Mostrando postagens com marcador Lucidez. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Lucidez. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 1 de junho de 2023

"Aquilo que os homens de fato querem não é o conhecimento, mas a certeza". (Bertrand Russel)

 



O sentido do conhecimento

 

            Em seu O que os donos do poder não querem que você saiba (2017)[1], Eduardo Moreira observa que “um autor raramente escreve para fazer amigos [...]. Escreve porque não aguenta mais saber sobre algo sozinho”. (Moreira, ibidem, p. 9). Quando se me deparou esse trecho por ocasião da releitura desse livro, ocorreu-me imediatamente que Moreira não apenas fornecia uma razão para a prática da escrita, mas, sobretudo, deixava entrever o fim último de todo conhecimento: tornar-se publicizado, ou, em outras palavras, tornar-se acessível a todos. Quem se dedica à atividade de pesquisa, de produção de conhecimento, como eu, tem necessidade de propalar o conhecimento adquirido, construído, aprendido. O conhecimento não pode ser um bem privado, mas um bem público, acessível e gratuito. Ele é um bem não rival, como ensina Dowbor[2], isto é, seu estoque não é reduzido pelo seu uso. Quando eu transfiro o conhecimento que tenho a outra pessoa, não deixo de tê-lo, continuo com ele; nada é subtraído dele. Uma vez que, na atual fase do capitalismo, o principal fator de produção é o conhecimento, “o principal fluxo de investimentos não resulta em nenhuma máquina nem chaminés, e sim em capacidade de controle de conhecimento organizado”. (Dowbor, 2020, p. 35). Sem pretender fazer incursão no tema do controle exercido pelas corporações financeiras e seus intermediários sobre o conhecimento, para o qual apenas chamo a atenção, o que me interessa aqui é pensar o conhecimento como produto da atividade social, uma construção para cuja existência contribuem gerações de seres humanos séculos a fio.

          Estou convencido de que o saber ou o conhecimento são instrumentos poderosos de emancipação humano-social; privar uma maioria do acesso a ele significa negar a ela a possibilidade de verdadeira emancipação e autonomia. Sim, aos poderosos, aos donos da sociedade não interessa a democratização do conhecimento; não lhes interessa que mais pessoas sejam capazes de questionar os poderes invisíveis, reticulares que as governam, a legitimação dos privilégios de que aqueles gozam. Mas é extremamente difícil esclarecer o oprimido de sua opressão; é extremamente difícil convencê-lo de que, em sua consciência e em seus atos cotidianos, entranha-se uma estrutura ideológica que, justificando a ordem social estabelecida, o faz agir docilmente para a manutenção e reprodução dessa mesma ordem.

         Há entre os dominados social, politica, cultural e economicamente aqueles que são privados das condições necessárias para que eles tomem consciência de sua condição subalterna; e há uma parcela considerável de dominados que, mesmo dispondo do privilégio educacional, como os membros da classe média real, mesmo detendo o capital cultural, ou seja, mesmo incorporando o conhecimento considerado útil e legítimo pela sociedade[3], contenta-se com a presunção de saber, convence-se de que sabe o que, na verdade, não sabe. Esta parcela parece imune ao aprendizado, ao aprofundamento da reflexão. Falta-lhe, fundamentalmente, a paixão pelo conhecimento; e essa paixão não é ensinável. Não me refiro, naturalmente, à paixão que une os enamorados. Refiro-me ao pathos do conhecimento, uma experiência que envolve o padecer, o sofrer, mas também o conflito, a tensão de espírito, o horror, a angústia, o tédio, a tristeza, o desespero, a solidão, a indignação, a raiva, a alegria, como potência de existir. Como conhecer é uma atividade, fundamentalmente, fisiológica, como é todo o corpo que conhece, no processo do conhecimento, nosso corpo é bombardeado de emoções, de sentimentos, nem sempre afáveis.

        Cabe aqui um esclarecimento. O vocábulo “conhecimento”, não obstante formar-se pela anexação do sufixo nominalizador “-mento”, que dá origem a substantivos abstratos que denotam ‘processo’, ‘atividade’, pode ser usado com um significado que o aproxima dos substantivos concretos. Falamos em "adquirir conhecimentos”, dizemos que alguém dispõe de “um repertório de conhecimentos” e, nesses casos, conceptualizamos o conhecimento como “produtos” armazenados em nossa mente/ memória. Os conhecimentos adquiridos são representados como algo que incorporamos, mesmo que sua natureza continue sendo imaterial. Por outro lado, podemos falar em conhecimento como processo, como atividade. Quando falamos em “práticas de conhecimento”, “exercício de conhecimento”, ou “exercitar o conhecimento”. O conhecimento é o ato de conhecer, é um processo ao longo do qual vão-se formando estruturas representacionais complexas, linguístico-cognitivas, do mundo em nossa mente/cérebro. Em qualquer das duas acepções em que tomemos a palavra conhecimento, sempre que o tomamos como um valor a ser perseguido, a ser cultivado, estamos expostos às suas perturbações, ou melhor, decidimo-nos por nos engajar numa experiência arriscada, interminável, irrefreável, que nos arrasta para uma condição a que Cioran chamou Lucidez demoníaca, de que nós não nos apropriamos, mas da qual padecemos. Na Lucidez demoníaca, dá-se o aniquilamento da superstição, da crença na política e na história como movimento temporal teleologicamente orientado e dotado de sentido. Na Lucidez demoníaca, a trama verbal da realidade se desfaz, e a própria realidade se revela porosa e frágil. Revelada a fragilidade e porosidade da realidade, pode-se descobrir o absurdo, que une, como um laço, segundo Camus, o homem ao mundo.  



[1] MOREIRA, Eduardo. O que os donos do poder não querem que você saiba. São Paulo: Alaúde Editorial, 2017.

[2] DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.

[3] SOUZA, Jessé. A Classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

"(...) a existência, tal como é, sem fim nem objetivo, mas inevitavelmente retornando, sem um finale no nada: "o eterno retorno"". (Nietzsche)

 



                      Quando a loucura chega ao poder

 

Em meio a essa insanidade coletiva, tenho me sentindo intelectual e emocionalmente asfixiado. E não é figura de linguagem ou força de expressão: tenho somatizado tudo que estamos vivendo em manifestações sintomáticas de ansiedade e desânimo cognitivo. Minha estratégia para não sucumbir a um estado de ansiedade generalizada ou irromper em fúria, é ler para entender, por exemplo, como é possível que o animal humano seja capaz de tanta loucura e estupidez. Mas, em vez de me aliviar, ler para entender intensifica minha perturbação e perplexidade, porque estudos em psicologia parecem confirmar que os animais humanos não são naturalmente predispostos a buscar a verdade. Há várias teorias, em psicologia comportamental, que buscam explicar por que muitas pessoas simplesmente se recusam a mudar suas opiniões, porque continuam a se comportar em conformidade com suas crenças estúpidas, irracionais, mesmo diante de evidências que as contrariam, que as invalidam. Em suma, tentar entender como é possível a estupidez humana generalizada não tem me ajudado muito emocionalmente. Muito pelo contrário, além de intensificar o sentimento de perplexidade e inquietação, lança por terra a minha confiança na racionalidade e na razão discursiva como ferramentas de combate. Sim, devemos admitir que nos enganamos quando acreditamos ser possível combater a desrazão com a razão, quando pressupomos que basta o diálogo logicamente organizado para extirpar a loucura das massas, para trazer de volta à lucidez uma pessoa que age e pensa em desconformidade com o bom senso. Já escrevi aqui que Descartes se enganou a respeito da distribuição igualitária do bom senso. Não é o bom senso o que é distribuído justamente entre os homens; mas a estupidez. A considerar o que nos ensinam os estudos em psicologia comportamental, os seres humanos não estão naturalmente predispostos à verdade, eles querem vencer discussões, querem proteger sua autoestima, seu ego, evitando o confronto com aquilo que lhes mostre que estão errados. O conhecido efeito Dunning-Kruger, por exemplo, nos diz, grosso modo, que “quanto mais burro você for, mais confiante você será de que não é realmente burro”. As pessoas sofrem de muitos vieses que funcionam como mecanismos psicológicos de preservação do valor próprio delas. Mas além desses vieses, devemos admitir que nem todos são inteligentes o suficiente para reconhecerem que estão errados, para reconhecerem sua própria estupidez (sim, os burros existem e não há nada que possamos fazer!). Nem mesmo sabendo disso, sinto-me mais aliviado, porque são minhas crenças iluministas básicas que estão em jogo, crenças inegociáveis, porque são elas que me motivam para o exercício da filosofia. Ora, vejam, estou me dedicando a uma pesquisa de doutoramento em filosofia em que procuro pensar o niilismo como condição de possibilidade para a desmitificação do homem, para seu retorno à vida da Lucidez, porque, na maior parte das vezes, esse animal estúpido e doente vive na Caverna de Platão. Como continuar acreditando ser possível essa travessia, esse resgate em face do caos de dissonância cognitiva, de insanidade, de irracionalidade em que vivemos? Talvez seja isto: o animal humano é terminantemente doente e irreversivelmente louco, sua condição insana é incurável.

Resta aos sãos de corpo-espírito tocar o barco...



(...)


Neste cair da noite, revisitando as páginas de Nietzsche, supero, momentaneamente, aqueles sentimentos diurnos de cansaço, fraqueza e desespero, ao recordar que o mundo, para Nietzsche, é um  processo cujas forças múltiplas combatem umas com outras sem trégua. Recordo, em suas páginas, que a vontade de potência precisa daquilo que lhe faz resistência para se autossuperar. Que a vontade de potência é uma força plástica e criadora. Que a luta que se trava entre as vontades de potência não visa a metas ou a objetivos, mas expressa o caráter agonístico e a pluralidade beligerante do mundo enquanto criação e destruição contínuas. Se Nietzsche sofreu, soube ser combatente de seu sofrimento, combatente de todas as manifestações de fraqueza, de degenerescência das vontades de potência infestadas pela negatividade. Em suma, o vir-a-ser do mundo é o do conflito, da guerra sem trégua entre os contrários e a afirmação deste mundo exige-nos uma única tarefa inalienável: “ser o que sempre deve superar a si mesmo” (Zaratustra)




                                  A lucidez niilista


Situado numa abordagem dialógica das filosofias de Nietzsche, Schopenhauer e Cioran, o niilismo é, em nossa pesquisa, encarado como a condição sine qua non do pensamento, na medida em que pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante. Assumindo esse pressuposto, propomo-nos discutir a problematicidade do niilismo compreendendo-o, na esteira de Nietzsche, como um fenômeno polimórfico e polissêmico que, não podendo ser reduzido à lógica do movimento agonizante dos valores superiores, nem ao próprio movimento histórico-cultural que leva à aniquilação todo um imaginário-simbólico plasmado na interpretação socrático-platônico-cristã moral de mundo, descerra a sua própria Lucidez como a qualidade que leva o homem a despertar-se, a desenganar-se, a desiluniosar-se acerca de sua condição como ser no mundo. Habitando a Lucidez niilista, o homem pode reconhecer-se como um animal integrado à natureza, como um fio da teia da vida. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Nós, homens e mulheres do Ocidente, vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo, como pensava Nietzsche, é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. É esta a qualidade que tem o niilismo também no pensamento de Schopenhauer e Cioran, conforme se mostrará. Este trabalho de desmitificação do homem, no entanto, não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. O niilismo ativo também deve ser ultrapassado para que se perfaça o niilismo extremo, este sim a variante de niilismo que torna possível ao homem assumir-se como criador, como artista de sua existência. Articulada ao atual contexto pandêmico da Covid-19, nossa pesquisa nos leva a questionar não só o estatuto metafísico-imaginário que o homem atribui a si mesmo crendo-se o ápice da Evolução ou a coroa da Criação, como também nos incita a pensar nos impactos de suas ações predatórias sobre o ecossistema do qual ele não se reconhece como parte, por força de sua constituição como ser social ou cultural alienado. Nesse contexto de questionamento, é possível pensar o niilismo como a condição histórico-antropológica para a abertura de uma visão de mundo calcada sobre uma ecologia profunda, à luz da qual o mundo é uma totalidade integrada e os seres humanos não são seres apartados do meio ambiente natural, mas um fio da grande teia da vida.





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

"A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida..." (Schopenhauer)

                                                


                   


A lucidez niilista na metafísica de Schopenhauer[1]

                             The nihilistic lucidity in Schopenhauer's metaphysics

 

 

 

Resumo

O niilismo, em Schopenhauer, não se reduz a uma negatividade corrosiva da existência. Seu pensamento, gestado pela confluência do lógos grego com a espiritualidade oriental, lança sobre o niilismo uma luz que, descortinando a precariedade do devir vital e a radicalidade da problematicidade da condição humana, faz-nos ver que o confronto com o nada é inescapável e necessário como condição de possibilidade para a produção de um modo de ser e viver verdadeiramente livre e elevado.

 

Palavras-chave: niilismo; Schopenhauer; Vontade; nada

 

 

 

Abstract

 

Nihilism, in Schopenhauer, is not reduced to a corrosive negativity of existence. His though, incored by the confluence of the Greek logos with Eastern spirituality, casts upon nihilism a light that, unveiling the precariousness of the vital future and the radicality of the problemacity of the human condition, makes us see that the confrontation with nothingness is inescapable and necessary as a condition of possibility for the production of a way of being and living truly free and high.

 

 

 

 

Keywords: nihilism; Schopenhauer; Will; nothingness.


1. Introdução

O que nos propomos, no presente artigo, é descerrar um solo hermenêutico à luz do qual um gesto de interpretação[2] venha a tornar manifesta a lucidez niilista do pensamento schopenhaueriano a partir da consideração da distinção entre nihil privativum e nihil negativum. Pressupor ser possível uma lucidez niilista é esposar a perspectiva segundo a qual ser niilista é a condição sine qua non do pensamento, na medida em que o pensamento corrói as “evidências”, nadifica as certezas, subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justifiquem toda sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Os limites que nos impõe a natureza deste texto e os objetivos perseguidos impedem-nos de nos alongar nas considerações acerca do que entendemos por lucidez niilista. Por conseguinte, será suficiente dizer que usamos o vocábulo “lucidez” para significar ‘o que traz à luz do dia’, ‘o que torna transparente’, ‘o que põe na claridade’, ‘o que desoculta’, ‘o que torna evidente’, ‘manifesto’.

A discussão que desenvolveremos sobre o caráter niilista[3] do pensamento de Schopenhauer e que damos a conhecer neste artigo, sendo um recorte de nossa pesquisa de doutoramento, impõe-nos que esclareçamos, minimamente, o contexto teórico-metodológico em que ela se situa. O niilismo, a partir de Schopenhauer, é abordado, em nossa pesquisa, à luz da compreensão dialógica do discurso que chegou até nós pela pena de Bakhtin[4], que nos ensina que “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva”.[5] A dialogicidade de nossa abordagem do niilismo põe em cena, portanto, numa relação confrontativa, o pensamento de Schopenhauer, de Nietzsche e de Cioran. É no horizonte das considerações levadas a efeito por Nietzsche sobre o niilismo que buscaremos desenvolver e sustentar a tese segundo a qual o niilismo é uma condição ontológica que deve ser assumida por todo pensamento filosófico que, após o trabalho da desconstrução, de que é expoente Nietzsche, se pretende expressão de um poderoso convite à lucidez e ao questionamento radical. Tal é o enfrentamento a que o pensamento filosófico do nosso tempo “pós- metafísico” não pode se esquivar. Urge reconhecer que o niilismo não está ligado ao nada, mas ao ser, pois o nada é impotente, intangível[6]– é o que nos parece querer fazer ver também Volpi[7]:

 

Não há como ver no niilismo apenas uma tentativa de vanguardas intelectuais, pois ele agora impugna o próprio ar que se respira. Sua onipresença multiforme torna-o tão visível que, paradoxalmente, fica difícil apreendê-lo numa definição clara e unívoca. Não há consenso em seu diagnóstico nem na anamnese de suas patologias e do mal-estar cultural que representa. Até os estudos históricos sobre a gênese do termo acabaram por mostrar como tem sido complexa e variada a manifestação desse movimento.

 

Volpi não só parece corroborar o fato de que vivemos hoje no âmago do niilismo; ele nos diz mais. Ele sublinha o caráter multiforme do niilismo, caráter este que se depreende do tratamento dispensado por Nietzsche ao niilismo. Na esteira de Nietzsche, assumimos, portanto, que o niilismo é um fenômeno multiforme, multívoco, que acena para a plurivocidade do mundo, a saber, para a multiplicidade de sentidos do mundo, a qual se deixa apreender como uma questão de predomínio das forças. A despeito de ser uma condição ontológica, o niilismo se concretiza como fenômeno histórico - portanto, heterogêneo, mutável, dinâmico, múltiplo- inerente ao jogo agonístico das forças que atravessam e constituem as condições históricas da existência humana. Consoante observa Volpi, “a respeito do niilismo, sustentamos a mesma convicção válida para todos os verdadeiros problemas filosóficos: eles não têm solução, mas história”.[8]

                                                                                                                                   

2. O mundo como representação

 

Nesta seção, não vamos descer a pormenores sobre a compreensão schopenhaueriana do mundo como representação. Cingir-nos-emos a colher apenas os elementos que, constitutivos dessa perspectiva sob a qual o mundo é considerado, são relevantes para garantir a consistência de nossa interpretação da lucidez niilista do pensamento schopenhauriano.

“O mundo é a minha representação”[9]– eis a primeira frase do primeiro livro de O Mundo como Vontade e Representação, a qual, estabelecendo o primeiro ponto de vista sob o qual o mundo será considerado, enuncia o fundamento da teoria epistemológica schopenhaueriana. O que se seguirá a essa frase, nesse primeiro livro, é a exposição minuciosa, levada a efeito por Schopenhauer, de sua teoria epistemológica. Ao desenvolvê-la, Schopenhauer buscará descrever a primeira forma de experiência que temos do mundo. A questão que, de início, reclama esclarecimento é, pois, esta: o que significa dizer que o mundo é minha representação?  Significa dizer que o mundo, enquanto representação, não existe independentemente do sujeito que o conhece. “O mundo é minha representação” postula o dualismo sujeito-objeto, legado por Kant, mas vai além dele. Leia-se o que nos diz Schopenhauer sobre o alcance epistemológico dessa sua primeira tese[10]:

 

Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais independente de todas as outras e menos necessitada de uma prova do que esta: o que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro é apenas objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação.

 

 

O mundo no qual o homem existe só existe como representação, ou seja, só existe em relação a este homem que percebe[11]. Segue-se daí que “tudo o que pertence e pode pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estar-condicionado pelo sujeito, existindo apenas para este”.[12] É justamente porque a existência do mundo está numa relação de dependência com o sujeito cognoscente que o mundo é representação.

O mundo como representação é o primeiro ponto de vista sob o qual Schopenhauer compreenderá o mundo. A representação nada mais é do que o mundo tal como é percebido pelo sujeito. Nesse sentido, a representação se define como relação indissociável do sujeito percipiente com o objeto percebido. O sujeito, por seu turno, é aquele que tudo conhece e não é conhecido por ninguém. Consoante assinala Schopenhauer, o sujeito é “o sustentáculo do mundo, a condição universal e sempre pressuposta de tudo o que aparece, de todo objeto, pois tudo o que existe, existe para o sujeito”.[13] A representação supõe duas instâncias essenciais, as quais são como suas duas metades: o sujeito e o objeto. Segundo Schopenhauer, basta que um único sujeito mais um objeto se apresentem para que se constitua o mundo como representação; no entanto – e aqui é evidente o valor epistemológico conferido ao sujeito como substractum do mundo.

 

 (...) um único ser que representa, com o objeto, complementa o mundo como representação tão integralmente quanto um milhão de seres que representam; mas se aquele único ser desaparecesse, então o mundo como representação não mais existiria.[14]

 

 

 Vê-se que, sem sujeito, não há mundo como representação. Schopenhauer não rejeita a existência de um mundo exterior; e, nesse sentido, ele não adere a um idealismo absoluto. Na verdade, ele sustenta – deve-se frisar – que o único mundo acessível a nós é aquele que os nossos sentidos nos representam sob as formas de tempo e espaço. No entanto, sujeito e objeto são metades inseparáveis, supõem-se reciprocamente, “porque cada uma delas possui significação e existência apenas por e para a outra e desaparece com ela”.[15] Todo e qualquer objeto da intuição, ou seja, todo e qualquer fenômeno, está submetido às condições formais do pensamento, do tempo e do espaço. Assim, o objeto toma sua forma do espaço e do tempo, e, por isso, existe na forma de pluralidade. Em outras palavras, na dependência com relação ao sujeito, o objeto existe no tempo e no espaço sob a forma da pluralidade. O sujeito, ao contrário, escapa à lei do tempo e do espaço, “pois está inteiro e indiviso em cada ser que representa”.[16]

O mundo como representação está, portanto, submetido ao princípio de razão. A forma do princípio de razão no tempo é a sucessão. O princípio de razão constitui o modo universal da aparição fenomênica de todo objeto. É, ademais, o princípio constitutivo de toda representação. O princípio de razão, enquanto lei da causalidade e de motivação, determina a experiência; por outro lado, como lei de justificação dos juízos, determina o pensamento (nesse caso, nenhuma proposição pode ser verdadeira sem que haja uma razão suficiente para tal). Schopenhauer subsume no princípio de razão suficiente as formas do tempo, espaço e causalidade. A mais simples dessas formas é o tempo. Sob a forma do tempo, o princípio de razão leva-nos à experiência da impermanência de todas as coisas, cuja nulidade Schopenhauer estende para toda a experiência possível do mundo, consoante se depreende do trecho a seguir:

 

Assim como no tempo cada momento só existe na medida em que aniquila o momento precedente, seu pai, para por sua vez ser de novo rapidamente aniquilado; assim como passado e futuro (independentes das consequências de seu conteúdo) são tão nulos quanto qualquer sonho, o presente, entretanto, é somente o limite sem extensão e contínuo entre ambos – assim também reconhecemos a mesma nulidade em todas as outras formas do princípio de razão, convencendo-nos de que, do mesmo modo que o tempo, também o espaço e, como este, tudo que se encontra simultaneamente nele e no tempo, portanto tudo o que resulta de causas e motivos, tem apenas uma existência relativa (...).[17]

 

 

A descrição que Schopenhauer nos dá do fluxo perpétuo de todas as coisas pode-se encontrar, conforme reconhece o próprio autor, na filosofia de Heráclito, que afirma o devir eterno do mundo; ou, em Platão, que via no mundo deveniente uma carência de ser; ou ainda em Espinosa, para quem as coisas existentes são acidentes da única substância que existe – Deus. Schopenhauer lembra também que a experiência da impermanência de todas as coisas está codificada na forma da sabedoria indiana. Maya, que, na sabedoria vedanta, é o mundo como ilusão, encobrindo os olhos dos mortais, impede-os de dizer se o mundo em que vivem é verdadeiramente real ou não[18]. Esse mundo se lhes assemelha a um sonho.

 

2.1. O mundo como vontade

 

No livro II de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer apresenta e desenvolve o segundo ponto de vista sob o qual o mundo é considerado: o mundo como Vontade. Ao longo de todo esse segundo livro, Schopenhauer se dedicará, especialmente, a esclarecer o significado do termo Vontade.

É, sobretudo, na concepção do mundo como Vontade que se pode descortinar o caráter absurdo da existência. É também por força da categoria da Vontade, como coisa-em-si, impulso cego e sem finalidade, à luz da qual o mundo é interpretado, que a filosofia schopenhaueriana se constitui como uma filosofia do absurdo.

Faz-se mister reter o seguinte: o conceito de Vontade constitui o elemento nuclear da filosofia pessimista schopenhaueriana. Rosset[19] chega, inclusive, a dizer que a Vontade é o único pensamento que Schopenhauer se dá a pensar para compreender o mundo. O absurdo que a filosofia de Schopenhauer põe a descoberto não repousa apenas, segundo acredita Rosset, na concepção de Vontade, como fundamento sem fundamento, finalidade sem fim, como impulso cego; mas também - e sobretudo - no fato de que a Vontade se apresenta como um acontecimento necessário para que Schopenhauer explique a existência de um mundo ordenado – ordem esta, no entanto, que se desvela, à luz do pensamento schopenhaueriano, absurda, sem sentido.

O que é, pois, a Vontade de que fala Schopenhauer? Num primeiro momento, não devemos tomá-la como a vontade individual, aquilo que chamamos de nossa vontade. A Vontade é a coisa-em-si kantiana, é a essência íntima do mundo, a substância do fenômeno. A Vontade é eterna e infinita; é atemporal, ou seja, escapa às condições de tempo e espaço, e ao princípio da causalidade. Ademais, somente a Vontade é livre. Ela é o ser em si comum a todos os fenômenos e o fundamento de todo o mundo fenomênico. A Vontade é o fundamento metafísico do mundo; é a causa sem causa e sem finalidade do mundo fenomênico.

A Vontade é totalmente independente da pluralidade, conquanto suas manifestações no tempo e no espaço sejam infinitas. A Vontade, portanto, é a coisa-em-si, a essência íntima do mundo e, embora seja de ordem metafísica, independente das condições do tempo e do espaço, se manifesta nas diferentes formas do mundo inorgânico e orgânico. Schopenhauer chama objetivação da Vontade a manifestação da Vontade nas diversas formas fenomênicas do mundo.

Como coisa-em-si, a Vontade é absolutamente diferente do seu fenômeno (o mundo) e das formas fenomênicas em que se manifesta e em relação às quais é independente. Ainda que a concepção de Vontade como coisa-em-si inspire-se no conceito kantiano de coisa-em-si, Schopenhauer, ao contrário de Kant, confere um caráter cognoscível à coisa-em-si. É claro que a cognoscibilidade da coisa-em-si schopenhaueriana é relativa, porque a conhecemos relativamente à experiência que temos do nosso corpo – o meu corpo, sob esse segundo ponto de vista em que o mundo é considerado, é a minha vontade. Em seguida, a inteligência nos leva a apreender a Vontade no conjunto dos fenômenos do mundo inorgânico e orgânico. Tudo que existe existe como objetivação da Vontade, isto é, existe como fenômeno, como representação. O absurdo da existência, que se deixa ver na compreensão da objetidade da Vontade, ganha a espessura de um drama existencial cujo desenvolvimento vai revelando, à proporção que o leitor nele se aprofunda, no livro IV, o caráter trágico do destinar-se do mundo e da existência humana. Importa-nos considerar, levando-se em conta nosso interesse em descortinar o alcance da lucidez do niilismo schopenhaueriano, o aspecto sombrio da tirania da Vontade. Não obstante, antes de nos debruçar sobre essa empresa, é indispensável trazer à baila a importância do conceito de “princípio de individuação” (principium individuationis). Se, conforme vimos, tempo e espaço são reunidos sob a jurisdição do princípio de razão suficiente, quando o mundo se nos apresenta sob o ponto de vista da representação, agora, do ponto de vista do mundo como Vontade, tempo e espaço constituem o princípio de individuação. Temos, pois, o princípio de individuação, suprimindo do princípio de razão, a causalidade, e conservando o tempo e o espaço. Pelo princípio de individuação, a saber, o tempo e o espaço, o que é um só na essência aparece como múltiplo e diverso na sucessão do tempo e na coexistência no espaço. O princípio de individuação é responsável pela pluralidade das aparências fenomênicas no mundo. O princípio de individuação é o próprio véu de Maya, “de acordo com o qual se considera um indivíduo absolutamente diferente dos demais seres e deles separado por um amplo abismo”.[20] Submetido à ilusão de Maya, o indivíduo vive em conformidade com a crença de que goza de alguma distinção e superioridade em relação aos demais seres. Essa crença é conforme ao seu egoísmo e lhe dá sustentação. O grau do princípio de individuação é sensível à escalada da objetivação da Vontade. Assim, objetivada nos animais, a Vontade deixa mais nítido e acentuado um grau de individualidade que falta nos vegetais, ainda que a individualidade nos animais não atinja seu grau mais elevado. É somente no homem que a individualidade atingirá seu grau mais elevado; nele “vemos aparecer significativamente a individualidade em grande diversidade de caracteres individuais”.[21]

Passemos, pois, a considerar o aspecto sombrio do mundo como vontade, destacando a insignificância radical do indivíduo e a tirania da Vontade.

Na seção 54, do livro IV, Schopenhauer revisa, a título de síntese, o que foi tratado nos três primeiros livros. É oportuno dar a saber essa síntese, dispondo em ordem vertical as ideias pertinentes que ela faz recordar:

 

a. O mundo, como representação, é, para a Vontade, um espelho em que ela toma consciência de si mesma;

b. A perfeição e clareza com que a Vontade vê a si mesma são o estágio superior de uma escala gradual;

c. No homem, reside o grau superior de objetivação e perfeição da Vontade.

 

A vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento, é apenas um ímpeto cego e irresistível – como a vemos aparecer na natureza inorgânica e na natureza vegetal, assim como na parte vegetativa da nossa própria vida – atinge, pela entrada em cena do mundo como representação (desenvolvida para servir à vontade), o conhecimento do seu querer e daquilo que ela quer, a saber, nada senão este mundo, a vida, precisamente como esta existe.[22]

 

 

Há nesse excerto duas ideias que devemos destacar: a primeira ideia é que a Vontade é ímpeto cego quando não iluminada pela inteligência; a segunda é que a Vontade quer o mundo mesmo, a vida mesma “precisamente como esta existe”. Schopenhauer prossegue advertindo que, como a Vontade quer sempre a vida, e como a vida é a manifestação pura da Vontade, resta redundante dizer que Vontade é vontade de viver. Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa.

Uma vez que a Vontade é a coisa-em-si, o fundo íntimo, a essência do universo, a vida e o mundo fenomênico são apenas o espelho da Vontade. Schopenhauer lança mão da imagem da sombra e do corpo para sublinhar a indissociabilidade entre Vontade e vida. (“este mundo acompanhará a vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo”)[23]. Onde quer que encontremos Vontade haverá vida, mundo.

O indivíduo é apenas aparência. Ele nasce e morre, quando visto à luz do intelecto submetido ao princípio de razão e ao princípio de individuação. Consoante sublinha Schopenhauer, “da perspectiva deste conhecimento, o indivíduo ganha sua vida como uma dádiva, surge do nada, e depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada”.[24]

Nascimento e morte se prendem às aparências assumidas pela Vontade; são acontecimentos que tocam à vida. A Vontade nada tem a ver com eles. Por conseguinte, Schopenhauer começa a nos mostrar a insignificância do indivíduo em face da Vontade. A primeira passagem em que essa insignificância se torna patente é a seguinte: “Nascimento e morte pertencem exclusivamente à aparência da vontade, logo, vida, à qual é essencial expor-se em indivíduos que chegam à existência e desaparecem; estes são aparências fugidias”.[25] Nascimento e morte são acontecimentos integrantes da dinâmica da vida: “equilibram-se em condições recíprocas”[26]. Schopenhauer vem em socorro da validade de nossa interpretação:

 

Que procriação e morte devam ser consideradas como algo inerente à vida e essencial à aparência da vontade advém do fato de procriação e morte apresentarem-se apenas como expressões altamente potenciadas Daquilo que dá consistência ao restante da vida, que nada mais é, em toda parte, senão uma alteração contínua da matéria em meio à permanência fixa da forma: justamente aí se tendo a transitoriedade dos seres individuais em meio à imortalidade da espécie.[27]

 

 

A imagem da morte (e também da geração, evidentemente) como o próprio movimento constitutivo da dinâmica da vida extirpa toda sombra de dúvida quanto à relação intrínseca da morte com a vida. O conceito de vida, em Schopenhauer, exibe algumas tonalidades, que ganham investimentos semânticos tais como ‘esforço’, ‘dor’, ‘sofrimento’, ‘abundância’, etc. Uma dessas tonalidades encontra registro no enunciado: a vida é um fluxo perpétuo da matéria através de uma forma que permanece invariável. A forma que permanece invariável é a Vontade. A Vontade é eterna e indestrutível. O indivíduo, ao contrário, é a aparência; a espécie, a forma. Esta é imortal; aquele morre necessariamente. Essa definição schopenhaueriana de vida pode ser desmembrada, de modo que possamos nos aperceber da insignificância de tudo que existe. A vida é devir: todas as suas formas fenomênicas estão submetidas ao fluxo incessante cujo modus operandi é o da luta, do conflito, da disputa interminável que arrasta os malogrados para o nada. Por outro lado, a vida é a manifestação da Vontade cega e indiferente à sorte dos fenômenos nos quais ela se produz; por isso, “o indivíduo (...) não tem valor algum para a natureza, nem pode ter, pois o reino da natureza é o tempo infinito, o espaço infinito e, nestes, o número infinito de possíveis indivíduos”.[28] Por conseguinte,

 

(...) ela sempre está disposta a deixar o ser individual desaparecer, o qual, portanto, sucumbe não apenas em milhares de maneiras diferentes por meio dos acasos mais insignificantes, mas originariamente já é determinado a isso e levado a desaparecer pela própria natureza desde o instante em que serviu à conservação da espécie.[29]

 

Por fim, no tocante ao que chamaremos de “tirania da vontade ou do querer”, deverá ser bastante o que se segue, dados os limites desta exposição.

O seguinte passo reúne, numa síntese, de modo bem articulado e claro, os aspectos essenciais da teoria da Vontade como querer-viver:

 

Querer é essencialmente sofrer, e, como viver é querer, toda a existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida... A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina; uma história natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados.[30]

 

 

Se procedermos atenta e novamente à leitura, não encontraremos dificuldades de concluir que o referido excerto encerra as lições fundamentais do pessimismo schopenhaueriano. Querer, ou seja, desejar é  essencialmente sofrer, porque, ao desejar, o homem, cuja essência reside nesse querer, encontra-se em estado de carência, de privação; por conseguinte, ele, ao querer, sofre. Como a vida é manifestação da Vontade, isto é, manifestação desse querer incessante, a vida é essencialmente dor, sofrimento.

O homem é o fenômeno mais elevado e perfeito da Vontade. Como seja um ente dotado de conhecimento, de uma consciência superior, a dor de viver se lhe afigura mais intensa; ele é, por isso, o ente que mais sofre. Atentemos para as imagens usadas por Schopenhauer na constituição de sua concepção de vida. Pondera o autor que “a vida do homem não é mais do que uma luta...”, da qual o homem está certo de que sairá derrotado. Todos os seus esforços, mobilizados para essa luta, são inúteis. Não importa quanto o homem faça, o que faça: a vida é uma experiência da qual ele será, mais cedo ou mais tarde, necessariamente privado. O destino do homem o reduzirá inapelavelmente ao nada. A vida do homem, escreve Schopenhauer, “é uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Eis encenado aqui o destino de Sísifo, destino comum a todo ser humano: o homem luta sempre, quer sempre e sempre, mas, se for inquerido sobre a razão por que faz o que faz, não sabe bem responder. Ele sabe que precisa fazer o que faz; seu trabalho consiste em ser um combatente que morrerá necessariamente com as armas nas mãos. Carregar pedra e recomeçar esse trabalho árduo diariamente – trabalho que é a própria vida de que ele, homem, se encarrega na mais profunda ignorância sobre a causa (se houver alguma ) por que se encontra a ele obrigado e a finalidade (se houver alguma) com que o realiza, até que a morte, credor implacável, venha-lhe tomar aquilo que a ela pertence, é o que torna nossa condição semelhante à de Sísifo.

Essa “história natural da dor”, que é a vida mesma, é reiniciada toda vez que vem ao mundo uma nova criança. O instinto sexual garante, portanto, que essa história de dor seja incessantemente repetida. Dar à luz uma criança não é mais, segundo Schopenhauer, do que recomeçar a marcha da história humana, cuja insignificância não escapou ao escrutínio descritivo do autor. O que chamamos de “tirania do querer” é – deve-se enfatizar – a forma mesma da vontade de viver. O homem é, essencialmente, vontade, desejo insaciável. Porque é essencialmente desejo, o homem sofre. O objeto desejado, uma vez possuído, jamais consegue cumprir as promessas sobre ele projetadas quando era objeto do desejo. Nunca atingimos uma satisfação final. A vontade em nós, a vontade que, essencialmente, somos permanece insatisfeita. Mas, quando um desejo é satisfeito em algum momento, ele muda de forma e nos torna a torturar. Para Schopenhauer, portanto, não há escapatória a essa forma de tirania: ainda que todas as formas possíveis de desejo fossem satisfeitas, a necessidade do querer sem motivo, sem alvo, permaneceria, e nos veríamos inundados de um sentimento de vazio, paralisados pelo sentimento de perda de significado de tudo; em uma palavra, seríamos absorvidos num tédio insuportável.

 

3. O contexto místico-religioso da filosofia de Schopenhauer

 

Num trecho que se topa no livro IV de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer reconhece sua dívida para com a tradição espiritual cristã e com a tradição espiritual da Índia, nomeadamente e sobretudo do hinduísmo e do budismo.

 

Recorri aos dogmas da religião cristã, eles mesmos estranhos à filosofia, apenas para mostrar que a ética oriunda de nossa consideração, que é coerente e concordante com todas as partes desta, embora nova e surpreendente em sua expressão, de modo algum o é em essência; ao contrário, concorda totalmente com todos os dogmas propriamente cristãos e no essencial já se acha nestes; também concorda com a mesma exatidão com as doutrinas e os preceitos éticos que foram expostos de forma bem diferente nos livros sagrados da Índia.[31]

 

 

Importa-nos oferecer, sem pretender a exaustão, uma descrição da conjuntura dogmática da tradição místico-religiosa do budismo e do hinduísmo, destacando os aspectos que são concordantes com a filosofia schopenhaueriana e que foram ressignificados por ela. No tangente à influência da tradição cristã na formação do pensamento schopenhaueriano, será suficiente delimitar o contexto escatológico com o qual esse pensamento dialoga: 1) nossa condição originária é essencialmente sem salvação; 2) o mundo é manchado pelo pecado; ele é mau e pertencemos, em essência, ao que é mau; 3) A redenção só pode alcançar-se por meio da fé; 4) a fé mesma só se dá por meio da graça. Em consonância com a escatologia cristã, nosso maior delito é haver nascido. Porque somos frutos de um erro pelo qual pagamos, temos necessidade de redenção. É este contexto escatológico que subjaz ao desenvolvimento da filosofia ética, cujo estágio máximo é a negação da vontade de viver. A mortificação da vontade deriva da relação íntima entre o conhecimento e o querer no ser humano, mas, não sendo oriunda da deliberação, “chega (...) subitamente e como de fora voando”[32]; portanto, tal como se fosse um efeito da Graça.

Ao afirmar que tudo que existe, que todas as aparências são objetidade de uma Vontade, que constitui a essência do mundo, Schopenhauer se mostra afinado com as sabedorias orientais provenientes da Índia, mas também da China. No contexto da mística chinesa, o taoísmo, doutrina elaborada por Lao-Tsé no século VI a.C., assenta na crença de que tudo que existe é manifestação de uma realidade unívoca e originária, que a tudo permeia, chamada “Tao”. O Tao é o Absoluto, mas está em todo lugar. O taoísmo reza que, no universo em que vivemos, todas as coisas estão interligadas. Schopenhauer, em consonância com o ensinamento taoísta, afirma a “harmonia e conexão essencial de todas as partes do mundo”.[33] Esse reconhecimento da conexão e unidade de todas as coisas se vai esclarecendo e expõe a anuência do pensamento schopenhaueriano com a tradição místico-religiosa oriental no contexto de desenvolvimento de sua ética da compaixão, grau mais elevado de uma escalada que parte da justiça passando pela bondade do caráter. Esse movimento ascenscional, em cuja base está o esclarecimento do indivíduo humano por meio do conhecimento intuitivo, expressa-se como ultrapassamento gradativo do princípio de individuação, ou seja, do véu de Maya. O ponto culminante, que marca a transição da virtude para a ascese, é a negação da vontade. Trata-se do estágio máximo da lucidez niilista do pensamento de Schopenhauer, conforme veremos. A negação da vontade é a redenção, a resignação completa, mas ela é precedida do quietivo da vontade.

 

(...) vimos que pela visão cada vez mais límpida que transpassa o principium individuationis primeiro resultam a justiça espontânea, em seguida, o amor que vai até a superação completa do egoísmo, por fim a resignação ou negação da vontade.[34]

 

 

Ascendendo ao modo de vida ascético, o indivíduo, tendo transpassado o princípio de individuação, reconhece em si mesmo a essência de tudo que existe, ou seja, reconhece a identidade da vontade em todas as aparências e, de imediato, se percebe como manifestação de uma Vontade que, objetivando-se nele como seu próprio íntimo, sua própria essência, é a mesma essência e fundo íntimo de todos os seres.

 

3.1. A influência budista


Siddharta Gautama (563-480 a.C. aproximadamente), o Buda, tendo alcançado a Iluminação, ensinou a seus discípulos o caminho pelo qual eles também poderiam alcançá-la. O budismo contém, portanto, os ensinamentos de Buda. É surpreendente a afinidade entre o pensamento de Schopenhauer e o do Budismo, mormente no que tange a duas das 4 Nobres Verdades: 1) Toda existência é sofrimento; 2) o sofrimento origina-se do desejo ou anseio. Buda ensinava ser a vida sinônimo de sofrimento. Nascer é sofrer; envelhecer é sofrer; morrer é sofrer. Também para Schopenhauer a vida não é outra coisa senão um ciclo de dores e sofrimentos incessantes, em cuja origem está o estado de insatisfação permanente de desejos que não cessam de assumir novas formas e de nos inquietar. A existência no samsara é como a roda de Íxion a que alude Schopenhauer: uma roda de desejos nunca satisfeitos; portanto, de sofrimentos infindos. Para Schopenhauer, a afirmação da vontade leva a um interminável ciclo de desejos nunca plenamente satisfeitos. Toda satisfação definitiva é impossível, donde a necessidade de pôr fim a esse ciclo tirânico de quereres. A cessação dos desejos só é possível pela renúncia à satisfação, pelo desapego ao viver mediante um exercício ascético ao fim do qual se busca atingir o repouso, a liberação da tirania do desejo: o nirvana.[35] No pensamento de Schopenhauer, o Nirvana equivale à negação da vontade, e o carma budista é ressignificado como o estado essencialmente doloroso da existência. Para falar com mais rigor, carma significa ação intencional. Todo sofrimento que experienciamos nesta vida presente é explicado como um efeito de um carma (ação) acumulado na vida pregressa. O conceito de carma deve, portanto, ser relacionado com o de samsara, o qual recobre a crença de que a existência humana se desenrola num ciclo de sucessivos nascimentos. As obras do amor, que dão forma à ética da compaixão, desenvolvida por Schopenhauer, em cujo cerne está o conhecimento intuitivo que levaria o indivíduo a aliviar os sofrimentos alheios tendo reconhecido a mesma Vontade de vida que, afirmando-se nele e nos demais seres sencientes, causa sofrimento tanto nele como nesses seres é um claro e irretocável contributo da Grande Compaixão budista, a saber, “o desejo espontâneo de libertar todos os seres vivos dos sofrimentos da existência cíclica”.[36]

As aproximações que podemos fazer entre o pensamento de Schopenhauer e a doutrina budista não se esgotam nas precedentes. Outras mais devem ser aqui traçadas com vistas a pavimentar o solo firme para que se desenvolvam nossas reflexões ulteriores sobre a questão do nada implicada na negação da vontade. A verdade última do budismo é a vacuidade. O eu e o nosso corpo são vacuidades. Não há um eu existente como substância. Há uma ausência de eu substancial: isso é a vacuidade; no entanto, a vacuidade não é o nada. Ademais, há um corpo convencional, representacional, mas não há um corpo inerentemente existente. No budismo, todos os fenômenos pertencem à ordem da convenção; nada existe em si mesmo; tudo é uma construção conceitual da mente. O budismo afirma um idealismo absoluto: todos os fenômenos são gerados pela nossa mente. Também afirma a impermanência de todas as coisas: tudo que surge necessariamente muda. Não existe essência duradoura nem individualidade dentro de nós. A mente é uma matriz produtora de ilusões. O mundo cotidiano ou o mundo sensível é uma ilusão, carece de substancialidade. O que muda carece de ser, portanto não é. O devir não pode ser identificado com o real em si. O passado, o presente e o futuro não existem, visto que tudo o que surge, necessariamente, muda; tudo está em fluxo, tudo carece de densidade ontológica. A vida é devir; é fluxo constante. Se o mundo fenomênico está em fluxo constante, se tudo nele muda, nada permanece, tudo nele carece de densidade ontológica. No entanto, tudo depende do vazio.

 

“A realidade é vazia” (...) No Budismo entende-se por vazio o fato de que alguma coisa para existir depende da existência de outras, ou seja, nada existe de forma independente. Nem as pessoas. Uma coisa só existe se outra existir, logo o mundo dos fenômenos depende do vazio para existir. Tudo o que acontece depende do vazio.[37]

 

Segundo Barbeiro[38], o mestre Hsing Yun da escola do Budismo tch’na, elenca dez significados de vazio, dentre os quais um nos chama a atenção pela semelhança com o conceito de Ápeiron de Anaximandro. O vazio não tem começo, nem fim, nem limitações. Todas as coisas são permeadas pelo vazio. O vazio é imóvel, é imutável e existe além da vida e da morte. É a realidade última, portanto.

 

3.2. A influência hinduísta


Os Upanixades, um dos livros sagrados que compõem a literatura vedanta, escritos entre os séculos VIII e IV a.C., expõem a doutrina segundo a qual, subjacente ao mundo acessível aos sentidos, há uma realidade última e verdadeira, livre do regime das formas do tempo, espaço e causalidade. Essa realidade última, sem começo e sem fim, é imutável, idêntica a si mesma e a tudo anima. Seu nome é Brahma. Os Upanixades são um resumo dos Vedas. Considerado a quintessência dos Upanixades, o Bhagavad Gita ensina o caminho da libertação do apego emocional ao mundo e da consequente união com Deus, que é o Espírito Supremo, a essência de tudo que existe, mas também o Eu Divino de cada um de nós, o Eu único, a Consciência Infinita. Destarte, segundo Gita[39], “a tarefa do homem, no vasto esquema das coisas, consiste em aprender que não passa de uma manifestação insignificante da Consciência Infinita”. O ego, segundo Gita, é a identidade da alma com o corpo. O apego ao ego impele o homem a agir com base na falsa crença de que o mundo em que vive é real. Apego é viver subjugado pelos desejos do ego e do corpo – corpo este que é um campo de batalha, onde se trava uma guerra entre tendências inferiores que arrastam a consciência para o jugo do mundo dos sentidos e tendências superiores, que a elevam para a fonte verdadeira do Espírito (Deus).

Em suma, o verdadeiro e último objetivo da fé hindu (e do ensinamento budista) é a libertação do círculo do samsara (dos renascimentos e diferentes existências). A morte é o maior evento da vida de um hindu, dado que ela representa a libertação final desse ciclo de tormentos e sofrimentos que é a vida em estado corpóreo. Levando-se em conta o que se expôs nestas duas últimas seções, pode-se estabelecer uma analogia formal entre a ideia de que nossa alma é feita da mesma cepa divina, de que somos partes da Consciência Infinita (Deus) e a ideia schopenhaueriana de que cada ser, cada aparência é uma objetidade de uma mesma Vontade, fundamento do mundo. Também a doutrina da negação da vontade inspira-se na ideia de libertação budista-hinduísta do ciclo tormentoso do samsara.

 

 

4. O nada da negação da vontade

 

O estágio máximo da vida ascética, da santidade, representado pela doutrina da negação da vontade, tem pressupostos, conforme patenteamos, que devem ser acuradamente examinados em suas articulações possíveis com a totalidade da doutrina schopenhaueriana. A tendência predominante dos comentadores dos textos de Schopenhauer é ver na doutrina da negação da vontade o ápice de seu pessimismo rabugento, de sua má disposição para com o júbilo, o prazer de existir, a chancela do conselho do sábio Sileno. A crítica feita pelo Nietzsche maduro ao pensamento schopenhaueriano parece ter contribuído para essa persistente má vontade para com a filosofia pessimista, niilista de Schopenhauer. Como não seja possível aqui nos ocupar da influência que a leitura nietzschiana exerce sobre a exegese da produção filosófica de Schopenhauer[40], passaremos a examinar mais um daqueles pressupostos – um pressuposto que, embora mencionado, passou ao largo de nossas considerações. Importa, no entanto, dizer, en passant, que o objetivo central desta etapa de nossa discussão será determinar o significado do “nada” suposto na doutrina da negação da vontade.

Na Introdução, fizemos menção ao fato de que, para Schopenhauer, o mundo como representação, experienciado sob o regime de Maya, assemelha-se a um sonho. Schopenhauer diz-nos que sonho e vigília se distinguem apenas em termos de qualidade; mas não se distinguem por natureza. Tanto o sonho quanto a vigília são regidos pelo princípio da causalidade, de sorte que não há critério seguro que nos permita estabelecer a distinção entre ambos. Tanto a vida quanto o sonho começam de modo casual, abrupto, sem razão e, não raro, terminam do mesmo modo. A analogia da vida com o sonho é demonstrada por Schopenhauer mediante a metáfora das folhas de um livro. Vida e sonho são como folhas de um mesmo livro. Esse livro é a vida em estado de vigília. Quando despertos, a leitura desse livro é feita segundo uma ordem coerente. Quando, no entanto, dormimos, folheamos uma folha aqui, outra ali, de modo descontraído, sem que nossa leitura se submeta a uma ordem coerente. O aspecto epistemológico da distinção entre vigília e sonho, que faz eco a Descartes, a Kant e, antes destes, a toda uma tradição que se estende de Platão ao ceticismo, não é o que nos interessa. O cerne do argumento schopenhaueriano e o que importa considerar, para efeitos dessa discussão, é a declaração de que a vida e o sonho começam ambos de modo casual, repentino. A analogia da vida com o sonho é, intuitivamente, mais claro e consistente quando Schopenhauer faz intervir na relação o signo da “morte”. Leia-se, pois, o trecho abaixo:

 

(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte, como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha e não à que está em vigília: eis por que a morte se apresenta a ela como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, o retorno ao estado de origem e do qual a vida foi somente um breve episódio.[41]

 

Schopenhauer associa vida a sonho e morte ao despertar desse sonho. A vida é um breve episódio entre dois nadas (o nada que precede ao nosso nascimento e o nada que sucederá à vida). A vida transcorre entre o nada que precede ao nascimento e o nada que se segue à morte. A morte não é uma espécie de transição para outra forma de vida; é o retorno ao inorgânico, nosso estado originário. Vindo do nada lançado à vida, sem razão e casualmente, o indivíduo, atingindo um grau refinado de reflexão, não poderá ignorar que a experiência da vida é a mesma que tem aquele que, abruptamente, repentinamente, começa a sonhar. Tanto a relação entre a vida e o sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são consistentes com os ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do hinduísmo e do budismo. Ademais, são consistentes com a visão schopenhariana do mundo como representação, mundo que existe para o sujeito e é condicionado por ele. Ora, tal como o sonho supõe o sonhador, também o mundo como representação supõe o sujeito da intuição; tal como o mundo da experiência sensorial é, no hinduísmo e no budismo, projeções da mente humana, desprovidas de substancialidade, assim também são os sonhos imagens, subprodutos da atividade cerebral de quem sonha. Tanto quanto o mundo “real” os sonhos carecem de “existência inerente”. O mundo intuitivo nada mais é do que a minha representação; a vida universal é a vida da Vontade, e esta é a verdadeira vida. Convém, doravante, debruçarmo-nos sobre o sentido do apelo ao nada, suposto na doutrina da negação da vontade. A questão que nos ocupará pode ser formulada como se segue: a supressão do querer viver alcançada na negação da vontade descerra o caminho para o Nada vazio? Nada vazio significa o Nada absoluto em sentido ontológico, o não-ser, a não existência, para falar em estilo heideggeriano, do “ente na totalidade”.

A negação da vontade é considerada por Schopenhauer o sumo bem, “o único e radical meio de cura da doença contra a qual todos os outros meios são simples paliativos, menos anódinos”.[42] A doutrina da negação da vontade caracteriza emblematicamente Schopenhauer como um filósofo místico, que soube, como nenhum outro, fazer confluírem o rigor do lógos ocidental, uma invenção legitimamente grega, e a mística-imagética das sabedorias orientais. Por conseguinte, não podemos nos esquivar de concordar com Brum, quando observa que a negação da vontade “essa beatitude nirvânica não pode ser considerada uma felicidade pessoal, porque enquanto “alegria celeste”, ela não pertence mais ao mundo. Pertence ao domínio da mística”. (grifos no original).[43]

Na seção 71, a última do IV livro de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer se preocupa em esclarecer a distinção entre duas concepções de NADA. Nas palavras do filósofo, “(...) o conceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado”.[44] O nihil privativum ou o nada privativo é marcado com o sinal (-) em oposição a um (+). O nihil negativum foi interpretado como nada absoluto, sempre um nada em qualquer relação. Sucede, contudo, que Schopenhauer nega ser pensável um nada absoluto. Destarte, segundo o autor, “qualquer nada o é apenas quando pensado em relação a algo outro, e pressupõe esta relação, portanto, também aquele algo outro”.[45]. O nada privativo sempre pode trocar de sinal com aquilo em relação ao qual ele é negação. Logo, se ao nada privativo associamos o sinal (-) e ao ser o sinal (+), podemos sempre inverter a distribuição dos sinais: o nada recebe o sinal (+), e o ser recebe o sinal (-). Ora, Schopenhauer nota que é justamente o mundo como representação, como objetidade e espelho da Vontade que é considerado, universalmente, como “ser”.  Se, contudo, observa o filósofo, “um ponto de vista invertido fosse possível para nós, ele permitiria uma troca de sinais e mostraria que o que existe para nós como ser, é o nada, e o que para nós é o nada, é o ser”.[46] Tal é, portanto, a experiência daqueles nos quais a vontade foi negada; para estes, “este nosso mundo tão real com todos os seres e vias lácteas é – Nada”.[47] Por outro lado, para “todos aqueles que ainda estão cheios de vontade”[48], o nada é o estado a que se segue à completa supressão da vontade. Somente aqueles que ainda se encontram sob a tirania da Vontade veem a negação da vontade como imersão na nulidade total.

Do que precede segue-se que o nada desvelado pela negação da vontade é descanso na mais profunda ataraxia, é ultrapassamento do mundo da representação, é libertação dos grilhões da Vontade. Para todos aqueles que chegam a alcançar “a completa calmaria oceânica do espírito, aquela profunda tranquilidade, confiança inabalável e serenidade jovial”[49], o que seria, pela negação da vontade, uma absorção angustiante no nada como nulidade de ser converte-se em plenitude de ser, em inquebrantável ataraxia. Na experiência de transfiguração do mundo como representação em “nada” por meio da negação da vontade, o nada se desvela como signo da lucidez do niilismo schopenhaueriano.

Antes de pôr termo a este texto, o que a lucidez niilista do pensamento de Schopenhauer nos desvela é uma experiência que não é, de modo algum, uma exclusividade consequente do acordo desse pensamento com as sabedorias místicas do Oriente; essa experiência não é estranha a filosofias existencialistas como a de Heidegger e Sartre. Não é escusável lembrar o pertencimento originário do nada à essência do ser, em Heidegger; nem será demais recordar a experiência nadificadora da Náusea, em Sartre: na Náusea, a realidade perde sua razão de ser. Schopenhauer, Heidegger e Sartre souberam ver, cada qual a seu modo, que o problema do “nada”, ou o que nos põe como problema o niilismo, diz respeito à condição do homem como ser no mundo.

Malgrado o fato de Schopenhauer pensar ser absurdo o nada absoluto, cumpre dizer que, no Zen-Budismo, o Nada absoluto não comporta um traço de ‘negatividade’. O conceito de Nada absoluto recobre a total dissolução da substancialidade no vazio. A dissolução da substancialidade no vazio é abertura infinita ao vazio. O Nada aí é dotado do traço sêmico [+ atividade]; por conseguinte, pela atividade nadificante do nada, o “Um” substancial se dissolve no vazio. Essa dissolução do “Um” no Vazio descerra o diverso inesgotável.

O nada como atividade, que dissolve a substância no vazio, nega também, ao mesmo tempo, toda determinação do nada como negação do ser. À luz da atividade nadificadora do Nada absoluto, se descortina a ambiguidade, a plurivocidade radical do mundo, o seu ser dizível, expressivo, mas não completamente; o seu ser indizível, mas não totalmente. O mar está aberto novamente, como disse Nietzsche. O mundo expõe à luz do dia seu caráter transitório e mutável, “a impossibilidade de defini-lo como forma acabada em um modo ou em outro, até que se permanece dentro de uma rede de correlações que a linguagem cria”[50]. Segundo Cestari[51], portanto, “o nada absoluto tem (...) a ver com a existência total de múltiplas vozes do mundo e a sua opacidade em relação ao pensamento dualista”.

Reafirma-se, pois, com base no exposto, o modo como buscaremos repensar a problematicidade do niilismo a partir do confronto entre as filosofias de Schopenhauer, de Nietzsche e de Cioran. O niilismo se insurge contra o que Meffesoli[52] chama esquema substancialista que marcou o Ocidente, cujas figuras são a do Ser, Deus, Estado, Instituição, Indivíduo, Identidade, Bem, entre outras. O niilismo descerra as condições de possibilidade para o compromisso com a crítica radical do que Meffesoli chama “Fantasma do Uno”, ou seja, uma matriz ideológica, imaginária que, reduzindo toda a diversidade e complexidade do real (domínio das infinitas possibilidades, das virtualidades) ao imperativo do Uno, está na origem da fundação dos monoteísmos morais, políticos e dos autoritarismos que culminaram com os piores totalitarismos. O niilismo, a fim de assegurar seu poder bélico, contestatório de todas aquelas variantes do esquema substancialista, precisa trazer à luz a insignificância radical da condição humana, o abismo em que assenta a história, a abissal indiferença cósmica para com nossas rixas, rivalidades, lutas e disputas pelo poder de determinar o curso do desenvolvimento histórico que resiste a acomodar-se ao regime de um plano racional.

A lucidez niilista exprime-se aqui com todo seu vigor combativo. O niilismo se apresenta, pois, como uma forma de pensamento dessacralizador, fundado na negação radical de todo ideal, de toda pretensão de segmentos societários, que gozam do privilégio do poder instituído, de reificar, de naturalizar, hipostasiar sentidos e valores que são historicamente produzidos, sedimentados e conservados. O niilismo é o modus operandis de toda crítica desconstrucionista ou genealógica que visa a “desenterrar”, a pôr sobre a terra as raízes das configurações, das materialidades históricas cuja existência é justificada metaempiricamente.

 

 

 

 

Referências

Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Barbeiro, Heródoto. Buda: o mito e a realidade. São Paulo: Medras, 2009.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007.

 

Brum, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Gaarder, Jostein et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005.

Cestari, Matteo. Além da Metafísica do conceito: nada e negação na lógica do lugar. In: Neto, Florentino Antonio; Giacoia Jr., Osvaldo (Orgs.). O Nada absoluto e a superação do niilismo: os fundamentos filosóficos da escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI, 2013.

Gyatso, Geshe K. Introdução ao budismo: uma explicação do estilo de vida budista. Trad. Kelsang Pelsang. Sâo Paulo: Tharpa Brasil, Centro Budista Mahabodhi, 1992.

Maffesoli, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo pós-moderno. Porto Alegre: Sulina, 2005.

ORLANDI. E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.

                                                     

__________. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2008.

 

Rosset, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. Trad. José Souza de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2014.

 

Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e como representação, tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015.

 

Volpi, Franco. Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

Yogananda, Paramhansa. A Essência do Bhagavd Gita. São Paulo: Pensamento, 2007.

Ziegler, Ernest (Org.). Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas.  Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

 

 



[1] Este artigo é a manifestação de uma etapa da elaboração de nossa pesquisa de doutoramento vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[2] O termo gesto de interpretação constitui um termo técnico cunhado pela linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi para designar o fato de que toda interpretação é um ato simbólico caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, que delimita uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Acrescente-se que ideologia, nesse contexto teórico, não é ocultamento do real, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007). 

[3] É certo que Schopenhauer jamais usou o termo “niilismo”, o que não nos proíbe de falar de um caráter niilista de seu pensamento.

[4] Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 217.

[5] Segundo Bakhtin (ibid., p. 272), “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”. Portanto, todo enunciado é dialógico, e o que Bakhtin chama de dialogismo descreve o fato de que todo enunciado se constitui a partir de outro enunciado, em face do qual é uma réplica. Inspirados no conceito de dialogismo, mantemos que toda a filosofia se constitui e se desenvolve a partir de uma outra.

[6] Blanchot, Maurice. A conversa infinita 2: experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007

[7] Volpi, Franco. Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 8.

[8] Ibidem, p. 10.

[9] Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015, p. 3.

[10] Idem.

[11]  As representações em seu estado intuitivo, conforme ensina Schopenhauer, não são exclusividade do ser humano; também as têm os animais não humanos. Somente as representações de ordem abstrata, que formam a classe dos conceitos, são apanágio exclusivo do homem.

[12] Ibidem, p. 4.

[13] Ibidem, p. 5.

[14] Ibidem, p. 6.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] Ibidem, p. 8.

[18] Maya oculta e distorce  o fundamento absoluto do ser, a verdadeira realidade de Brahman. Sob a vigência de Maya, os seres humanos vivem num mundo ilusório, e Maya constitui um obstáculo para o atingimento do conhecimento último, qual seja, o de que nosso verdadeiro “eu” é parte integrante da realidade última e verdadeira, Brahman. Maya está na base do apego ao mundo material e do egoísmo humano.

[19] Rosset, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

[20] Schopenhauer, op.cit., p. 424.

[21] Ibidem, p. 152.

[22] Ibidem, p. 317.

[23] Ibidem., p. 318.

[24] Idem.

[25] Idem.

[26] Idem.

[27] Ibidem., p. 320.

[28] Ibidem, 319.

[29] Idem.

[30] Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. Trad. José Souza de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2014, p. 39.

[31] Schopenhauer, op.cit., p. 473.

[32] Ibidem, p. 468

[33] Ibidem, p. 179.

[34] Ibidem, p. 472.

[35] O nirvana é o estado em que todo o carma e a lei dos renascimentos são interrompidos. O nirvana é uma experiência que deve se dar no aqui e agora, no mundo, portanto. Quando o budista atinge o nirvana, consegue extinguir o desejo. Mas a forma última e definitiva do nirvana só se alcança com a morte, que é a extinção absoluta. Alguns budistas chamam-na de parinirvana. (Gaarder, Jostein et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005)

[36] Gyatso, Geshe K. Introdução ao budismo: uma explicação do estilo de vida budista. Trad. Kelsang Pelsang. Sâo Paulo: Tharpa Brasil, Centro Budista Mahabodhi, 1992, p. 75.

[37] Barbeiro, Heródoto. Buda: o mito e a realidade. São Paulo: Medras, 2009, p. 87.

[38] Idem.

[39] Yogananda, Paramhansa. A Essência do Bhagavd Gita. São Paulo: Pensamento, 2007, p. 151.

[40] Registre-se aqui o fato, nem sempre reconhecido pelos não especialistas, de que os sentidos têm a sua história e, consequentemente, as leituras já feitas de um texto “dirigem, isto é, podem alargar ou restringir a compreensão de texto de um dado leitor”. (Orlandi, E.P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2008, p. 43).

[41]Ziegler, Ernest (Org.). Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas.  Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 34.

[42] Schopenhauer, op.cit., p. 421.

[43] Brum, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 21-22.

[44] Schopenhauer, op.cit., p. 473.

[45] Ibidem., p. 474.

[46] Ibidem., p. 475.

[47] Ibidem., p. 477.

[48] Idem.

[49] Ibidem., p. 476.

[50] Cestari, Matteo. Além da Metafísica do conceito: nada e negação na lógica do lugar. In: Neto, Florentino Antonio; Giacoia Jr., Osvaldo (Orgs.). O Nada absoluto e a superação do niilismo: os fundamentos filosóficos da escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI, 2013, p. 64.

[51] Idem.

[52] Maffesoli, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo pós-moderno. Porto Alegre: Sulina, 2005.