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sábado, 19 de março de 2022

Mais da metade da história da vida é apenas uma história de bactérias” . (Stephen J. Gould) (... E você aí se sentindo uma criatura especial de Deus...)





Serei breve nas formulações linguísticas que se seguem. Há instantes, ocorreu-me que, durante muito tempo, vivi como um hipócrita em face da possibilidade inescapável de minha morte. Hoje, devo admitir que tenho horror à perspectiva de morrer. Não, meu horror à morte não decorre logicamente de um amor incondicional à vida; é muito mais um sintoma do apego irracional a ela, que creio ser quase um registro instintivo da seleção natural no corpo dos indivíduos da espécie humana, ainda que existam seres humanos propensos a sublevar-se contra a subserviência que ele lhes impõe, quando cometem autocídio. Meu horror em face da morte é um sintoma de minha sede de livros e de conhecimento. São tantos livros que quero ler e um mar inesgotável e infindo de conhecimento a ser explorado... Seria necessário um número infindo de vidas para atingir seu ponto culminante e final... Talvez, esse ponto final sequer exista... O conhecimento é inesgotável, e a vida insuficiente, frágil, fugidia...  Mas deixo aqui um conselho: para afugentar o tédio da vida diária - leia! Leia, leia, leia... para tornar sua existência, humanamente precária e fadada ao abismo inescrutável da morte, suportável, vigorosa, robusta, talvez um pouco menos absurda... Leia para se curar do aborrecimento com as coisas triviais, com as importunações diárias da vida comum... Leia, antes que seu cérebro atrofie ou se torne um alimento agradável aos vermes tumulares...





Um corpo que tomba

 

Guerras, por exemplo, podem ser objeto de estudos ou de considerações feitos pelos mais variados especialistas: sociólogos, cientistas políticos, historiadores, especialistas em relações internacionais... e filósofos. Guerras podem ser avaliadas segundo parâmetros bem específicos, por exemplo, o econômico, o geopolítico, o social, o militar... É raro, contudo, que os diversos especialistas que são convidados a fazer suas considerações sobre o desastre humanitário produzido pelas guerras as tomem do ponto de vista filosófico. Somente o filósofo, especialmente aquele que tem algum pendor para o existencialismo, ou é constituído por disposições afetivas trágicas e pessimistas que apuram seu olhar sobre a condição humana, tornando-o quase aquilino, pode ampliar o horizonte das considerações, a fim de iluminar a trama de absurdidade dessa condição existencial.

Um míssil atinge as proximidades por onde uma família passava, e a explosão provocada pelo impacto do projétil a mata instantaneamente. A mãe, o pai e a criança são fulminados e seus corpos destroçados. Toda a rede afetiva e simbólica que mantinha viva aquela família foi reduzida a fragmentos de corpos que deverão ser recolhidos para serem enterrados. Tais fragmentos de osso, tripas e carne serão decompostos por bactérias... voltarão a habitar o corpúsculo de alguns vermes... E isso é tudo! E quantos miseráveis em nossas megalópoles morrem diariamente sem que o Universo derrame uma única lágrima sequer? As guerras internacionais, os genocídios humanos, as megalomanias de tiranos, a miséria das periferias de nossas cidades, as doenças que matam as pessoas que amamos e que, eventualmente, nos matarão também, ou os projéteis desavisados que fazem corpos tombar numa rua, nos becos de uma favela - nada disso perturba o silêncio do Universo, nada disso o demove de seu estado abismal e insondável de indiferença. A brigada de bombeiros trabalha nos escombros à procura de sobreviventes (embora recolham muitos cadáveres), após um grande deslizamento de encostas que destruiu casas durante um temporal... e eles trabalham debaixo de chuviscos... quando volta a chover mais forte, precisam interromper seu trabalho... a natureza ou o universo obedece a leis inflexíveis... ela não demonstra qualquer preocupação ou compaixão para com seus filhos... a morte de 600 mil sapiens não a deixa órfã, não a entristece ou a empobrece... é que a dura verdade que recusamos admitir é que somos insignificantes para ela, somos insignificantes para o cosmos... Mas, da perspectiva do Universo, não há vítimas nem culpados, ou melhor, à natureza não se deve imputar qualquer culpa ou responsabilidade. O devir ou o real é uma criança inocente que brinca o jogo do acaso e da necessidade, o jogo da criação e aniquilação contínuos... A natureza é uma Mãe louca e sábia, onisciente, onipresente, mas míope e cega... ela trabalha em favor das espécies e não dos indivíduos, cujas vidas são insignificantes para ela... um indivíduo que morre é um corpo que tomba, 600 mil indivíduos que morrem são para ela corpos que tombam... e isso é tudo!

Chegamos a este universo sem que tenhamos decidido, nascemos numa época e lugar sem que nos fosse dada escolha alguma... o acaso nos pôs aqui sem que precisasse prestar contas ou dar razões... Por alguns anos, como vaga-lumes cósmicos viajamos com outros seres humanos, com nossos pais, com nossos amigos, com nossos inimigos, com nossos irmãos, com nossos filhos... viajaremos também com outros organismos vivos, com bactérias, com vírus, com babuínos, viajaremos com montanhas, estrelas, oceanos, auroras, quarks, fótons, supernovas, buracos negros, telefones celulares, e com muito, muito, muito espaço vazio. Em algum momento, deixaremos de ser viajantes, sairemos desse misterioso e perturbador desfile cósmico, mas o desfile prosseguirá sem nós. Talvez, num futuro remoto, outros viajantes venham participar do desfile e o deixarão... Daqui a bilhões de anos, o desfile cósmico desaparecerá como um fantasma ao amanhecer, se dissolverá no oceano de energia de onde se originou... E isso é tudo!





Sofro, padeço permanentemente, continuamente, veementemente de ser incapaz de despertar no outro o amor à leitura, de ser incapaz de fazê-lo sentir fascínio pelo misterioso e maravilhoso universo do signo. Estamos atados a teias simbólicas que sustentam nossa existência e a nutrem de sentido. Veja. Experimente determinar o significado de uma palavra, por exemplo, como “flor”. Você só conseguirá conhecer seu significado através de outro signo, ou de um encadeamento de outros signos. A semiose é ilimitada. A ação do signo é a do crescimento ilimitado através de sua autogeração. Tudo pode ser signo, ou seja, pode representar alguma outra coisa para alguém. Um “livro” pode ser signo: pode representar fonte de conhecimento, caminho para emancipação individual, “arma” contra a ignorância, etc. O signo está fadado a germinar, a se desenvolver em um interpretante, que é outro signo num processo ad infinitum. O objeto do signo não se confunde com a coisa material nem com a causa material de uma sensação. Os signos podem ter muitos objetos, entre os quais noções abstratas, evento, universais, etc. O signo é caracterizado por uma incompletude intrínseca: ele jamais recobre todos os aspectos do seu objeto, por isso é signo. O signo está sempre em falta com o seu objeto. Em virtude dessa falta, o signo se desenvolve noutro interpretante (outro signo) onde busca a completude, jamais passível de ser atingida. O interpretante, sendo de natureza sígnica, jamais pode oferecer a completude exigida pelo signo; logo o interpretante também está em dívida com o signo. O lugar lógico do objeto do signo é, em última instância, a “realidade”, a qual se torna acessível ao homem pela mediação dos signos. Mas, ao mesmo tempo, a realidade é que impulsiona a semiose, o crescimento contínuo e sucessivo dos signos. O homem está fadado a nunca conhecer nenhuma coisa em si, seu acesso ao real é sempre aproximativo; o conhecimento que homem tem da realidade é de natureza simbólica: seu conhecimento se expressa como progressão infinita em direção da realidade que, no entanto, jamais é imediatamente cognoscível.

 


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

"O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta." (Charles Darwin)

 


Manual contra a megalomania humana em uma lição

 

E pensar que, estando eu diante de outro ser humano enfatuado e crente de sua ancestralidade divina, exibindo seu ego hipertrofiado, vejo diante de mim apenas uma forma orgânica complexa que evoluiu, ao longo de milhões de anos, a partir de uma célula bacteriana.

 

 




A LUCIDEZ NIILISTA

 

No meu esforço por pensar o niilismo como campo hermenêutico, como um fenômeno histórico-antropológico que diz respeito à constituição social do homem como ser alienado de sua condição natural e animal, tenho como escopo o modo como as significações instituídas, geradas na instituição do imaginário-simbólico, produzem o homem, cunham seu modo de ser imaginário, um modo de ser que se representa na ilusão de sua superioridade em relação aos demais seres vivos. É necessário, para tanto, compreender como as significações, como a linguagem simbólica, sem a qual aquelas não seriam possíveis, constituem o homem como um ser à parte, como um ser que se acredita divorciado do resto da vida natural e animal, da totalidade cósmica. Como lembra Castoriadis, a significação apenas parece estar ligada a algo - ser natural, objeto material fabricado, entidade lógica. Esse “algo” só tem “ser” para uma sociedade que o investe de significado. Fora da significação, esse “algo” simplesmente não existe para a sociedade em questão. As signifcações imaginárias centrais ou primárias - ensina-nos Castoriadis - é que criam os objetos que se dão à cognição humana. Essas significações primárias organizam o mundo - mundo “exterior” à sociedade e o mundo social propriamente dito, estabelecendo entre eles uma relação recíproca. Um exemplo de um objeto criado pelas significações instituídas no social-histórico é Deus. Lembra Castoriadis que Deus carece de referente. Deus tem apenas um significado como Deus; e esse significado aparece cada vez que é reproduzido, reativado, “posto” pela sociedade - e eu diria - em suas práticas discursivas. O que me interessa, especialmente, enquanto questão fundamental da abordagem do niilismo como processo de desmitificação do homem, está bem resumido no seguinte passo de Castoriadis:



“ O “referente” que seriam as representações individuais de Deus (ou dos deuses) é criado mediante a criação e a instituição desta significação imaginária central que é Deus. A significação Deus é ao mesmo tempo criadora de um “objeto” de representações individuais e elemento central da organização do mundo de uma sociedade monoteísta, posto que Deus é colocado como ao mesmo tempo fonte do ser e ente por excelência, norma e origem da Lei, fundamento último de todo valor e pólo de orientação do fazer social (...)”. (p. 407).

 

 

Entendo que “ser colocado como fonte do ser e origem da Lei” quer dizer é criação do imaginário-simbólico instituído pela sociedade. É nesse sentido que falo de Deus como ficção tanto quanto é ficção a ordem jurídico-legislativa. Tanto um quanto a outra são efeitos, produtos do magma de significações imaginárias sociais que forma, por assim dizer, as “entranhas” do próprio fazer social.

Importa, tendo em vista o exemplo da instituição de Deus como objeto de um imaginário social, pensar o niilismo como um fenômeno inerente ao trabalho genealógico (de inspiração nietzscheana) que se interroga sobre as origens da significação e sobre seu funcionamento como dimensão essencial do mundo experienciado pelo homem. Bem entendida essa ligação inerente entre niilismo e projeto genealógico que interroga o modo de se dar a significação, é fácil estabelecer uma continuidade de sentido (coerência) entre a minha proposta de interpretação do niilismo e o que Giacoia diz acerca do modo como Nietzsche o entendeu, a saber, como “experiência histórica da ausência de fundamento”. Se o niilismo expressa a ausência histórica de fundamento, é porque o niilismo desvelou o caráter de constructo, de ficção, de significação fabricada do próprio fundamento cujo valor a tradição metafísica postulou como transcendente ao homem e ao mundo. O que chamo de Lucidez niilista nada mais é, portanto, do que a exposição, o desvelamento dos mecanismos imaginário-simbólicos que estão na origem de tudo aquilo que o homem concebe e trata como algo que se originou de uma instância estranha a ele, quer seja esta instância a objetividade de uma ordem social que se impõe a ele como já pronta, definida e rígida desde sempre, quer seja esta instância um ‘lugar’ metafisicamente imaginado.

 









SEDUÇÃO VERBAL

 

Do latim seductio -onis, sedução significa ‘separação’ ‘tomar à parte’. Dutcio formado a partir de ducere, forma arcaica de dūcō, que significa ‘conduzir’, ‘levar’, ‘puxar’, ‘atrair’, tem também o sentido poético de ‘escrever’, ‘compor’. O verbo ou a linguagem verbal seduz, portanto, quando nos aparta, nos separa do mundo comum do trabalho, da cotidianidade mediana. Ela nos seduz porque nos conduz para outros lugares simbólico-imaginários, porque nos leva para longe deste mundo das ocupações que compartilhamos com os demais seres humanos ( mundo das contas que nos fazem ser sempre endividados até o túmulo, da azáfama do dia a dia, que nos põe na condição de operários a cumprir prazos de um tempo fugidio). A sedução verbal é o deleite com a concatenação dos signos, com a articulação de significantes pelos quais vazam significados imprevistos, escorregadios, não totalmente controlados . Na sedução verbal, experiencia-se o êxtase da incompletude que constitui a linguagem, o êxtase da impossibilidade de esgotar o sentido, mesmo com a pretensão de gozá-lo. A linguagem nos constitui como animais excêntricos, extravagantes, não fixados, como animais que se habituaram a crer que o mundo da linguagem é coextensivo à realidade como um todo, que este mundo do discurso totaliza tudo que há. Paul Veyne, referindo-se à noção de discurso em Foucault, comparava os discursos a aquários: o homo loquens é como peixes no aquário. Somos prisioneiros desse aquário (discurso) cujas paredes sequer percebemos. Não temos acesso à verdade “verdadeira”, a um mundo já ordenado atrás e para além do discurso.

Mas há os que, cientes disso, jogam o jogo da sedução verbal como a criança que forja mundos imaginários pelo puro prazer de brincar; e há aqueles que, compondo a maioria dos animais simbólicos, creem que a sedução verbal os levará a acocorar-se junto à verdade. Estes se deixam seduzir pelos trajes metafísicos que insinuam a nudez da linguagem. Mas, tão logo se detenham a examiná-la, descobrem que a linguagem nada tem a desvelar, que um signo tem como interpretante outro signo num processo semiótico ad infinitum, no qual “a coisa” mesma que se esconde sob máscaras, sob disfarces, não é ela mesma, mas outro signo; estamos sempre em busca de um objeto perdido que, na verdade, nunca existiu; buscamos algo por trás da semiose que insiste a furtar-se a nós, porque não há este algo que surpreenderíamos por trás da trama simbólica. A sedução verbal é uma promessa de completude, de deleite pleno lá onde o que nos aguarda é a incompletude e o fracasso de quem busca o impossível.

 

 





NIETZSCHE COMO ANTIMETAFÍSICO

 

UM DIÁLOGO

 

De acordo: pode-se ser ateu e, não obstante, pensar Deus como problema filosófico. Mas, nesse caso, Deus é pensado como ideia ou conceito. Nietzsche negou todas as objetividades da metafísica, Nietzsche negou a metafísica e sua pretensão de absolutizar os valores, de tomar como coisas existentes em si e por si mesmas o que é da ordem das ficções humanas. Para Nietzsche, o homem inventou a metafísica porque não suporta a sua finitude, porque não suporta o efêmero, porque teme a própria morte. Divino, Deus, Sagrado são ideias, ou ficções humanas, ficções (no sentido etimológico de “criação, fabricação”) de cuja origem o homem não se reconhece como agente. O sagrado é um valor que o imaginário-simbólico constitutivo da ordem social objetivou, de modo que os seres humanos não mais o reconhecem como valor instituído pela própria atividade deles. Nietzsche, nesse sentido, foi o grande desmitificador do homem, aquele que pretendeu levar o homem a se aperceber de que aqueles supremos valores em que até então acreditaram como existentes independentemente de si e em nome dos quais a existência humana se orientava, se normatizava eram criações suas; e não só: - eram criações que enfraqueciam a vida, que a negavam. O Deus cristão bem como a moral cristã para Nietzsche, eram a antítese da vida. Nietzsche foi um antimetafísico contumaz: em sua crítica corrosiva da metafísica platônico-cristã, ele nos fez ver duas coisas: 1) que tudo aquilo que a metafísica tomava como dotado de caráter de substância, de essência, ou seja, como coisas que existem por si e em si mesmas, são ficções simbólico-imaginárias, são produtos da atividade humana; 2) que aquelas ficções da metafísica se instituíram contra a vida, que aquelas ficções levaram ao adoecimento do animal humano e ao enfraquecimento da vontade de potência ou da própria vida. Em nome daquelas ficções em cuja origem o animal humano não se reconhece como criador, o homem se pensou como um ser superior na natureza, o homem se acreditou como ser dotado de algum privilégio metafísico, o homem negou em si a animalidade e a vida mesma. Portanto, a metafísica edificou catedrais como signos da elevação metafísica do homem, como signos da crença humana em sua superioridade em relação ao todo natural existente. As catedrais são signos da megalomania metafísica humana. Em suma, eu diria a você, que também em nome do sagrado o homem se sacralizou, se distanciou de suas origens animais, se compreendeu como o ser superior em relação aos demais seres, negou a vida instintiva. E isso Nietzsche não perdoou. Se Nietzsche disse só acreditaria num deus que soubesse dançar, é porque um deus dançarino é a antítese do Deus metafísico, o deus da dança é deus da potência, da alegria, é deus do movimento, do devir, é deus da leveza que quebra a tirania do ressentimento, que supera o dualismo entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente. O Divino, em Nietzsche, só poderia ser pensado nesse registro da superação da forma-homem cunhada pela tradição metafísica. Toda tentativa, meu caro amigo, de conciliar, de algum modo, Nietzsche com a metafísica e suas criações é não só não compreender profundamente Nietzsche, como também distorcer sua obra. Até hoje, não ousamos realizar a grande transfiguração pretendida por Nietzsche no modo de ser do homem, até hoje não ousamos dar à luz este novo homem que Nietzsche imaginou, que Nietzsche desejou: um homem verdadeiramente livre e conciliado com a vida e com sua existência mundana.

 

 

 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“A magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos.” (Lord Owen Meredith)

                                                              



                                O feitiço do simbólico

 

Este texto poderia ostentar o título armário, que serviria como um frame para que eu começasse a discorrer sobre a experiência, bastante comum, que tive ao ajudar a desmontar um armário para dar lugar a um novo que também ajudei (indiretamente) a montar. O título “armário” representaria, assim, um modelo cognitivo da experiência de lida com as coisas, tão característica do senso comum. Enquanto eu estava ocupado com o desmonte do armário, eu habitava, por horas, o domínio intersubjetivo do modo de viver do senso comum. Meu corpo operava a fim de resolver problemas práticos, tais como o de saber que parte do armário deveria desaparafusar primeiro. Não que eu me dispensasse de pensar, mas o meu pensamento era orientado para a resolução de problemas de ordem prática. Nesse domínio de experiência, não faria sentido demorar-me em elucubrações metafísicas, filosóficas, em reflexões sobre o sentido do que fazia, sobre o que é um armário. O armário me vinha ao encontro como um estorvo, um problema prático que exigia solução. O relato sobre minha experiência de desmonte do armário configuraria, portanto, o frame a partir do qual eu me estenderia sobre como a leitura, os livros, a filosofia estruturam a minha vida diária. Agora, sinto que não era bem isso que eu queria dizer. A experiência do armário apenas seria uma espécie de “gatilho cognitivo” para que eu externasse um sentimento persistente e familiar que teria a seguinte formulação verbal: sinto que vivo transitando entre duas esferas, entre dois domínios de experiência, a saber, o domínio do senso comum, no qual ajo compartilhando com os outros (meus familiares, amigos) um mesmo “mundo”, e o domínio da experiência da filosofia, ou da leitura, que me faz ‘habitar’ outro mundo, um mundo mais significativamente profundo, um mundo à parte, um mundo que é mais complexo, mais vasto, um mundo que responde por anseios elevados, por necessidades psíquicas não satisfeitas pelas experiências comuns da vida diária, um mundo que me é acessível apenas pelos signos, pelos textos, porque é um mundo que se experiencia como mundo inteiramente textualizado. Viver, não raro, se me afigura como um esforço contínuo por fazer coexistir esses dois mundos, por fazer que se mantenham conciliados em alguma medida. A vida pode ser reduzida a este esforço: a conciliação entre o mundo da vida comum, no qual agimos conjuntamente com os outros e no qual estabelecemos com os outros relações de interdependência a fim de satisfazer necessidades práticas, emocionais, afetivas, no qual obramos, no qual nos esforçamos por obter os recursos materiais necessários à nossa subsistência, no qual sofremos uma série de perturbações imprevistas que quebram a rotina, no qual também fruímos alguns prazeres triviais, e o mundo da vida filosófica, da leitura, no qual a experiência que temos da realidade é profundamente transfigurada, é radicalmente transformada, no qual o espírito, absorto, frui prazeres mais prolongados. Assim, me apercebo como um sujeito esquizo, um esquizo-frênico. Não chego a sofrer, evidentemente, de esquizofrenia paranoide; mas tenho a experiência íntima de que a vida como leitor e como filósofo produz uma divisão, uma cisão, uma fissura (não chega a ser uma quebra, uma completa ruptura, o que constituiria um estado patológico) com o mundo tal como experienciado pelo senso comum. Já tive a oportunidade de falar sobre isso em outros textos. O filósofo também se orienta pelo senso comum, em sua vida diária, não como filósofo, mas como pai, filho, marido, cliente de banco, consumidor, paciente que busca assistência médica, etc. No entanto, o filósofo não se despe de seu modo de ser para assumir outros papéis; seu modo de ser está sempre disponível, sempre se intrometendo nos interstícios de sua experiência comum de mundo, o que, não raro, lhe traz algumas perturbações, algumas inconveniências, sempre que os modelos sociocognitivos ativados e compartilhados com o interlocutor não admitem a interferência de questionamentos profundos e elaborados . Não é que ele deixe de ser filósofo quando é pai, filho; porque a filosofia é seu modo de ser mais próprio. No entanto, ele sabe que, em sociedade, os indivíduos atuam como atores – são atores sociais -, e assumem papéis sociais institucionalmente fixados. Convém interromper o fio discursivo neste ponto, pois não quero trafegar por caminhos que me afastariam para bem longe das intenções iniciais me levaram a compor este texto. Espero que o que se seguirá não se apresente ao leitor tão transviado do motivo central que me incitou a escrever este texto.

Instalados, na maior parte do tempo e na maioria das vezes, no senso comum, os indivíduos não se deixam afetar pela experiência do espanto, da admiração. O senso comum, sendo o modo espontâneo, “natural”, familiar, imediato de eles se relacionarem com o mundo, de o perceberem e o compreenderem fornece-lhes sempre esquemas práticos de simplificação, de superficialização das experiências que eles têm das ocorrências do real. No senso comum, a linguagem mesma não é sequer um objeto de problematização, de questionamento para eles. Instalado no senso comum, o homem usa a linguagem como mero instrumento de comunicação de seus pensamentos, de seus sentimentos, de suas ideias, crenças, opiniões, valores. Ao servir-se dela, com o propósito de exteriorizar os conteúdos de sua consciência, o homem comum acredita que a linguagem lhe dá acesso ao mundo já dado, objetivo, cuja existência é anterior à linguagem. Assim, a relação entre a linguagem e o mundo se resolve em termos de ajustes, acordos, correspondências objetivas entre o signo e o real, entre os enunciados que ele produz e a ordem já dada de uma realidade que a ordem simbólica apenas reflete, expressa, traduz (na verdade, a ordem simbólica não é sequer uma ordem que se sobrepõe à ordem do mundo; ela é identificada com a própria ordem do mundo; é subsumida nessa ordem, de modo que o mundo se organiza, se estrutura do modo como está estruturado e expresso na sintaxe da linguagem). A verdade é simplesmente um efeito da correspondência entre o enunciado e o mundo, entre as palavras, de um lado, e as coisas, de outro, entre o pensamento e a realidade exterior. Os desacordos, as desavenças, tão frequentes entre os interactantes nos usos da língua seriam, assim, sintomas de um descuido, de uma imperícia, de uma falta, de um erro, nas tentativas que fazem os interactantes de ajustar, de adequar suas produções linguísticas à realidade objetiva, previamente existente e estruturada.

No entanto, quando examinamos mais acuradamente como se dá a relação entre o ser humano, a linguagem e a realidade, descobrimos ser uma miragem essa crença numa relação especular entre a linguagem e o mundo. Não vou me deter nos meandros complexos, intrincados e fascinantes desse problema. Quero apenas manifestar aqui meu espanto: os seres humanos, sem se darem conta disto, existem como seres capturados na teia do simbólico. Toda a sua existência é capturada, está emaranhada nessa teia de símbolos, signos, linguagens (basta atentar para os espaços sociais onde a nossa vida acontece: eles são povoados de signos, linguagens, sinais, outdoors, imagens; basta se aperceber do modo como nossa vida está imersa nesses ciberespaços da internet onde circulam incessantemente palavras, hipertextos, hipersignos, hipermídias, linguagens e imagens diversas). Mas, ao acreditarem que estão a falar do mundo, o que eles fazem não é senão produzir e negociar, nas práticas sociointeracionais por meio da língua, modelos públicos de mundo, versões semiotizadas da realidade. Ao acreditar que eles falam de coisas previamente existentes à ordem do simbólico, à ordem do discurso, o que eles, de fato, fazem é falar de objetos-de-discurso, de referentes que se constroem cognitivamente no discurso e que são modificados, estendidos, ressignificados, trasformados nas práticas discursivas. Nós vivemos como se estivéssemos irremediavelmente sob uma espécie de “feitiço” do símbolo, de encantamento da linguagem: acreditamos falar do mundo propriamente, quando, na verdade, falamos acerca dos modelos de mundo fabricados simbolicamente. E o que é mais espantoso: travamos brigas, disputas, contendas, odiamos, guerreamos e matamos em nome desses modelos de mundo simbolicamente fabricados. Não nos dando conta de que, nas práticas diárias de uso da linguagem, estamos constantemente negociando significados, estamos produzindo efeitos de sentido, estamos agindo sobre os outros, tentando convencê-los, persuadi-los, de modo a modificar-lhes o comportamento, acreditamo-nos portadores da chave que nos dá um acesso direto, verdadeiro, imediato à realidade. Acreditamos que possuímos um saber sobre a ordem do mundo em si, sobre como o mundo é em si mesmo, independentemente da linguagem, da cognição, da percepção, da práxis histórica e cultural, que constituem, em conjunto, os modos pelos quais a realidade se constrói e se torna acessível, inteligível, compreensível ao animal humano. Loucura da condição humana: acreditar na transparência da linguagem, deixar-se enganar pela crença metafísica na linguagem, acreditar no “em si” do mundo que a linguagem se encarregaria de simplesmente espelhar, expressar. Essa forma de loucura é a da normalidade, é nossa “loucura normal”. Ela difere do delírio da esquizofrenia justamente porque a loucura normal rejeita a autonomização absoluta do signo, enquanto o esquizofrênico é aquele que sofreu a completa captura na trama do simbólico, é aquele para quem o mundo dos símbolos, dos signos se absolutizou, é aquele que “reconheceu” que não há nada ‘lá fora’ além das construções simbólicas fabricadas pelo discurso. Dizemos comumente que o “esquizo-frênico” perdeu o contato com a realidade - bem entendida: com a realidade da experiência comum, da experiência socialmente aceita, compartilhada, estabelecida como “norma”. Mas, se o louco é aquele que rompe com a realidade considerada “normal” por uma comunidade humana, então o que é a realidade? Não prova o louco que essa realidade não é senão um constructo, um modelo cerebral (mental), cognitivo, linguístico, cultural dependente da práxis histórica, dependente de acordos, de consensos humanos em coletividades? O louco não prova que a realidade objetiva não é senão um efeito, uma ficção (criação, fabricação) de experiências intersubjetivas que fundam um mundo; que o mundo objetivo é uma construção de relações intersubjetivas mediadas e estruturadas pelos significados que são produzidos e negociados nas inúmeras interações sociais por meio da linguagem?

sexta-feira, 21 de maio de 2021

“(...) para que moral?, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” - não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo? ... " (Nietzsche)






 

A NOSSA RESISTÊNCIA

 por uma desmitificação niilizante do homem

 

No curso de minhas reflexões sobre o fenômeno multívoco, heterogêneo, polimórfico do niilismo, para a produção de minha segunda tese de doutorado, a questão da crença na linguagem, tal como abordada por Nietzsche no contexto de sua análise destrutiva da metafísica e da moral platônico-cristã, impõe-se a mim como uma tarefa pedagógica de uma vida inteira, pois que, enquanto professor e estudioso da linguagem, tenho de lidar com a insistência com que o macaco pelado, que é o homem, crê na relação especular entre a linguagem e o mundo, crê na correspondência entre as palavras e as coisas. É com base nessa crença que o animal humano criou o mundo simbólico - o mundo da cultura -, esse outro mundo entretecido pelos signos. A crença na linguagem é o fundamento da crença na verdade. É por manter uma relação metafísica com a linguagem que o animal humano cria, sem que o saiba, um mundo de ficções metafísicas a serviço da negação da vida (Deus, Ser, Identidade, Verdade, Razão). Ora, a própria ideia de Deus é produto da metafísica da linguagem. Como diz Nietzsche, em O Anticristo:

“Todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural - contra a realidade! - é a expressão de um profundo descontentamento com o real”.

Sim, de fato, o perigo não reside propriamente no caráter ficcional, na invenção, que Nietzsche, com razão, diz serem condições necessárias à sobrevivência desse animal fabulador que é o homem. Há ficções úteis à vida. O perigo repousa no fato de que as ficções criadas por ele são tomadas como critérios de verdade, de uma verdade que lhe dá supostamente acesso a um “mundo verdadeiro”. E essa crença no “mundo verdadeiro” fundamenta e orienta ainda hoje a existência do homem comum, que dorme e acorda nutrido pela crença de que goza de um privilégio ontológico relativamente a tudo mais que existe no Universo.... E nem mesmo o coronavírus conseguiu curar o animal humano de sua loucura.

O homo sapiens é homo demens!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

"Toda realidade social é precária. Todas as sociedades são construções em face do caos" (Berger & Luckmann)

                                   


                   O sentido como constructo social

                    A questão do sentido da vida à luz da sociologia do conhecimento

 

Introdução

 

O presente ensaio se constitui de duas partes. A primeira dificuldade que se me apresenta, desde o início, é determinar como articulá-las de tal modo, que uma das partes seja consistente com a outra, e não venha a constituir por si mesma outro texto completamente diferente. Em que pese à possibilidade de os temas discutidos nas duas partes parecerem um tanto díspares, duas questões basilares que norteiam todas as reflexões deste ensaio são suficientes para lhes garantir consistência, para lhes pavimentar um terreno sólido comum. As duas questões são as seguintes: faz sentido deveras falar em sentido metafísico? A vida tem sentido em si e por si mesma? Antes de me debruçar sobre o tema que será discutido na primeira parte deste ensaio, será necessário esclarecer as condições de produção desses dois enunciados que se tornaram questões filosóficas para mim. A primeira questão interessa-me especialmente por ocasião da releitura que vinha fazendo do livro Para que serve tudo isso (2008), do filósofo Julian Baggini. Esse livro foi escrito para “responder” à questão “qual é o sentido da vida”. O livro é interessante não  tanto pela resposta a que chega para uma questão fundamental e, aparentemente, complexa, mas pelas muitas outras questões que suscita. Após a releitura de um dos capítulos desse livro, se me impôs o seguinte problema: faz sentido falar em sentido metafísico? A expressão “sentido metafísico” foi cunhada por mim em outra ocasião. Empreguei-a durante a escrita de meu livro, ainda não publicado, sobre o suicídio. Com essa expressão me referia ao “sentido” que está pressuposto sempre que as pessoas se perguntam a si mesmas: qual é o sentido da vida? Nas sociedades ocidentais, em geral, perguntar sobre o sentido da vida é perguntar se a vida tem um sentido que é dado e garantido por uma instância metafísica, que compreende um Deus transcendente (o Deus da tradição cristã) e uma vida pós-morte. Portanto, o sentido desta vida aqui deve ser buscado em outro lugar além: em Deus e na vida pós-morte que ele nos promete.

A segunda questão importa menos pela resposta que dou a ela – resposta que assumo como um pressuposto compartilhado com Baggini – do que pela problemática teórica que ela descerra. Com Baggini, assumo também que a vida, tomada em si e por si mesma, não tem sentido algum. E, se pensarmos bem, até mesmo os religiosos devem concordar com esse pressuposto, já que eles acreditam que o sentido da vida não se encontra na vida em si, mas é dado por Deus, como fonte irradiadora de sentido, como instância metafísica à luz da qual o mundo e a vida de cada indivíduo que nele crê das profundezas terrificantes do absurdo assomariam à luminosidade de um sentido verdadeiro e superior. Mas, se o sentido da vida provém de Deus, significa dizer que a vida do ateu não tem sentido algum? Discutir esta e outras questões atinentes à suposição de que o sentido da vida depende da existência do Deus metafísico representado/imaginado pelas três religiões do Livro será o objetivo central da primeira parte deste ensaio.

A segunda parte deste texto deve ser encarada como um desdobramento das reflexões sobre a questão do sentido da vida ou da existência humana, desenvolvidas na primeira parte, mas consideradas à luz das contribuições de uma sociologia compreensiva. Essa segunda parte lança luz sobre alguns problemas que restarão ao cabo da primeira parte. Se, na primeira parte, o problema do sentido da vida pressupõe a existência de Deus, na segunda parte, esse problema não a pressupõe, mas a explica como efeito de um imaginário socialmente constituído. Mas não será a questão sobre a existência ou não de Deus que estará em primeiro plano. Certamente, - reitero - não será esta a questão de que me ocuparei. A questão precípua e comum às duas partes é a do “sentido” da vida. Na segunda parte deste ensaio, vou-me alongar sobre a referida questão abordando-a de um ponto de vista filosófico-sociológico, na expectativa de que ficará claro que todas as sociedades estão envolvidas em processos de produção de sentido. Veremos, pois, que, ao contrário do que supõe o senso comum, o “sentido” do mundo e o sentido de cada vida individual são um constructo social, é uma ficção (invenção) histórico-social, é produto da atividade humana.

 

 

                                                        PARTE I

 

 

Deveras, uma das razões por que me tornei ateu foi o ter meditado seria e cuidadosamente sobre as alegações da religião. No entanto, não escrevo para fazer uma defesa do ateísmo, mas para investigar se da crença num Deus criador e sumamente bom como o Deus cristão segue-se, necessariamente, que a vida tem algum sentido. Se feita a alguém que acredita na existência do Deus teísta a pergunta “qual é o sentido da vida?”, é muito provável que a resposta encerre alguma referência a Deus. De uma forma ou de outra, “o sentido da vida” tem em Deus uma instância metafísica à qual a questão remete e da qual ela obtém sua validade. Para uma grande maioria de homo sapiens, é simplesmente intolerável a ideia de que a vida seja apenas uma característica que tem certos fenômenos de se produzirem e se regularem por si mesmos, que a vida não envolva mais do que metabolismo, plasticidade, reatividade e reprodução; e, no caso da vida humana, que seja apenas trabalhar esforçando-se para ganhar dinheiro, comer, beber, fazer sexo e dormir, talvez com alguns períodos de descanso. Todas essas atividades não servem a propósito algum senão nos manter vivos. Para uma maioria de pessoas, é preciso que tenha algum sentido maior. E aqui, por ora, uso a palavra “sentido” na acepção de ‘propósito, finalidade’. Lembro que a questão do “sentido” será uma questão fundamental e permanente ao longo de todo este ensaio. Na segunda parte, o conceito de “sentido” será mais bem definido segundo pressupostos teóricos fundamentados filosófica e sociologicamente.

A maioria das pessoas se acostumou a concluir, apressadamente, que, se Deus não existir, então a vida não tem sentido algum ou não tem razão de ser. No entanto, muitas dessas pessoas não sabem bem dizer qual é o sentido pretendido por Deus. Em outras palavras, elas não sabem dizer, com certeza, qual é o propósito de Deus para o mundo e para a vida delas. Muitas assumem que é necessário um salto de fé, ou seja, admitem que é preciso crer que Deus não teria criado o mundo e cada um de nós se não tivesse um propósito em mente. Mas isso parece ser, na verdade, uma consequência da crença de que o universo foi criado (ou seja, que ele não surgiu do nada) por uma Inteligência Superior que, ao criá-lo, tinha um propósito. Recorrer à fé em Deus em face da questão “Qual é o propósito que Deus tem para o mundo e para a vida de cada um de nós?”, é admitir que desconhecemos esse propósito, é admitir que apenas esperamos que, na hora certa (possivelmente, depois da morte?), Deus no-lo revelará. Mas, nesse caso, os religiosos sabem tão pouco sobre o propósito de suas vidas quanto um ateu que rejeita a crença de que o sentido da vida provenha de Deus. Portanto, o salto de fé precisa ser explicado. O salto de fé parece significar confiança num Deus cuja existência nos é inacessível, num Deus que tem um propósito que não podemos saber e que nos promete uma vida após a morte não sabemos se acontecerá. Ademais, devemos ter fé em que esse propósito nos agradará. Se, por exemplo, o propósito divino revelado for o de combater hordas de demônios durante toda a eternidade ou se o propósito foi ter nos criado para a perseverança em face de muitas tribulações, talvez não fiquemos muito contentes com o fato de Deus ter um propósito para nós.

Há, entre os religiosos, aqueles que supõem que o sentido da vida tem a ver com uma missão dada a cada um de nós por Deus, muito embora essa “explicação” não seja satisfatória na tentativa de responder qual é o sentido da vida. As religiões, aliás, não nos esclarecem sobre qual missão seria essa. Alguns falam em “servir a Deus”, mas “servir a Deus” é subtrair à vida humana sua dignidade; ademais, tornaria Deus uma espécie de senhor tirano que necessitaria de servos (embora o próprio imaginário judaico-cristão represente a relação assimétrica entre Deus e seus fiéis em termos de Senhor e “servos”). O fato é que, se assumimos que devemos confiar em Deus, estamos dizendo que não sabemos por que estamos no mundo e que devemos deixar tudo “nas mãos do desconhecido”. Por conseguinte, acreditar que nossas origens estejam ligadas a um ser sobrenatural, a uma instância metafísica significa abrir mão de uma explicação razoável sobre o sentido e a razão de ser de nossa vida. Vamo-nos deter um pouco mais na questão da “fé”.

Toda fé legítima, já nos advertia Kierkegaard, envolve um risco. A fé, por definição, é não racional (o que é diferente de dizer que a fé seja sempre “irracional”, embora ela possa, algumas vezes, o ser). Quero apenas dizer que a fé, de alguma forma, nos desobriga da responsabilidade de fornecer provas ou evidências. A fé não só contraria, com frequência, as normas da razão, como também nos escusa da necessidade de fornecer provas ou evidências que a própria racionalidade exige. A fé é uma atitude, ou um compromisso com a desnecessidade de fornecer uma justificação racional. Assim, lemos, no Evangelho de João, que Tomé é censurado por seu ceticismo. A interpretação cristã canônica autoriza a conclusão de que Tomé estava errado não só por duvidar de que Jesus ressuscitou dos mortos, mas sobretudo por pedir provas disso. Por isso, Jesus adverte aos demais que, como Tomé, teimam em duvidar: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (João 20:29). Ora, Tomé foi censurado pelos simples motivo de solicitar o que qualquer crença racional demandaria: boas razões, uma argumentação racional, evidências. A racionalidade pressupõe e exige a dúvida; afinal, sabemos, por experiência, que pessoas não ressuscitam. Assim, ao receber a prova de que precisava, Tomé fracassou em sua prova de fé. A fé deixa de ser necessária, quando dispomos de uma base racional.

No início do parágrafo precedente, referi-me ao fato de a fé envolver sempre um risco. Para evidenciar o risco da fé, tomemos a prova de fé de Abraão, em Gênesis 22. Kierkegaard se debruçou sobre essa passagem bíblica a fim de desvelar a nós que a fé não nos exime da angústia de ter de fazer escolhas. Deus pede a Abraão que sacrifique seu único filho, Isaac. Abraão não vê Deus, mas escuta o que teria sido a sua voz. Portanto, Abraão teve de decidir se foi mesmo Deus quem lhe pedira o sacrifício de Isaac, ou se fora um demônio, ou se estava ficando louco. Em segundo lugar, ele teve de decidir se obedecia ou não à ordem que lhe foi dada. A razão protesta, advertindo-o de que o pedido pode não estar certo; afinal, que Deus bom é este que exigiria o assassinato de uma criança inocente? Não obstante, Abraão ia agir em conformidade com o que lhe foi ordenado por Deus como prova de sua fé. Isso mostra como a fé nos leva a agir em desconformidade com a razão. Por isso, concordo com Baggini, quando escreve: “a fé é o que preenche a lacuna entre a crença racional e a certeza; ter fé é esquivar-se totalmente da racionalidade” (Baggini, 2008, p. 52). O risco da fé é, pois, abandonar a racionalidade como método mais confiável que temos para determinar o que é verdadeiro ou proveitoso. Em matéria de religião, é consabido que as convicções pessoais levam muitas pessoas a aderir às mais diferentes concepções de Deus ou do mundo sobrenatural. A fé pode-se tornar deveras nociva quando, através dela, as pessoas passam a acreditar cegamente que sabem qual é a vontade de Deus. Por isso, para quem, como Kierkegaard, pensa seriamente sobre a questão de Deus, a fé deve ser vivida com “temor e tremor”. Ao se debruçar sobre a narrativa de Abraão, que estava disposto a sacrificar seu filho por obediência à vontade de Deus, Kierkegaard descreve a agonia dessa personagem bíblica. Abraão não pode esquivar-se de fazer uma série de perguntas: será que é mesmo Deus quem está me pedindo isso ou será que é o diabo que me está enganando? Será que estou louco? E mesmo que seja Deus, será certo que eu cumpra o que ele ordena? Será que Deus é tão bom quanto eu pensava? A história de Abraão ensina-nos sobre o que significa ter fé. Significa delegar a responsabilidade pela busca de sentido da vida a Deus. Mas, se delegamos responsabilidade, então somos corresponsáveis pelo que a pessoa a quem a delegamos faz. Vê-se, portanto, que não é claro como Deus pode ser a instância metafísica doadora e mantenedora do sentido da vida, pois acreditar na existência de Deus nos desobriga de nos ocupar com o propósito ou sentido da vida. Afinal, não sabemos qual é esse sentido do qual Deus é uma fonte e garantia; ignoramos os propósitos de Deus; e precisamos evadir-se da questão do sentido da vida pelo recurso ao salto da fé, acolhendo, assim, o que nos pede o autor de Mateus (10: 28-31):

 

E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.

Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.

E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.

Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos.

 

 

A fé não se sustenta na razão, mas em convicções pessoais ou no testemunho dos outros.  Ter fé é renunciar a produzir sentidos para a nossa vida e simplesmente confiar na divindade. Não obstante, como não sabemos qual é o sentido de que Deus dota a existência do mundo e de nossa vida em particular, mesmo a fé não deveria nos eximir da responsabilidade por dar sentido às nossas vivências ou da responsabilidade pelas ações que se seguem dos sentidos que conferimos à nossa vida. Assim, invertendo a aposta pascaliana, poderíamos dizer que é o fiel que se encontra numa situação arriscada. Quem acredita nas alegações do cristianismo e arrisca tudo na esperança de uma existência pós-morte não terá uma segunda chance, caso esteja errado, isto é, caso não haja nada para além do túmulo e do retorno ao inorgânico. O ateu, no entanto, pode, pelo menos contar com uma segunda chance – presumindo-se que Deus não seja vingativo e vil como o descreve, sobretudo, o Antigo Testamento, mas bom e misericordioso como dele nos fala Cristo.

Gostaria de me deter um pouco mais na questão da transcendência como fonte de sentido para a existência humana, antes de pôr termo a esta primeira parte de minha exposição. É possível que o Deus teísta exista sem que haja vida após a morte? Ou é possível que exista vida após a morte, mas não exista Deus como ente transcendente? Na tradição religiosa que é a nossa, isto é, na tradição judaico-cristã, parece-me que a resposta é não. Parece que a existência de Deus e a promessa de vida após a morte estão necessariamente implicadas. Mas gostaria, doravante, de considerar apenas a possibilidade de haver vida pós-morte e de como essa outra vida conferiria sentido a esta vida aqui e agora. Partindo-se da premissa de que a vida tem de ter um sentido metafísico ou transcendente, a maioria das pessoas pensa que, se não houver vida após a morte, então a vida física, material mesma não tem sentido algum. Mas, cabe questionar como uma vida pós-morte daria sentido a esta vida aqui? Em outros termos, como a minha existência só ganharia sentido se eu puder continuar existindo sob alguma outra forma e sob outras condições além da morte? Não só não temos nenhuma razão para acreditar na existência de almas imateriais, que sobreviveriam à morte do corpo, como também  é possível supor que essa forma de vida de almas imateriais seria muito diferente desta vida material e corpórea que conhecemos. É claro que o cristianismo nos promete uma vida eterna deste composto de corpo e alma que presumivelmente constituiria nossa identidade pessoal, de modo que não é a nossa alma apenas que habitaria um outro mundo, mas a nossa pessoa mesma. Isso, no entanto, pouco nos ajuda na tentativa de explicar como essa vida pós-morte conferiria sentido a esta vida aqui e agora. Basicamente, não está claro como esta outra vida poderia ser uma continuidade da vida que temos agora. É absurdo falar em existência corporal fora do tempo. E se continuamos a existir como almas corporificadas, se continuamos a existir como união de corpo e alma, como pensar que esta outra vida estaria livre dos processos de envelhecimento, sofrimento e mortalidade que esta vida terrena pressupõe? E quem dissesse que isso é um mistério de Deus dá razão ao meu argumento central segundo o qual a fé em Deus não resolve o problema do sentido da vida. Mas a questão que me importa desenvolver consiste na seguinte: como a duração da vida pode aumentar o valor da vida? Em outras palavras, como uma vida pós-morte, uma vida eterna garantiria o sentido desta vida mortal que é a nossa? Se a vida que conhecemos não tem valor, como desejar sua eternidade a tornaria mais valiosa? Ora, a vida eterna pode ser uma vida bastante sem sentido, talvez a que menos faça sentido. Se, quando morrêssemos, acordássemos noutro mundo, como estaria resolvido o sentido da vida? Pense um pouco, caro leitor. Se o sentido da vida é que essa vida pós-morte é a continuação da anterior, restar-nos-íamos a questão de saber qual é o sentido dessa segunda vida pós-morte. Além disso, imagine-se quão entediante e sem sentido poderia ser uma existência eterna.

É certo que, quando pensamos seriamente sobre a nossa condição como animais humanos, como seres corpóreos e mortais, temos muita dificuldade de imaginar como deveríamos ter uma vida diferente desta vida material. E se consideramos essa dificuldade conjuntamente com a montanha de evidências de que dispomos a favor de nossa condição finita e mortal, sobreviver à morte é mais uma ilusão, uma crença baseada no desejo (como diria Freud), do que uma possibilidade a ser concretizada. A partir de tudo que foi exposto, a conclusão mais razoável não pode ser outra senão a que nos dá Baggini: “tentar encontrar o sentido da vida em uma vida por vir parece, então, inútil”. (ibid., p. 58). Vemos, pois, que a racionalidade quer que reconheçamos aquilo que a fé nos impede de admitir, a saber, “a única coisa que permanece incerta é a duração da vida, e considerando tudo o que sabemos seria ilógico apostar que ela se estenderia além da morte do corpo”. (ibid., p. 60).

Estou de acordo com a conclusão de Baggini quanto à vanidade da busca pelo sentido da vida com base na crença numa vida pós-morte. O tal “sentido metafísico” a que me referi, se examinado à luz da filosofia, parece obscurecer a questão do sentido da vida. Mas discordo de Baggini quando diz que “o sentido da vida deve estar nela própria” e quando diz que “a expectativa da morte é necessária para fazer com que nossas ações valham a pena”. São estes dois pontos de desacordo com o autor que me levaram a estender as minhas meditações sobre a questão do sentido da vida, reorientando-as à luz de uma abordagem mais propriamente sociológica da constituição humana do sentido. Em primeiro lugar, o sentido da existência humana e do mundo não deve ser compreendido por apelo a uma instância metafísica produtora de sentido, no que estou de acordo com Baggini; mas esse sentido não está na vida em si mesma, como algo que os seres humanos podem “des-cobrir”. A ordem social é produto da atividade humana e também os significados das ações humanas, o sentido da existência humana e do mundo são componentes fundamentais da constituição humana da realidade social. Cuido também ingênua a suposição de Baggini de que a perspectiva da morte é necessária para assegurar o valor da existência humana e das ações humanas; é justamente o contrário que parece ser o caso. A perspectiva da morte inevitável provoca no homem o sentimento de vanidade, de nanidade de todas as suas ações, de seus esforços por dotar sua existência e o mundo de significado e sentido. A perspectiva do fim pela morte inevitável esvazia, esgota a pretensa solidez do sentido de que investem os seres humanos as suas vidas. O que pretenderei mostrar na segunda parte deste ensaio é que o que confere uma espessura de significado, de sentido às ações humanas, à existência humana é a criação humana de um mundo institucional responsável por prover de significação o mundo como um todo e a existência humana. A perspectiva de nossa destinação como seres mortais é corrosiva, é nadificante, razão por que as coletividades humanas dispõem de “universos simbólicos” que, entre as suas funções, está a de proteger os indivíduos do terror diante da certeza da morte. Todas as sociedades humanas fornecem um conjunto de legitimações da morte que atendem à necessidade de capacitar o indivíduo a continuar vivendo depois da morte dos outros que ama ou estima e de lhe permitir a antecipação da própria morte com o mínimo de terror, na quantidade suficiente para que não seja tomado de um desespero paralisante que o impeça de viver segundo as rotinas da vida cotidiana. Afinal, como ensina Schopenhauer, “a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão” (Schopenhauer, 2014, p. 26). Como pretender extrair algum sentido de tal condição vã e trágica?

 

 

                                                             PARTE II

 

O problema do sentido e, especificamente, do sentido da vida e dos significados de nossas experiências como indivíduos que coexistem com outros no mundo é um problema que só pode ser elucidado em toda a sua complexidade e profundidade se investigarmos como se dá o processo de autoprodução do homem como ser social, como construtor de uma ordem social à qual ele deve a possibilidade de sua subsistência como animal desnaturado e no interior do qual a sua própria existência se dota de significado. Para o bom encaminhamento de minhas reflexões sobre a questão do sentido da vida, será necessário dilucidar o significado de três termos que são semanticamente relevantes para as reflexões desenvolvidas ao longo desta segunda parte de meu ensaio. O primeiro termo, cujo significado deve ser definido, é o de vida. Falarei de vida como o conjunto das vivências de um indivíduo. A vida reside na autoafeção. Vida é viver-se, mas é também os diferentes modos de experienciar e de me compor com o caráter dinâmico das afecções que constituem a nervura da minha existência.  Por vivência, entendo, no sentido de Hurssel, o fluxo não passível de apreensão em sua unidade plena. Vivência é fluxo de experiências. Por fim, por experiência, que constitui uma forma de conhecimento direto, que implica as sensações, percepção, cognição, memória, imaginação, introspecção, e que tem como conteúdo as representações, entendo um pôr-se e dispor-se na abertura para relações com o mundo; experiência é compor-se com os fluxos devenientes da vida, é ser tomado fisiológico e afetivamente pela fruição compreensiva dos objetos, das pessoas, dos fenômenos, dos acontecimentos do mundo. Ademais, outro termo importante que, usado correntemente no senso comum, precisa ter seu significado definido com maior rigor é consciência. Segundo Damásio (2000, p. 46),

“(...) a consciência começa com o sentimento do que acontece quando vemos, ouvimos e tocamos. Em termos um tanto mais precisos, é um sentimento que acompanha a produção de qualquer tipo de imagem – visual, auditiva, tátil, visceral – dentro de nosso organismo”.

 

A consciência tem sua ancoragem no corpo ou no cérebro, embora não se reduza à mente. Ainda acompanhando o autor, “a consciência começa quando os cérebros adquirem o poder (...) de contar uma história sem palavras, a história de que existe vida pulsando incessantemente em um organismo”. (ibid., p. 51). Acresça-se que a consciência é o poder que o cérebro tem de reconhecer que os estados do organismo vivo, nos limites do corpo, estão sendo continuamente alterados por encontros com objetos ou eventos ou por pensamentos e ajustes internos ao processo de vida. Mas é de um ponto de vista fenomenológico, na esteira de Hurssel, que o conceito de consciência terá mais importância nesta exposição. Hurssel entende a consciência como uma corrente de vivências. A consciência, de um ponto de vista fenomenológico, é uma relação com um objeto. O que a define é a intencionalidade, ou seja, o referir-se a outra coisa: a consciência é sempre consciência de algo.

Tanto a definição proposta por Damásio quanto a que se inspira na fenomenologia de Hurssel, na qual tanto Schütz quanto Berger & Luckmann vão se basear para desenvolver suas teorias da construção significativa do mundo social, não fazem qualquer referência ao papel que as formas simbólicas e as práticas sócio-interacionais por meio da linguagem desempenham na constituição da consciência humana. É preciso, pois, preencher essa lacuna mantendo que a consciência, no homem, é povoada de signos, de modo que o encontro entre o organismo humano e o mundo exterior se dá no signo. Embora eu aceite o postulado de Schütz e de Berger & Luckmann de que o locus do sentido deve ser identificado com a consciência e entenda que a percepção, definida como processo de organização e interpretação das informações sensoriais que torna possível reconhecer objetos e eventos significativos, já nos permita produzir algumas articulações pré-verbais de sentido, o sentido socialmente relevante e decisivo na constituição da experiência humana é aquele que se produz com o concurso da linguagem simbólica. Assumo, pois, os seguintes postulados bakhtianos e vygostkyanos:

 

1. A linguagem e a percepção estão ligadas. A linguagem, juntamente com a percepção, constitui as experiências humanas;

 

2. O encontro do organismo (humano) com o mundo exterior se dá no signo;

 

3. A consciência é povoada de signos; ela se constitui em processos sociais nos quais as práticas discursivas desempenham um papel fundamental;

 

4. A linguagem é o ponto que articula a vida mental e a vida sociocultural;

 

5. O simbólico refere-se à construção de representações e a operação sobre elas, transformando a experiência com o real em “conceitos”, capazes de classificá-lo, categorizá-lo;

 

6. A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder de raciocínio do espírito;

 

7. O pensamento não é um simples reflexo do mundo, mas uma atividade que classifica a realidade, organiza-a; e a essa função organizadora está estreitamente associada a linguagem;

 

8. Resulta de 7 que a significação é a unidade do pensamento e da linguagem; é o que une entre si comunicação e representação;

 

9. A linguagem é a própria possibilidade de inserção do homem no mundo como “animal semiótico”;

 

10. A cognição humana tem natureza simbólica. Os processos cognitivos têm uma gênese sociocultural, não simplesmente biológica, pré-fixada;

 

11. Os processos cognitivos são objetos de consciência;

12. Os processos cognitivos são mediados por instrumentos culturais e simbólicos.

 

A linguagem é um processo criador, por meio do qual organizamos e dotamos de sentido nossas experiências. Mesmo que o mundo experienciado pelo homem não seja produto original da linguagem, esta desempenha um papel inestimável na construção desse mundo, conforme veremos mais adiante. A linguagem não é um mero instrumento que intermedeia a relação entre o pensamento e o mundo. Esta relação é mobilizada por uma série de condições: as propriedades biológicas das quais somos dotados, a qualidade intersubjetiva das interações humanas, as contingências culturais e ideológicas da vida em sociedade, as normas pragmáticas que presidem o uso da língua, os diferentes contextos linguístico-cognitivos nos quais as significações são produzidas, etc. Assim, mesmo na solução de problemas não verbais, a linguagem desempenha um papel no resultado. O mundo que é percebido pelo homem não é experienciado simplesmente em formas e cor, mas como um mundo dotado de sentido e significado.

A despeito do fato de Berger & Luckmann assumirem que “deve-se procurar na constituição subjetiva do sentido a origem de todo o acervo social do conhecimento, do reservatório histórico do sentido” (2012, p. 18), nesse nível primário de sua constituição, o sentido ainda não alcançou o poder estruturante suficientemente necessário para que a vida individual seja vivenciada como “currículos de vida” integrados à estrutura de significados da sociedade. Ademais, como mantêm os autores, o sentido de uma experiência ou ação pode até ter surgido “no trato consciente e “solucionador de problemas” do indivíduo com o meio natural e social”. (ibid.), mas, a menos que se esteja supondo aqui que esse “trato consciente” tenha acontecido num período da história humana anterior ao desenvolvimento da faculdade da linguagem, parece-me pouco sustentável que condições pragmáticas sejam fatores exclusivos na doação de sentido. A partir do momento em que a linguagem faz sua emergência na cena histórica, ela acarreta o grande salto cognitivo da espécie humana, de modo que, desde então, linguagem, percepção-cognição e práticas culturais se inter-relacionam intimamente na constituição significativa da experiência humana, liberando o animal humano das relações imediatas por motivos meramente pragmáticos com o mundo natural. Assim, com o desenvolvimento da faculdade da linguagem, o trato do animal humano com o mundo muda radicalmente, e o sentido de uma experiência ou ação individual se produz na atuação, no engajamento linguístico-perceptual-cognitivo do indivíduo no mundo biofísico-social em práticas sociointeracionais, ou seja, conjuntamente com os outros.

 

1. O subjetivo e o social na constituição do sentido

 

Longe de supor que seja simples dizer o que é o “sentido”, é inevitável começar considerando a questão, se  o que se pretende é mostrar como a existência humana em sociedade vai-se dotando de sentido. Schütz, em seu A construção significativa do mundo social (2018), dá-nos a saber a seguinte definição de “sentido”:

 

Sentido é antes (...) a designação de determinado direcionamento do olhar a uma vivência própria, que nós, imersos no simples viver no curso da duração, somente em um ato reflexivo podemos “destacar” ante todas as outras vivências na forma de uma vivência bem-circunscrita. Sentido designa, portanto, uma atitude específica do eu ante o curso de sua duração. (2018, p. 71, grifos meus).

 

Num primeiro momento,  Schütz sugere que o “sentido” é um fenômeno da consciência subjetiva. Ademais, o sentido só pode ser apreendido em retrospectiva, ou seja, no momento em que o “eu” retoma na reflexão uma vivência passada destacando-a das vivências no curso da duração. Outro aspecto importante do sentido, segundo Schütz, é a sua relação com o tempo. Segundo o autor, “o problema do sentido é um problema referente ao tempo”. (ibid., p. 32). Mas não se trata do tempo divisível e mensurável, tampouco do tempo histórico. O sentido refere-se  “à consciência interna do tempo, à consciência da duração própria ao ego, na qual para o vivenciante, constitui-se o sentido de suas vivências”. Ainda que, até aqui, o sentido esteja sendo definido da perspectiva estritamente subjetiva ou individual, está claro que o sentido tem relação com as vivências do indivíduo humano no mundo, e nada tem a ver com uma instância metafísica “doadora” de sentido (embora essa “instância metafísica”, enquanto constructo social, ficção sócio-histórica, seja parte integrante de sistemas de valores superiores que preenchem a vida e a conduta humanas de sentido).

Ainda segundo Shütz, quando estamos imersos no simples viver e em atitude natural com relação ao mundo, vivemos sob a vigência de nossos atos doadores de sentido. Assumo habitualmente a objetualidade “sentido objetivo” constituída neles.

 

“Somente quando me distancio – como diz Bergson, “em árduo esforço” – do mundo dos objetos e me volto à minha corrente interna da consciência, apenas quando (na terminologia de Hurssel, ponho o mundo natural “entre parênteses” e, em redução fenomenológica, tomo em perspectiva somente as minhas vivências mesmas de consciência, apercebo-me desse processo de constituição”. (ibid., p. 64).

 

 

A despeito do fato de cada indivíduo atribuir sentido ao seu agir e de apreender seus atos individuais como dotados de sentido, uma vez que o mundo social se constitui e se constrói, em sua vida diária, pelo concurso da atividade dos outros indivíduos, cada indivíduo se depara com um sentido objetivado, já dado. Ao mundo social pertencem nossos atos de compreensão e posição de sentido, bem como nossas representações atinentes ao sentido do nosso comportamento e ao do comportamento alheio; ademais, a esse mundo social pertence também o sentido das objetivações culturais. Schütz não ignora a dimensão intersubjetiva do fenômeno do sentido, conforme se observa no trecho abaixo:

 

“A construção do mundo social tem caráter significativo para aqueles que o habitam; mas, por outro lado, também para as ciências sociais, que interpretam o mundo social que lhes é pré-dado. Vivendo no mundo social, vivemos com e para outros indivíduos, pelos quais orientamos nossa atividade diária. Ao vivenciá-los como “os outros”, como consociados ou contemporâneos, predecessores ou sucessores, ao nos vincularmos a eles em comum operar e efetivar, ao instigá-los a tomadas de posição, compreendemos o comportamento desses outros indivíduos e pressupomos que compreendem o nosso. Nesses atos de interpretação e de posição de sentido, se constrói, para nós, em distintos graus de anonimato, em maior ou menos proximidade vivencial, em variadas perspectivas de apreensão que se cruzam, a estrutura de sentido do mundo social, o qual é tanto nosso mundo (a rigor, antes de tudo, meu mundo) como também o dos outros indivíduos”. (ibid., p. 28, grifo meu).

 

 

Portanto, a construção da estrutura de sentido do mundo social é trabalho conjunto e cooperativo das ações individuais. O mundo social é vivenciado como significativo pelos atores sociais. Os fenômenos do mundo social não têm sentido apenas para mim, ou para um indivíduo B ou C, senão para todos os indivíduos que, juntos, vivem neste mundo, e os quais encontram, ao nascer, como pré-constituído, previamente dado, esse mundo externo. Por isso, segundo Shütz, “toda doação de sentido desse mundo por mim realizada toma como referência original a doação de sentido feita pelo tu em seu vivenciar, e assim se constitui sentido enquanto fenômeno intersubjetivo”. (ibid., p. 59).

É preciso aprofundar estas reflexões sobre a questão da constituição do sentido em seu nível elementar. Segundo Berger & Luckmann (2012), o sentido se constitui na consciência humana, mas essa consciência é constituída em processos sociais. Para os autores, “sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências”. (ibid., p. 15). As vivências constituem, portanto, o solo sobre o qual se constituirá o sentido; mas elas mesmas ainda não são significativas. As vivências (lembre-se que elas são apenas fluxos) só se tornam experiências quando sobre elas recai a atenção do eu. Mas somente quando as experiência assim delineadas se separam da base da vivência, e a consciência estabelece a relação dessa experiência destacada com outras experiências, o sentido se torna possível e apreensível. Consoante os autores, “a experiência atual em dado momento pode ser relacionada com uma experiência já acontecida há pouco ou num passado remoto” (ibid.). Mas, geralmente, a experiência atual é relacionada com um tipo de experiência, com um esquema de experiência, uma máxima comportamental, uma legitimação moral, etc, todos derivados de muitas experiências armazenadas no conhecimento subjetivo ou no acervo social do conhecimento.

Nesse nível elementar da constituição de sentido, também Berger & Luckmann não fazem qualquer alusão ao papel desempenhado pela linguagem na constituição do sentido do mundo social. Eles atribuem à consciência do indivíduo a capacidade de doar sentido às suas experiências.  Veremos que os autores não deixam de considerar o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade; mas penso que não deveria ser negligenciada a influência da linguagem simbólica na constituição da própria consciência à qual se atribui o papel de doar sentido às experiência humanas. O agir é, por si mesmo, investido de sentido para cada ator social. A todo agir é atribuído um sentido pelo indivíduo. Mas essa atribuição de sentido não é feita por uma consciência desamparada de qualquer simbolismo. Berger e Luckmann mantém que o sentido do agir é prospectivo, pois que é orientado por um objetivo a ser alcançado; mas reconhecem que a ação realizada é retrospectivamente significativa. O sentido do agir que está para ser realizado se constitui na relação de cada etapa da ação com o objetivo pretendido. A ação já concluída, bem-sucedida ou fracassada, segundo os autores, “pode ser comparada com outras, pode ser entendida como o cumprimento de máximas comportamentais, ser explicada e justificada como execução de leis, ser desculpada como violação de normas, ser negada a outros  e – em caso extremo – também a si mesma” (ibid., p. 17). Não se vê, pois, como é possível que todas as articulações de sentido possam ser possíveis sem a intervenção da função de simbolização da linguagem. Ora, a própria possibilidade de explicar e justificar uma ação como execução de leis pressupõe o uso de signos como meios de expressão. Num nível elementar de sua ocorrência, o agir pode derivar seu sentido de sua relação com o fim a que visa, mas, à medida que o agir vai assumindo uma espessura social, vai tomando parte de uma rede de relações e ações sociais; quando o agir se torna, enfim, agir social, o seu sentido se estrutura e se sustenta numa rede simbólica (instituição). Somente postulando o investimento simbólico do agir é possível falar, como pretendem os autores, num agir social “direcionado a pessoas presentes ou ausentes, a mortos e não nascidos”.

 

 

“O agir social pode ser direcionado a pessoas presentes ou ausentes, a mortos e não nascidos; pode querer abordá-los em sua individualidade, ou como tipos sociais de diferentes graus de anonimidade, ou mesmo como simples membros de grupos sociais. Pode visar a uma resposta ou não. Pode ser intencionado como único, ou visando à repetição regular ou prolongação no tempo. Nessas diferentes dimensões de sentido é que se constrói a significância complexa do agir e das relações sociais”. (ibid., p. 17).

 

Segundo os autores, é no agir social que se constitui a identidade pessoal do indivíduo. Além disso, “vivências puramente subjetivas são o fundamento da constituição do sentido: estratos mais simples de sentido podem surgir na experiência subjetiva de uma pessoa” (ibid., p. 17-18). Berger & Luckmann também aqui acompanham Schütz ao assinalar o caráter fundamental das vivências subjetivas na constituição do sentido, mas lembram que as vivências subjetivas só fornecem “estratos mais simples de sentido”. Ao contrário, estratos superiores de sentido, com base nos quais o indivíduo pode fazer “conexões lógicas complicadas, dar início e controlar sequências diferenciadas de ação e recorrer ao tesouro disponível de experiências em seu ambiente” (ibid.), já pressupõem a existência de objetivações de sentidos subjetivos no agir social. O subjetivo e o social estão numa relação dialética na constituição do sentido, porque mesmo os estratos inferiores de sentido abrigam também elementos de sentido historicamente produzidos como herança de antigas formas do agir social, a que se pode chamar de tradições. Assim, tipificações, classificações, padrões de experiência e esquemas de ação são componentes do acervo subjetivo do conhecimento, os quais são tomados, por sua vez, de um acervo social do conhecimento. Aqui cabe precisar o que significa conhecer. Conhecer é organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivencia nas experiências com os objetos, com as coisas. O conhecimento socialmente relevante é já textualmente fundado; portanto, constituído, organizado e comunicado pela linguagem simbólica.

Para que possamos examinar com mais vagar e acuro de que modo o sentido da existência humana é uma dimensão essencial do trabalho de edificação do mundo social, é preciso enfatizar que a ordem social existe unicamente como produto da atividade humana. Não é razoável lhe atribuir qualquer outro estatuto ontológico sem mascarar as evidências Como ensinam Berger & Luckmann, “tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que  a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”. (2007, p. 76). A autoprodução do homem é sempre e necessariamente um trabalho social. São os homens que, conjuntamente uns com os outros, produzem um mundo histórico-social – portanto, humano -  com a totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Nenhuma dessas formações pode ser considerada produto da constituição biológica do homem, a qual apenas fixa os limites externos da atividade produtora humana. Segue-se daí que a) a sociedade é um produto humano; b) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é um produto social.  São estes os três momentos dialéticos da constituição da realidade social. Cada um deles corresponde a uma caracterização essencial do mundo social. No viver cotidiano, cada indivíduo experiencia o mundo institucional como uma realidade objetiva. Esse mundo de instituições tem uma história que antecede o nascimento do indivíduo e não é acessível à sua lembrança biográfica. Já existia antes de ele ter nascido e continuará a existir depois que morrer. Essa própria história, tal como a tradição das instituições existentes, tem caráter de objetividade. A biografia do indivíduo é apreendida como um episódio efêmero localizado na história objetiva da sociedade. As instituições são facticidades históricas e objetivas, com as quais se defronta o indivíduo, que as assume como fatos inegáveis. As instituições estão aí, exteriores a ele, persistentes em sua realidade, queira ele ou não. Elas resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre ele, tanto pela força de sua facticidade, quanto pelos mecanismos de controle geralmente ligados às mais importantes delas. A realidade objetiva das instituições sociais não se enfraquece ou perde espessura se o indivíduo não compreende sua funcionalidade ou seu modo de funcionamento. Nas seções subsequentes, estará sob escopo de minhas considerações o que são as instituições, como elas se originam e de que modo elas são responsáveis por processos sócio-históricos e individuais de produção de sentido. Os autores não deixam de reconhecer, no entanto, que os problemas a serem solucionados surgem no “agir social interativo”, de sorte que “as soluções sejam encontradas em comum”. (ibid.). Ademais, os problemas que se colocam para um indivíduo são relevantes intersubjetivamente, já que são problemas comuns à vida de outras pessoas.

 

2. As instituições: as origens de sua constituição

 

Pode-se definir as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc. As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles. A concepção do que são instituições que merecerá minha atenção, mais adiante, é a que nos dá a saber Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade (1982). Por ora, interessa-me dispensar atenção sobre o modo como as instituições se originam, se tornam realidades objetivas, como operam na constituição do amálgama de significados que formam a ordem social. Outrossim, interessa-me examinar como elas estocam, controlam e transmitem os sentidos que integram o reservatório histórico de sentidos.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “ toda atividade humana está sujeita ao hábito” (2007, p. 77, grifo meu). Portanto, o hábito é um elemento indispensável na formação das instituições. Toda ação humana frequentemente repetida torna-se moldada em um padrão, o qual pode, em seguida, ser reproduzido com economia de esforço. Este é um dos papéis importantes desempenhados pela instituição: elas foram criadas com vistas a aliviar o indivíduo do peso de ter de reinventar o mundo a cada dia e de ter de se orientar dentro dele. O hábito também pressupõe que a ação individual pode ser novamente executada no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço. As ações que se tornam habituais conservam seu caráter significativo para o indivíduo, mas o significado delas é estocado como parte de um acervo geral de conhecimentos na forma de rotinas. Quando consideramos os significados atribuídos pelo homem à sua atividade, é importante frisar que o hábito “torna desnecessário que cada situação seja definida de novo, etapa por etapa” (ibid., p. 78). Destarte, uma grande quantidade variada de situações pode estruturar-se sob suas pré-definições. Como assinalam Beger & Luckmann, “estes processos de formação de hábitos precedem toda institucionalização”. (ibid.).

A instituição começa, quando se dá uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores sociais. Na verdade, qualquer uma das tipificações é uma instituição. O que é decisivo na institucionalização é a reciprocidade das tipificações institucionais e o caráter típico não somente das ações, mas também dos atores sociais nas instituições. As tipificações das ações habituais que constituem as instituições são sempre partilhadas. São acessíveis a todos os membros de um grupo social, e a própria instituição tipifica os atores individuais, assim como as ações individuais. Portanto, a instituição pressupõe que ações do tipo X serão executadas por atores do tipo X. Por exemplo, a instituição da Lei postula que certo tipo de crime receberá certo tipo de sanção, a qual deverá ser aplicada por certos tipos de atores cujos papéis são definidos institucionalmente. As instituições, portanto, implicam historicidade e controle. As tipificações recíprocas das ações são constituídas no curso de uma história compartilhada. As instituições têm sempre uma história da qual são produtos.

Quando se diz que a realidade social ou institucional é objetivada ou é dotada de objetividade, quer-se dizer que as instituições são experimentadas como existindo por cima e além dos indivíduos que passam a internalizá-las. Em outras palavras, as instituições são experienciadas como se possuíssem realidade própria, realidade com a qual os indivíduos se defrontam na condição de fato exterior e coercitivo. No processo de transmissão às novas gerações, a objetividade do mundo institucional se torna espessa e endurece, e entra a fazer parte das estruturas da consciência em toda a sua firmeza. A objetivação é, portanto, o processo através do qual os produtos exteriores da atividade humana adquirem o caráter de objetividade. Assim, o mundo institucional é atividade humana objetivada. A relação entre o homem, que é o verdadeiro produtor, e o mundo social, o seu produto, é e permanece sendo uma relação dialética, isto é, o homem em coletividade e o seu mundo social agem reciprocamente um sobre o outro, de sorte que o produto (a sociedade) reage sobre o seu produtor (o homem). O que me causa espanto não é só o fato de que as instituições humanas, enquanto criações da atividade humana, ajam sobre os homens, seus criadores; mas também a “servidão voluntária” habitual do homem comum que o torna dócil ao fato de que são os próprios membros de sua espécie animal que cria realidades que os oprimem e que os controlam. Mas a explicação para o conformismo do homem comum deve ser buscada no fenômeno da reificação (coisificação) da realidade.

A questão que se impõe, portanto, no processo de objetivação, é a seguinte: até que ponto uma ordem institucional ou uma parte dela é apreendida como uma facticidade não humana? A reificação é a apreensão dos fenômenos sociais humanos como se fossem coisas, isto é, realidades humanas como se fossem realidades não humanas ou sobre-humanas. A reificação é a apreensão dos produtos da atividade humana como se fossem algo diferente de produtos humanos, como se fossem fatos da natureza ou manifestações da vontade divina. Na reificação, o homem produz e continua a produzir uma realidade que o nega. Eis o paradoxo da condição humana que o homem comum, cuja consciência já se estruturou e opera sob o domínio da reificação, não pode reconhecer e em face do qual sequer é capaz de “espantar-se” (sentimento eminentemente filosófico!) ! O homem, o produtor de um mundo que saiu de suas mãos e cabeça, é apreendido como produto deste mundo, e a atividade humana como um epifenômeno de processos não humanos. Para a consciência reificada, os significados humanos não são mais compreendidos como produzindo o mundo, mas como sendo produtos da natureza das coisas. A reificação é, pois, uma modalidade da objetivação do mundo humano levada a efeito pelo homem.

Todas as instituições, portanto, dão “corpo” a um sentido “primário”, “primitivo” da ação que se tornou habitual na regulamentação definitiva do agir social, numa área funcional determinada. Há instituições que desempenham a tarefa, especialmente importante, de reprocessamento social do sentido. As mais importantes delas são as que se destinam a controlar a produção e a transmissão do sentido. Segundo Berger & Luckmann, “tais instituições existiram em quase todas as sociedades arcaicas”. (2012, p.  22). Em sociedades antigas mais avançadas, nas sociedades do início da modernidade e, por exemplo, em várias sociedades do Oriente Próximo, atualmente, as instituições religiosas com seus códigos morais estiveram e estão ligadas intimamente às esferas de poder. Elas podiam aspirar (em alguns casos, ainda aspiram), com êxito, tanto ao controle da produção quanto ao controle da distribuição de uma hierarquia relativamente coerente de sentido estruturante da sociedade global. O que me parece importante sublinhar aqui é que o sentido desta ou daquela ação ou experiência, ou mesmo o que o homem comum acostumou-se a denominar de “o sentido da vida” já foi produzido, reprocessado, administrado e distribuído pelas instituições sociais antes que ele pudesse ser integrado à sua biografia. O sentido que um indivíduo atribui a sua vida já foi organizado, reprocessado e é administrado e colocado à sua disposição pelas instituições. Segue-se daí que é possível falar em uma economia doméstica do sentido. Esta economia supõe que há condições histórico-sociais de produção e distribuição social do sentido e um mercado consumidor aberto. Por conseguinte, segundo Berger & Luckmann, “concorre então uma grande quantidade de fornecedores de sentido para obter o favor de um público que se vê confrontado com a dificuldade de escolher entre uma infinidade de ofertas a mais adequada”. (ibid., p. 23).

 

 

2.1. As instituições e seu poder de controle: as comunidades de vida e de sentido

 

 O modo como as instituições exercem controle tanto sobre a conduta humana quanto sobre a produção, administração e comunicação do sentido conservado é o que me ocupará doravante. O controle das instituições sobre a conduta humana se dá pelo simples fato de elas existirem, já que elas estabelecem padrões previamente definidos de conduta. Tais padrões determinam uma direção para a conduta entre tantas outras direções teoricamente possíveis. Como já vimos, as instituições foram criadas para aliviar o indivíduo do peso da necessidade de reinventar o mundo a cada dia. Acresça-se que, para tanto, as instituições criam “programas” que orientam a realização da interação social e a realização de “currículos de vida”. Elas fornecem, pois, padrões comprovados segundo os quais um indivíduo pode orientar seu comportamento. Uma vez que se comportam segundo esses modos de comportamento estabelecidos institucionalmente, os indivíduos aprendem a cumprir as expectativas relacionadas a certos papéis como casado, pai, empregado, contribuinte, transeunte, consumidor, etc. Sempre que as instituições funcionam normalmente, o indivíduo exerce os papéis a ele atribuídos pela sociedade na forma de esquemas institucionalizados de ação e conduz sua vida sob a forma de currículos de vida assegurados institucionalmente e com alto grau de autoevidência. É da conservação da “autoevidência” que as instituições obtêm toda a sua força vital. Todavia, uma instituição se vê ameaçada quando os membros que vivem dentro dela começam a refletir sobre os papéis institucionais relevantes, as identidades fixadas, os esquemas de interpretação, os valores e as visões de mundo pelos quais ela é responsável.

As instituições vêm preencher a carência de instintos no homem, possibilitando um agir para o qual nem sempre é necessária cuidadosa ponderação sobre alternativas. Por isso, como fazem ver Beger & Luckmann, “muitas interações sociais importantes do ponto de vista da sociedade são realizadas de forma quase automática”. Cumpre ainda salientar que os programas institucionais são internalizados na consciência do indivíduo, guiando-o no seu agir e tornando-o um experienciador de um sentido do qual ele passa a acreditar que é autor. Os programas institucionais são organizados na consciência em processos de camadas múltiplas. Na socialização primária, fixam a base fundamental da construção da identidade pessoal; posteriormente, na socialização secundária, fazem o ajustamento do indivíduo aos papéis que lhes são atribuídos na realidade social e, sobretudo, o introduzem no mundo do trabalho. Todos esses momentos do controle institucional vão possibilitar que as estruturas da sociedade se tornem as estruturas da consciência, para o que a linguagem simbólica desempenhará um papel fundamental, conforme veremos. Assim é que escravos e senhores, trabalhadores e capitalistas comportam-se em conformidade com seus papéis, como também pensam, sentem e se consideram a si mesmos de modo correspondente à conduta própria do seu papel. Mas é claro também que a subjetividade do indivíduo não precisa estar conformada plenamente com a realidade objetivamente definida pela sociedade. No processo da socialização dele, haverá pequenas fissuras, ou pode haver grandes rupturas.

Passo, doravante, a discutir como as instituições controlam a produção, a administração e  a comunicação do sentido que integra o reservatório histórico do sentido. Mas, antes, é necessário compreender como se forma esse “reservatório histórico de sentido”. Dada a complexidade do tema que venho discutindo, faz-se mister lembrar que, através do estudo de que este ensaio é um testemunho, tenho procurado mostrar que o sentido que atribuímos às nossas experiências na vida diária, bem como as camadas totalizantes de sentido reunidas sob o rótulo “o sentido da vida” não são achados individuais, ou “criações” de consciências individualizadas; se o indivíduo diz encontrar sentido em suas ações, em suas atividades, em sua vida, isso é possível porque antes dele e para além dele operam processos institucionais geradores de sentido. Portanto, todas as sociedades estão envolvidas em processos destinados a produzir sentido, mesmo que não tenham instituições especializadas na produção dele. As instituições, quer sejam especializadas, quer não, controlam a recepção dos elementos de sentido por meio de estoques sociais de conhecimento e organizam as reservas históricas de sentido, tornando possível aos membros da sociedade o acesso a elas. Uma vez que os indivíduos aproveitam as reservas históricas de sentido, eles as adaptam às novas necessidades. Por meio de suas instituições, as sociedades humanas conservam as partes essenciais de sua reserva de sentido. O momento fundamentalmente importante é este: as instituições sociais comunicam sentido ao indivíduo e às comunidades de vida em que esse indivíduo cresce, trabalha e morre. Elas determinam o sentido subjetivo em amplas esferas de seu agir, enquanto o sentido objetivo desse agir é organizado e prescrito pelas grandes instituições de poder e economia. Para Berger & Luckmann, a crise estrutural de sentido experienciada pelo homem moderno e tão fartamente estudada pelos especialistas é consequência do pluralismo moderno. Assim, propõem os autores que “o pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de valores e da interpretação. Em outras palavras: os antigos sistemas de valores e de interpretação são “descanonizados”. (2012, p. 52). Nas sociedades modernas, há diferenças no grau de coerência dos sistemas de valores, bem como na competividade interna e externa na produção, comunicação e imposição de sentido.

A fim de que se esclareça o modo como as instituições exercem controle sobre a produção, administração e comunicação do sentido, preciso definir os conceitos, tomados a Berger & Luckmann, de comunidade de vida e comunidade de sentido.

Comunidades de vida são agrupamentos sociais caracterizados por um agir que se repete com regularidade e com reciprocidade em relações sociais duráveis. Seus integrantes demonstram uma confiança institucional, uma confiança na durabilidade da comunidade. A forma básica universal das comunidades de vida são as comunidades em que se nasce. Mas pode haver também comunidades de vida de que alguém entra a fazer parte por adoção ou por casamento. Há comunidades de vida que exigem uma iniciação, como as Ordens religiosas. Há comunidades de vida que se formam em decorrência de uma modificação da vida, como lares de idosos, prisões, etc. As comunidades de vida precisam ter o mínimo de sentido, mas o contrário não é necessário.

Vimos que as reservas de sentido objetivadas e processadas pela sociedade são conservadas em reservatórios históricos de sentido e são administradas pelas instituições. Assim, ao controle da produção de sentido se associa a comunicação do sentido. Por meio da educação ou de processos de doutrinação orientada, os indivíduos habitua-se a só pensar e fazer o que corresponde às normas da sociedade. Busca-se, por meio do controle do sentido, censurar tudo o que é publicamente dito, ensinado e pregado; impede-se a difusão de opiniões divergentes. Assim, o sentido do agir e o sentido da vida é já determinado como regra óbvia de conduta de vida, a cuja adoção todos se sentem obrigados. Por exemplo, define-se inquestionavelmente o relacionamento entre os casados e entre os pais e os filhos. Os pais e os filhos, geralmente, se conformam; os desvios são claramente definidos como “desvios de norma” ou “desvios de conduta”. Decerto, nas sociedades modernas, há diferenças no grau de coerência dos sistemas de valores, bem como na competitividade interna e externa na produção, comunicação e imposição do sentido.

O agir social do indivíduo é moldado pelo sentido objetivo, colocado à disposição pelos acervos sociais de conhecimento e comunicado pelas instituições, mediante a pressão que elas exercem para que sejam acolhidos. Considere-se a situação da criança, a fim de que compreendamos como se constituirá a significação da estrutura intersubjetiva das relações sociais.

Desde o seu nascimento, a criança está inserida numa relação social: com seus pais e com outras pessoas relacionalmente importantes para ela. Essas relações se desenvolvem através de ações regulares, diretas e recíprocas. A criança pequena, conquanto não seja ainda capaz de agir propriamente, é um organismo individualizado dotado das capacidades sensório-motoras e cognitivas inerentes à espécie humana. Ela as emprega em seu comportamento nas relações com os outros. Por outro lado, o agir dos outros em relação à criança é determinado, em grande medida, por esquemas de experiência e ação que se originam do reservatório de sentido de sua sociedade. A criança, por seu turno, vai aprendendo, progressivamente, a entender o agir do seu interactante e a compreender o sentido dele. É nesse momento que ela passa a entender as reações do outro como um campo de referência para seu próprio comportamento. Ela pode compreender seus modos de proceder como ações típicas à luz dos padrões historicamente dados de experiência e ação. A criança mesma se posiciona em relação às reservas sociais de sentido. São nesses processos formativos que se vai desenvolvendo sua identidade pessoal. Uma vez que tenha compreendido o sentido do seu agir, compreende também que lhe cabe assumir responsabilidade por ele.

Se, numa situação ideal, os pais e os outros significativos de referência para a criança tenham formado suas identidades pessoais em consonância com os padrões do reservatório histórico de sentido, o comportamento da criança irá se moldar coerentemente com o agir dos outros. A maioria das crianças nasce em comunidades de vida que são também comunidades de sentido, mesmo que em graus bastante distintos. Disso se segue que, na ausência de uma reserva de sentido compartilhada universalmente e ajustada a um sistema de valores único e fechado, concordâncias de sentido podem-se desenvolver no interior de comunidades de vida ou podem ser “importadas” do reservatório histórico de sentido. Por fim, essas concordâncias de sentido poderão também ser comunicadas às crianças de maneira assaz coerente.

Por seu turno, as comunidades de sentido podem-se tornar, em alguns casos, comunidades de vida, mas são construídas e mantidas exclusivamente por meio de um agir comunicável e recíproco. Comunidades de sentido são formadas em diferentes níveis de sentido, não diretamente baseados na experiência de vida, e podem se referir a diferentes campos de sentido, como por exemplo, o filosófico, tais como os círculos humanísticos dos inícios da modernidade, o científico, etc.

É possível que a comunidade de vida e a comunidade de sentido coincidam tanto quanto são as expectativas da sociedade. Nesse caso, a vida social e a existência do indivíduo se desenvolvem de maneira habitual e quase de forma autoevidente. Isso não significa dizer que o indivíduo não possa experienciar problemas existenciais. É possível mesmo que, a despeito da coincidência entre a comunidade de vida e a comunidade de sentido, o indivíduo não se sinta muito satisfeito com o seu destino. Todavia, nessas condições “normais”, ele “sabe”, ao menos, como o mundo é, como deve ser seu comportamento nesse mundo, o que pode esperar, etc. O pluralismo que caracteriza os modos de vida das sociedades modernas suspeita desse “conhecimento” autoevidente. Mundo, sociedade, vida e identidades são continuamente problematizados com mais vigor, e podem ser submetidos a várias interpretações, cada uma das quais está relacionada às suas próprias expectativas de ação. Nenhuma interpretação, nenhuma perspectiva podem ser assumidas como únicas em validade ou serem consideradas inquestionavelmente corretas.

 

3. O papel da linguagem na institucionalização

 

Já aludi, alhures, ao papel que a linguagem simbólica desempenha na constituição das experiências humanas. Entretanto, é preciso descer a pormenores sobre como a linguagem simbólica e como o simbolismo contribuem fundamentalmente para a constituição significativa da ordem social. A linguagem objetiva as experiências partilhadas e as torna acessíveis a todos os que vivem numa comunidade linguística. A linguagem é a base da constituição do acervo social do conhecimento. A linguagem fornece os meios indispensáveis para a objetivação de novas experiências, permite que elas sejam incorporadas ao estoque já existente de conhecimento. A linguagem é o meio mais importante mediante o qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade.

Tendo em vista a necessidade de compreender o papel que a linguagem desempenha na construção de uma realidade social significativa, de um mundo humano comum dotado de significados, é preciso reiterar o fato de que o animal humano é um animal semiótico que se expressa no mundo por meio de objetivações, isto é, ele manifesta a si mesmo nos produtos de sua atividade. Tais produtos estão à disposição tanto dos produtores quanto dos outros indivíduos como elementos integrantes de um mundo comum. Essas objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos de seus produtores. A produção humana da significação é a produção de signos ou símbolos. A linguagem não somente permite aos homens dispor de símbolos bastante abstraídos da experiência diária, como também povoa a vida cotidiana desses símbolos e os apresenta como elementos objetivamente reais. A linguagem simbólica e o simbolismo são, pois, componentes essenciais da realidade da vida cotidiana. Como bem pontuam Berger & Luckmann, “vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias”. (2007, p. 61).

A linguagem, portanto, longe de se reduzir a um meio de comunicação, opera a objetivação da experiência, ou seja, a sua transformação em objeto de conhecimento acessível a todos. Assim, permite que essa experiência transformada em conhecimento seja incorporada ao conjunto amplo de tradições por via de instrução moral, da alegoria religiosa, dos sermões, etc. Toda a experiência humana e suas significações mais amplas podem ser ensinadas a todas as gerações, ou mesmo difundidas para uma coletividade inteira.

A linguagem permite-me a imediata objetivação de minha experiência atual. Ela também tipifica as experiências, possibilitando-me agrupá-las em amplas categorias na base das quais elas têm sentido não só para mim, mas também para os outros. A linguagem também torna anônimas as experiências; elas podem ser repetidas por qualquer pessoa definida pela categoria fornecida pela linguagem. Por exemplo, se brigo com minha sogra, esta experiência subjetivamente única e concreta tipifica-se linguisticamente sob a categoria [ABORRECIMENTO COM MINHA SOGRA]. Esta tipificação torna a experiência dotada de sentido para mim e para os outros e, possivelmente, para a minha sogra. Assim, essa mesma tipificação ganha anonimato. Qualquer pessoa (na categoria de genro) pode ter aborrecimento com a sogra. Destarte, minhas experiências biográficas estão sendo continuamente categorizadas em ordens gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais. A linguagem, portanto, vai constituindo a significação da realidade do mundo na medida em que constrói esquemas de classificação ou campos semânticos, que são zonas de significação linguisticamente circunscritos dos quais fazem parte o léxico e a gramática. Assim, construindo esquemas de classificação ou campos semânticos, a linguagem permite diferenciar objetos em gênero e em número; disponibiliza formas para realizar enunciados de ação por oposição a enunciados de “ser” (estado), modos de marcar grau de intimidade social, etc. É assim que se vai constituindo um mundo com uma rica coleção de significados que me serão úteis e indispensáveis para a ordenação de minha experiência social. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes à minha ocupação constitui outro campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos de rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência tanto biográfica quanto histórica pode ser objetivada, conservada e acumulada. A acumulação é seletiva, pois os campos semânticos determinam aquilo que será retido e o que será tratado como parte da experiência total do indivíduo e da sociedade. Por força dessa acumulação de experiências objetivadas, um acervo de conhecimento social se constitui e é transmitido de uma geração a outra. Ademais, ele torna-se utilizável pelo indivíduo na vida cotidiana. Assim, se forma o que chamamos de senso comum de uma sociedade ou cultura:

“Vivo no mundo do senso comum da vida cotidiana equipado com corpos específicos de conhecimento. Mais ainda, sei que outros partilham, ao menos em parte, deste conhecimento, e eles sabem que eu sei disso. Minha interação com os outros na vida cotidiana é por conseguinte constantemente afetada por nossa participação comum no acervo social disponível do conhecimento”. (ibid., p. 62).

 

É extremamente importante sublinhar a propriedade que tem a linguagem simbólica de estabelecer relações, de edificar pontes entre diferentes zonas dentro da realidade da vida, integrando-as em uma totalidade dotada de sentido. A linguagem tem a função de tornar presente uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do “aqui e agora”. Em virtude da função de simbolização da linguagem, uma vasta acumulação de experiências e significados podem ser objetivados no “aqui e agora”, ou seja, nos espaços de vivências atuais dos indivíduos. Os signos e os símbolos fazem o homem habitar num mundo significativamente estruturado distinto do mundo da experiência diária e de outros mundos nos quais vivem outras espécies de animais. Assim, segundo Berger & Luckmann,

 

“A linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida. A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas simbólicos historicamente mais importantes deste gênero”. (ibid., p. 61).

 

 

Processos simbólicos são justamente “processos de significação que se referem a realidades diferentes das pertencentes à experiência da vida cotidiana” (ibid., p. 131). A “magia do símbolo” consiste em criar um mundo outro de signos, símbolos, palavras, significados que se sobrepõem ao mundo de nossa experiência sensível; um mundo “ficcional” (inventado), mas nem por isso menos “real”. Ao contrário, esse mundo estruturado pelos processos simbólicos tem uma concretude, uma materialidade histórica que se impõe a todos como a única realidade verdadeiramente acessível e experimentável.

 

3.1. Linguagem e legitimação

 

A legitimação não apenas diz ao indivíduo por que ele deve realizar uma ação e não outra; diz-lhe também por que as coisas são o que são, são como são. O conhecimento precede, pois, os valores na legitimação das instituições. A função da legitimação é produzir novos significados que servirão para integrar e organizar significados já produzidos e ligados a instituições diferentes. A função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessíveis e subjetivamente aceitas as objetivações que já foram institucionalizadas. A legitimação só se torna necessária quando as objetivações da ordem institucional histórica têm de ser transmitidas a uma geração seguinte. Como o caráter evidente das instituições não pode mais ser conservado pela memória e pelos hábitos do indivíduo, como a unidade de historia e biografia foi rompida, faz-se mister restaurá-la, elaborando explicações e justificações que tornem inteligíveis ambas as dimensões dessa unidade. A legitimação consiste nesse processo de explicação e justificação da ordem institucional e de validação cognoscitiva de seus significados. A legitimação não envolve apenas “valores”, mas sempre “saberes”, “conhecimento”.

Graças à linguagem, é possível assegurar a superposição da lógica sobre o mundo social. O edifício das legitimações erige-se sobre a linguagem e dela se utiliza como seu principal instrumento. Daí se segue que a “lógica” atribuída à ordem institucional integra o acervo socialmente disponível de conhecimento, o qual é tomado como natural e certo. Na medida em que o indivíduo bem socializado “sabe” que seu mundo social é uma totalidade sólida e coerente, ver-se-á obrigado a explicar o funcionamento dele nos termos desse “conhecimento”. Não surpreende que seja comum, consequentemente, que quem quer que atente para qualquer sociedade admita que suas instituições efetivamente funcionam e se articulam de modo tal como presumivelmente devem ser.

A legitimação se constitui em diferentes níveis. Já se pode encontrar uma legitimação incipiente, tão logo um sistema de objetivações linguísticas da experiência humana seja transmitido. Por exemplo, a aquisição do vocabulário de parentesco legitima a estrutura do parentesco. Em outras palavras, o vocabulário de parentesco inclui explicações legitimadoras que tornam possível que uma criança aprenda que outra criança é primo. Essa informação, por sua vez, imediatamente, legitima a conduta dela com relação aos “primos”. Como disse, a legitimação se dá em diferentes níveis. Para os fins desta exposição, será suficiente considerar o quarto nível da legitimação, a saber, o dos universos simbólicos.

 

3.1.2. Os universos simbólicos

 

Os universos simbólicos consistem em “corpos de tradição teórica que integram diferentes áreas de significação e abrangem a ordem institucional em uma totalidade simbólica” (ibid., p. 131). Como se pode depreender dessa passagem, a propriedade essencial dos universos simbólicos é a de serem uma matriz de significados objetivados totalizantes da ordem social. O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. Por força de seu poder totalizador, todos os setores da ordem institucional acham-se integrados num quadro de referência global, que constitui, então, um universo no interior do qual toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. Portanto, como observam Berger & Luckmann, “a sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro desse universo”. (ibid., p. 132).

O universo simbólico é evidentemente construído por meio de objetivações sociais. Não obstante, sua capacidade de produção de significações excede em muito o domínio da vida social, de tal sorte que o indivíduo pode “situar-se”, “posicionar-se, “localizar-se” nele mesmo em suas mais solitárias experiências. Por isso, o indivíduo que acredita que cumpre única e exclusivamente a si a tarefa de “dar sentido à sua vida” encontra-se num estado de habitual autoengano, porquanto os significados de suas experiências subjetivas mais solitárias já estão disponíveis como componentes integrantes de universos simbólicos em cujas redes de significação elas já foram “capturadas”. Essa condição é inescapável a todos nós, incluindo os religiosos que acreditam que o sentido da vida provém de Deus. O universo simbólico desempenha funções legitimadoras extremamente importantes, tais como oferecer uma ordem para a apreensão subjetiva da experiência biográfica, ordenar as diferentes fases da biografia, ordenar a história e, de especial interesse para meus propósitos, proteger os indivíduos contra o temor da morte. Vou-me ocupar do esclarecimento dessas duas funções legitimadoras do universo simbólico: a de proteger contra o terror da morte e a de ordenar a história.

  

3.1.2.1. O universo simbólico e o terror da morte

 

Consoante notam Berger & Luckmann, “a morte estabelece (...) a mais aterrorizadora ameaça às realidades asseguradas da vida cotidiana”. (ibid., p. 138). Ora, se a morte ameaça de modo terrificante o sentimento de segurança infundido em nós pela concretude significativa da vida cotidiana, como poderia “a perspectiva da morte”, como sugere Baggini, dar sentido à nossa vida? Quando tomamos a morte como experiência da morte dos outros, do desaparecimento definitivo e irrevocável deles da convivência com os demais indivíduos num mundo a cuja chegada é vivida subjetivamente como “uma queda no inquietante”, como bem descreveu Sloterdjik, a morte é concebida pelo indivíduo como uma situação limite, por excelência. Por isso, todas as legitimações da morte – e aqui devemos pensar, sobretudo, nas narrativas mitológicas, metafísicas, religiosas, mas também nas narrativas filosóficas, literárias, etc. – cumprem a mesma tarefa essencial de equipar o indivíduo com as crenças e consolações necessárias para que ele leve adiante uma vida psicologicamente bem ajustada às demandas da sociedade, mesmo depois da morte de outros significativos, como um filho, um pai ou amigo querido. Além disso, as legitimações da morte atendem a necessidade de garantir que o indivíduo antecipe a inevitabilidade de seu destino mortal, sem que seja tomado por um desespero profundo e paralisante que venha a perturbar seu desempenho contínuo nas rotinas da vida cotidiana de sua sociedade.

Do que precede segue-se que o fenômeno da morte é integrado a um universo simbólico, é assimilado nas malhas de seus significados, de modo que o universo simbólico possa defender o indivíduo do lancinante terror da morte. É na legitimação da morte que o universo simbólico exibe mais claramente o seu poder de transcendência, garantindo o primado das objetivações sociais sobre o fato biológico e inescapável da morte; primado da contingência sobre a necessidade. Portanto, por meio de seus significados, a ordem institucional representa a couraça que protege o indivíduo contra o terror dilacerante da morte. Essa proteção institucional contra o terror da morte pode realizar-se pelo recurso a interpretações mitológicas, religiosas ou metafísicas da realidade, ou no caso de um indivíduo ateu, pode expressar-se na forma de elaborações políticas sobre o progresso da humanidade, a história revolucionária, etc. Também muitas formas de expressão artísticas servem bem a esse propósito de nos proteger contra o assalto do desespero mortificante.

 

3.1.2.2. O universo simbólico e a história

 

O universo simbólico também cumpre a função de ordenar a história, ou seja, de localizar todos os acontecimentos coletivos em uma unidade de sentido, que inclui o passado, o presente e o futuro. Em referência ao passado, o universo simbólico constrói uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados numa coletividade. Em relação ao futuro, fornece um quadro de referência comum à luz do qual ações individuais se projetam. Assim, o universo simbólico “liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, servindo para transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual”. (ibid., p. 140). Todos os membros de uma sociedade, portanto, por força da função de integração totalizadora do universo simbólico, consideram-se participantes de um universo que possui um sentido, que existia antes de terem nascido e que perdurará depois de eles morrerem (o que não significa que muitos não venham a sofrer um profundo abalo se lhe invadirem a consciência o sentimento de sua insignificância na vastidão desse universo que perdurará depois da sua morte). Segundo Berger & Luckmann, “ a legitimação da ordem institucional enfrenta também a contínua necessidade de manter encurralado o caos. Toda a realidade social é precária. Todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141, grifo meu). O universo simbólico integra e unifica todos os processos institucionais separados. A sociedade inteira, de agora em diante, se dota de sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados em um mundo compreensivamente dotado de sentido.

Considerando-se tudo que se expôs até aqui, convém assinalar as seguintes conclusões:

 

1) As origens de um universo simbólico repousam sobre a capacidade do homem de autoprodução;

2. O homem, em sociedade, é construtor do mundo, porque é constitucionalmente aberto para o mundo;

3) A abertura do homem para o mundo acarreta um conflito entre ordem e caos;

4) O homem, exteriorizando-se, constrói o mundo no qual vive e se exterioriza a si mesmo;

5) No processo de sua exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados;

6) Os universos simbólicos, uma vez que se apresentam como a totalidade da realidade humanamente dotada de sentido, apelam para o cosmo inteiro, para dar validade significativa à existência humana. Assim, os universos simbólicos constituem as extensões máximas da projeção humana dos significados humanos.

 

Por fim, gostaria de sublinhar a conclusão central a que nos conduzem toda essa trama de reflexões que dá corpo a este ensaio: o sentido da vida é já um momento dos processos de objetivação da ordem social e um elemento das reservas históricas de sentido. O sentido da vida não é elemento da jurisdição da vontade de uma divindade. Tanto “o sentido da vida” quanto Deus e o “sentido metafísico” são ficções (invenções) da engenhosidade desse animal semiótico e fabulador que é o homo sapiens.

Não posso levar a cabo este texto, sem que antes dê a conhecer a contribuição, bastante relevante, do filósofo Castoriadis para elucidação da problematicidade dos temas que me ocuparam até aqui.

 

4. Castoriadis e a instituição imaginária da sociedade

 

Em seu A instituição imaginária da sociedade (1982, p. 159), Castoriadis define a instituição como “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”. Ele adverte que as instituições não se reduzem ao simbólico, mas admite também que elas só podem existir no simbólico, porque “são impossíveis fora de um simbólico” (ibid., p. 142). Cada instituição constitui sua rede simbólica.

A instituição da sociedade resulta da interação entre dois domínios: o simbólico e o imaginário. O imaginário significa tanto que uma coisa é inventada quanto que envolve a possibilidade de deslocamento, de deslizamento de sentidos. Assim, em função do imaginário, símbolos já disponíveis podem receber significados outros diferentes de seus significados “convencionais”, “usuais”. Tanto num caso quanto no outro, o imaginário se separa do real. O imaginário não pode existir sem o simbólico: o imaginário deve se servir do simbólico não só para exprimir-se, mas também para “existir”. Inversamente, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária, ou seja, a capacidade de ver em uma coisa aquilo que ela não é, de vê-la diferente do que é. Ora, quando pensamos no símbolo, pensamos numa relação permanente entre dois termos, numa relação em que um dos termos (o símbolo) representa (está no lugar de) outra coisa. O que mantém a fixidez e, ao mesmo tempo, a flexibilidade do vínculo entre o significante e o significado, no símbolo, o que mantém a rigidez do vínculo, na maior parte do tempo, entre o símbolo e a coisa, é o imaginário efetivo. O simbólico não se identifica totalmente com o imaginário, já que encerra um componente real-racional: o simbólico representa o real – ou é indispensável para pensar e para agir. Todavia, esse componente é “tecido inextricavelmente com o componente imaginário efetivo”. (ibid., p. 155).

Portanto, para Castoriadis, as instituições encontram sua fonte no imaginário social. É no imaginário que a sociedade “procura o complemento necessário para a sua ordem” (ibid., p. 156). O recurso ao imaginário atende a necessidade de produzir significações que invistam de sentidos e fundamentos a ordem social. Esse imaginário se imiscui com o simbólico, como condição necessária para a ordenação da sociedade, para a constituição de sua ordem, e com o econômico-funcional, sem cuja relação não poderia sobreviver. Não custa lembrar que a economia, a política e a ciência são os grandes campos funcionais da sociedade. As instituições não são simplesmente redes simbólicas; elas, de fato, formam uma rede simbólica, mas essa rede, por definição, remete a algo que não é o símbolo.

Se o homem é o construtor do mundo social, segue-se, necessariamente, que ele é criador. Portanto, no processo de constituição da ordem institucional da sociedade, há criação! A criação “pressupõe (...) a capacidade de dar-se aquilo que não é (o que não é dado na percepção ou o que não é dado nos encadeamentos simbólicos do pensamento racional já constituído).” (ibid., p. 161). Por isso, como bem nos chama a atenção Castoriadis, “o essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui (ibid., p. 162). A história, portanto, não seria possível sem a imaginação criadora, que cria um imaginário radical, que se manifesta indissoluvelmente no fazer histórico, e um universo de significações. Por isso, estou de acordo com Castoriadis, quando diz:

 

“A instituição da sociedade é toda vez instituição de um magma de significações imaginárias sociais, que podemos denominar um mundo de significações. Porque é o mesmo dizer que a sociedade institui cada vez o mundo ou o seu mundo como mundo e dizer que ela institui um mundo de significações, que ele se institui instituindo o mundo de significações que é o seu e correlativamente ao qual somente um mundo existe e pode existir para ela.” (ibid., p. 404, grifo meu).

 

 

 

4.1. Imaginário efetivo e imaginário radical

 

O mundo social é cada vez constituído e articulado em função de um sistema de significações. Essas significações existem, uma vez constituídas, na forma de um imaginário efetivo (o imaginado). Essas significações configuram o quadro de referência em relação ao qual cada sociedade institui o seu simbolismo, sobretudo seu simbolismo institucional, e em relação ao qual ela determina os fins aos quais subordina a sua “funcionalidade”.

A funcionalidade obtém seu sentido fora de si mesma; e o simbolismo refere-se, necessariamente, a alguma coisa que não é o simbólico, e que também não é somente o real-racional. Assim, é o imaginário que dá à funcionalidade de cada instituição seu modus operandi específico, que sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas. O imaginário é um estruturante originário, criação de cada época histórica; é a singular maneira de viver dessa época, a singular maneira de ver e fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele. O imaginário é o significado-significante central, fonte de tudo que se dá cada vez como sentido indiscutível e tacitamente aceito. É também o suporte das articulações e das distinções do que vale, do que importa e do que não vale, do que não importa. É a origem da ampliação da existência dos objetos individuais e coletivos de investimento prático, afetivo e intelectual. Certamente, nenhuma sociedade pode existir se não organiza a produção de sua vida material e sua reprodução enquanto sociedade, mas essa organização material não poderia conservar-se e funcionar sem o suporte do componente imaginário-simbólico. Por isso, vale salientar:

 

“Tudo o que se nos apresenta no mundo social-histórico está indissoluvelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos, o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade, os inumeráveis produtos materiais, sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (ibid., p. 142).

 

Como nota Castoriadis, todo simbolismo é “diacrítico”, ou seja, um signo só pode emergir como signo sobre o fundo de alguma coisa que não é signo ou que é signo de outra coisa. Mas isso não nos esclarece sobre como determinar corretamente por onde deve passar a fronteira de cada vez: “nada permite determinar as fronteiras do simbólico”. (ibid., p. 144). É certo, contudo, que um símbolo não se impõe como uma necessidade natural, tampouco pode deixar de fazer referência ao real. Segundo o autor, “o histórico só existe cada vez em uma estruturação trazida por significações cuja gênese nos escapa como processo compreensível, visto que ela pertence ao imaginário radical” (ibid., p. 184). Se o imaginário efetivo recobre as significações institucionalmente já existentes, o que é o imaginário radical?

imaginário radical é a redução do imaginário à capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem. Em outras palavras, o imaginário radical é o momento de dominância da imaginação como matriz criadora e fundadora da ordem social. O imaginário radical é o imaginário reduzido à faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção ou nunca o foram). É nesse sentido que podemos falar de Deus como um imaginário religioso, ou como uma ficção do imaginário radical religioso; uma “ficção” que integra, no entanto, o imaginário efetivo da ordem social.

Também Castoriadis se refere à reificação da ordem institucional, mas o faz usando o termo alienação. A alienação é, para ele, a autonomização da dominância do momento imaginário na instituição que enseja a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade. A autonomização da instituição encarna-se na materialidade da vida social, nela se exprime, mas supõe sempre que a sociedade vive suas relações com as suas instituições ignorando no imaginário das instituições seu próprio produto. No trecho abaixo, Castoriadis, por meio de um encadeamento de questionamentos, convida-nos a meditar procurando suscitar-nos certo ‘admirar-se’ em face do fato de que o mundo ocidental e a vida individual de cada habitante desse mundo histórico encontram um solo firme de significados “perenes” que foram produzidos na confluência de duas matrizes de imaginário cultural. E até hoje sentimos as influências do sonho judaico-cristão e do sonho greco-romano. Para o bem ou para o mal, os seres humanos são adoradores de suas “ficções”; e, em nome delas, eles, ao longo da história, vêm lutando para conservá-las contra a voracidade do tempo, ou contra as intempéries da ordem natural; em nome das ficções desse imaginário fundante da vida social, dessas criações de sua imaginação, os homens travaram guerras, cometem homicídios, infanticídios, feminicídios, deicídios. Loucura da condição humana: adorar suas ficções até o ponto de oprimir, escravizar e matar em nome delas! E em nome dessas ficções judeus foram massacrados, cristãos mataram e foram mortos, cabeças ainda são decapitadas, impérios dizimaram civilizações inteiras, grupos humanos perseguem, torturam e matam outros grupos divergentes politicamente, ou depredam lugares onde se cultua uma religião diferente, etc. Todo um mar de sangue e de genocídios inunda a história humana em nome da necessidade doentia de conservar, da prática insana de impor significações imaginárias, ficções da imaginação criadora de um animal desnaturado e excêntrico que arrasta sua existência embebida num profundo torpor, que vive “aprisionado” no esquecimento de que vive numa rede de símbolos e significados que ele mesmo teceu.

 

“Por que, de todas as tribos pastorais que erraram no segundo milênio antes de nossa era no deserto entre Tebas e Babilônia, somente uma escolheu expandir ao Céu um Pai inominável, severo e vingativo, fazendo dele o único criador e o fundamento da Lei e introduzindo assim o monoteísmo na história? E por que, de todos os povos que fundaram cidades na bacia, mediterrânea, somente um decidiu que existe uma lei impessoal que se impõe até aos Deuses, estabeleceu-a como curso coerente e quis fundamentar sobre o Logos as relações entre os homens, inventando, assim, e em mesmo gesto, filosofia e democracia? Como explicar que três mil anos depois, sofremos ainda as consequências do que sonharam os Judeus e os Gregos? Por que e como este imaginário, uma vez estabelecido, ocasiona consequências próprias, que vão além de seus “motivos” funcionais e mesmo às vezes os contrariam, que sobrevivem durante muito tempo após as circunstâncias que os fizeram nascer – que finalmente mostram no imaginário um fator autonomizado da vida social”. (ibid., p. 156).

 

Segundo Castoriadis, como toda religião, a religião mosaica instituída está baseada num imaginário. Enquanto instituição, deve munir-se de sanções; enquanto religião, deve instituir ritos. Mas ela não pode existir nem como religião, nem como instituição, se, em volta do imaginário central, não começa a expandir um imaginário secundário. Assim, quando imagina que "Deus criou o mundo em sete dias”, aproveita uma determinação terrestre (talvez “real”, mas talvez já imaginária), exportada para o Céu, sob a forma de sagração da semana. O sétimo dia torna-se agora o dia da adoração de Deus e do repouso obrigatório. Daí seguem inúmeras consequências. Basta referir uma delas: o apedrejamento do pobre homem que apanhava lenha no dia do Senhor.

 

Uma nota final

 

Ao cabo deste longo trabalho, sinto-me combalido por um enfado corrosivo, radicalmente diferente do sentimento de efusão e espanto que me mobilizava, inicialmente, para escrever este texto. As pesquisas que fiz e que precederam à elaboração deste ensaio fizeram-me imaginar-me como alguém que, à semelhança de Freud em viagem aos Estados Unidos, poderia dizer “lhes trago a peste”. Eis então que lhes apresento a peste niilista: ela corrói, carcome subterraneamente as ficções instituídas pela imaginação humana, para que, conclamando os homo sapiens ao esclarecimento, à Lucidez, ao “despertar de seu sono dogmático”, eles se redescubram na história como os verdadeiros “criadores”, inventores das significações de um mundo artificial que se edifica “em face do caos” e num ponto insignificante da densa escuridão da “imensidão dos espaços” que os ignoram.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

 

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

 

_______________. Modernidade, Plueralismo e Crise de sentido: a orientação do homem moderno. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.