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domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.

domingo, 7 de dezembro de 2014

"O romantismo: O romantismo é um produto do cristianismo. Religiosidade exagerada, veneração fantástica às mulheres e valentia cavalheiresca, portanto Deus, a dama e a espada são os símbolos daquilo que é romântico." (Arthur Schopenhauer)

       
                 

                     

                                  Um itinerário filosófico-(des)amoroso
                          O amor-paixão e suas desventuras


Na história do pensamento filosófico, não foram raros os filósofos que levaram a efeito uma crítica corrosiva do amor, que os levou a considerá-lo uma espécie de mal contra o qual deveríamos nos imunizar. Pode-se citar, entre os filósofos para os quais é necessário prevenir-se contra as maquinações do desejo amoroso, Lucrécio, Schopenhauer e Nietzsche. Se nosso interesse é meditar sobre o amor filosoficamente, cumprir-nos-á, de início, reconhecer a necessidade de distinguir entre três tipos de amor, contemplados no curso da tradição: amor-eros ou amor-paixão, amor-philia e amor-caritas.
Quando me debruço sobre o tema do amor, concebendo-o como experiência de envolvimento entre um homem e uma mulher, e busco encaminhá-lo, tomando como modelo para o desenvolvimento de minhas reflexões, o amor materno, que defino como amor de cuidado, estou ciente de que construo uma perspectiva de amor idealizada, explicável, no entanto, pela interpretação psicanalítica, segundo a qual escolhemos nosso parceiro amoroso com base no modelo de amor constitutivo de nossas experiências com nossa mãe. A forma como se deu essas experiências de amor vai moldar nossas escolhas amorosas na fase adulta. O equívoco que se segue dessa tentativa de estender um modelo de amor, fundado na experiência do cuidado, à busca por entender a experiência de amor entre um homem e uma mulher consiste em ignorar que essa experiência de amor é sempre a de um amor interessado e sexual. Disso resulta que, segundo vários filósofos, essa experiência de amor, fundada na atração sexual, é uma experiência de possessividade, contaminada pelo ciúme e pela ilusão de fusão.
Quando Schopenhauer observou que o amor é um mal, ele se referia ao amor- paixão, ou ao amor romântico. A paixão amorosa é um perigo que Lucrécio, filósofo romano do século I a.C, tratou de denunciar. Lucrécio recomendou que os homens deveriam evitar se apaixonar, sob pena de se tornarem escravos de seu desejo jamais satisfeito definitivamente. O desejo sexual é fonte de sofrimentos, pois carreia ciúme e inveja, além de levar também os amantes a idealizar um ao outro. Poder-se-ia dizer que os que se deixam embeber-se da paixão amorosa estão a amar a imagem construída do outro, e não o outro tal como realmente é.
Este texto se destina à exposição e ao esclarecimento do pensamento desenvolvido por Lucrécio, Schopenhauer e Sartre acerca do amor, na tentativa de nos fazer ver as maquinações com as quais nossa sensibilidade moderna está entrelaçada, por força do trabalho de uma tradição romântica, cujos alicerces repousam numa longa tradição socrático-platônica e cristã, no interior da qual o valor do amor foi sobremaneira estimado. É certo que o Romantismo se encarregou de deturpar a visão de amor platônica, a qual não privou o amor de sua dimensão sexual; devemos a essa tradição romântica a crença, muito corrente no senso comum, de que o amor platônico é amor da impossibilidade de realização, da impossibilidade de consumação sexual. O amor platônico é impulsionado por Eros e nunca deixa, por isso, de ser erótico. No entanto, o amor para Platão deve conduzir os amantes, numa escalada de conhecimento, a amar o Belo em si. Os amantes são produtores de belezas; de modo que os enamorados devem ser movidos a amar o saber, a filosofia, até experienciar o amor à Forma, à Essência do Belo.
Cumpre frisar que o amor que será por mim contemplado nesta exposição é o amor-paixão.



1. Da necessidade de não se apaixonar: uma lição de Lucrécio

Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C, tornou-se famoso por seu poema filosófico De rerum natura (Da natureza das coisas), no qual enaltece Epicuro e revela sua visão de mundo. Lucrécio, poeticamente, descreve os fenômenos da natureza, os mais belos e os mais horríveis, esclarecendo suas causas naturais, à moda do atomismo mecanicista de Epicuro. Para Lucrécio, a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Face a esses medos, o filósofo deve empreender a busca pelo sentido do belo e a tranquilidade da alma.
A Roma de Lucrécio era um lugar de pragmatistas. O pragmatismo estruturava quer a esfera política, quer a da engenharia, quer ainda a do amor. Para Lucrécio, o amor não é mais do que um impulso natural que se corrompe quando se torna objeto de expectativa para a remissão do sofrimento (concepção esta que a Roma cristianizada viria a rejeitar, quando o cristianismo conferiria ao amor um valor supremo e o veria como uma força capaz de remir o sofrimento, o pecado e a morte), do mal e da morte.
Lucrécio atribuiu ao amor e a amizade um lugar central na vida, mas rejeitou o endeusamento da paixão, a qual era vista como uma espécie de escravidão e portadora das mais terríveis infelicidades. Tendo examinado cuidadosamente o modus operandi do desejo sexual e a irresistível necessidade em que ele está baseado, a saber, a necessidade de procriação e de prazer, Lucrécio esperava que nós nos tornássemos capazes de controlá-lo, em vez de nos deixar controlar por ele. Assim, acreditava que nos libertaríamos do medo, da loucura e da ilusão consequentes da tirania do desejo.
Lucrécio entendia que aquilo que as pessoas eroticamente embriagadas chamavam de amor não é senão um sintoma do instinto inconsciente de autoperpetuação. Seu modus operandi é poder e manipulação, guerra e ilusão.
O amor não era, para ele, uma virtude, mas um perigo; e a arte de amar consiste em viver esse instinto impulsivo e imprudente sem nos submetermos a ele. Fica excluído dessa visão de amor qualquer domínio de espiritualidade.
O sexo vicia – disso tinha certeza Lucrécio. O desejo nunca é satisfeito de modo definitivo e, diferentemente de outras formas de desejo, como o de comida e de água, quanto mais buscamos satisfazer o desejo sexual, mas dele ficamos inflamados. Lucrécio não negará a necessidade de gratificação do apetite sexual, mas recomendará moderação. Seu intento é nos libertar da tirania desse desejo e da paixão amorosa.
Não se segue do exposto acima que Lucrécio deixe de regozijar-se com o impulso amoroso, o qual vê como um poder generativo da deusa Vênus. A vitalidade desse poder emociona-se consigo. É ela o deleite ao qual devemos a conservação da vida como um querer mais de si mesma. Isto é, um querer de procriar.
Não devemos nos apressar em concluir que Lucrécio entendesse ser a vida boa em si mesma, nem má. Não sendo má a vida em si mesma, Lucrécio não era um pessimista, como o foi Schopenhauer. Lucrécio era um desalentado: ele evidenciava os horrores da vida cruamente, sem daí concluir que fosse mal em si.
Schopenhauer também verá a paixão sexual como uma energia erótico-cósmica de que está impregnada a natureza. Essa força vital procriadora ele chamará de “Vontade de vida”. No entanto, ao contrário de Lucrécio, por reconhecer nessa força sua insaciabilidade e o sofrimento a que ela nos conduz, ele verá a vida como um mal em si mesma.

2. Os três remédios de Lucrécio

No mundo antigo, grego e romano, a necessidade de prevenir-se contra a loucura do amor, mormente contra a tendência a ser idealizado ou a ser demonizado, quando nos lega uma grande decepção, era lugar-comum. Lucrécio oferece três remédios a esses males do amor, quais sejam: contemplação, casamento e promiscuidade. Destarte, a tirania do sexo pode ser acalmada pela contemplação, contida pelo casamento e, se tudo o mais fracassar, dissolvida pela promiscuidade.
Pela contemplação, desfrutamos prazeres simples e sociáveis. Podemos ver pessoas sexualmente atraentes, sem nos deixar dominar pela lascívia, o medo, o ciúme, a possessividade ou outras paixões tirânicas.
Correndo o risco de dizer muito esquematicamente, uma vez nos surpreendamos desejando fortemente alguém, devemos, propõe Lucrécio, estabelecer uma relação de amizade com essa pessoa e desfrutar deleites moderados, inclusive sexuais. Aqui, Lucrécio revela-se claramente epicurista. Mas reconhece que é extremamente difícil disciplinar nossos impulsos sexuais e nossos anseios por emoção embriagadora em geral.
Aos que, dentre nós, são incapazes disso, ele sugere o casamento e a geração de filhos, como meio de por termo à tendência de produzir ilusões sobre o nosso parceiro amado. Ambos os amantes passariam a se ver com realismo, sem o qual as relações humanas estão destinadas ao malogro. O desejo, em virtude do casamento, será refreado pela satisfação circunstancial, bem como pelas rotinas da vida conjugal. O sexo será canalizado para seu fim próprio: gerar a prole.
Lucrécio não pretende ser cínico ao sugerir o casamento como remédio para arrefecer o desejo sexual, livrando os amantes de suas armadilhas; ao contrário, ele elogia o casamento, porquanto ele resolve o eterno problema de como tornar possível a socialização e a satisfação de nossos anseios desregrados, tornando possível, assim, atingir uma relação duradoura e feliz.
Não há espaço para dar a saber o que nos diz Lucrécio sobre quem deve ser a pessoa adequada para a união conjugal. Considere-se, finalmente, o seu último remédio contra a tirania da paixão amorosa: a promiscuidade.
Aos que são torturados pela obsessão vã devem, pondo freio à imaginação, se lembrar de que há outras amantes atraentes no mundo e devem buscar alívio para sua carga libidinal onde quer que haja oportunidade de sexo recreativo. Escreve, assim, Lucrécio:

Mantenha longe da imaginação e afugente
Tudo que estimula o amor;
Volte sua mente para outros lugares
Livre-se do fluido em qualquer corpo que puder
Em vez de guardá-lo para uma pessoa
O que está fadado a levar a infortúnio e terminar em dor.


3. O amor na visão de Schopenhauer

A filosofia schopenhaueriana é marcada por um profundo pessimismo. Schopenhauer mantém que toda a realidade é governada por uma vontade cega e absurda de viver que leva todo o universo e cada ser vivo a desejar incessantemente algo que, uma vez obtido, torna-se motivo de insatisfação. Vê-se já aqui a medida da dívida que o pensamento de Freud tem para com o pensamento de Schopenhauer.
Segundo o filósofo de Dantzig, a vida do ser humano  combina tragicamente dor e tédio, anseio e luta: desta situação é possível libertar-se somente pondo fim à vontade e a si próprio, alcançando a tranquilidade nulificante de uma espécie de nirvana.
O amor é visto, portanto, à luz dessa concepção pessimista da vida, como um sentimento falso e enganador, primeiramente porque está calcado sobre o instinto sexual, que não é outra coisa senão um fatídico estratagema de que se serve a natureza e, por isso, a vontade, a fim de perpetuar a si própria, por meio da produção de novos indivíduos. Novamente aqui vemos o amor reduzido a um instinto, sem bem que perverso, de procriação. Em segundo lugar, o amor é ilusão, porque a maquinação da natureza se dá à revelia dos envolvidos na experiência amorosa, os quais acreditam que estão vivendo livremente seu amor, embora eles sejam meros instrumentos da vontade postos a serviço da sua finalidade própria: a reprodução. Para Schopenhauer, o casamento também atende a esta lógica rígida e, portanto, é desprovido de qualquer valor sagrado.
O amor é servo da vontade, da irracionalidade que governa cada evento e situação, fato demonstrável pela loucura que, não raro, caracteriza a experiência amorosa. O amor é poderoso e engana. E o ser humano que sucumbe ao jugo do amor é capaz de cometer qualquer perversidade e de resignar-se a toda sorte de sofrimento. O amor o ilude prometendo-lhe uma felicidade não factível. O prazer sexual é sempre uma experiência momentânea e insatisfatória, porque a finalidade do amor não é o contentamento do homem e da mulher, mas possibilitar a geração de filhos e, assim, a perpetuação da natureza.
Schopenhauer, contudo, contemplou outro tipo de amor, que podemos chamar de amor-caridade. Trata-se de um sentimento de compaixão que o ser humano experimenta quando descobre que sua própria dor é igual à dos seus semelhantes. Esse tipo de amor leva-o a se inclinar a um sentimento de partilha e solidariedade. Mesmo sendo ateu, Schopenhauer concebe um tipo de amor semelhante ao amor cristão, isto é, o amor-caridade, que não satisfaz quem o experiencia, mas expressa tão-só piedade para com a miserabilidade da condição do outro. Poder-se-ia dizer que esse tipo de amor conduz os homens a se reconhecerem como filhos do sofrimento inerente à existência.

4. O amor, segundo Sartre

Na fase existencialista de sua obra, Sartre não cessou de insistir no caráter conflitante das relações interpessoais. Seu pessimismo é extensivo às relações amorosas também.
Na opinião de Sartre, o amor é irrealizável, dado que qualquer relação de um ser humano com outro implica uma série de contradições insolúveis. É de se notar, de início, que a experiência amorosa impõe limites à liberdade alheia, não obstante acreditarem os amantes que respeitam a liberdade um do outro.
Além disso, segundo Sartre, o impulso amoroso funda-se numa vontade de unir-se totalmente à pessoa amada, na esperança, de todo injustificável, de que se estabeleça, assim, uma reciprocidade plena de sentimentos e anseios. Pura ilusão! – dirá Sartre. Toda tentativa nesse sentido está fadada ao fracasso, porque, embora o amante declare ser tudo para o amado, sem que isso signifique reprimir-lhe a livre expressão de sua personalidade, a reciprocidade de sentimentos resulta irremediavelmente impossível, de modo que só resta a cada qual um isolamento insuperável.
Não há lugar para esperanças e salvações, na visão sartreana de amor, porque as relações humanas jamais escapam à lógica da posse e da sujeição. O amor é desprovido de autenticidade, já que as relações humanas também o são. Logo, elas, tanto quanto o amor, estão destinadas ao fracasso. Longe de os outros serem fontes para relacionamentos gratificantes, eles são, para Sartre, nosso próprio inferno.