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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"O homem é uma criação do desejo, não uma criação da necessidade" (Bachelard)

                       
                           

                               Sobre o meu lugar no mundo


A sala de aula é o lugar onde me encontro. Para lá quero voltar.
Os consultórios de psiquiatria estão repletos de gente como eu – pedintes de socorro de seu sofrimento e de suas neuroses de caráter.
Os consultórios de psiquiatria são como UTIS para onde confluem os pacientes psiquicamente graves e onde eles são conduzidos para o confrontar com a realidade verdadeira do seu eu mesmo, a qual não se desvela sem uma grande dose de dor, inquietação e perplexidade, para alguns, e de recusa, no caso de outros.
A sala de aula é o lugar de encontros com a diversidade, lugar onde raramente estou exclusivamente ocupado de mim.
O eu, em nossa vida cotidiana, veste muitas máscaras, atua de modos vários e compulsivos; articula estratégias de autodefesa, adota comportamentos que repetem experiências traumáticas de um passado do qual ele é uma manifestação presente; comportamentos em cujo cerne se encontram impulsos inconscientes. Tamanho é o encargo do ser eu que, para uma grande maioria, é melhor evitar o confronto na intimidade de seu domínio constantemente usurpado por forças sobre as quais ele, o eu, não exerce controle.
Os consultórios de psiquiatria estão, portanto, repletos de pessoas que não conseguiram mais resistir às exigências da normalidade que se supõe haver de modo definitivo e a qual é tomada, sem o devido questionamento, como critério para o ajustamento cultural de cada indivíduo.
O eu é, essencialmente, conflito e angústia. A psicanálise é uma área do saber humano que, com a filosofia, exerce sobre mim grande fascínio. E estudá-la possibilita-me um autoconhecimento indispensável à sustentação do eu-existo. No entanto, o debruçarmo-nos sobre a literatura psicanalítica só não basta para que logremos sobreviver a nós mesmos. A ajuda de um especialista me parece indispensável.
No entanto, é na sala de aula e não no consultório de tratamento da alma que encontro meu lugar no mundo. Naquele, na verdade, sou levado continuamente a questionar esse meu lugar no mundo, sou levado a suspeitar de que tenho mesmo algum lugar previamente fixado neste mundo; sou levado a ver que esse lugar deve ser construído, deve ser produto de uma tarefa –a tarefa que consiste, com Kierkegaard, em existir. É na sala de aula onde minha vida se faz dotada de algum propósito, ainda que esse estado de crença num propósito para a existência seja definitivamente ilusório. É verdade que me vejo à volta com a idealização ao tomar a sala de aula como esse lugar de encontro. As salas de aula são também espaços onde se reproduzem os conflitos e as contradições que impregnam tanto o domínio social quanto o domínio individual. Não obstante, é lá que reconheço uma espécie de hábitat. É lá onde não estou interessado apenas em mim mesmo e alargo meu interesse para o outro tendo em vista seu benefício. É lá onde flerto, costumeiramente, com um ideal, sem o qual a vida seria intoleravelmente dolorosa.
Quero, agora, gestar esta última ideia – na verdade, uma convicção cuja validade deixo ao leitor mensurar segundo os seus filtros de interpretação constituídos de todo um repertório de saberes, pressupostos, crenças, valores e afetos previamente formado em suas experiências em sociedade.
Trata-se esta ideia de ver a poesia também como um lugar onde me encontro e onde dou a conhecer ao olhar/sentir especializado o desconhecido de mim. Estou convencido – se bem que não consiga demonstrá-lo claramente – de que alguém treinado em algumas das disciplinas da alma (particularmente, em psicanálise) não teria dificuldade para reconhecer a dimensão de processos inconscientes que determinam a minha escrita poética e a atravessam em sua materialidade linguística, e que dão coloração afetiva à minha personalidade. É como se os meus poemas dissessem algo muito mais profundo, algo escuso, inacessível a uma leitura linear, sobre a dimensão de meu caráter que o eu-lírico parcialmente encoberta; é como se eles permitissem o acesso, se bem que nunca direto, ao inconsciente que determina a totalidade da vida consciente. Em parte, esse potencial que tem a poesia para permitir o acesso ao inconsciente parece dever-se ao fato de ela não se fazer com uma lógica racional, estruturalmente argumentativa; a sua estrutura é a do afeto.
A poesia é composta à proporção que sentimentos, desejos, pulsões vão tomando a forma de representações na alma. No entanto, dessas representações o eu-lírico não está de todo consciente; melhor seria, não está de todo consciente da profundidade simbólica dessas representações. Elas são portadoras de impulsos inconscientes.
Cabe, finalmente, a questão de saber quem é esse sujeito da poesia, quem é esse eu-lírico. Se não é o autor de carne e osso, dotado de uma identidade pessoal, é ele então uma entidade do discurso? Sim, responderemos respaldados nos estudos da Análise do Discurso. É ele uma persona discursivamente cnstituída. É ele um lugar atravessado pela ideologia e pelo inconsciente;  é uma imagem. Mas esta entidade discursivamente construída não seria também uma manifestação de uma região da subjetividade do produtor do texto? A questão é complexa e demanda reflexões cuidadosas que convocam a contribuição interdisciplinar entre psicanálise, sociologia, história, linguística e linguísticas do discurso. Mas ela aponta para a complexidade desse sentimento de eueu que não é uma substância, que não é uma coisa que existe sem um corpo; eu que é uma imagem, uma ficção em torno da qual a vida psíquica busca equilibrar-se em meio ao turbilhão de conflitos que de suas profundezas emergem.
Não estou a supor que a leitura e a escrita sejam formas de me salvar do fardo do ser eu. Essa foi uma suposição que acalentei durante vários anos e que submeti a um processo de desmitificação durante o período em que decidi buscar ajuda psiquiátrica. Da minha relação com a escrita e com a leitura, sobra-me, no entanto, um esforço por me tolerar, por me fazer mais fortalecido em face das armadilhas de minhas neuroses. No entanto, também resisto à ideia de que escrever e ler sejam minhas atividades de fuga ao confronto comigo mesmo e com as frustrações e decepções pelas quais sou, em grande parte, responsável. Quem assim pensa esquece o fato de que o texto é um espaço, necessariamente, interacional-dialógico. Por anos, a escrita serviu-me como um lugar de confronto incessante com meus medos, com minhas angústias, com minhas inquietações viscerais.


A palavra é o único meio de contato entre a consciência, constituída de palavras, e o mundo exterior, onde circulam palavras. A palavra é o espaço dialógico onde a interioridade da consciência se relaciona dialeticamente com a exterioridade do mundo sensível. E nenhuma concatenação de palavras, de signos consegue suprimir o silêncio, e o sentido que todo silêncio comporta e faz dizer.