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sábado, 11 de dezembro de 2010

O controle da televisão


A regressão da consciência pela televisão


No seu trabalho Simulacro e Poder – uma análise da mídia, Marilena Chauí, referindo a lição de Adorno e Horkheimer, patenteia-nos:

“Adorno e Horkheimer assinalam que a “atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural” não deve ser explicada em termos psicológicos, pois “os próprios produtos paralisam aquelas faculdades”. São feitos de modo que a sua apreensão adequada exige rapidez de percepção, capacidade de observação e competência específica, porém impedem, efetivamente, a atividade mental do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desenrolam rapidamente à sua frente”.

Começarei, pois, anunciando a minha tese: é possível e indispensável construir percepções críticas das feições do real. Insisto em que é imprescindível ampliar a nossa percepção do real, de modo a apreender criticamente os diferentes aspectos da realidade social, cultural e política. Para tanto, é importantíssimo o convívio aturado com o livro. A leitura é que abrirá as janelas pelas quais poderemos ver o mundo de diferentes perspectivas, poderemos compreendê-lo e interpretá-lo com mais profundidade. No cotidiano, conservamos nossas crenças e visões parciais do real. Nossas interpretações são rasas e superficiais. Urge, assim, aguçar nossa sensibilidade e percepção para apreender as causas e fatores que subjazem à realidade imediata e aparente, e que a explicam verdadeiramente, rompendo, assim, com as representações ideológicas, que buscam justificar uma determinada ordem social. Essa ruptura se faz pela apropriação do livro, como instrumento que possibilita maior participação no processo social.
Vou considerar, para efeito de reflexão, dois produtos televisivos oferecidos ao consumo da massa telespectadora: o Big Brother Brasil – um dos enlatados americanos que uma grande maioria esmagadora da sociedade brasileira costuma consumir – e um quadro do Fantástico, em que se exibia a vida privada de famílias brasileiras, que eram supervisionadas por especialistas, cuja função era ensiná-las a viver e prescrever o que elas deveriam fazer para solucionar seus conflitos.
O Big Brother foi inspirado no livro 1984, de George Orwell, escrito em 1948 (data invertida para 1984), em que se descreve uma sociedade totalitária, cujos habitantes são permanentemente vigiados por câmeras de televisão. A infração de alguma regra ou lei implicava prisão e tortura. As pessoas, embora não convivessem umas com as outras, sentiam necessidade de se comunicar; para tanto, elas “conversavam” com uma imensa tela de televisão, através da qual se exibia um rosto bondoso, chamado de “O Grande Irmão”, que as vigia e lhes falava, sem, na realidade, dizer-lhes nada. Nessa sociedade totalmente controlada, havia o Ministério da Verdade, que era responsável por produzir a mentira, deturpando fatos e oferecendo versões modificadas do real, que atendiam aos interesses do Grande Irmão. Instituído um departamento chamado de “Novilíngua”, tornou-se possível modificar os sentidos das palavras, de sorte que as pessoas não conseguiam compreender o verdadeiro sentido delas.
Vale notar que o conteúdo crítico da obra foi esvaecido, no momento em que ele foi aproveitado para a produção de um programa televisivo que visa ao entretenimento da massa. Marilena Chauí (2008: 297), nesse tocante, escreve:

“Essa história terrível sobre o controle de corpos, corações e mentes das pessoas por sistemas cruéis de vigilância em sociedades totalitárias teve seu conteúdo crítico inteiramente esvaziado ao servir de modelo para um programa de televisão “engraçado e divertido”, um entretenimento, como acontece com tudo na indústria cultural”.
Não intento refletir sobre a relação da televisão com a Indústria Cultural; no entanto, cumpre salientar que a televisão é parte integrante da Indústria Cultural – expressão que recobre a exploração comercial e vulgarização da cultura, transformada em produtos para consumo. A Indústria Cultural é a indústria do entretenimento – entretenimento que, segundo Adorno, acarreta resignação e alienação.


Certa vez, envolvi-me numa altercação com um amigo, telespectador típico do Big Brother: sua consciência crítica é embotada e sua ignorância o fez acolher passivamente a proposta do programa – entreter. De sua parte, houve também uma postura anti-intelectualista, já que tendeu a revoltar-se contra as posições intelectuais que insistem em criticar a influência danosa e o alcance do programa na vida do homem comum, arrebanhando milhões de pessoas no país inteiro que, em frente à tela do televisor, têm sua atenção e interesse captados para a superficialidade, a mesmice e a vulgaridade.
Meu amigo não se apercebia de que programas desse gênero visam à diversão e ao entretenimento que alienam, que embotam a consciência crítica, que impedem a atividade do pensamento. Não se dava conta de que é possível e necessário experienciar o entretenimento que não aliene, mas que, desafogando a consciência do cotidiano sufocante, promova oportunidades para novas formas de perceber, entender e sentir o mundo. Podemo-nos entreter assistindo a filmes americanos, como os enlatados do tipo “Não é mais um besteirol americano”; mas o cinema promove quase sempre algum grau de reflexão crítica, o que não sucede com os produtos televisivos a que somos adaptados. Aliás, o próprio nome do filme é uma expressão crítica que ironiza as comédias pastelão americanas, caracterizadas, especialmente, por semi-nudez e banalização da morte e violência. Acrescente-se que há filmes norte-americanos que propiciam a reflexão, tais como Inteligência Artificial, O homem bicentenário, O Show de Truman, Rede de Intrigas, para citar alguns. No filme Uma noite no museu, estrelado por Ben Stiller e Robin Williams, há uma cena em que um caminhão de limpeza urbana atropela homens da caverna, pulverizando-os. A cena provoca risos, mas poucos talvez fossem capazes de perceber que, ali, se representava a pulverização ou esquecimento do passado histórico pela força da modernidade e de seus avanços tecnológicos. O caminhão de limpeza, aparelhado com recursos tecnológicos, representa o moderno, o progresso suplantando o “antigo”, o “atrasado” (os homens da caverna). Representa, enfim, a necessidade pós-moderna de superação de um passado, de uma história que é negada pela supervalorização de um presente perene e vazio.
O Big Brother oferece um conteúdo desinteressante a quem se dedica às experiências intelectuais diárias. Ao homem habituado à prática de leitura regeneradora não interessam as intrigas, as supostas relações sexuais, os mexericos, a vulgaridade, as “situações-limites” e, diga-se de passagem, constrangedoras a que são submetidos os participantes do programa; tampouco interessam as patuscadas promovidas, as conversas triviais e superficiais, que giram em torno do comportamento dos adversários. E cabe salientar que tudo ocorre no esquema de competitividade típico de uma sociedade de capitalismo avançado. Tudo se dá numa atmosfera que aprisiona os participantes como ratinhos em laboratórios cuja resistência física e sociabilidade são testadas, sob a aparência de um “jogo” cujas jogadas são manipuladas para atender aos interesses de audiência. Constrói-se um “faz-de-conta” que absorve o telespectador, já sob o efeito da infantilização promovida pela televisão, numa atmosfera marcada pelo anestesiamento da consciência reflexiva.
Há quem, beneficiário de televisão fechada, assista à imagem de uma piscina vazia ou de pessoas dormindo em quartos. Não raro, são essas as imagens oferecidas ao grande público do Big Brother. Do outro lado da tela, ficam as pessoas esvaziadas de pensamento reflexivo, “aprisionadas” pela expectativa de que se iniciem alguns embaraços de ancas ou algum mexerico. O tempo consumido em frente à tela da televisão, quando da apresentação do programa, poderia ser mais bem aproveitado; é um tempo desperdiçado que o livro e as atividades intelectuais poderiam preencher.
O Fantástico, programa exibido pela Rede Globo aos domingos, entretinha seus telespectadores com um quadro em que famílias brasileiras de classe média eram vigiadas por câmeras e acompanhadas por especialistas que ensinam como se deve viver, o que se deve fazer. Do outro lado, há um público que dá opinião e "escolhem" os novos hábitos que devem ser assumidos pelos membros da família. A par da tentativa de a televisão e os especialistas intervirem imediatamente na vida da família, há a invasão da privacidade que é oferecida como um banquete aos telespectadores. Não raro, exibem-se as intrigas entre irmãos em rede nacional para o deleite do grande público.
O indivíduo arguto e crítico apreende, sob a aparência de uma prestação de serviços, sob a aparência de uma tentativa de conscientização, a diluição da privacidade e a intervenção da televisão e dos especialistas, que são convocados a orientar os membros da família nos seus afazeres cotidianos. Marilena Chauí nos adverte que há em nossa sociedade um discurso da competência, disseminado por profissionais especializados nas mais variadas áreas do saber humano, que nos ensinam como viver, o que fazer, o que pensar. Esse discurso produz um efeito de verdade e, por ser reproduzido por quem detém o saber, reveste-se do poder de inculcar ideias, opiniões, formar hábitos, comportamentos; afinal, é interiorizado por um público constituído de indivíduos dóceis (submissos, obedientes), passivos e intimidados, que crêem não deter saber algum, que se crêem incompetentes. O programa do Fantástico ilustra a interferência direta e poderosa desses profissionais a serviço dos interesses comerciais dos meios de comunicação, como a televisão. Na sociedade imagética, sucede a espetacularização da vida, inclusive da vida privada das famílias.
Do exposto, parece lícito concluir que não estamos distantes de uma sociedade como a que é descrita no livro de Orwell, especialmente se levamos em conta os recursos tecnológicos empregados por serviços de espionagem no Brasil e no mundo – serviços que têm, cada vez mais, atendido aos interesses das pessoas comuns, como nos casos de mulheres e homens que supõem estar sendo traídos pelo parceiro. Nos estabelecimentos públicos (bancos, consultórios médicos, etc.), e também em elevadores, é comum encontrarmos uma placa em que se lê a mensagem “Sorria, você está sendo filmado”.
Lembro que a conscientização sobre a importância de reciclar, de cuidar da saúde, mediante uma dieta adequada e exercícios físicos, de evitar o desperdício (de luz, água, alimentos, etc.) deve ser estimulada, mas tal conscientização pode ser conseguida com programas de entrevista e debate (como o Sem Censura, da TVE Brasil, por exemplo), com leitura de reportagens e livros, com palestras em universidade e em escolas, etc., e não através de programas que fazem diluir-se o limite entre o público e o privado, expondo a vida privada a toda a sociedade, que a consome como num banquete.
Somente a leitura assídua e diversificada pode regenerar os sentidos que foram embotados durante o tempo em que o telespectador, anestesiado, passou em frente ao televisor. E cabe lembrar que, ao contrário do que se costuma pensar, a televisão é que cria e se propõe satisfazer os desejos que supomos ter. Tais desejos são produzidos em nós pela propaganda e pela publicidade exibidas na televisão. Assim, expressou-se Marilena Chauí (2008) a respeito da televisão na vida do homem comum:

“(...) como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento, os meios satisfazem imediatamente nossos desejos porque não de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica e perturbação de nossa sensibilidade e nossa fantasia. Em suma, não pedem o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las, amá-las, criticá-las, superá-las”.

E vale acrescentar: a televisão, antes de inibir o exercício do pensamento reflexivo, sequer o exige.