A lucidez niilista na metafísica de Schopenhauer
The nihilistic
lucidity in Schopenhauer's metaphysics
Resumo
O niilismo, em Schopenhauer, não
se reduz a uma negatividade corrosiva da existência. Seu pensamento, gestado
pela confluência do lógos grego com a espiritualidade oriental, lança sobre o
niilismo uma luz que, descortinando a precariedade do devir vital e a
radicalidade da problematicidade da condição humana, faz-nos ver que o
confronto com o nada é inescapável e necessário como condição de possibilidade
para a produção de um modo de ser e viver verdadeiramente livre e elevado.
Palavras-chave: niilismo;
Schopenhauer; Vontade; nada
Abstract
Nihilism, in Schopenhauer, is not reduced to a corrosive negativity of
existence. His though, incored by the confluence of the Greek logos with
Eastern spirituality, casts upon nihilism a light that, unveiling the
precariousness of the vital future and the radicality of the problemacity of
the human condition, makes us see that the confrontation with nothingness is
inescapable and necessary as a condition of possibility for the production of a
way of being and living truly free and high.
Keywords:
nihilism; Schopenhauer; Will; nothingness.
1. Introdução
O que nos propomos,
no presente artigo, é descerrar um solo hermenêutico à luz do qual um gesto de
interpretação[2] venha a tornar manifesta
a lucidez niilista do pensamento schopenhaueriano a partir da consideração da
distinção entre nihil privativum
e nihil negativum. Pressupor ser possível uma lucidez niilista é esposar
a perspectiva segundo a qual ser niilista é a condição sine qua non do pensamento, na
medida em que o pensamento corrói as “evidências”, nadifica as certezas,
subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justifiquem toda
sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Os limites que nos impõe
a natureza deste texto e os objetivos perseguidos impedem-nos de nos alongar
nas considerações acerca do que entendemos por lucidez niilista. Por
conseguinte, será suficiente dizer que usamos o vocábulo “lucidez” para
significar ‘o que traz à luz do dia’, ‘o que torna transparente’, ‘o que põe na
claridade’, ‘o que desoculta’, ‘o que torna evidente’, ‘manifesto’.
A discussão que desenvolveremos sobre o
caráter niilista[3] do pensamento de
Schopenhauer e que damos a conhecer neste artigo, sendo um recorte de nossa
pesquisa de doutoramento, impõe-nos que esclareçamos, minimamente, o contexto
teórico-metodológico em que ela se situa. O niilismo, a partir de Schopenhauer,
é abordado, em nossa pesquisa, à luz da compreensão dialógica do discurso que
chegou até nós pela pena de Bakhtin[4], que nos ensina que “toda
compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente
responsiva”.[5] A dialogicidade de nossa
abordagem do niilismo põe em cena, portanto, numa relação confrontativa, o
pensamento de Schopenhauer, de Nietzsche e de Cioran. É no horizonte das
considerações levadas a efeito por Nietzsche sobre o niilismo que buscaremos
desenvolver e sustentar a tese segundo a qual o niilismo é uma condição
ontológica que deve ser assumida por todo pensamento filosófico que, após o
trabalho da desconstrução, de que é expoente Nietzsche, se pretende expressão
de um poderoso convite à lucidez e ao questionamento radical. Tal é o
enfrentamento a que o pensamento filosófico do nosso tempo “pós- metafísico”
não pode se esquivar. Urge reconhecer que o niilismo não está ligado ao nada,
mas ao ser, pois o nada é impotente, intangível[6]– é o que nos parece querer
fazer ver também Volpi[7]:
Não há como ver no niilismo apenas uma tentativa de
vanguardas intelectuais, pois ele agora impugna o próprio ar que se respira.
Sua onipresença multiforme torna-o tão visível que, paradoxalmente, fica
difícil apreendê-lo numa definição clara e unívoca. Não há consenso em seu
diagnóstico nem na anamnese de suas patologias e do mal-estar cultural que
representa. Até os estudos históricos sobre a gênese do termo acabaram por
mostrar como tem sido complexa e variada a manifestação desse movimento.
Volpi não só parece corroborar o fato
de que vivemos hoje no âmago do niilismo; ele nos diz mais. Ele sublinha o
caráter multiforme do niilismo, caráter este que se depreende do tratamento
dispensado por Nietzsche ao niilismo. Na esteira de Nietzsche, assumimos,
portanto, que o niilismo é um fenômeno multiforme, multívoco, que acena para a
plurivocidade do mundo, a saber, para a multiplicidade de sentidos do mundo, a
qual se deixa apreender como uma questão de predomínio das forças. A despeito
de ser uma condição ontológica, o niilismo se concretiza como fenômeno
histórico - portanto, heterogêneo, mutável, dinâmico, múltiplo- inerente ao
jogo agonístico das forças que atravessam e constituem as condições históricas
da existência humana. Consoante observa Volpi, “a respeito do niilismo,
sustentamos a mesma convicção válida para todos os verdadeiros problemas
filosóficos: eles não têm solução, mas história”.[8]
2. O mundo como
representação
Nesta seção, não
vamos descer a pormenores sobre a compreensão schopenhaueriana do mundo como
representação. Cingir-nos-emos a colher apenas os elementos que, constitutivos
dessa perspectiva sob a qual o mundo é considerado, são relevantes para
garantir a consistência de nossa interpretação da lucidez niilista do
pensamento schopenhauriano.
“O mundo é a minha
representação”[9]– eis a primeira frase do
primeiro livro de O Mundo como
Vontade e Representação, a qual, estabelecendo o primeiro ponto de vista
sob o qual o mundo será considerado, enuncia o fundamento da teoria epistemológica
schopenhaueriana. O que se seguirá a essa frase, nesse primeiro livro, é a
exposição minuciosa, levada a efeito por Schopenhauer, de sua teoria
epistemológica. Ao desenvolvê-la, Schopenhauer buscará descrever a primeira
forma de experiência que temos do mundo. A questão que, de início, reclama
esclarecimento é, pois, esta: o que significa dizer que o mundo é minha
representação? Significa dizer que o mundo, enquanto representação,
não existe independentemente do sujeito que o conhece. “O mundo é minha
representação” postula o dualismo sujeito-objeto, legado por Kant, mas vai além
dele. Leia-se o que nos diz Schopenhauer sobre o alcance epistemológico dessa
sua primeira tese[10]:
Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais
independente de todas as outras e menos necessitada de uma prova do que esta: o
que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro é apenas objeto em
relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação.
O mundo no qual o
homem existe só existe como representação, ou seja, só existe em relação a este
homem que percebe[11]. Segue-se daí que “tudo o que
pertence e pode pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse
estar-condicionado pelo sujeito, existindo apenas para este”.[12] É
justamente porque a existência do mundo está numa relação de dependência com o
sujeito cognoscente que o mundo é representação.
O mundo como representação é o
primeiro ponto de vista sob o qual Schopenhauer compreenderá o mundo. A
representação nada mais é do que o mundo tal como é percebido pelo sujeito.
Nesse sentido, a representação se define como relação indissociável do sujeito percipiente
com o objeto percebido. O sujeito, por seu turno, é aquele que tudo conhece e
não é conhecido por ninguém. Consoante assinala Schopenhauer, o sujeito é “o
sustentáculo do mundo, a condição universal e sempre pressuposta de tudo o que
aparece, de todo objeto, pois tudo o que existe, existe para o sujeito”.[13] A representação supõe
duas instâncias essenciais, as quais são como suas duas metades: o sujeito e o
objeto. Segundo Schopenhauer, basta que um único sujeito mais um objeto se
apresentem para que se constitua o mundo como representação; no entanto – e
aqui é evidente o valor epistemológico conferido ao sujeito como substractum do mundo.
(...) um único ser que representa, com o
objeto, complementa o mundo como representação tão integralmente quanto um
milhão de seres que representam; mas se aquele único ser desaparecesse, então o
mundo como representação não mais existiria.[14]
Vê-se que, sem
sujeito, não há mundo como representação. Schopenhauer não rejeita a existência
de um mundo exterior; e, nesse sentido, ele não adere a um idealismo absoluto.
Na verdade, ele sustenta – deve-se frisar – que o único mundo acessível a nós é
aquele que os nossos sentidos nos representam sob as formas de tempo e espaço.
No entanto, sujeito e objeto são metades inseparáveis, supõem-se
reciprocamente, “porque cada uma delas possui significação e existência apenas
por e para a outra e desaparece com ela”.[15] Todo e qualquer objeto
da intuição, ou seja, todo e qualquer fenômeno, está submetido às condições
formais do pensamento, do tempo e do espaço. Assim, o objeto toma sua forma do
espaço e do tempo, e, por isso, existe na forma de pluralidade. Em outras
palavras, na dependência com relação ao sujeito, o objeto existe no tempo e no
espaço sob a forma da pluralidade. O sujeito, ao contrário, escapa à lei do
tempo e do espaço, “pois está inteiro e indiviso em cada ser que representa”.[16]
O mundo como
representação está, portanto, submetido ao princípio de razão. A forma do
princípio de razão no tempo é a sucessão. O princípio de razão constitui o modo
universal da aparição fenomênica de todo objeto. É, ademais, o princípio
constitutivo de toda representação. O princípio de razão, enquanto lei da
causalidade e de motivação, determina a experiência; por outro lado, como lei
de justificação dos juízos, determina o pensamento (nesse caso, nenhuma
proposição pode ser verdadeira sem que haja uma razão suficiente para tal).
Schopenhauer subsume no princípio de razão suficiente as formas do tempo,
espaço e causalidade. A mais simples dessas formas é o tempo. Sob a forma do
tempo, o princípio de razão leva-nos à experiência da impermanência de todas as
coisas, cuja nulidade Schopenhauer estende para toda a experiência possível do
mundo, consoante se depreende do trecho a seguir:
Assim como no tempo cada momento só existe na
medida em que aniquila o momento precedente, seu pai, para por sua vez ser de
novo rapidamente aniquilado; assim como passado e futuro (independentes das
consequências de seu conteúdo) são tão nulos quanto qualquer sonho, o presente,
entretanto, é somente o limite sem extensão e contínuo entre ambos – assim
também reconhecemos a mesma nulidade em todas as outras formas do princípio de
razão, convencendo-nos de que, do mesmo modo que o tempo, também o espaço e,
como este, tudo que se encontra simultaneamente nele e no tempo, portanto tudo
o que resulta de causas e motivos, tem apenas uma existência relativa (...).[17]
A descrição que
Schopenhauer nos dá do fluxo perpétuo de todas as coisas pode-se encontrar,
conforme reconhece o próprio autor, na filosofia de Heráclito, que afirma o
devir eterno do mundo; ou, em Platão, que via no mundo deveniente uma carência
de ser; ou ainda em Espinosa, para quem as coisas existentes são acidentes da
única substância que existe – Deus. Schopenhauer lembra também que a
experiência da impermanência de todas as coisas está codificada na forma da
sabedoria indiana. Maya,
que, na sabedoria vedanta, é o mundo como ilusão, encobrindo os olhos dos
mortais, impede-os de dizer se o mundo em que vivem é verdadeiramente real ou
não[18]. Esse mundo se lhes assemelha
a um sonho.
2.1. O mundo como
vontade
No livro II de O Mundo como Vontade e Representação,
Schopenhauer apresenta e desenvolve o segundo ponto de vista sob o qual o mundo
é considerado: o mundo como Vontade. Ao longo de todo esse segundo livro,
Schopenhauer se dedicará, especialmente, a esclarecer o significado do termo
Vontade.
É, sobretudo, na concepção
do mundo como Vontade que se pode descortinar o caráter absurdo da existência.
É também por força da categoria da Vontade, como coisa-em-si, impulso cego e
sem finalidade, à luz da qual o mundo é interpretado, que a filosofia
schopenhaueriana se constitui como uma filosofia do absurdo.
Faz-se mister reter o
seguinte: o conceito de Vontade constitui o elemento nuclear da filosofia
pessimista schopenhaueriana. Rosset[19] chega, inclusive, a
dizer que a Vontade é o único pensamento que Schopenhauer se dá a pensar para
compreender o mundo. O absurdo que a filosofia de Schopenhauer põe a descoberto
não repousa apenas, segundo acredita Rosset, na concepção de Vontade, como
fundamento sem fundamento, finalidade sem fim, como impulso cego; mas também -
e sobretudo - no fato de que a Vontade se apresenta como um acontecimento
necessário para que Schopenhauer explique a existência de um mundo ordenado –
ordem esta, no entanto, que se desvela, à luz do pensamento schopenhaueriano,
absurda, sem sentido.
O que é, pois, a
Vontade de que fala Schopenhauer? Num primeiro momento, não devemos tomá-la
como a vontade individual, aquilo que chamamos de nossa vontade. A Vontade é a
coisa-em-si kantiana, é a essência íntima do mundo, a substância do fenômeno. A
Vontade é eterna e infinita; é atemporal, ou seja, escapa às condições de tempo
e espaço, e ao princípio da causalidade. Ademais, somente a Vontade é livre.
Ela é o ser em si comum a todos os fenômenos e o fundamento de todo o mundo
fenomênico. A Vontade é o fundamento metafísico do mundo; é a causa sem causa e
sem finalidade do mundo fenomênico.
A Vontade é
totalmente independente da pluralidade, conquanto suas manifestações no tempo e
no espaço sejam infinitas. A Vontade, portanto, é a coisa-em-si, a essência
íntima do mundo e, embora seja de ordem metafísica, independente das condições
do tempo e do espaço, se manifesta nas diferentes formas do mundo inorgânico e
orgânico. Schopenhauer chama objetivação da Vontade a
manifestação da Vontade nas diversas formas fenomênicas do mundo.
Como coisa-em-si, a
Vontade é absolutamente diferente do seu fenômeno (o mundo) e das formas
fenomênicas em que se manifesta e em relação às quais é independente. Ainda que
a concepção de Vontade como coisa-em-si inspire-se no conceito kantiano de
coisa-em-si, Schopenhauer, ao contrário de Kant, confere um caráter cognoscível
à coisa-em-si. É claro que a cognoscibilidade da coisa-em-si schopenhaueriana é
relativa, porque a conhecemos relativamente à experiência que temos do nosso
corpo – o meu corpo, sob esse segundo ponto de vista em que o mundo é
considerado, é a minha vontade. Em seguida, a inteligência nos leva a apreender
a Vontade no conjunto dos fenômenos do mundo inorgânico e orgânico. Tudo que
existe existe como objetivação da Vontade, isto é, existe como fenômeno, como
representação. O absurdo da existência, que se deixa ver na compreensão da
objetidade da Vontade, ganha a espessura de um drama existencial cujo
desenvolvimento vai revelando, à proporção que o leitor nele se aprofunda, no
livro IV, o caráter trágico do destinar-se do mundo e da existência humana. Importa-nos
considerar, levando-se em conta nosso interesse em descortinar o alcance da
lucidez do niilismo schopenhaueriano, o aspecto sombrio da tirania da Vontade.
Não obstante, antes de nos debruçar sobre essa empresa, é indispensável trazer
à baila a importância do conceito de “princípio de individuação” (principium individuationis). Se,
conforme vimos, tempo e espaço são reunidos sob a jurisdição do princípio de
razão suficiente, quando o mundo se nos apresenta sob o ponto de vista da
representação, agora, do ponto de vista do mundo como Vontade, tempo e espaço
constituem o princípio de individuação. Temos, pois, o princípio de
individuação, suprimindo do princípio de razão, a causalidade, e conservando o
tempo e o espaço. Pelo princípio de individuação, a saber, o tempo e o espaço,
o que é um só na essência aparece como múltiplo e diverso na sucessão do tempo
e na coexistência no espaço. O princípio de individuação é responsável pela
pluralidade das aparências fenomênicas no mundo. O princípio de individuação é
o próprio véu de Maya, “de
acordo com o qual se considera um indivíduo absolutamente diferente dos demais
seres e deles separado por um amplo abismo”.[20] Submetido à ilusão de
Maya, o indivíduo vive em conformidade com a crença de que goza de alguma
distinção e superioridade em relação aos demais seres. Essa crença é conforme
ao seu egoísmo e lhe dá sustentação. O grau do princípio de individuação é
sensível à escalada da objetivação da Vontade. Assim, objetivada nos animais, a
Vontade deixa mais nítido e acentuado um grau de individualidade que falta nos
vegetais, ainda que a individualidade nos animais não atinja seu grau mais
elevado. É somente no homem que a individualidade atingirá seu grau mais
elevado; nele “vemos aparecer significativamente a individualidade em grande
diversidade de caracteres individuais”.[21]
Passemos, pois, a
considerar o aspecto sombrio do mundo como vontade, destacando a
insignificância radical do indivíduo e a tirania da Vontade.
Na seção 54, do livro
IV, Schopenhauer revisa, a título de síntese, o que foi tratado nos três primeiros
livros. É oportuno dar a saber essa síntese, dispondo em ordem vertical as
ideias pertinentes que ela faz recordar:
a. O mundo, como
representação, é, para a Vontade, um espelho em que ela toma consciência de si
mesma;
b. A perfeição e
clareza com que a Vontade vê a si mesma são o estágio superior de uma escala
gradual;
c. No homem, reside o
grau superior de objetivação e perfeição da Vontade.
A vontade que, considerada puramente em si,
destituída de conhecimento, é apenas um ímpeto cego e irresistível – como a
vemos aparecer na natureza inorgânica e na natureza vegetal, assim como na
parte vegetativa da nossa própria vida – atinge, pela entrada em cena do mundo
como representação (desenvolvida para servir à vontade), o conhecimento do seu
querer e daquilo que ela quer, a saber, nada senão este mundo, a vida,
precisamente como esta existe.[22]
Há nesse excerto duas
ideias que devemos destacar: a primeira ideia é que a Vontade é
ímpeto cego quando não iluminada pela inteligência; a segunda é que a Vontade
quer o mundo mesmo, a vida mesma “precisamente como esta existe”. Schopenhauer
prossegue advertindo que, como a Vontade quer sempre a vida, e como a vida é a
manifestação pura da Vontade, resta redundante dizer que Vontade é vontade de
viver. Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa.
Uma vez que a Vontade
é a coisa-em-si, o fundo íntimo, a essência do universo, a vida e o mundo
fenomênico são apenas o espelho da Vontade. Schopenhauer lança mão da imagem da
sombra e do corpo para sublinhar a indissociabilidade entre Vontade e vida.
(“este mundo acompanhará a vontade tão inseparavelmente quanto a sombra
acompanha o corpo”)[23]. Onde quer que encontremos
Vontade haverá vida, mundo.
O indivíduo é apenas
aparência. Ele nasce e morre, quando visto à luz do intelecto submetido ao
princípio de razão e ao princípio de individuação. Consoante sublinha
Schopenhauer, “da perspectiva deste conhecimento, o indivíduo ganha sua vida
como uma dádiva, surge do nada, e depois sofre a perda dessa dádiva através da
morte, voltando ao nada”.[24]
Nascimento e morte se
prendem às aparências assumidas pela Vontade; são acontecimentos que tocam à
vida. A Vontade nada tem a ver com eles. Por conseguinte, Schopenhauer começa a
nos mostrar a insignificância do indivíduo em face da Vontade. A primeira
passagem em que essa insignificância se torna patente é a seguinte: “Nascimento
e morte pertencem exclusivamente à aparência da vontade, logo, vida, à qual é
essencial expor-se em indivíduos que chegam à existência e desaparecem; estes
são aparências fugidias”.[25] Nascimento e morte são
acontecimentos integrantes da dinâmica da vida: “equilibram-se em condições
recíprocas”[26]. Schopenhauer vem em socorro
da validade de nossa interpretação:
Que procriação e morte devam ser consideradas como
algo inerente à vida e essencial à aparência da vontade advém do fato de
procriação e morte apresentarem-se apenas como expressões altamente potenciadas
Daquilo que dá consistência ao restante da vida, que nada mais é, em toda
parte, senão uma alteração contínua da matéria em meio à permanência fixa da
forma: justamente aí se tendo a transitoriedade dos seres individuais em meio à
imortalidade da espécie.[27]
A imagem da morte (e
também da geração, evidentemente) como o próprio movimento constitutivo da
dinâmica da vida extirpa toda sombra de dúvida quanto à relação intrínseca da
morte com a vida. O conceito de vida, em Schopenhauer, exibe algumas
tonalidades, que ganham investimentos semânticos tais como ‘esforço’, ‘dor’, ‘sofrimento’, ‘abundância’, etc. Uma dessas tonalidades
encontra registro no enunciado: a vida é um fluxo perpétuo da matéria através
de uma forma que permanece invariável. A forma que permanece invariável é a
Vontade. A Vontade é eterna e indestrutível. O indivíduo, ao contrário, é a
aparência; a espécie, a forma. Esta é imortal; aquele morre necessariamente.
Essa definição schopenhaueriana de vida pode ser desmembrada, de modo que
possamos nos aperceber da insignificância de tudo que existe. A vida é devir:
todas as suas formas fenomênicas estão submetidas ao fluxo incessante
cujo modus operandi é
o da luta, do conflito, da disputa interminável que arrasta os malogrados para
o nada. Por outro lado, a vida é a manifestação da Vontade cega e indiferente à
sorte dos fenômenos nos quais ela se produz; por isso, “o indivíduo (...) não
tem valor algum para a natureza, nem pode ter, pois o reino da natureza é o
tempo infinito, o espaço infinito e, nestes, o número infinito de possíveis
indivíduos”.[28] Por conseguinte,
(...) ela sempre está disposta a deixar o ser
individual desaparecer, o qual, portanto, sucumbe não apenas em milhares de
maneiras diferentes por meio dos acasos mais insignificantes, mas
originariamente já é determinado a isso e levado a desaparecer pela própria
natureza desde o instante em que serviu à conservação da espécie.[29]
Por fim, no tocante
ao que chamaremos de “tirania da vontade ou do querer”, deverá ser bastante o
que se segue, dados os limites desta exposição.
O seguinte passo
reúne, numa síntese, de modo bem articulado e claro, os aspectos essenciais da
teoria da Vontade como querer-viver:
Querer é essencialmente sofrer, e, como viver é querer,
toda a existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais
sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a
certeza de ser vencida... A vida é uma caçada incessante onde, ora como
caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível
carnificina; uma história natural da dor que se resume assim: querer sem
motivo, sofrer sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos
séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados.[30]
Se procedermos atenta
e novamente à leitura, não encontraremos dificuldades de concluir que o
referido excerto encerra as lições fundamentais do pessimismo schopenhaueriano.
Querer, ou seja, desejar é essencialmente sofrer, porque, ao
desejar, o homem, cuja essência reside nesse querer, encontra-se em estado de
carência, de privação; por conseguinte, ele, ao querer, sofre. Como a vida é manifestação
da Vontade, isto é, manifestação desse querer incessante, a vida é
essencialmente dor, sofrimento.
O homem é o fenômeno
mais elevado e perfeito da Vontade. Como seja um ente dotado de conhecimento,
de uma consciência superior, a dor de viver se lhe afigura mais intensa; ele é,
por isso, o ente que mais sofre. Atentemos para as imagens usadas por
Schopenhauer na constituição de sua concepção de vida. Pondera o autor que “a
vida do homem não é mais do que uma luta...”, da qual o homem está certo de que
sairá derrotado. Todos os seus esforços, mobilizados para essa luta, são
inúteis. Não importa quanto o homem faça, o que faça: a vida é uma experiência
da qual ele será, mais cedo ou mais tarde, necessariamente privado. O destino
do homem o reduzirá inapelavelmente ao nada. A vida do homem, escreve
Schopenhauer, “é uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Eis
encenado aqui o destino de Sísifo, destino comum a todo ser humano: o homem
luta sempre, quer sempre e sempre, mas, se for inquerido sobre a razão por que
faz o que faz, não sabe bem responder. Ele
sabe que precisa fazer o que faz; seu trabalho consiste em ser um combatente
que morrerá necessariamente com as armas nas mãos. Carregar pedra e recomeçar
esse trabalho árduo diariamente – trabalho que é a própria vida de que ele,
homem, se encarrega na mais profunda ignorância sobre a causa (se houver alguma
) por que se encontra a ele obrigado e a finalidade (se houver alguma) com que
o realiza, até que a morte, credor implacável, venha-lhe tomar aquilo que a ela
pertence, é o que torna nossa condição semelhante à de Sísifo.
Essa “história
natural da dor”, que é a vida mesma, é reiniciada toda vez que vem ao mundo uma
nova criança. O instinto sexual garante, portanto, que essa história de dor
seja incessantemente repetida. Dar à luz uma criança não é mais, segundo
Schopenhauer, do que recomeçar a marcha da história humana, cuja
insignificância não escapou ao escrutínio descritivo do autor. O que chamamos
de “tirania do querer” é – deve-se enfatizar – a forma mesma da vontade
de viver. O homem é, essencialmente, vontade, desejo insaciável. Porque é
essencialmente desejo, o homem sofre. O objeto desejado, uma vez possuído,
jamais consegue cumprir as promessas sobre ele projetadas quando era objeto do
desejo. Nunca atingimos uma satisfação final. A vontade em nós, a vontade que,
essencialmente, somos permanece insatisfeita. Mas, quando um desejo é
satisfeito em algum momento, ele muda de forma e nos torna a torturar. Para
Schopenhauer, portanto, não há escapatória a essa forma de tirania: ainda que
todas as formas possíveis de desejo fossem satisfeitas, a necessidade do querer
sem motivo, sem alvo, permaneceria, e nos veríamos inundados de um sentimento
de vazio, paralisados pelo sentimento de perda de significado de tudo; em uma
palavra, seríamos absorvidos num tédio insuportável.
3. O contexto
místico-religioso da filosofia de Schopenhauer
Num trecho que se
topa no livro IV de O mundo como
vontade e representação, Schopenhauer reconhece sua dívida para com a
tradição espiritual cristã e com a tradição espiritual da Índia, nomeadamente e
sobretudo do hinduísmo e do budismo.
Recorri aos dogmas da religião cristã,
eles mesmos estranhos à filosofia, apenas para mostrar que a ética oriunda de
nossa consideração, que é coerente e concordante com todas as partes desta,
embora nova e surpreendente em sua expressão, de modo algum o é em essência; ao
contrário, concorda totalmente com todos os dogmas propriamente cristãos e no
essencial já se acha nestes; também concorda com a mesma exatidão com as
doutrinas e os preceitos éticos que foram expostos de forma bem diferente nos
livros sagrados da Índia.[31]
Importa-nos oferecer,
sem pretender a exaustão, uma descrição da conjuntura dogmática da tradição
místico-religiosa do budismo e do hinduísmo, destacando os aspectos que são
concordantes com a filosofia schopenhaueriana e que foram ressignificados por
ela. No tangente à influência da tradição cristã na formação do pensamento
schopenhaueriano, será suficiente delimitar o contexto escatológico com o qual
esse pensamento dialoga: 1) nossa condição originária é essencialmente sem
salvação; 2) o mundo é manchado pelo pecado; ele é mau e pertencemos, em
essência, ao que é mau; 3) A redenção só pode alcançar-se por meio da fé; 4) a
fé mesma só se dá por meio da graça. Em consonância com a escatologia cristã,
nosso maior delito é haver nascido. Porque somos frutos de um erro pelo qual
pagamos, temos necessidade de redenção. É este contexto escatológico que subjaz
ao desenvolvimento da filosofia ética, cujo estágio máximo é a negação da
vontade de viver. A mortificação da vontade deriva da relação íntima entre o
conhecimento e o querer no ser humano, mas, não sendo oriunda da deliberação,
“chega (...) subitamente e como de fora voando”[32]; portanto, tal como se fosse
um efeito da Graça.
Ao afirmar que tudo
que existe, que todas as aparências são objetidade de uma Vontade, que
constitui a essência do mundo, Schopenhauer se mostra afinado com as sabedorias
orientais provenientes da Índia, mas também da China. No contexto da mística
chinesa, o taoísmo, doutrina elaborada por Lao-Tsé no século VI a.C., assenta
na crença de que tudo que existe é manifestação de uma realidade unívoca e
originária, que a tudo permeia, chamada “Tao”. O Tao é o Absoluto, mas está em
todo lugar. O taoísmo reza que, no universo em que vivemos, todas as coisas
estão interligadas. Schopenhauer, em consonância com o ensinamento taoísta,
afirma a “harmonia e conexão essencial de todas as partes do mundo”.[33] Esse reconhecimento da
conexão e unidade de todas as coisas se vai esclarecendo e expõe a anuência do
pensamento schopenhaueriano com a tradição místico-religiosa oriental no
contexto de desenvolvimento de sua ética da compaixão, grau mais elevado de uma
escalada que parte da justiça passando pela bondade do caráter. Esse movimento
ascenscional, em cuja base está o esclarecimento do indivíduo humano por meio
do conhecimento intuitivo, expressa-se como ultrapassamento gradativo do
princípio de individuação, ou seja, do véu de Maya. O ponto culminante, que marca a transição da virtude para
a ascese, é a negação da vontade. Trata-se do estágio máximo da lucidez
niilista do pensamento de Schopenhauer, conforme veremos. A negação da vontade
é a redenção, a resignação completa, mas ela é precedida do quietivo da
vontade.
(...) vimos que pela visão cada vez
mais límpida que transpassa o principium individuationis primeiro resultam a
justiça espontânea, em seguida, o amor que vai até a superação completa do
egoísmo, por fim a resignação ou negação da vontade.[34]
Ascendendo ao modo de
vida ascético, o indivíduo, tendo transpassado o princípio de individuação,
reconhece em si mesmo a essência de tudo que existe, ou seja, reconhece a
identidade da vontade em todas as aparências e, de imediato, se percebe como
manifestação de uma Vontade que, objetivando-se nele como seu próprio íntimo,
sua própria essência, é a mesma essência e fundo íntimo de todos os seres.
3.1. A influência
budista
Siddharta Gautama
(563-480 a.C. aproximadamente), o Buda, tendo alcançado a Iluminação, ensinou a
seus discípulos o caminho pelo qual eles também poderiam alcançá-la. O budismo
contém, portanto, os ensinamentos de Buda. É surpreendente a afinidade entre o
pensamento de Schopenhauer e o do Budismo, mormente no que tange a duas das 4
Nobres Verdades: 1) Toda existência é sofrimento; 2) o sofrimento origina-se do
desejo ou anseio. Buda ensinava ser a vida sinônimo de sofrimento. Nascer
é sofrer; envelhecer é sofrer; morrer é sofrer. Também para Schopenhauer a vida
não é outra coisa senão um ciclo de dores e sofrimentos incessantes, em cuja
origem está o estado de insatisfação permanente de desejos que não cessam de
assumir novas formas e de nos inquietar. A existência no samsara é como a roda de Íxion a
que alude Schopenhauer: uma roda de desejos nunca satisfeitos; portanto, de
sofrimentos infindos. Para Schopenhauer, a afirmação da vontade leva a um
interminável ciclo de desejos nunca plenamente satisfeitos. Toda satisfação
definitiva é impossível, donde a necessidade de pôr fim a esse ciclo tirânico
de quereres. A cessação dos desejos só é possível pela renúncia à satisfação,
pelo desapego ao viver mediante um exercício ascético ao fim do qual se busca
atingir o repouso, a liberação da tirania do desejo: o nirvana.[35] No pensamento de
Schopenhauer, o Nirvana equivale
à negação da vontade, e o carma budista é ressignificado como o estado
essencialmente doloroso da existência. Para falar com mais rigor, carma
significa ação intencional. Todo sofrimento que experienciamos nesta vida
presente é explicado como um efeito de um carma (ação) acumulado na vida
pregressa. O conceito de carma deve, portanto, ser relacionado com o de samsara, o qual recobre a crença de
que a existência humana se desenrola num ciclo de sucessivos nascimentos. As
obras do amor, que dão forma à ética da compaixão, desenvolvida por
Schopenhauer, em cujo cerne está o conhecimento intuitivo que levaria o
indivíduo a aliviar os sofrimentos alheios tendo reconhecido a mesma Vontade de
vida que, afirmando-se nele e nos demais seres sencientes, causa sofrimento
tanto nele como nesses seres é um claro e irretocável contributo da Grande
Compaixão budista, a saber, “o desejo espontâneo de libertar todos os seres
vivos dos sofrimentos da existência cíclica”.[36]
As aproximações que podemos fazer entre
o pensamento de Schopenhauer e a doutrina budista não se esgotam nas
precedentes. Outras mais devem ser aqui traçadas com vistas a pavimentar o solo
firme para que se desenvolvam nossas reflexões ulteriores sobre a questão do
nada implicada na negação da vontade. A verdade última do budismo é a
vacuidade. O eu e o nosso corpo são vacuidades. Não há um eu existente como
substância. Há uma ausência de eu substancial: isso é a vacuidade; no entanto,
a vacuidade não é o nada. Ademais, há um corpo convencional, representacional,
mas não há um corpo inerentemente existente. No budismo, todos os fenômenos
pertencem à ordem da convenção; nada existe em si mesmo; tudo é uma construção
conceitual da mente. O budismo afirma um idealismo absoluto: todos os fenômenos
são gerados pela nossa mente. Também afirma a impermanência de todas as coisas:
tudo que surge necessariamente muda. Não existe essência duradoura nem
individualidade dentro de nós. A mente é uma matriz produtora de ilusões. O
mundo cotidiano ou o mundo sensível é uma ilusão, carece de substancialidade. O
que muda carece de ser, portanto não é. O devir não pode ser identificado com o
real em si. O passado, o presente e o futuro não existem, visto que tudo o que
surge, necessariamente, muda; tudo está em fluxo, tudo carece de densidade
ontológica. A vida é devir; é fluxo constante. Se o mundo fenomênico está em
fluxo constante, se tudo nele muda, nada permanece, tudo nele carece de
densidade ontológica. No entanto, tudo depende do vazio.
“A realidade é vazia” (...) No Budismo
entende-se por vazio o fato de que alguma coisa para existir depende da
existência de outras, ou seja, nada existe de forma independente. Nem as
pessoas. Uma coisa só existe se outra existir, logo o mundo dos fenômenos
depende do vazio para existir. Tudo o que acontece depende do vazio.[37]
Segundo Barbeiro[38], o mestre Hsing Yun da escola
do Budismo tch’na, elenca
dez significados de vazio, dentre os quais um nos chama a atenção pela
semelhança com o conceito de Ápeiron de
Anaximandro. O vazio não tem começo, nem fim, nem limitações. Todas as coisas
são permeadas pelo vazio. O vazio é imóvel, é imutável e existe além da vida e
da morte. É a realidade última, portanto.
3.2. A influência
hinduísta
Os Upanixades, um dos livros sagrados
que compõem a literatura vedanta, escritos entre os séculos VIII e IV a.C.,
expõem a doutrina segundo a qual, subjacente ao mundo acessível aos sentidos,
há uma realidade última e verdadeira, livre do regime das formas do tempo,
espaço e causalidade. Essa realidade última, sem começo e sem fim, é imutável,
idêntica a si mesma e a tudo anima. Seu nome é Brahma. Os Upanixades são
um resumo dos Vedas. Considerado
a quintessência dos Upanixades,
o Bhagavad Gita ensina
o caminho da libertação do apego emocional ao mundo e da consequente união com
Deus, que é o Espírito Supremo, a essência de tudo que existe, mas também o Eu
Divino de cada um de nós, o Eu único, a Consciência Infinita. Destarte, segundo Gita[39], “a tarefa do
homem, no vasto esquema das coisas, consiste em aprender que não passa de uma
manifestação insignificante da Consciência Infinita”. O ego, segundo Gita, é a identidade da alma com o
corpo. O apego ao ego impele o homem a agir com base na falsa crença de que o
mundo em que vive é real. Apego é viver subjugado pelos desejos do ego e do
corpo – corpo este que é um campo de batalha, onde se trava uma guerra entre
tendências inferiores que arrastam a consciência para o jugo do mundo dos
sentidos e tendências superiores, que a elevam para a fonte verdadeira do
Espírito (Deus).
Em suma, o verdadeiro e último objetivo
da fé hindu (e do ensinamento budista) é a libertação do círculo do samsara (dos renascimentos e
diferentes existências). A morte é o maior evento da vida de um hindu, dado que
ela representa a libertação final desse ciclo de tormentos e sofrimentos que é
a vida em estado corpóreo. Levando-se em conta o que se expôs nestas duas últimas
seções, pode-se estabelecer uma analogia formal entre a ideia de que nossa alma
é feita da mesma cepa divina, de que somos partes da Consciência Infinita
(Deus) e a ideia schopenhaueriana de que cada ser, cada aparência é uma
objetidade de uma mesma Vontade, fundamento do mundo. Também a doutrina da
negação da vontade inspira-se na ideia de libertação budista-hinduísta do ciclo
tormentoso do samsara.
4. O nada da negação
da vontade
O estágio máximo da vida ascética, da
santidade, representado pela doutrina da negação da vontade, tem pressupostos,
conforme patenteamos, que devem ser acuradamente examinados em suas
articulações possíveis com a totalidade da doutrina schopenhaueriana. A
tendência predominante dos comentadores dos textos de Schopenhauer é ver na
doutrina da negação da vontade o ápice de seu pessimismo rabugento, de sua má
disposição para com o júbilo, o prazer de existir, a chancela do conselho do
sábio Sileno. A crítica feita pelo Nietzsche maduro ao pensamento
schopenhaueriano parece ter contribuído para essa persistente má vontade para
com a filosofia pessimista, niilista de Schopenhauer. Como não seja possível
aqui nos ocupar da influência que a leitura nietzschiana exerce sobre a exegese
da produção filosófica de Schopenhauer[40], passaremos a examinar mais
um daqueles pressupostos – um pressuposto que, embora mencionado, passou ao
largo de nossas considerações. Importa, no entanto, dizer, en passant, que o objetivo central
desta etapa de nossa discussão será determinar o significado do “nada” suposto
na doutrina da negação da vontade.
Na Introdução, fizemos menção ao fato
de que, para Schopenhauer, o mundo como representação, experienciado sob o
regime de Maya,
assemelha-se a um sonho. Schopenhauer diz-nos que sonho e vigília se distinguem
apenas em termos de qualidade; mas não se distinguem por natureza. Tanto o
sonho quanto a vigília são regidos pelo princípio da causalidade, de sorte que
não há critério seguro que nos permita estabelecer a distinção entre ambos.
Tanto a vida quanto o sonho começam de modo casual, abrupto, sem razão e, não
raro, terminam do mesmo modo. A analogia da vida com o sonho é demonstrada por
Schopenhauer mediante a metáfora das folhas de um livro. Vida e sonho são como
folhas de um mesmo livro. Esse livro é a vida em estado de vigília. Quando
despertos, a leitura desse livro é feita segundo uma ordem coerente. Quando, no
entanto, dormimos, folheamos uma folha aqui, outra ali, de modo descontraído,
sem que nossa leitura se submeta a uma ordem coerente. O aspecto epistemológico
da distinção entre vigília e sonho, que faz eco a Descartes, a Kant e, antes
destes, a toda uma tradição que se estende de Platão ao ceticismo, não é o que
nos interessa. O cerne do argumento schopenhaueriano e o que importa
considerar, para efeitos dessa discussão, é a declaração de que a vida e o
sonho começam ambos de modo casual, repentino. A analogia da vida com o sonho
é, intuitivamente, mais claro e consistente quando Schopenhauer faz intervir na
relação o signo da “morte”. Leia-se, pois, o trecho abaixo:
(...) a vida pode ser vista como um
sonho, e a morte, como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo
pertence à consciência que sonha e não à que está em vigília: eis por que a
morte se apresenta a ela como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto
de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente
novo e estranho, mas, antes, o retorno ao estado de origem e do qual a vida foi
somente um breve episódio.[41]
Schopenhauer associa vida a sonho e
morte ao despertar desse sonho. A vida é um breve episódio entre dois nadas (o
nada que precede ao nosso nascimento e o nada que sucederá à vida). A vida
transcorre entre o nada que precede ao nascimento e o nada que se segue à
morte. A morte não é uma espécie de transição para outra forma de vida; é o
retorno ao inorgânico, nosso estado originário. Vindo do nada lançado à vida,
sem razão e casualmente, o indivíduo, atingindo um grau refinado de reflexão,
não poderá ignorar que a experiência da vida é a mesma que tem aquele que,
abruptamente, repentinamente, começa a sonhar. Tanto a relação entre a vida e o
sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são consistentes com os
ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do hinduísmo e do budismo.
Ademais, são consistentes com a visão schopenhariana do mundo como
representação, mundo que existe para o sujeito e é condicionado por ele. Ora,
tal como o sonho supõe o sonhador, também o mundo como representação supõe o
sujeito da intuição; tal como o mundo da experiência sensorial é, no hinduísmo
e no budismo, projeções da mente humana, desprovidas de substancialidade, assim
também são os sonhos imagens, subprodutos da atividade cerebral de quem sonha.
Tanto quanto o mundo “real” os sonhos carecem de “existência inerente”. O mundo
intuitivo nada mais é do que a minha representação; a vida universal é a vida
da Vontade, e esta é a verdadeira vida. Convém, doravante, debruçarmo-nos sobre
o sentido do apelo ao nada, suposto na doutrina da negação da vontade. A
questão que nos ocupará pode ser formulada como se segue: a supressão do querer
viver alcançada na negação da vontade descerra o caminho para o Nada vazio?
Nada vazio significa o Nada absoluto em sentido ontológico, o não-ser, a não
existência, para falar em estilo heideggeriano, do “ente na totalidade”.
A negação da vontade é considerada por
Schopenhauer o sumo bem,
“o único e radical meio de cura da doença contra a qual todos os outros meios
são simples paliativos, menos anódinos”.[42] A doutrina da negação da
vontade caracteriza emblematicamente Schopenhauer como um filósofo místico, que
soube, como nenhum outro, fazer confluírem o rigor do lógos ocidental, uma
invenção legitimamente grega, e a mística-imagética das sabedorias orientais.
Por conseguinte, não podemos nos esquivar de concordar com Brum, quando observa
que a negação da vontade “essa beatitude nirvânica não pode
ser considerada uma felicidade pessoal, porque enquanto “alegria celeste”,
ela não pertence mais ao mundo. Pertence ao domínio da mística”. (grifos no
original).[43]
Na seção 71, a última do IV livro
de O mundo como vontade e
representação, Schopenhauer se preocupa em esclarecer a distinção entre
duas concepções de NADA. Nas palavras do filósofo, “(...) o conceito de NADA é
essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado”.[44] O nihil privativum ou o nada
privativo é marcado com o sinal (-) em oposição a um (+). O nihil negativum foi interpretado
como nada absoluto, sempre um nada em qualquer relação. Sucede, contudo, que
Schopenhauer nega ser pensável um nada absoluto. Destarte, segundo o autor,
“qualquer nada o é apenas quando pensado em relação a algo outro, e pressupõe
esta relação, portanto, também aquele algo outro”.[45]. O nada privativo sempre pode
trocar de sinal com aquilo em relação ao qual ele é negação. Logo, se ao nada
privativo associamos o sinal (-) e ao ser o sinal (+), podemos sempre inverter
a distribuição dos sinais: o nada recebe o sinal (+), e o ser recebe o sinal
(-). Ora, Schopenhauer nota que é justamente o mundo como representação, como
objetidade e espelho da Vontade que é considerado, universalmente, como
“ser”. Se, contudo, observa o filósofo, “um ponto de vista invertido
fosse possível para nós, ele permitiria uma troca de sinais e mostraria que o
que existe para nós como ser, é o nada, e o que para nós é o nada, é o ser”.[46] Tal é, portanto, a experiência
daqueles nos quais a vontade foi negada; para estes, “este nosso mundo tão real
com todos os seres e vias lácteas é – Nada”.[47] Por outro lado, para
“todos aqueles que ainda estão cheios de vontade”[48], o nada é o estado a que se
segue à completa supressão da vontade. Somente aqueles que ainda se encontram
sob a tirania da Vontade veem a negação da vontade como imersão na nulidade
total.
Do que precede segue-se que o nada
desvelado pela negação da vontade é descanso na mais profunda ataraxia, é
ultrapassamento do mundo da representação, é libertação dos grilhões da
Vontade. Para todos aqueles que chegam a alcançar “a completa calmaria oceânica
do espírito, aquela profunda tranquilidade, confiança inabalável e serenidade
jovial”[49], o que seria, pela negação da
vontade, uma absorção angustiante no nada como nulidade de ser converte-se em
plenitude de ser, em inquebrantável ataraxia. Na experiência de transfiguração
do mundo como representação em “nada” por meio da negação da vontade, o nada se
desvela como signo da lucidez do niilismo schopenhaueriano.
Antes de pôr termo a este texto, o que
a lucidez niilista do pensamento de Schopenhauer nos desvela é uma experiência
que não é, de modo algum, uma exclusividade consequente do acordo desse
pensamento com as sabedorias místicas do Oriente; essa experiência não é
estranha a filosofias existencialistas como a de Heidegger e Sartre. Não é
escusável lembrar o pertencimento originário do nada à essência do ser, em
Heidegger; nem será demais recordar a experiência nadificadora da Náusea, em
Sartre: na Náusea, a realidade perde sua razão de ser. Schopenhauer, Heidegger
e Sartre souberam ver, cada qual a seu modo, que o problema do “nada”, ou o que
nos põe como problema o niilismo, diz respeito à condição do homem como ser no
mundo.
Malgrado o fato de Schopenhauer pensar
ser absurdo o nada absoluto, cumpre dizer que, no Zen-Budismo, o Nada absoluto
não comporta um traço de ‘negatividade’. O conceito de Nada absoluto recobre a
total dissolução da substancialidade no vazio. A dissolução da substancialidade
no vazio é abertura infinita ao vazio. O Nada aí é dotado do traço sêmico [+
atividade]; por conseguinte, pela atividade nadificante do nada, o “Um”
substancial se dissolve no vazio. Essa dissolução do “Um” no Vazio descerra o
diverso inesgotável.
O nada como atividade, que dissolve a
substância no vazio, nega também, ao mesmo tempo, toda determinação do nada
como negação do ser. À luz da atividade nadificadora do Nada absoluto, se
descortina a ambiguidade, a plurivocidade radical do mundo, o seu ser dizível,
expressivo, mas não completamente; o seu ser indizível, mas não totalmente. O
mar está aberto novamente, como disse Nietzsche. O mundo expõe à luz do dia seu
caráter transitório e mutável, “a impossibilidade de defini-lo como forma
acabada em um modo ou em outro, até que se permanece dentro de uma rede de
correlações que a linguagem cria”[50]. Segundo Cestari[51], portanto, “o nada absoluto
tem (...) a ver com a existência total de múltiplas vozes do mundo e a sua opacidade
em relação ao pensamento dualista”.
Reafirma-se,
pois, com base no exposto, o modo como buscaremos repensar a problematicidade
do niilismo a partir do confronto entre as filosofias de Schopenhauer, de
Nietzsche e de Cioran. O niilismo se insurge contra o
que Meffesoli[52] chama esquema
substancialista que marcou o Ocidente, cujas figuras são a do Ser,
Deus, Estado, Instituição, Indivíduo, Identidade, Bem, entre outras. O niilismo
descerra as condições de possibilidade para o compromisso com a crítica radical
do que Meffesoli chama “Fantasma do Uno”, ou seja, uma matriz ideológica,
imaginária que, reduzindo toda a diversidade e complexidade do real (domínio
das infinitas possibilidades, das virtualidades) ao imperativo do Uno, está na
origem da fundação dos monoteísmos morais, políticos e dos autoritarismos que
culminaram com os piores totalitarismos. O niilismo, a fim de assegurar seu
poder bélico, contestatório de todas aquelas variantes do esquema
substancialista, precisa trazer à luz a insignificância radical da condição
humana, o abismo em que assenta a história, a abissal indiferença cósmica para
com nossas rixas, rivalidades, lutas e disputas pelo poder de determinar o
curso do desenvolvimento histórico que resiste a acomodar-se ao regime de um
plano racional.
A
lucidez niilista exprime-se aqui com todo seu vigor combativo. O niilismo se
apresenta, pois, como uma forma de pensamento dessacralizador, fundado na
negação radical de todo ideal, de toda pretensão de segmentos societários, que
gozam do privilégio do poder instituído, de reificar, de naturalizar,
hipostasiar sentidos e valores que são historicamente produzidos, sedimentados
e conservados. O niilismo é o modus
operandis de toda crítica desconstrucionista ou genealógica que
visa a “desenterrar”, a pôr sobre a terra as raízes das configurações, das
materialidades históricas cuja existência é justificada metaempiricamente.
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