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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

"Há um mistério em mim que me desnuda, uma luz opalina que me ofusca" (BAR)

                    


                             O lusco-fusco do retorno



             Outrora minhas palavras eram tão densamente impregnadas de lirismo que, pesando sobre o papel, o dispersava, quer por fraqueza, quer por costume. Até que, um dia, intuí uma verdade subjetivamente sustentável: escrever é desnudar-me. E quem se dispusesse a ler-me contemplar-me-ia toda a alma nua. Certamente, essa nudez de que falo não garante o entendimento de qualquer contemplador, porque a nudez desvela profundezas, abismos impenetráveis aos espíritos habituados à superfície. Revisitando escritos antigos, compilados em apostilas, percebo-me, algumas vezes, aqui e ali, inteiramente derramado; outras vezes, em retalhos; outras ainda, repartido em escombros. Há alguns anos, era assim que me sentia, que me experimentava: retalhado. Leia atentamente, leitor ausente, este meu poema de outrora, a fim de que se ilumine o sentimento a que até aqui dei materialidade verbal:


De mim um pouco

Existe um pouco de mim que se perde nas entranhas das palavras...
... um pouco de mim que se dilui nas vísceras do tempo
Um pouco de mim que se derrama sobre o Céu ao encalço das estrelas
Aqueles diamantes que reluzem no breu ultrajante de minha ignorância

Existem resíduos de mim no coração de algumas moças...
Imagens translúcidas de um coração acostumado a fugas
Existe uma dose de mim no olhar dessas ilusões encarnadas
Uma dose entorpecente que as faz indiferentes ao meu sacrifício
Existem pedaços de mim espalhados no santuário feminil lascivo e cândido
Onde alguns homens se concentram...

Existem sombras de mim na existência intrigante de Deus...
E uma cruz em meu caminho, ao pé da qual dormem meus sonhos...
Sonhos crucificados, por altivos e imensos...
Existe uma voz em mim que não cala, uma voz enlouquecida...
A que indaga de Deus acerca das qualidades que o tornam soberano
Onipresente, Onisciente e Onipotente – tudo rima com ausente...
E a ausência de Deus é um pedaço de mim que se esvai...
... Que se esvai nos abismos de minha alma endoidecida...
Como disse o eminente filósofo alemão, “Deus está morto”
E a morte de Deus é a morte da eterna esperança humana:
A esperança de compreender e recriar o Amor.

Se Deus está morto – ou sempre esteve morto,
... Existem lembranças de mim enterradas em corações
Que pulsam numa cova funda...
Existe de mim um pouco que se dissipa em cada instante
E minha respiração denuncia minha morte
E estar vivo é simplesmente conseqüência do nascimento
E Deus, a existência, o infinito, o sonho e o Amor...
São fantasmas que nos assombram durante o sono da morte
Existe um eu de mim no outro de cada um...

Mas em mim só existe o vácuo de um cosmo imaginário...
E se lanço olhares sobre a bela jovem que me oferta atenção,
São todos furtivos, retraídos, silentes...
Porque existe de mim um pouco que é indigno, que é sofrível
Existe em mim a morte e a vida, num enlace anímico
E minha alma exala aromas indecifráveis, incompreensíveis, imperceptíveis
... Aromas de um túmulo de vida
E no útero da morte jaz a visceral razão para viver:
O Amor sempre esteve antes do homem: é uma ausência que o preenche,
Existe de mim poeiras de uma plenitude indizível do amor,
E este Amor nunca nascera, foi abortado no ventre dos Céus;
E minha alma é um aborto de um Deus que é morto.

De mim existem palavras amordaçadas, vozes acuadas... sobreviventes
Da lança do destino...
Existe de mim um pouco que não me suporta
Ou que me ama me agredindo...
E me quer vivo.

(BAR)

Não só de poemas foram feitos os retalhos de minha alma; também a costurei com prosas – prosas que, quiçá, agradem, mormente, os doutores da alma, sempre muito interessados por decifrar a linguagem simbólica do inconsciente, cujos sentidos, inacessíveis ao sujeito, se deixam apreender entre os desvãos das palavras. A minha prosa escrita fora um exercício de psicanálise. Dei-me (e dou-me) a conhecer com uma clareza obscura, iluminei-me (e ilumino-me) lançando sobre minha alma uma extensa faixa de sombra. A nudez é mais excitante no lusco-fusco. Toda nudez prontamente dada arrefece o desejo. Ela precisa dar-se escondendo-se, doar-se na medida mesma em que se recolhe. Recolhendo-se, a nudez conserva sua intimidade profunda, seu mistério.
Os que são pouco familiarizados com o legado da psicanálise tendem a reduzir as pessoas à sua fachada social; ignoram o fato de que cada indivíduo é um mistério em si e para si. O inconsciente é uma terra esquecida de nós. É a terra que nos é mais própria. É o relicário onde reside nosso assombro. “A mente – escrevi, certa vez – tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde residem os gritos de um “eu” encarcerado”. Não é escusável dizer que este fragmento resgato de um período em que eu vivia naufragado numa lancinante depressão. A depressão é este estado em que nos afundamos em nós mesmos. Mas pode ser – e o foi para mim – um estado enfermo de extensa, duradoura e profunda atividade intelectual e lírica. Quero frisar que a depressão pode servir para o autoconhecimento. Há dor, certamente, nesse estado patológico; uma dor funda, com ressonâncias somáticas. Mas, alguns dentre nós fazem dessa dor uma arte própria – não sem alguns estragos. Segue-se mais um poema daqueles tempos desditosamente exuberantes. Leia-o, leitor, enquanto me esforço por desentortar alguns pensamentos e pavimentar mais alguns caminhos verbais; pois que não é tempo ainda de por termo a este texto.

Pérola

Na clausura do devanear medonho,
Ser n’alma uma borboleta, ter vôo gracioso
Desperto!Um cemitério de pesar ruinoso
Onde tomba este nefasto sonho!

Sonho a alma tremular qual lábaro
Por que feneceram tantos honrados
E por uma nota árida voar um pássaro
No Inferno cadavérico de Tanatos!

Ah! Este mundo vesgo – Quão homicida!
- Este confessionário do silêncio inquisidor!
Não vê bradar minha alma, a Jaspe esquecida!
Que clama! Que ora! Que canta o Amor!

E num verso encerra todo o vasto vazio
Numa sílaba sibila dos Azevedos velada Dor!
Numa métrica aprisiona de Fagundes o martírio
Lança que n’alma lírica o Destino lhe varou!

Deixai, Quimera, que este viver nevoento
Entoe mais altivo o cântico do abandonado
Menino que a luz de Deus tem ofuscado
Que bebe mais doce o cálice do sofrimento!

Debalde, posto que o seio se tenha embebido
Em suores que lenço algum teria sorvido
Deito a encarcerar num novo verso infausto
                     (Amplidões!)
Que na concha de Afrodite ouço exausto!


(BAR)

Note-se que a palavra “Deus” figura neste poema. E ela é recorrente em muitos poemas que dão registro daquele tempo em que minha alma estava imersa em trevas luminosas. E deixe-me dizer algumas palavras acerca da fé. E falo da fé, hoje, na condição de ateu, que não renega um passado cirurgicamente marcado pela fé cristã. Tenho uma dívida lírica com a fé. É tempo de reconhecer-lhe o valor.
Quando se vive num país em que a maioria esmagadora da população professa uma fé em Deus, crê numa vida após a morte, tornar-se ateu, afirmando a inexistência de Deus e acreditando não haver transcendência alguma, nada semelhante a um além-mundo, é correr o risco de ver estremecida a socialização. Alguns ateus podem até tornar-se persona non grata. Por conseguinte, quiçá, se pretendemos angariar estima e aceitação em tal meio social, é conveniente afirmar o que a maioria afirma, acreditar no que a maioria acredita, e acreditar na existência do único Deus (dentre outros tantos postulantes ao cargo de deus verdadeiro). Como, há muito, me acostumei a viver na contramão, cuidei que, a despeito de o social moldar o individual, há sempre alguma margem de manobra para cada indivíduo; cuidei mais vantajoso fazer valer o primado do indivíduo sobre o social.
Retomemos, contudo, o tema da fé. Dizia eu que falaria da fé a partir do lugar de um ateu; não para desqualificá-la, mas para reconhecer-lhe o valor nas minhas experiências de escrita lírica de outrora. Eu experienciei a fé cristã com tudo aquilo que ela tem de paixão (entenda-se “sofrimento”). Vivi a fé com dor; mas dessa dor verti a poesia lírica, a poesia que buscava regiões transcendentes. O Amor cantado pela poesia era o Amor das Alturas, um Amor que transcendendo a matéria, venceria a morte. Vivi a experiência da fé na solidão mortuária. Devo, em grande medida, à fé a densidade de meu lirismo, o fervor da minha verve poética. No entanto, foi preciso superar a depressão, foi preciso reconciliar-me com a vida; foi preciso viver menos a fé poética e encarar a vida sem subterfúgios, com autonomia.
Neste momento em que estou a escrever este texto, para o que reinterpreto experiências passadas, posso delas dar testemunho sem as angústias que as marcaram tão intimamente.  Em retrospecto, apreendo-me como alguém que, embora cindido, nunca deixou de ser fiel a si mesmo. A experiência da escrita sempre me pareceu este gesto de fidelidade a mim mesmo. Mais um fragmento de outrora deste eu mesmo em retalhos:

Sem título...

Comumente, enceto meus textos com um título, que me ilumina os caminhos verbais que meu espírito crédulo e cândido dedica-se a construir. No entanto, este texto ficará sem título, porque se não me afigura a intenção que o motiva; muito menos seu conteúdo temático, que me é desconhecido. A cada segmento frásico detenho-me a pensar, tentando acomodar a maleabilidade e a abundância de minha alma à rigidez e estreiteza das formas de expressão verbal. Desista, leitor ignoto, se ousa construir a coerência deste texto, dado que ele não foi escrito para fazer sentido. Neste átimo, todo o meu ser foi invadido por um vendaval de desencanto; a insanidade verbal apossa-se de minhas emoções, tornando-as carentes, empobrecidas, desatinadas, adoecidas. São emoções indistintas os habitantes de minha alma, a qual se tem assemelhado a um cemitério, em cujas covas fundas jazem as ilusões de meu coração. No entanto, numa noite de céu tormentoso, as palavras veludas da esperança tornaram a encontrar os meus silêncios verbais. Convenci-me de que somente o AMOR, que, nestes dias decursos, tomei para objeto do pensamento reflexivo, porquanto creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas, podia salvar-me do afogamento da depressão. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico. Aflorou, então, naquele terreno que abriga os restos mortais de meus desvarios de AMOR, uma bela pérola, cuja existência não é dada a conhecer a qualquer homem.
Senti-me grato por tamanho privilégio. As trevas de meu coração transverberaram a luz de dias promitentes... Mas o que era alegria fulgurante tornou-se um vazio opaco e oco, donde é possível ouvir o estrépito suplicante de meu ser por seu retorno.
Quiçá, sejam vãs estas palavras! Talvez, não sejam senão sintomas de uma doença que contaminou meu espírito quando de minha encarnação neste mundo inóspito, cujo absurdo parece ser a única verdade inabalável. Ler é minha fuga; quando repousado com um livro em minhas mãos, ignoro o mundo e sua conturbação desconcertante. É um estratagema eficaz; por muitos anos, bastante, mas agora insuficiente. Os livros só edificarão uma inteligência insigne, mas não proverão a carência de meu coração. Todavia, as palavras continuam sendo minhas fiéis amantes; posso sempre delas me servir para preencher as crateras de ilusões meteóricas que se abriram em minha alma.
Lembro ao leitor imaginário que este texto é, essencialmente, despropositado, ou melhor, é carecido de substância significativa; não comunica; tão só apela ao Desconhecido, cuja forma é inacessível ao espírito humano. Por isso, levarei a cabo este texto com algumas ideias de Freud, colhidas do livro O Mal-estar na cultura (2010). À página 60, lemos o seguinte:


“A vida, tal como nos é imposta, é muito árdua para nós, nos traz muitas dores, desilusões e tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos prescindir de lenitivos”.

Este passo de Freud remete-me à ideia de facticidade da fenomenologia de Sartre, conceito que recobre aquilo que não é necessário, que simplesmente é. As coisas estão diante de minha consciência e minha consciência tem de, inevitavelmente, apreender-se a si mesma como um fato entre tantos outros. Alhures, defini a importância da leitura em minha vida como o único meio de que me servia para viver num mundo que veio antes de mim; um mundo que se nos apresenta, sob o véu da ideologia, pronto, acabado, como um imenso anfiteatro onde encenamos as tragédias de nossas vidas.

Seja vazada em poemas, seja vazada em prosa, minha escritura – pelo menos a que se fez tão penetrante e cirurgicamente eficaz, outrora – é ela mesma testemunho do esforço por fazer conhecidas regiões ignotas de mim mesmo. Havia sim uma ilusão de transparência que eu perseguia com a atividade de escrita. Queria eu que me lessem para que me conhecessem para além da fachada social que, àquela altura, sofria os abalos de terremotos psíquicos.
O fluxo verbal estancou; a linguagem é sempre atravessada por uma insuficiência. Sentimos mais do que podemos dizer. As palavras são deficientes, quando se trata de dar conta da dimensão do simbolismo que constitui a totalidade do inconsciente. Ao longo da produção deste texto, alguns pensamentos que me visitaram instantes antes de me por a escrevê-lo se perderam em meio a outros que me foram assomando à consciência. Agora, eles jazem esquecidos. Há sempre algo de nós que se perde no dizer, porque as palavras jamais, sob hipótese alguma, conseguem apreender a totalidade do potencialmente enunciável. Há, no entanto, regiões de nós que ficam submersas; que se deixam entrever apenas aos espíritos argutos.
Ponho termo a este texto, referindo outro fragmento de um texto, cujo título Eu mesmo com o mundo, codifica um momento de minhas experiências de imersão em mim mesmo. Este texto é mais um retalho, um canto antigo que se faz ressoar.



As palavras transpiram silêncio; minha alma, ausência. Abro um livro de Mitologia Grega... No rosto da folha, estampa-se o título Vênus e Adônis... As palavras cheiram a experiências róseas... Há aromas doces que exalam daquelas páginas... Nas entranhas daquele livro, há palavras lascivas, que me exorcizam o medo do mundo... Minha alma, como uma nau embevecida é levada por espumas de palavras... Meu coração, como velas alçadas, é avistado no horizonte verbal onde os significados se vislumbram e onde o silêncio significa, atravessa toda palavra... Há um silêncio pulsante nas entranhas da linguagem... Fecho o livro, e me sobra o mundo.

“Como o ser humano um dia fez uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres”.
(Clarice Lispector)

Se toda a humanidade pudesse ser submetida à sede do espírito por esquadrinhar a realidade, distinguiríamos, ao cabo do trabalho, três espécies de seres humanos: os que existem; os que resistem; e os que vivem, em que pese à vida. Os que existem reconhecem a existência com o Outro ou através do Outro. Os que resistem se afligem; e os que vivem, cultuam a vida além da morte.