliás, realidade sem ideologia. A ideologia é prática significante que aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido. Portanto, aqui se diz duas coisas importantes: 1) que a ideologia é efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história (não apenas a História exterior ao discurso, mas sobretudo a história como “memória discursiva”); 2) a condição para que se produza sentido é que o sujeito seja afetado pela língua e pela história.

Ademais, não há uma relação termo-a-termo entre linguagem, mundo e pensamento. Se essa relação é possível, é porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário. São as imagens que permitem que as palavras apareçam como “coladas” às coisas. Orlandi (2013) lembra ainda que o discurso não tem como função constituir a representação da realidade, muito embora ele funcione de modo a assegurar a permanência de certa representação do mundo. Todo discurso esteia-se num projeto totalizante do sujeito, projeto que converte o sujeito em autor. O autor é o lugar onde se realiza esse projeto totalizante, o lugar onde se constrói a unidade do sujeito. Assim, uma vez que o texto é o lugar da unidade, o sujeito se constitui como autor constituindo o texto como unidade dotada de coerência e completude. Evidentemente, essa coerência e completude, e a unidade do sujeito (que, na verdade, é sempre um sujeito disperso) são da ordem do imaginário.

 Sem ideologia, não há sujeitos –está claro. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito, como nos ensinou Althusser. Mas o sujeito a que se refere a Análise do Discurso é o sujeito discursivo. O sujeito é uma posição-sujeito entre outras. O sujeito não é o Cogito cartesiano, mas um “lugar”, uma posição que todo indivíduo deve ocupar para ser sujeito do que diz. Ocorre que o modo como o sujeito ocupa o seu lugar, enquanto posição, não lhe é acessível, não lhe é transparente. Ele não tem acesso direto à exterioridade, ou seja, ao interdiscurso que o constitui. No caso do sujeito bolsonarista, por exemplo, seu dizer, seu discurso é atravessado pelo interdiscurso, por uma memória discursiva que ele ignora. Muitas falas atravessam a fala dele. É assim com todos nós enquanto sujeitos submetidos à língua, à história. Nem a língua é transparente, nem o mundo é diretamente apreensível na significação, porquanto o vivido dos sujeitos é informado e constituído pela estrutura da ideologia. É importante salientar a ideia de que, para a Análise do Discurso, o sujeito não é uma entidade psicológica transparente a si mesma,  não é o indivíduo empírico que articula uma fala. O sujeito é uma posição, atravessada pela linguagem e pela história (interdiscurso), sob o modo do efeito do imaginário. Ele não tem acesso ao modo como se constitui. Só lhe é acessível a parte do que diz, mas ao dizer produz silenciamentos que significam, seu dizer é atravessado por esses silenciamentos, por dizeres dos quais não tem consciência.

O sujeito é materialmente cindido desde a sua constituição: ele é sujeito de e sujeito à. É sujeito submetido à língua e à história (interdiscurso), pois, para se constituir e para produzir sentido, precisa ser afetado por elas. O sujeito é determinado, pois, porque sofre os efeitos do simbólico, ou seja, porque se submete à língua e à história. Sem essa determinação, ele não se pode constituir; não fala, não produz sentidos.

É pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito que se instaura a discursividade. A interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia acarreta o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido já dado, transparente) e a autoilusão do sujeito de ser a origem do que diz. Mas nem a linguagem, nem os sentidos, nem os sujeitos são transparentes. Eles são dotados de materialidade e se constituem em processos em que a língua, a história (interdiscurso) e a ideologia intervêm conjuntamente. Os sentidos não se esgotam na materialidade textual, no imediato da produção do dizer. O dizer e os sentidos têm uma história (memória discursiva). Por isso, os sentidos fazem efeitos diferentes para interlocutores diferentes.

A ideologia, em Análise do Discurso, opera como memória e esquecimento. Somente quando o dizer cai no anonimato é que se produz seu efeito de literalidade, somente nessa condição de esquecimento, produz-se a crença no sentido-lá, no sentido já dado: justamente quando esquecemos quem disse, quando, onde e por que o disse, o funcionamento da ideologia produz seus efeitos. Falar de “materialidade” do sentido, do sujeito é falar de sua forma linguístico-histórica, significativa. A linguagem não é transparente; e os sentidos não são conteúdos. Os sentidos não se acham nas palavras, como coisas numa gaveta, mas aquém e além delas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Vimos isso no exemplo do discurso de Bolsonaro. As palavras derivam seus sentidos das formações ideológicas nas quais se inscrevem essas posições-sujeito.

Por fim, esclareço o que a Análise do Discurso entende por formação discursiva. O conceito nos chegou da pena de Foucault e foi incorporado à Análise do Discurso por Michel Pêcheux. A formação discursiva pode ser definida como um conjunto de regras que determina o que pode e deve ser dito a partir de uma certa posição na vida social, e as expressões que têm seu sentido apenas em virtude das formações discursivas em que ocorrem, e mudam de sentido quando passam para outra formação discursiva. No caso do exemplo do discurso de Bolsonaro, as regras e os saberes supostos que autorizam o que o sujeito pode dizer constituem a formação discursiva. No caso em tela, os saberes e as regras dizem respeito às posições conservadoras a respeito da moral e dos costumes que fazem eco na moral cristã evangélica. Não é possível a Bolsonaro falar, naquele contexto, de “respeito à diversidade de gênero”, ou do caráter histórico da família como instituição deveniente, etc. Bolsonaro diz aquilo que sua audiência quer ouvir e precisa ouvir. E diz também aquilo sobre o qual ele está em acordo com essa audiência.  Uma formação discursiva, portanto, é uma matriz de significado ou sistema de relações simbólicas dentro do qual são produzidos processos discursivos efetivos. Cada formação discursiva encerra uma formação ideológica, que abriga, por sua vez, práticas não discursivas e práticas discursivas.

Para Pêcheux, o sujeito esquece que é apenas a função de uma formação discursiva ou ideológica, e passa a reconhecer-se imaginariamente como autor/origem de seu discurso. O sujeito se constitui pela identificação com a formação discursiva que o domina. Novamente, o caso de Bolsonaro é exemplar.

  

3.8.1. A ideologia segundo Fairclough

 

Em princípio, faz-se mister deixar claro o que Fairclough entende por “discurso”, já que se trata de um conceito fundamental no desenvolvimento de sua teorização sobre ideologia. O discurso é uma forma de prática social. O discurso, para Fairclough, é um modo de ação, uma forma em que os indivíduos podem agir sobre o mundo e, mormente, sobre os outros. O discurso também é um modo de representação (de produção de significados). Há uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social. O discurso é moldado e restringido pela estrutura social: quer pela classe e por outras relações sociais, quer pelas relações específicas que ocorrem em instituições particulares, quer ainda pelos sistemas de classificação, pelas várias normas, tanto as de natureza discursiva com as de natureza não discursiva. Para Fairclough (2001, p. 91), “o discurso é socialmente constitutivo”. Isso significa dizer que o discurso contribui para constituir todas as dimensões da estrutura social, a qual, direta ou indiretamente, o  molda e o restringe. O discurso é uma prática de significação do mundo e, como tal, constitui e constrói “o mundo em significado” (p. 91). O discurso, como prática ideológica, constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo a partir de posições diversas nas relações de poder. Para Faiclough, “a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder”. (p. 94).

Fairclough entende também o discurso como prática política que, como tal, estabelece, mantém e transforma as relações de poder e coletividades (classes, comunidades, grupos) entre as quais se estabelecem relações de poder. O discurso como prática política é o locus da luta de poder, mas também um marco que delimita a luta de poder. Para Fairclough, as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que se produzem nas várias dimensões das formas e sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, reprodução, e transformação das relações de dominação.  As ideologias que se inscrevem e se estruturam em práticas discursivas se tornam assaz eficazes quando se tornam naturalizadas e alcançam o status de “senso comum”. Mas Fairclough se preocupa mais em enfatizar “a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remodelar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da transformação das relações de dominação”. (p. 117).

 

 

Ponho termo a este texto, com a certeza de que ele permanecerá ignorado pelas vozes com quem ele estabelece uma interlocução. O trabalho, apesar de vão, não deixa de ser necessário. Que ele deixe de ser um solilóquio abafado pelos porões da História para tornar-se dialogicamente audível no túmulo do tempo já seria, para mim, um ato de solidariedade.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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