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segunda-feira, 13 de maio de 2013

"Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?" (Fernando Pessoa)


                            

                            
                              A liquidez do romântico


Duas questões porão em movimento minhas reflexões neste texto: O que é o romantismo? e Quem é o romântico?. Para tentar respondê-las, proporei um passeio, que se pretende breve, pela história do movimento romântico. O movimento romântico, na verdade, recobriu um conjunto diversificado e díspar de tendências, de tal modo que parece mais adequado falar em romantismos.
Como um movimento estético, o romantismo surge num período que se estende do final do século XVIII aos meados do século XIX. A cena história em que se deve situar o romantismo é marcada pelo declínio da aristocracia do século XVIII e a eclosão do cientificismo urbano-industrial da segunda metade do século XIX (período longo em que se deu a chamada Revolução Industrial). O romantismo teve diversos desdobramentos nos três países em que vicejou: a Inglaterra, a Alemanha e a França.
Sendo mais do que um programa de ação que congregou poetas, filósofos, artistas, romancistas e músicos, o romantismo foi um movimento que abrigou atitudes conservadoras e libertárias, a inovação estética e a repetição de padrões consagrados, a íntima relação com o poder e a revolta radical. Não se pode negar que liberdade, paixão e emoção constituem os pilares do movimento romântico. Mas não foi só disso que viveu o romantismo.
Uma maneira de compreender mais facilmente o drama romântico é pensar na natureza do herói romântico. Ele é marcado pela inadaptação ao mundo, pelo desacordo com a sociedade, pelo descontentamento com ela. O herói romântico é um sujeito deslocado ou marginalizado. Seu destino é solitário e suas disposições psíquicas levam-no às diversas formas de fuga (o sonho, a morte, a idealização do amor, da mulher, da pátria, etc.).
O romantismo nasce – é preciso frisar - permeado por contradições, assentado sobre afirmação e negação que instauram o conflito entre o eu e o mundo, entre o indivíduo e o Estado, produzindo as condições necessárias à eclosão de um individualismo de profundidade jamais antes sentida no Ocidente. O sujeito romântico é um sujeito problemático, porque em desarmonia com o seu tempo e com a História. Devemos entender que a exacerbação lírica ou o sentimentalismo exagerado, a melancolia, o pessimismo e a valorização da morte são algumas das formas pelas quais o romântico expressa sua insatisfação ou espanto em face dos valores de sua época que, em sua visão, se tornaram inaceitáveis. O romântico é, assim, um sujeito social inconformado, que vive em constante conflito com o mundo.  A insatisfação com a realidade sócio-histórica levava os românticos a acentuar as sensações, os sentimentos e as imagens oníricas.
Nada mais distante de um romântico que o homem comum deslumbrado com a vida, bem satisfeito com as condições sociais de existência. Nada mais longe de um romântico que o indivíduo bem adaptado ao social, ao seu mundinho egóico. Não se é romântico se não se vê à volta com um profundo sentimento de mal-estar. Ser romântico não se reduz a ser afetuoso, extremamente carinhoso e cortês. Quem está bem arranjado em sua própria pele não é um romântico; quem olha para o mundo e se sente em casa não é um romântico.  Tampouco é romântico quem não se confronta com o mundo e se abandona ao desejo de sua própria morte como fuga derradeira em face das desilusões. Todo romântico se caracteriza, fundamentalmente, pelo desencanto, pela tendência à melancolia e pela valorização da morte, ao mesmo tempo em que alimenta um espírito revolucionário ou de revolta.
Um olhar sobre o romantismo hoje revela, segundo Citelli (2007), o seguinte:

“O que existe hoje são presentificações de gestos e valores que vicejaram pelo século XIX: um olhar sonhador, um comportamento evasivo, um certo saudosismo e crença de que o mundo já não é tão bom como antes, a viagem proporcionada pelas drogas, o intenso e muitas vezes platônico sentimento amoroso, são alguns dos múltiplos aspectos a que se chama comumente de postura romântica. É preciso ponderar, portanto, que ao se falar hoje em romantismo considera-se um conjunto de experiências humanas decorrentes de uma situação histórica precisa e que já não se confunde mais com aquele quadro de referências do século XIX”.
(p. 9)



Não tenho a intenção aqui de contar a história do amor romântico, mas de examinar qual é o espaço destinado ao amor romântico em nossa modernidade líquida. Outra questão também me ocupará: o que é ser romântico numa época em que os valores do mercado permeiam as relações interpessoais, de modo a torná-las cada vez mais frágeis e descartáveis? Tenho, forçosamente, de começar por entender a relação entre o amor-paixão e o amor romântico. Giddens, em seu A transformação da sexualidade (1993), propõe uma distinção entre amor-paixão e amor romântico. Segundo Giddens, o amor paixão exige dos amantes a abstração das suas atividades rotineiras. O envolvimento emocional entre eles é invasivo e avassalador. Destarte, imersos no amor paixão, os apaixonados ignoram as obrigações do dia-a-dia.  Por ser um sentimento subversivo, e, portanto, capaz de sacrificar as exigências da vida social, é encarado como perigoso (Giddens, 1993, p. 48).
Claro é que o amor romântico incorporará um pouco do amor-paixão, mas, ao contrário deste, procurará responder melhor aos anseios sociais. O amor romântico acena com as necessidades de liberdade e auto-realização ainda muito presentes em nosso século. Seus valores estão associados ao casamento e ao papel da mulher como dona de casa e mãe. Se, por um lado, o amor romântico estava associado à subordinação da mulher ao lar e à sua limitada participação nas esferas públicas, por outro lado, serviu também a elas para a expressão de seu poder e autonomia. Para os homens, a tensão entre o amor-paixão e o amor romântico ligava-se à separação entre o amor “respeitável” experienciado com a esposa e o amor sensual experienciado, fora da esfera do lar, com a prostituta. Segundo Giddens,

“(...) a fusão do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade. (...) Como especialistas do coração, as mulheres estabelecem contato uma com a outra em uma condição de igualdade pessoal e social, dentro dos aspectos amplos das divisões de classe. As amizades entre mulheres ajudaram a mitigar os desapontamentos do casamento, mas também mostraram-se por si sós compensadores. As mulheres falavam das amizades, assim como os homens frequentemente o faziam, em termos de amor, e ali encontraram um verdadeiro confessionário”.
(p. 55)



O amor romântico supõe certo grau de autoquestionamento (como eu me sinto em relação ao outro?). Importa ver que o amor romântico é incompatível com a luxúria. Na realidade, a consumação do ato sexual, no amor romântico, tende a enfraquecê-lo. O amor romântico é amor de almas. No amor romântico, o outro preenche um vazio no eu. O eu só se torna inteiro pelo outro. O amor romântico, não deixando de incorporar resíduos do amor-paixão, é amor voltado para a transcendência. Seu fim pode ser trágico, mas também pode produzir triunfos. O amor romântico se baseia na idealização do outro. Há, como no amor-paixão, a absorção do outro. As heroínas românticas são agentes produtoras do amor. O amor delas faz com que sejam amadas pelo outro.
Não se pode negar o caráter subversivo do amor romântico, mas, como nota Giddens,


“O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento e com a maternidade, e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre”. (p. 58)



No tangente ao amor-paixão, Furtado, em seu livro Amor (2008), nota que:

“O amor-paixão implica a ideia da eleição do outro e da busca da fusão erótica com ele – fusão que não depende necessariamente da realização de um ato sexual sem o que a própria vida perderia o sentido. O outro é elevado ao estatuto de ser absoluto, paradoxalmente, para mim”.

(pp. 39-40)


Qual é a forma de amor predominante na modernidade atual? Há quem entenda que o amor de nossa época é um amor epidérmico, ou seja, um amor que se manifesta ao nível superficial da pele. Bauman (2004), enfatizando a fragilidade dos vínculos humanos, chama ao amor da modernidade atual “amor líquido”. O amor líquido é a forma de amor característica da modernidade líquida (Bauman, 2009).

“A vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”.

(p. 7)


Segundo Bauman, as relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais árduos com que precisam lidar homens e mulheres. A maioria deles tem necessidade da ajuda de um companheiro fiel “até que a morte os separe”. No entanto, o “até que a morte os separe” os assusta e os desencoraja: outras pessoas não podem nos aprisionar; não podemos permitir que elas nos impeçam de viver as múltiplas possibilidades de usufruir cada vez mais prazer. Temos de seguir o ritmo frenético desta “vida líquida” cujas condições mudam num curto espaço de tempo. Temos de buscar prazeres cada vez mais urgentes e sempre renováveis. O “até que a morte nos separe” condena-nos ao tédio, causa aborrecimento e nos acarreta uma vida sexual-afetiva de privações. Os compromissos que aspiram a conservar-se por tempo indeterminado devem ser evitados, porque podem nos impedir de viver algo melhor no futuro. Prefiram-se as “conexões”, facilmente desfeitas caso as circunstâncias não nos beneficiem mais.
Nas condições da vida líquida – ou “no império do efêmero”, termo com que o filósofo francês Gilles Lipovetsky denominou a modernidade, - o amor tornou-se uma mercadoria cuja aquisição, por um preço módico, todos desejam rapidamente. As leis da sociedade de consumo – obsolescência, sedução e diversificação – passaram, por meio de processos ideológicos e socioeducativos, a invadir as esferas privadas de relacionamentos, produzindo, assim, as condições favoráveis à experiência dos amores líquidos. Os amores líquidos se definem por duas características essenciais: a incessante busca por novos relacionamentos e a recusa de vínculos duradouros. Os amores líquidos, sempre fluidos e frágeis, se regem pelo imperativo da libido, o qual leva os envolvidos a buscar incessantemente novas possibilidades de prazer. Consoante nota Bauman (2009) a respeito das condições de existência na modernidade líquida,

“A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento, repelindo as identidades e assumidas) ou perecer. (...) A necessidade aqui é correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários”.

(pp. 9-10)


Eis o drama amoroso dos homens e mulheres modernos: eles querem o amor verdadeiro, mas não estão dispostos a vivenciá-lo como um longo trabalho intersubjetivo de construção de companheirismo, cumplicidade e fidelidade ao próprio amor. Novamente, devemos ponderar sobre estes excertos de Bauman (2009)

“Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede – um turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma malha, essa coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola. E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez”.

(p. 78)


“Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo”.

(p. 77)


O imperativo da libido, que impulsiona os homens e as mulheres a buscar cada vez mais prazer, em novas formas de relacionamentos, se pauta pela quantidade de conquistas sexuais. Entre os jovens é comum ouvir o conselho “a fila anda”, sempre que percebem que os relacionamentos de outrem fracassaram. É o que nos diz Bauman: nessas circunstâncias, só a rapidez da mudança, do seguir em frente na busca ininterrupta de prazer é que pode nos poupar o aborrecimento ou o tédio.
Instabilidade, fragilidade, urgência de prazer, recusa a manter vínculos duradouros caracterizam as condições dos relacionamentos humanos da modernidade líquida. Tais condições são reforçadas pela influência do que Bauman (2009) chama “síndrome consumista”.

“A síndrome consumista” à qual a cultura contemporânea se rende cada vez mais tem como centro uma enfática negação da virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação” – princípios fundadores da “sociedade dos produtores” ou “sociedade produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a “síndrome consumista” destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade acima do valor da permanência”.


(p. 83)


Na cultura líquido-moderna, a norma é seguir o fluxo das mudanças, libertar-se das condições sufocantes e desagradáveis. É necessário esquecer rapidamente o que passou ou o que já foi superado. Os valores de outrora já não contam mais; os padrões em que se pautavam comportamentos dantes apreciáveis fazem parte do antiquário do esquecimento.

“Evidentemente, seria injusto e imprudente depositar na indústria de consumo, e apenas nela, a culpa da situação em que a criação cultural hoje se encontra. Essa indústria está bem equipada para a forma de vida a que chamo de “modernidade líquida”. Essa indústria e essa forma de vida estão afinadas entre si e reforçam mutuamente o controle sobre as opções que os homens e as mulheres de nossa época podem, de forma realista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.

(p. 83)



Ocorre, porém, que, pelo menos desde Platão, o amor sempre foi pensado como um sentimento vinculado à ideia de eternidade. Ao contrário, o desejo é instantâneo. Segundo Furtado (2008, p. 28), o gozo não é a realização do amor. Para ele, o amor é um trabalho, é uma dificuldade, muito mais do que uma faculdade. A isso, acrescenta que o amor supõe a crença de que de dois se possa fazer um. Certamente, essa concepção é adequada à imagem do amor romântico. Furtado nota, contudo,

“[que] o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.

(p. 32)


Lembre-se de que já disse que o amor romântico é incompatível com a luxúria. O amor romântico não supõe consumação do ato sexual. É um amor de almas. Disso se segue que, nas condições atuais, tais como descritas acima, nas quais os relacionamentos se estabelecem sobre o imperativo da urgência de gozo, é pouco provável que haja terreno para o enraizamento do amor romântico ou de seus ideias. No amor romântico e nisso ele acompanha o amor-paixão, o outro é elevado à posição de ser absoluto, muito embora, paradoxalmente, essa elevação seja relativa ao amante (Furtado, 2008 p. 40).
Em O paradoxo amoroso (2011), Pascal Bruckner oferece-nos à apreciação estas palavras bastante felizes:

“Amar é antes de mais nada subtrair um ser da comunidade humana, desertificar o mundo e não saber de nada que não seja ele. Esse sacrifício exige, porém, reembolso e se possível com juros. O eleito deve me provar diariamente que eu estava certo ao colocá-lo sobre um pedestal e desdenhar outros galantes eventuais”.

(p. 86)


Claro me parece que a representação que Bruckner faz do amor nesse trecho é incompatível com a forma de amor-líquido, já que esse supõe, dada a fragilidade, a necessidade de buscar novos galantes.  Todavia, Bruckner nos ensina algo importante sobre o amor: todo amor é condicional. Além disso, todo amor é fonte de demandas. No amor, os amantes se elegem em meio a uma multidão de possíveis pretendentes. Isso, evidentemente, implica privações. Ao se elegerem, eles aceitam abrir mão de outros possíveis pretendentes ao posto de objeto do seu amor. Tal sacrifício demanda a garantia da permanência do sentimento eletivo. O Eu te amo passa, assim, a significar eu te elegi para ser senhor de meu coração. O Eu te amo reiterado todos os dias reforça ao amado a sua importância na vida do amante. No amor, todo ser amado é um ser especial. Mas não nos enganemos. Como nos lembra Precht (2012), não raro, amamos os que não nos amam e não amamos os que nos amam. Curiosamente, “não escolhemos sempre a pessoa mais amorosa para amar” (Precht, 2012, p. 172).
E esta lúcida fórmula de Sponville, em O amor à solidão (2006), não nos deixará iludir com o amor:

“Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos”.
(p. 53)