A
liquidez do romântico
Duas questões porão
em movimento minhas reflexões neste texto: O
que é o romantismo? e Quem é o romântico?. Para tentar
respondê-las, proporei um passeio, que se pretende breve, pela história do
movimento romântico. O movimento romântico, na verdade, recobriu um conjunto
diversificado e díspar de tendências, de tal modo que parece mais adequado
falar em romantismos.
Como
um movimento estético, o romantismo surge num período que se estende do final
do século XVIII aos meados do século XIX. A cena história em que se deve situar
o romantismo é marcada pelo declínio da aristocracia do século XVIII e a
eclosão do cientificismo urbano-industrial da segunda metade do século XIX
(período longo em que se deu a chamada Revolução Industrial). O romantismo teve
diversos desdobramentos nos três países em que vicejou: a Inglaterra, a
Alemanha e a França.
Sendo
mais do que um programa de ação que congregou poetas, filósofos, artistas,
romancistas e músicos, o romantismo foi um movimento que abrigou atitudes
conservadoras e libertárias, a inovação estética e a repetição de padrões
consagrados, a íntima relação com o poder e a revolta radical. Não se pode
negar que liberdade, paixão e emoção constituem os pilares do movimento
romântico. Mas não foi só disso que viveu o romantismo.
Uma
maneira de compreender mais facilmente o drama romântico é pensar na natureza
do herói romântico. Ele é marcado pela inadaptação ao mundo, pelo desacordo com
a sociedade, pelo descontentamento com ela. O herói romântico é um sujeito
deslocado ou marginalizado. Seu destino é solitário e suas disposições
psíquicas levam-no às diversas formas de fuga (o sonho, a morte, a idealização
do amor, da mulher, da pátria, etc.).
O
romantismo nasce – é preciso frisar - permeado por contradições, assentado
sobre afirmação e negação que instauram o conflito entre o eu e o mundo, entre
o indivíduo e o Estado, produzindo as condições necessárias à eclosão de um
individualismo de profundidade jamais antes sentida no Ocidente. O sujeito
romântico é um sujeito problemático, porque em desarmonia com o seu tempo e com
a História. Devemos entender que a exacerbação lírica ou o sentimentalismo
exagerado, a melancolia, o pessimismo e a valorização da morte são algumas das
formas pelas quais o romântico expressa sua insatisfação ou espanto em face dos
valores de sua época que, em sua visão, se tornaram inaceitáveis. O romântico
é, assim, um sujeito social inconformado, que vive em constante conflito com o
mundo. A insatisfação com a realidade
sócio-histórica levava os românticos a acentuar as sensações, os sentimentos e
as imagens oníricas.
Nada
mais distante de um romântico que o homem comum deslumbrado com a vida, bem
satisfeito com as condições sociais de existência. Nada mais longe de um
romântico que o indivíduo bem adaptado ao social, ao seu mundinho egóico. Não
se é romântico se não se vê à volta com um profundo sentimento de mal-estar.
Ser romântico não se reduz a ser afetuoso, extremamente carinhoso e cortês. Quem
está bem arranjado em sua própria pele não é um romântico; quem olha para o
mundo e se sente em casa não é um romântico. Tampouco é romântico quem não se confronta com
o mundo e se abandona ao desejo de sua própria morte como fuga derradeira em
face das desilusões. Todo romântico se caracteriza, fundamentalmente, pelo
desencanto, pela tendência à melancolia e pela valorização da morte, ao mesmo
tempo em que alimenta um espírito revolucionário ou de revolta.
Um
olhar sobre o romantismo hoje revela, segundo Citelli (2007), o seguinte:
“O que existe hoje são
presentificações de gestos e valores que vicejaram pelo século XIX: um olhar
sonhador, um comportamento evasivo, um certo saudosismo e crença de que o mundo
já não é tão bom como antes, a viagem proporcionada pelas drogas, o intenso e
muitas vezes platônico sentimento amoroso, são alguns dos múltiplos aspectos a
que se chama comumente de postura romântica. É preciso ponderar, portanto, que
ao se falar hoje em romantismo considera-se um conjunto de experiências humanas
decorrentes de uma situação histórica precisa e que já não se confunde mais com
aquele quadro de referências do século XIX”.
(p. 9)
Não
tenho a intenção aqui de contar a história do amor romântico, mas de examinar
qual é o espaço destinado ao amor romântico em nossa modernidade líquida. Outra
questão também me ocupará: o que é ser
romântico numa época em que os valores do mercado permeiam as relações
interpessoais, de modo a torná-las cada vez mais frágeis e descartáveis?
Tenho, forçosamente, de começar por entender a relação entre o amor-paixão e o
amor romântico. Giddens, em seu A
transformação da sexualidade (1993), propõe uma distinção entre amor-paixão
e amor romântico. Segundo Giddens, o amor paixão exige dos amantes a abstração
das suas atividades rotineiras. O envolvimento emocional entre eles é invasivo
e avassalador. Destarte, imersos no amor paixão, os apaixonados ignoram as
obrigações do dia-a-dia. Por ser um
sentimento subversivo, e, portanto, capaz de sacrificar as exigências da vida
social, é encarado como perigoso (Giddens, 1993, p. 48).
Claro
é que o amor romântico incorporará um pouco do amor-paixão, mas, ao contrário
deste, procurará responder melhor aos anseios sociais. O amor romântico acena
com as necessidades de liberdade e auto-realização ainda muito presentes em
nosso século. Seus valores estão associados ao casamento e ao papel da mulher
como dona de casa e mãe. Se, por um lado, o amor romântico estava associado à
subordinação da mulher ao lar e à sua limitada participação nas esferas
públicas, por outro lado, serviu também a elas para a expressão de seu poder e
autonomia. Para os homens, a tensão entre o amor-paixão e o amor romântico
ligava-se à separação entre o amor “respeitável” experienciado com a esposa e o
amor sensual experienciado, fora da esfera do lar, com a prostituta. Segundo
Giddens,
“(...) a fusão do amor romântico e
da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de
intimidade. (...) Como especialistas do coração, as mulheres estabelecem
contato uma com a outra em uma condição de igualdade pessoal e social, dentro
dos aspectos amplos das divisões de classe. As amizades entre mulheres ajudaram
a mitigar os desapontamentos do casamento, mas também mostraram-se por si sós
compensadores. As mulheres falavam das amizades, assim como os homens
frequentemente o faziam, em termos de amor, e ali encontraram um verdadeiro
confessionário”.
(p. 55)
O
amor romântico supõe certo grau de autoquestionamento (como eu me sinto em
relação ao outro?). Importa ver que o amor romântico é incompatível com a
luxúria. Na realidade, a consumação do ato sexual, no amor romântico, tende a
enfraquecê-lo. O amor romântico é amor de almas. No amor romântico, o outro
preenche um vazio no eu. O eu só se torna inteiro pelo outro. O amor romântico,
não deixando de incorporar resíduos do amor-paixão, é amor voltado para a
transcendência. Seu fim pode ser trágico, mas também pode produzir triunfos. O
amor romântico se baseia na idealização do outro. Há, como no amor-paixão, a
absorção do outro. As heroínas românticas são agentes produtoras do amor. O
amor delas faz com que sejam amadas pelo outro.
Não
se pode negar o caráter subversivo do amor romântico, mas, como nota Giddens,
“O caráter intrinsecamente subversivo
da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela
associação do amor com o casamento e com a maternidade, e pela ideia de que o
amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre”. (p. 58)
No
tangente ao amor-paixão, Furtado, em seu livro Amor (2008), nota que:
“O amor-paixão implica a ideia da
eleição do outro e da busca da fusão erótica com ele – fusão que não depende
necessariamente da realização de um ato sexual sem o que a própria vida
perderia o sentido. O outro é elevado ao estatuto de ser absoluto,
paradoxalmente, para mim”.
(pp. 39-40)
Qual
é a forma de amor predominante na modernidade atual? Há quem entenda que o amor
de nossa época é um amor epidérmico, ou seja, um amor que se manifesta ao nível
superficial da pele. Bauman (2004), enfatizando a fragilidade dos vínculos
humanos, chama ao amor da modernidade atual “amor líquido”. O amor líquido é a
forma de amor característica da modernidade líquida (Bauman, 2009).
“A vida líquida” e a “modernidade
líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que
tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é
uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num
tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e
rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e
se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade
líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”.
(p. 7)
Segundo
Bauman, as relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais árduos com que
precisam lidar homens e mulheres. A maioria deles tem necessidade da ajuda de
um companheiro fiel “até que a morte os separe”. No entanto, o “até que a morte
os separe” os assusta e os desencoraja: outras pessoas não podem nos
aprisionar; não podemos permitir que elas nos impeçam de viver as múltiplas
possibilidades de usufruir cada vez mais prazer. Temos de seguir o ritmo
frenético desta “vida líquida” cujas condições mudam num curto espaço de tempo.
Temos de buscar prazeres cada vez mais urgentes e sempre renováveis. O “até que
a morte nos separe” condena-nos ao tédio, causa aborrecimento e nos acarreta
uma vida sexual-afetiva de privações. Os compromissos que aspiram a
conservar-se por tempo indeterminado devem ser evitados, porque podem nos
impedir de viver algo melhor no futuro. Prefiram-se as “conexões”, facilmente
desfeitas caso as circunstâncias não nos beneficiem mais.
Nas
condições da vida líquida – ou “no império do efêmero”, termo com que o
filósofo francês Gilles Lipovetsky denominou a modernidade, - o amor tornou-se
uma mercadoria cuja aquisição, por um preço módico, todos desejam rapidamente.
As leis da sociedade de consumo – obsolescência, sedução e diversificação –
passaram, por meio de processos ideológicos e socioeducativos, a invadir as
esferas privadas de relacionamentos, produzindo, assim, as condições favoráveis
à experiência dos amores líquidos. Os amores líquidos se definem por duas
características essenciais: a incessante
busca por novos relacionamentos e a
recusa de vínculos duradouros. Os amores líquidos, sempre fluidos e
frágeis, se regem pelo imperativo da
libido, o qual leva os envolvidos a buscar incessantemente novas
possibilidades de prazer. Consoante nota Bauman (2009) a respeito das condições
de existência na modernidade líquida,
“A vida numa sociedade
líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se ir em frente
despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento,
repelindo as identidades e assumidas) ou perecer. (...) A necessidade aqui é
correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de
lixo que constitui o destino dos retardatários”.
(pp. 9-10)
Eis o
drama amoroso dos homens e mulheres modernos: eles querem o amor verdadeiro,
mas não estão dispostos a vivenciá-lo como um longo trabalho intersubjetivo de
construção de companheirismo, cumplicidade e fidelidade ao próprio amor.
Novamente, devemos ponderar sobre estes excertos de Bauman (2009)
“Não se deixe apanhar. Evite
abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas
ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a
rede – um turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma
malha, essa coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola. E
lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a
máxima insensatez”.
(p. 78)
“Quando a qualidade o decepciona,
você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é
a rapidez da mudança que pode redimi-lo”.
(p. 77)
O
imperativo da libido, que impulsiona os homens e as mulheres a buscar cada vez
mais prazer, em novas formas de relacionamentos, se pauta pela quantidade de
conquistas sexuais. Entre os jovens é comum ouvir o conselho “a fila anda”,
sempre que percebem que os relacionamentos de outrem fracassaram. É o que nos
diz Bauman: nessas circunstâncias, só a rapidez da mudança, do seguir em frente
na busca ininterrupta de prazer é que pode nos poupar o aborrecimento ou o
tédio.
Instabilidade,
fragilidade, urgência de prazer, recusa a manter vínculos duradouros
caracterizam as condições dos relacionamentos humanos da modernidade líquida.
Tais condições são reforçadas pela influência do que Bauman (2009) chama
“síndrome consumista”.
“A síndrome consumista” à qual a
cultura contemporânea se rende cada vez mais tem como centro uma enfática
negação da virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação” –
princípios fundadores da “sociedade dos produtores” ou “sociedade
produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a “síndrome
consumista” destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor
da novidade acima do valor da permanência”.
(p. 83)
Na
cultura líquido-moderna, a norma é seguir o fluxo das mudanças, libertar-se das
condições sufocantes e desagradáveis. É necessário esquecer rapidamente o que
passou ou o que já foi superado. Os valores de outrora já não contam mais; os
padrões em que se pautavam comportamentos dantes apreciáveis fazem parte do
antiquário do esquecimento.
“Evidentemente, seria injusto e
imprudente depositar na indústria de consumo, e apenas nela, a culpa da
situação em que a criação cultural hoje se encontra. Essa indústria está bem
equipada para a forma de vida a que chamo de “modernidade líquida”. Essa
indústria e essa forma de vida estão afinadas entre si e reforçam mutuamente o
controle sobre as opções que os homens e as mulheres de nossa época podem, de
forma realista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como uma
cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registradas nos relatos de
historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.”
(p. 83)
Ocorre,
porém, que, pelo menos desde Platão, o amor sempre foi pensado como um sentimento
vinculado à ideia de eternidade. Ao contrário, o desejo é instantâneo. Segundo
Furtado (2008, p. 28), o gozo não é a realização do amor. Para ele, o amor é um
trabalho, é uma dificuldade, muito mais do que uma faculdade. A isso,
acrescenta que o amor supõe a crença de que de dois se possa fazer um.
Certamente, essa concepção é adequada à imagem do amor romântico. Furtado nota,
contudo,
“[que] o sexo desfaz essa crença
através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja,
de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.
(p. 32)
Lembre-se
de que já disse que o amor romântico é incompatível com a luxúria. O amor
romântico não supõe consumação do ato sexual. É um amor de almas. Disso se
segue que, nas condições atuais, tais como descritas acima, nas quais os relacionamentos
se estabelecem sobre o imperativo da urgência de gozo, é pouco provável que
haja terreno para o enraizamento do amor romântico ou de seus ideias. No amor
romântico e nisso ele acompanha o amor-paixão, o outro é elevado à posição de
ser absoluto, muito embora, paradoxalmente, essa elevação seja relativa ao
amante (Furtado, 2008 p. 40).
Em O paradoxo amoroso (2011), Pascal
Bruckner oferece-nos à apreciação estas palavras bastante felizes:
“Amar é antes de mais nada
subtrair um ser da comunidade humana, desertificar o mundo e não saber de nada
que não seja ele. Esse sacrifício exige, porém, reembolso e se possível com
juros. O eleito deve me provar diariamente que eu estava certo ao colocá-lo
sobre um pedestal e desdenhar outros galantes eventuais”.
(p. 86)
Claro
me parece que a representação que Bruckner faz do amor nesse trecho é
incompatível com a forma de amor-líquido, já que esse supõe, dada a
fragilidade, a necessidade de buscar novos galantes. Todavia, Bruckner nos ensina algo importante
sobre o amor: todo amor é condicional.
Além disso, todo amor é fonte de demandas.
No amor, os amantes se elegem em meio a uma multidão de possíveis pretendentes.
Isso, evidentemente, implica privações. Ao se elegerem, eles aceitam abrir mão
de outros possíveis pretendentes ao posto de objeto do seu amor. Tal sacrifício
demanda a garantia da permanência do sentimento eletivo. O Eu te amo passa, assim, a significar eu te elegi para ser senhor de meu coração. O Eu te amo reiterado todos os dias reforça ao amado a sua
importância na vida do amante. No amor, todo ser amado é um ser especial. Mas não
nos enganemos. Como nos lembra Precht (2012), não raro, amamos os que não nos
amam e não amamos os que nos amam. Curiosamente, “não escolhemos sempre a
pessoa mais amorosa para amar” (Precht, 2012, p. 172).
E
esta lúcida fórmula de Sponville, em O
amor à solidão (2006), não nos deixará iludir com o amor:
“Há desespero em todo amor e tanto
mais quanto menos ilusões temos”.
(p. 53)