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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"Na língua, só existem diferenças" (Saussure)


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O valor do signo linguístico
Revisitando Saussure


Este texto vem preencher uma lacuna quando da consideração que eu fiz, em outro momento, acerca da contribuição de Saussure para o estabelecimento da Linguística como a ciência que se ocupa da língua. Com vistas a preencher essa lacuna, impõe-se-me a necessidade de tratar do conceito de valor do signo linguístico no contexto de seu trabalho enquanto pensador que lançou os fundamentos da Linguística moderna.
Antes de me debruçar sobre a discussão sobre o conceito de valor na abordagem saussuriana da língua, procederei a uma contextualização teórica dessa abordagem. Nessa contextualização, delinearei o escopo epistemológico do estruturalismo em Linguística e esclarecerei a noção de relações sintagmáticas e relações paradigmáticas, cuja compreensão é indispensável para que a noção de valor linguístico seja compreendida em toda a sua importância epistêmica.


1. Estruturalismo: breves apontamentos

Gostaria de começar, pois, enfatizando que não devemos falar de um único conceito para o termo estruturalismo. Em diversas áreas do saber humano, tais como em antropologia, em sociologia, em psicologia, alguma teoria estruturalista orientou a abordagem dos problemas submetidos à investigação.
O uso do termo estruturalismo para caracterizar a abordagem saussuriana da língua esteia-se no pressuposto de que, a despeito de as diversas escolas linguísticas que podem ser reunidas sob o rótulo estruturalistas apresentarem diferenças em termos de método e conceitos, todas elas se orientaram pela tese de que a língua é uma estrutura, é um sistema. A tarefa do linguista, nesse sentido, consiste, pois, em analisar a organização e o funcionamento dos elementos constituintes desse sistema.
O desenvolvimento da linguística estruturalista representa, deveras, um acontecimento bastante significativo no pensamento científico do século XX. A própria compreensão dos incontáveis avanços no quadro das ciências humanas nesse século seria impossível, se não compreendêssemos a elaboração do conceito de estrutura desenvolvido a partir das investigações do fenômeno da linguagem. Toda uma geração de pensadores, entre os quais se acham Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes evidenciam, em suas obras, a contribuição pioneira de Ferdinand de Saussure, relacionada à organização estrutural da língua.
É no Curso de Linguística Geral, obra póstuma que, na verdade, resultou de uma reconstrução do pensamento de Saussure a partir de notas redigidas por alunos de três cursos que ele ministrou entre 1907 e 1911, na Universidade de Genebra, que se topam os fundamentos que tornariam possível o desenvolvimento de um modelo teórico-metodológico estruturalista. À luz desse modelo de análise linguística, a língua é considerada um sistema articulado de signos, uma estrutura, na qual, à semelhança do que sucede no jogo de xadrez (imagem abundantemente utilizada por Saussure), o valor de cada peça não é determinado por sua materialidade, não existe em si mesmo, mas é fixado no interior do jogo. Veremos ainda o que Saussure entende por valor de um signo linguístico, na seção destinada exclusivamente para o tratamento desse tema.
Ainda no que toca ao estruturalismo, é preciso notar que ele teve um impacto enorme nos estudos da linguagem, no Brasil, durante os anos de 1960. Nesse período, o estruturalismo já era a escola dominante. Foi nessa época que a Linguística foi reconhecida, em nosso país, como disciplina autônoma. Por volta de 1970, o estruturalismo já havia se estabelecido, no Brasil, como a orientação teórica mais importante no âmbito dos estudos da linguagem. O estruturalismo contribuiu bastante para criar um novo tipo de estudioso – o linguista. Não é que o linguista inexistisse antes da consolidação do estruturalismo no Brasil, mas sua existência até então tinha de ser afirmada em contraste com duas figuras mais antigas: a do gramático, cujo interesse repousa na sistematização dos conhecimentos que resultam do uso considerado socialmente “correto” da língua; e a do filólogo, cuja preocupação reside no estudo das fases antigas da língua e na análise dos textos representativos dessas fases. O linguista, por sua vez, é um cientista da linguagem, cuja preocupação reside em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua, sem fazer qualquer juízo de valor acerca do uso de suas variedades.
É certo que, atualmente, passados mais de 50 anos desde o impacto que exerceu estruturalismo nos estudos linguísticos desenvolvidos no Brasil, o linguista não precisa mais justificar sua própria existência em face de outros estudiosos da linguagem. A Linguística atual se caracteriza por uma grande diversidade de escolas, no entanto, malgrado o fato de haver orientações teóricas ainda muito prestigiadas (como o gerativismo, o “funcionalismo” e a análise do discurso), não existe uma orientação teórica hegemônica que coligaria os mais diferentes interesses dos linguistas.
O conhecimento intuitivo que o falante nativo tem de sua língua materna recobre não só o saber a respeito das peças (signos) disponíveis, mas também das suas possibilidades de organização, de articulação, de distribuição na cadeia sintagmática. O que regula o funcionamento das unidades que compõem o sistema linguístico são as regras e os princípios que internalizamos muito cedo na fase da aquisição da linguagem e que compõem uma gramática internalizada, cujo domínio intuitivo nos permite produzir e compreender um conjunto praticamente infinito de enunciados em nossa língua materna.
A abordagem estruturalista assume que a língua é forma, isto é, estrutura, e não substância (a matéria a partir da qual ela se manifesta). É claro que há o reconhecimento da necessidade da análise da substância para que seja possível formular hipóteses sobre o sistema; afinal, um sistema que não apresenta qualquer manifestação material, que não seja expresso por algum tipo de substância, não desperta qualquer interesse científico, porque não pode sequer ser investigado.
Uma vez que, para o estruturalismo, o que importa é investigar a estrutura da língua, esta deve ser estudada em si mesma e por si mesma. O estruturalismo renuncia a toda preocupação com fatores extralinguísticos, tais como as relações entre língua e sociedade, língua e cultura, língua e distribuição geográfica, entre outros. O linguista estruturalista está unicamente interessado na descrição das relações internas entre os signos do sistema linguístico. Portanto, o recorte teórico do estruturalismo cria um único objeto de estudo: a langue, um sistema de signos homogêneo e abstrato.


2. Relações sintagmáticas e relações paradigmáticas[1]

Entre as dicotomias que nos legou Saussure como partes de seu projeto de fundamentação da nova ciência – a Linguística -, se topam as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas. Saussure sustentou que toda sincronia se relaciona a dois eixos em torno dos quais se realiza a língua: o eixo paradigmático ou das associações e o eixo sintagmático ou das relações entre termos coexistentes.
Urge esclarecer que por sintagma Saussure entende uma unidade maior que se compõe de duas ou mais unidades consecutivas.[2] Mattoso Câmara Jr., inspirado na definição saussuriana, definirá o sintagma como uma construção resultante da combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior. Assim, em consonância com Saussure, uma forma como reler, é um tipo de sintagma, pois que resulta da combinação dos elementos “re-“ (prefixo) e “ler” (radical). Portanto, para Saussure, tanto como para Mattoso Câmara, o sintagma pode identificar-se com o nível do vocábulo.
Tendo esclarecido a noção de sintagma, passo a considerar o que são as relações sintagmáticas. O eixo sintagmático baseia-se no caráter linear do signo linguístico, ou seja, no fato de ser impossível pronunciar dois signos ao mesmo tempo. É na cadeia sintagmática que um elemento linguístico passa a ter valor, em virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, ou com ambos. O eixo sintagmático recobre o domínio das relações entre unidades linguísticas coexistentes; nesse eixo, os signos articulam-se entre si na cadeia linear de fala. Por outro lado, as relações paradigmáticas recobre o domínio das relações associativas e suas unidades estão numa relação de exclusividade: se uma unidade se realiza sintagmaticamente, a outra está, necessariamente, ausente. O paradigma, portanto, constitui uma espécie de “banco de reservas” da língua. O paradigma recobre o conjunto de unidades suscetíveis de aparecer num mesmo ambiente estrutural. Graficamente, os eixos sintagmático e paradigmático se cruzam e funcionam numa inter-relação necessária. Em outras palavras, a língua funciona mediante a inter-relação necessária entre os dois eixos.





Veja-se que as formas foi, era e ficou são passíveis de ocupar a posição da forma  “é” no eixo das relações sintagmáticas, e o mesmo vale para as formas sincero, dedicado e pobre, suscetíveis de preencher o lugar de “honesto”. A presença de “honesto” na oração “Pedro é honesto” resulta de uma seleção operada entre as unidades virtualmente disponíveis no eixo paradigmático. Portanto, as relações paradigmáticas supõem relações entre unidades alternativas.









As relações paradigmáticas supõem uma oposição entre elementos que formam “uma série mnemônica virtual”. De fato, as unidades linguísticas estão organizadas em classes de acordo com suas propriedades semântica, sintática e morfológica como partes do léxico mental dos falantes. Esse conjunto de unidades linguísticas virtualmente existentes e passíveis de ser comutadas com outras num mesmo ambiente sintático recobre o eixo das relações paradigmáticas; em uma palavra, constitui o paradigma.




3. A noção de valor linguístico

Ainda que possamos apreender o alcance da noção de valor também no eixo das relações paradigmáticas, é no eixo das relações sintagmáticas que essa noção se esclarece de modo mais consistente com a concepção saussuriana de língua como sistema de signos. O termo sistema é sinônimo de estrutura, muito embora Saussure tenha preferido o uso do vocábulo sistema em vez de estrutura. Estrutura é o conjunto de relações que se estabelecem entre as partes de um todo, qualquer que seja esse todo.  Da mesma forma que da relação sistemática entre os ossos do corpo humano resulta o esqueleto, da relação sistemática entre os signos linguísticos resulta a estrutura.  Quando Saussure diz que a língua é forma e não substância, ele quer dizer que a língua é sistema, é estrutura; ele quer dizer que a linguística deve-se ocupar com a descrição das relações recíprocas e sistemáticas entre os signos linguísticos. A fim de que a língua sirva à interação social, é necessário que os enunciados que produzimos sejam dotados de uma estrutura (forma), de uma ordem. O significado das construções linguísticas depende da organização interna de suas unidades, de seus signos. Quando comparamos (1) com (2), a seguir, percebemos que (1) é uma frase em português, ao passo que (2) é uma reunião aleatória de palavras.

(1) Hoje, eu não vou sair.
(2) *chocolate gosto  eu de sorvete.

O exemplo (1) constitui uma construção bem formada em português, porque suas unidades constitutivas se dispõem numa ordem prevista pela gramática dessa língua. Por outro lado, (2) não é sequer uma construção em português, já que carece de ordem (estrutura). Trata-se de uma sequência de signos aleatória. Portanto, no exemplo (1), temos uma frase em português, temos uma construção linguística dotada de uma estrutura, de uma organização interna estabelecida segundo um dos padrões de estruturação sintática previstos pelo sistema de regras que constitui a gramática da língua portuguesa. Para que uma construção seja dotada de significado e sirva à função de comunicação, ela deve apresentar uma estrutura, ou seja, suas unidades constitutivas devem-se organizar segundo um padrão gramaticalmente adequado. Veja-se que o exemplo (1) encerra a estrutura SN-SV. O SV se constitui de uma locução verbal formada pela combinação do auxiliar “vou” com o infinitivo “sair” Outras muitas formas são passíveis de ocupar a posição de “vou”, conforme ilustra o gráfico abaixo:
 

   



Embora possamos combinar preciso, posso e quero com o infinitivo “sair”, uma combinação com “estar” é gramaticalmente inaceitável[3]. Portanto, uma sequência como “eu estou sair” não obedece a nenhum padrão estrutural previsto em português. Qualquer falante nativo de português sabe (ainda que esse saber não seja do tipo declarativo) que o verbo “estar” combina-se com verbos terminados em –ndo para formar o que tradicionalmente conhecemos como locução verbal (cf. está chovendo, estou cantando). Uma construção como “Eu estou saindo” é gramaticalmente aceitável. Isso significa dizer que ela segue um padrão estrutural previsto pela gramática do português.
Por gramática, portanto, deve-se entender aqui o sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. A gramática disponibiliza as regras e os princípios que nos permitem organizar as unidades linguísticas para a construção de enunciados em nossa língua materna.  Quando Saussure propõe que a língua seja estudada enquanto sistema de signos que se articulam reciprocamente, é sobre a gramática, tal como definida acima, que ele quer que recaia o interesse analítico do linguista. O linguista deve se preocupar em descrever como a língua se organiza estruturalmente a fim de tornar possível a produção do sentido.
A fim de que possamos adentrar na discussão sobre o que significa o conceito de valor linguístico em Saussure, necessário é insistir em que, para o mestre genebrino, a langue é um sistema de signos. Um sistema é um conjunto organizado de elementos, no qual um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um elemento se define em relação com os demais.  No antigo regime monárquico, o que faz um rei ser rei é o fato de ele não ser um de seus súditos. Analogamente, em língua, o singular só existe em função do plural.  Portanto, o valor das unidades do sistema linguístico se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que o signo casa está no singular, porque existe a contraparte com a marca –s indicadora de plural – casas. Só podemos falar em morfema-zero - a ausência de marca em casa -, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s no signo casas. Em outros termos, o singular é expresso justamente pela ausência de marca, de modo que a forma singular é a forma não marcada. Em língua, a ausência de marca significa, mas só significa em oposição a uma forma que correlativamente apresenta uma marca. Nos substantivos, o masculino é a forma não marcada, mas só o é porque o feminino, em português, é a forma marcada (cf. menino x menina, garoto x garota, doutor x doutora, professor x professora).
Para Saussure, portanto, considerar a língua como sistema significa dizer que tudo na língua são oposições. São justamente as oposições ou diferenças que nos permitem construir uma gama diversa de conteúdos análogos de pensamento. A língua é um sistema de signos e a gramática é o mecanismo através do qual esse sistema funciona, opera. Vejamos mais um exemplo disso. Considerem-se as frases abaixo:



(3) Reprovar o aluno não agrada ao professor.
(4) A reprovação do aluno não agrada ao professor.



Destacou-se, em negrito, em cada uma das frases, o seu respectivo sujeito. Em (3), o sujeito é preenchido por uma oração de infinitivo – reprovar o aluno. Em (4), o sujeito é preenchido por um SN cujo núcleo é a forma nominalizada do verbo “reprovar” – “reprovação”. Note-se que, ao derivar reprovação de reprovar, ou seja, ao anexar o sufixo nominalizador “-ção” à base do verbo “reprovar”, a estrutura do sujeito se altera. Em (3), o sujeito oracional encerra um complemento desprovido de preposição – “o aluno”. Em (4), o que era complemento direto – o aluno – torna-se complemento nominal introduzido da preposição “de” – “a reprovação do aluno”. Em outras palavras, se a valência de “reprovar” prevê um actante 2 (à direita) sem preposição - X reprova Y -, a valência de “reprovação”, por outro lado, prevê um actante marcado formalmente com a preposição “de”: “a reprovação de Y”. Trata-se de um mecanismo bastante regular em português. Assim, dado um verbo ao qual se pode articular o sufixo “-ção”, a forma nominalizada resultante poderá combinar-se com um complemento introduzido pela preposição “de” (cf. a manutenção de, a atualização de, a informação de, a acusação de, etc.).  Assim, no sistema, a peça ‘N-ção’ (nome + -ção) se combina com um termo introduzido da preposição “de”. Qualquer que seja a alteração nessa forma de estruturação produzirá um resultado agramatical.


(4a) *A reprovação o aluno não agrada ao professor.


Uma vez que se verifique a desobediência das regras de organização das peças do sistema linguístico, haverá prejuízo no plano do conteúdo, tornando difícil a inteligibilidade do enunciado. Naturalmente, nenhum falante nativo de português produz (4a). É parte do conhecimento intuitivo do falante nativo de português saber construir enunciados com formas nominzalizadas terminadas em “-ção”.
Considerem-se, ainda, os exemplos abaixo:



(5) O menino é estudioso.
(5a) A menina é estudiosa.
(6) Os meninos são estudiosos.
(6a) As meninas são estudiosas.



No par (5)-(5a), ao comutar o substantivo de gênero masculino com a sua contraparte no gênero feminino, o adjetivo sofre modificação em sua forma para acomodar-se ao gênero do substantivo. No par (6)-(6a), ao comutar o substantivo masculino no plural com a sua forma feminina no plural correspondente, o adjetivo flexiona-se no feminino plural. Portanto, esse processo, que chamamos de concordância nominal, dá testemunho do funcionamento do sistema linguístico. As peças do sistema sofrem alterações em sua forma, isto é, suprimem ou recebem elementos para combinar-se com outras peças.  Há casos, conforme vimos com a nominalização em “-ção”, em que, para uma peça combinar-se com outra, é preciso que uma delas, a que governa o processo, selecione outra peça que será responsável pela combinação. É o que ocorre em (7) a seguir:


(7) Eu gosto de sorvete de chocolate.



O verbo gostar, para combinar-se com o seu complemento – “sorvete de chocolate”, seleciona necessariamente a preposição “de”, cuja função é justamente permitir a relação entre a forma “gostar” e seu complemento. Sem esse conectivo, o resultado é agramatical: * Eu gosto sorvete de chocolate.
O que Saussure entende por valor linguístico é justamente o conjunto de diferenças que constituem o sistema da língua. Um signo é o que os outros não são. O valor de um signo provém da situação recíproca dos signos na língua. Na língua, só existe a produção e a interpretação das diferenças. Por exemplo, se quisermos determinar o valor do fonema /b/, teremos de levar em conta as relações de oposição que ele estabelece com outros fonemas. Assim, se tomamos o par mínimo[4] ‘pote/ bote’, verificamos que os fonemas /b/ e /p/ se opõem com base nos traços [+ sonoridade] e [- sonoridade]. O som /b/ comporta o traço [+ sonoridade], enquanto o som /p/ é [- sonoro] (ou [+ surdo]).  Os fonemas /p/ e /b/ constituem um par mínimo, pois que há um contraste fenomênico entre eles, que é relevante para a distinção de significado entre palavras: presença x ausência de [sonoridade].
É, portanto, da relação que se estabelece entre dois signos que resulta o valor de cada um deles, bem como seu significado individual. Os elementos da língua só adquirem valor enquanto se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros. Não é, portanto, sua qualidade positiva e própria que os caracteriza, mas sua qualidade negativa, opositiva, diferencial.
Falar em valor linguístico é, antes de mais nada, ressaltar a natureza opositiva do signo. O que fundamenta a especificidade de cada signo linguístico é a maneira como a língua põe esse signo em contraste com todos os demais. O valor linguístico, portanto, calca-se sobre a ideia de contraste entre um signo com outros signos na cadeia sintagmática. A noção de valor para Saussure caracteriza a língua como uma rede de pares opositivos. Segundo Saussure, “na língua, só existem diferenças”. (2003, p. 139). Quando atentamos para o paradigma flexional dos verbos e dos nomes, compreendemos bem essa afirmação saussuriana. A primeira conjugação e a segunda conjugação derivam seu valor pela oposição das marcas “-ar” (da primeira conjugação) e “-er” (da segunda conjugação): vendar x vender. O futuro do presente se opõe ao futuro do pretério através da diferença entre as desinências modo-temporais “-rá (-re)” e “-ria” (cf. Ele vende, eu venderei x ele/eu venderia). Já o presente se opõe ao pretérito imperfeito porque, no presente, a desinência modo-temporal está ausente (morfema-zero); mas, no pretérito imperfeito, essa desinência é –va: estudaØ x estudava. No substantivo, o masculino se opõe ao feminino pela ausência de marca de gênero masculino e presença de marca no gênero feminino: meninoØ x menina. Quando a oposição se expressa pela presença vs. ausência de marca, dizemos que a oposição é privativa ou binária. Quando a oposição se expressa através de marcas equivalentes, como em “saberei” e “saberemos” (caso em que “-i”, que expressa a primeira pessoa do singular, se opõe a “-mos”, que expressa a primeira pessoa do plural), dizemos que a oposição é equipolente ou polar. Há também a oposição gradual, caso em que uma forma se opõe a outra em função da gradação de um dado traço, como em “pode x pôde”.
O princípio das oposições funcionais constitui a própria base do axioma estruturalista, segundo o qual cada unidade linguística só adquire valor a partir da oposição (substituição) e contraste (combinação) com outras unidades pertencentes ao mesmo nível gramatical.  A noção de valor linguístico caracteriza o fato de que a língua é um sistema cujos termos são todos solidários entre si. O valor de um signo resulta tão somente da presença simultânea de outros. Quer na esfera do significado, quer na esfera do significante, o valor de um signo é constituído unicamente de relações e diferenças com outros signos da língua. Por isso, segundo Saussure,


A língua (...) é comparável a uma folha de papel: o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro, assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento; ou o pensamento do som (...). (ibid., p. 15).



Apêndice


O estruturalismo norte-americano, cujo expoente foi Leonard Bloomfield, muito embora tenha se desenvolvido de maneira independente no momento em que o pensamento de Saussure começava a ser conhecido na Europa, encerra pontos em comum, malgrado as diferenças, com a proposta formulada por Saussure. O estruturalismo de Bloomfield, dominante, nos Estados Unidos, até aproximadamente  1950, se desenvolveu sob o rótulo de distribucionalismo ou Línguística distribucional.
Bloomfield estava interessado na elaboração de um sistema de conceitos destinados à descrição sincrônica de qualquer língua. Para tanto, ele assumiu os seguintes pressupostos teóricos:

a) cada língua apresenta uma estrutura específica;

b) essa estrutura se evidencia em três níveis – o fonológico, o morfológico e o sintático -, os quais se organizam hierarquicamente, com o fonológico na base e o sintático no topo;

c) cada nível é constituído de unidades de nível imediatamente inferior: a oração se constitui de sintagmas; os sintagmas, de palavras; as palavras, de morfemas; os morfemas, de fonemas;

d) a descrição de uma língua deve começar pela consideração das unidades mais simples, prosseguindo gradativamente à descrição das unidades mais complexas;

e) cada unidade linguística é definida em função de sua posição estrutural, de acordo com os elementos que a precedem  e que a seguem;
f) na descrição, é necessária absoluta objetividade, o que exclui o estudo da semântica do escopo da linguística;

Vou ilustrar como se deve proceder à descrição da língua, segundo os itens d) e e). Tomemos para exemplo o vocábulo casamento. Segundo o que propõe o estruturalismo em d), devemos começar por descrever as unidades mais simples da palavra “casamento”. Isso significa dizer que devemos decompor a palavra em seus fonemas constitutivos. O resultado é o seguinte: /k/ /a/ / z/ /a/ /m/ /e/ /n/ /t/ /o/. Em seguida, passamos à discriminação das unidades significativas que a constituem: cas-radical; -a vogal temática; -mento sufixo de nominalização. Prosseguimos observando a posição estrutural em que ela ocorre, é o que se postula em e). A palavra “casamento” pode ocorrer nas seguintes posições estruturais:



(8a) [O casamento do meu tio] foi um sucesso
(8b) Havia muitos convidados [no casamento do meu tio]
(8c) Foram muitas pessoas [ao casamento do meu tio]
(8d) Já começaram os preparativos [do casamento do meu tio]



Em todos os casos, o vocábulo “casamento” preenche o núcleo de um SN, do qual faz parte o artigo como pré-determinante. É justamente por admitir a combinação com artigo que o vocábulo “casamento” pertence à classe do substantivo. Assim, todo substantivo se caracteriza por admitir a combinação com um artigo (ou outro determinante equivalente). Essa é uma propriedade estrutural do substantivo. A classificação de uma palavra como “substantivo” depende, portanto, do ambiente sintático em que ela sistematicamente figura. O aspecto semântico, tão privilegiado na gramática tradicional, não entra a fazer parte da definição do substantivo (ou de qualquer outra classe gramatical), segundo a perspectiva distribucional. O que importa é considerar seu comportamento sintático, o entorno estrutural em que a palavra se encontra.  O distribucionalismo visa a determinar como as unidades linguísticas se distribuem, se organizam, se estruturam na cadeia sintagmática. Há, evidentemente, diferença na distribuição do substantivo “casamento” nos casos acima mencionados, quando consideramos o sintagma de que ele é o núcleo. Em (8a), o vocábulo “casamento” é o núcleo de um SN que preenche a posição de sujeito da oração. Já em (8b), “casamento” é o núcleo de um SN encaixado num SP (em__SN), na função de adjunto adverbial. Em (8c), o mesmo vocábulo constitui o núcleo de um SN encaixado no SP, o qual, por sua vez, preenche a posição de complemento circunstancial de “ir” (cf. foram ao casamento...). Finalmente, em (8d), “casamento” é núcleo de um SN encaixado no SP que funciona como modificador do substantivo “preparativos”.  Em suma, “casamento” é distribucionalmente um substantivo, porque pode ocupar a posição de núcleo de um SN; e esse sintagma nominal pode ou não ser parte de um SP.  O SN cujo núcleo é preenchido sempre por uma palavra funcionalmente correspondente a um substantivo pode exercer as seguintes funções sintáticas, ou seja, pode ocupar as seguintes posições na estrutura oracional: 1) a de sujeito, caso em que, via de regra, precede o verbo; 2) a de complemento direto, caso em que se pospõe ao verbo; 3) a de predicativo do sujeito ou do objeto direto (cf. Pedro é um grande amigo / Eu considero Pedro um grande amigo).
Para Bloomfield, o processo de combinação das unidades da língua para formar construções de nível imediatamente superior é governado por regras e princípios próprios de cada sistema linguístico. Assim, algumas construções serão autorizadas pelo sistema de regras da língua (a gramática), enquanto outras construções serão totalmente desautorizadas.
É inegável a contribuição do estruturalismo para a consolidação da Linguística enquanto ciência autônoma, em consonância com os postulados saussurianos. Essa contribuição é patente quando reconhecemos que a linguística distribucional propõe que o estudo da língua seja levado a efeito com base na:

a) constituição de um corpus representativo de enunciados efetivamente realizados por usuários de uma determinada língua, numa dada época;

b) a elaboração de um inventário, a partir desse corpus, que permita determinar as unidades elementares em cada nível de análise, assim como as classes a que essas unidades pertencem;

c) a verificação das regras de combinação de elementos de diferentes classes.

Talvez a maior contribuição do estruturalismo de Bloomfield para a Linguística é seu método de análise em constituintes imediatos. Os proponentes do estruturalismo advogam que as peças de uma língua não se organizam arbitrariamente, mas, ao contrário, distribuem-se em certas posições particulares fixadas pelo sistema de regras da língua. A análise em constituintes imediatos evidencia o fato de que as frases de uma língua são formadas pela combinação de construções – os seus sintagmas – e não de uma simples sequência de elementos discretos. De acordo com esse método, uma frase resulta de diversas camadas de constituintes.  Assim, a frase “o casamento do meu tio agradou aos convidados” é analisada como produto da combinação de dois constituintes imediatos: um SN “o casamento do meu tio” e um SV “agradou aos convidados”. Cada um desses constituintes imediatos é formado por outras unidades constitutivas. Por exemplo, o SN “o casamento do meu tio”, encerra o SP “do meu tio”, que, por sua vez, inclui o SN “o meu tio”. O SN “o meu tio” resulta da combinação do núcleo “tio” com os determinantes “o” (pré-determinante) e o “meu”. Graficamente, podemos analisar o SN “o casamento do meu irmão”, isolando entre colchetes os termos marginais em cada etapa de análise:



                 [o] casamento do meu tio
                                        [do meu tio]
                                        [de] meu tio
                                       [o]  meu tio
                                       [meu] tio


Veja-se que o substantivo núcleo “casamento” do SN nunca é isolado entre colchetes. Todos as unidades do sintagma são partes constitutivas dessa teia urdida a partir de um centro, de um núcleo.

É particularmente importante pontuar que essa análise por meio de colchetes permite resolver casos de ambiguidade, como em (9):

(9) Pedro viu Maria com um binóculo.

Essa frase é ambígua: tanto pode significar ‘Pedro utilizou um binóculo para ver Maria’ quanto ‘Pedro viu Maria enquanto ela portava um binóculo’. A ambiguidade de sentido resulta de duas possibilidades de apreensão da estruturação da frase. Para o primeiro significado, temos a estrutura:

(9a) Pedro viu Maria [com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte menos aderente, que preenche a função adverbial, qual seja, a de instrumento pelo qual Pedro vê Maria.

(9b) Pedro viu [Maria com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte que corresponde a um SN, a cujo núcleo “Maria” se prende o modificador “com um binóculo”. Agora, a leitura é: Pedro viu Maria enquanto ela trazia um binóculo.

Abaixo, segue a análise exaustiva da frase “o casamento do meu irmão agradou aos convidados” em seus constituintes, os quais estão organizados em níveis gramaticais hierárquicos diferentes: a frase constitui o nível hierárquico mais alto, enquanto o fonema é o nível mais básico.  Entre os níveis intermediários, o morfema é hierarquicamente inferior ao nível da palavra, o qual, por sua vez, é inferior ao nível do sintagma:


FRASE  ______________ o casamento do meu tio agradou aos convidados
SINTAGMAS __________  o casamento do meu tio  / agradou os convidados
PALAVRAS  _____________ /o / casamento/ /de/ /o/ /meu/ /tio/ /agradou/ /os/ /convidados/.
MORFEMAS ___________ /o/ /cas-/ /a/ /-mento/ /de/ /o/ meu/ tio/ / agrad-/ /ou/ /o/ /s/ /convid-/ /-ado/ /s/

FONEMAS __________
/o/ /k/ /a/ /z/ /a/ /m/ /e/ /N/ /t/ /o/ /d/ /o/ /m/ /e/ /u/  / t/ /i/ /o/ / a/ /g/ /r/ /a/ /d/ /o/ /u/ /a/ /o/ /s/ /c/ /o/ /n/ /v/  /i/ /d/ /a/ /d/ /o/ /s/.


Consoante se vê, a análise distribucional, cunhada no modelo estruturalista, apresenta uma perspectiva demasiadamente formal acerca do fenômeno da linguagem, de modo que a tarefa do linguista é tão só, na descrição da língua, decompor suas unidades constitutivas, identificar as regras por meio das quais elas podem se combinar em unidades de nível cada vez mais alto e classificá-las com base num corpus representativo de enunciados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2003.












[1]  Vale dizer que Saussure não usa o termo “relações paradigmáticas”, preferindo o termo “relações associativas” (CLG, 2003, p. 142).
[2]  Essa concepção alargada de “sintagma” autoriza-nos a chamar de sintagma até mesmo as sílabas, muito embora a concepção mais restrita de sintagma suponha a combinação, a articulação de unidades menores, dotadas de significado, numa unidade hierarquicamente superior. Assim, o que entendemos hoje por sintagma impede que se considerem sintagmas as sílabas, já que estas são desprovidas de significado.

[3] Para que possamos combinar “estar” com infinitivo, é necessária a presença da preposição “a”. A construção resultante é semanticamente equivalente à construção de ‘estar + gerúndio”: ‘estou a cantar’. No entanto, a construção ‘estar a + infinitivo’ não é usada no português brasileiro.
[4] O par mínimo é um procedimento fonológico que permite determinar que sons pertencem à mesma classe. O par mínimo recobre duas palavras que diferem em significado quando apenas um dos fonemas é alterado. Por exemplo, “lata e “mata” formam um par mínimo, já que, comutando /l/ com /m/, temos duas palavras com significado diverso. Outros exemplos de pares mínimos são: ‘mar x par’, ‘luva x lava’, ‘dedo x cedo’. Note-se que, no par mínimo, a estrutura fonológica permanece praticamente a mesma, exceto pelo fato de um único fonema mudar: dedo x cedo. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Trabalho apresentado como requisito para a aprovação na disciplina EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LINGUÍSTICO no curso de doutoramento / 2010

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O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NAS ABORDAGENS FORMALISTA E FUNCIONALISTA: UMA BREVE DISCUSSÃO


1. Introdução

“(...) é o ponto de vista que cria o objeto”

(Saussure)

 

As reflexões que se estenderão ao longo destas páginas se orientam pela admissão de que a pluralidade teórica da Linguística é necessária e inevitável, porquanto seu objeto de estudo – a linguagem – é heterogêneo, multifacetado e heteróclito. Rechaçamos, portanto, qualquer visão teórica que se pretenda reducionista ou radical e nos baseamos na lição de Neto, em Ensaios de Filosofia da Linguística (2004), segundo a qual cada teoria opera um recorte sobre a realidade, instaurando, assim, seu objeto observacional, o qual constitui “a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis” (p. 35). É na base do estabelecimento de seu objeto observacional que se erigirá o objeto teórico; este se define por um conjunto de entidades básicas, de pressupostos e de objetivos, além de se fundamentar numa metodologia específica. Veja-se, a título de esclarecimento, o seguinte passo de Neto:

 

“Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações no objeto observacional”.

(p. 37)

 

 

Das palavras do eminente linguista, pode-se depreender que o objeto observacional diante do qual estão os gerativistas e os funcionalistas, por exemplo, é o mesmo, a saber, a linguagem. No entanto, o modo como ela será concebida, o aparato conceitual e metodológico de que lançarão mão para estudá-la, os objetivos perseguidos, os pressupostos em que se apóiam serão determinantes da diferença entre dois objetos teóricos – o dos gerativistas e o dos funcionalistas. Destarte, gerativismo e funcionalismo não se ocupam do mesmo objeto teórico. E devemos reconhecer, eticamente, que isso não constitui problema algum; problema há quando se notam atitudes que engendram rivalidades e menosprezo pelo trabalho do outro.

Conquanto nos alinhemos com a perspectiva funcionalista, acreditamos ser equivocada qualquer atitude ou posição que ignore a herança formalista da qual a Linguística moderna, desde Saussure, é devedora. Que a língua seja um sistema de signos, uma estrutura, um sistema de frases, um sistema simbólico responsável por estruturar a realidade, uma atividade intersubjetiva socialmente fundada, etc. – disso não temos dúvida. Resta avaliar as vantagens que nos proporciona a escolha de uma ou outra concepção.

 

1.2. Objetivo

 

Nosso intento é discutir de que modo as abordagens formalista e funcionalista se diferenciam, tendo como parâmetro orientador o conceito de competência.

Evidentemente, dada a natureza desta exposição, não se empreenderá uma discussão exaustiva; vamo-nos cingir aos aspectos fundamentais da distinção entre as duas abordagens, que estejam intrinsecamente relacionados ao conceito de competência.

Visto que os rótulos formalismo e funcionalismo recobrem um vasto espectro de teorias ou abordagens, será necessário fazer algum tipo de abstração. Como representante da abordagem formalista, consideraremos, para efeito de discussão, o gerativismo, tal como foi desenvolvido e propalado pelo seu maior expoente – Noam Chomsky (1957)[1]; por outro lado, vamo-nos ater ao funcionalismo desenvolvido e divulgado por Halliday.

 

 

2. Formalismo e Funcionalismo: uma breve discussão

 

 

Entendendo ser toda teoria um conjunto sistemático de enunciados e conceitos, portanto, um todo coeso e coerente, é lícito afirmar que cada conceito terá sua validade dentro do universo teórico específico no qual é desenvolvido. Ademais, a reflexão sobre um dado conceito permite-nos apontar caminhos que nos levarão ao reconhecimento das bases em que se estabelece a distinção entre duas (ou mais) correntes teóricas.

Para o que nos compete aqui, o conceito de competência é um grande indicador da distinção entre uma e outra corrente teórica. Vamo-nos ocupar, num primeiro momento, em defini-lo no interior do gerativismo; posteriormente, traremos à baila o modo como ele foi reinterpretado e desenvolvido na abordagem funcionalista.

 

 

2.1. A competência linguística no gerativismo

 

Em Estruturas Sintáticas (1980)[2], Chomsky se refere à competência linguística da seguinte forma:

 

“(...) capacidade de um falante do inglês para produzir e compreender novos enunciados rejeitando, simultaneamente, outras sequências novas como não pertencentes à língua”.

(p. 26)

 

 

Dispensando o fato de que neste trabalho, na medida em que constitui uma descrição do inglês, o autor trate da competência relativamente a uma comunidade linguística específica – a dos falantes de inglês, importa notar que esse conceito envolve duas espécies de conhecimento: um operacional; outro avaliativo. Assim, é a competência linguística de que todo falante nativo dispõe que lhe permitirá produzir (e compreender) enunciados em sua língua materna, bem como avaliar as construções dessa língua relativamente ao conjunto de regras previstas pela sua gramática.

 Destarte, serão consideradas gramaticais as construções que resultaram da aplicação das regras previstas pela gramática de sua língua materna; e agramaticais, as que não resultaram dessa aplicação. Evidentemente, a gramaticalidade não se resolve em polos opositivos, mas sobre uma gradação em termos de aceitabilidade.

Em Linguagem e Linguística – uma introdução (1987), Lyons apresenta aquilo que será um aspecto determinante da diferença de compreensão do conceito de competência nas abordagens gerativa e funcionalista.

 

“A competência linguística de um falante é um conjunto de regras que ele construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados linguísticos que ele ouviu à sua volta na infância (...)”.

(p. 173)

 

 

Note-se que o autor alude à relação entre a competência linguística e a hipótese inatista da aquisição da linguagem, segundo a qual a criança nasce com um programa, geneticamente determinado, chamado de Gramática Universal, que lhe permitirá, por um processo de desenvolvimento e maturação, o conhecimento e domínio de sua língua materna. A Gramática Universal é a própria faculdade da linguagem e constitui um conjunto de princípios e parâmetros, na base dos quais a criança irá operar com vistas a se tornar um falante competente em sua língua materna[3]. Os princípios constituem as regras “gerais”, isto é, comuns a todas as línguas; os parâmetros são as regras (ou valores) específicas de uma dada língua. Cabe à criança selecionar, a partir de um input (um conjunto determinado de produções linguísticas a que ela está exposta), a forma que um dado parâmetro tomará na língua em cuja aquisição ela se empenha.

Acrescente-se que a Gramática Universal pode ser vista como uma espécie de programa computacional, responsável pela produção dos enunciados linguísticos. Consoante essa perspectiva, a língua passa a ser considerada um conjunto de sentenças resultantes da operação das regras dessa gramática.

A competência linguística se desenvolve, portanto, na base de uma aptidão inata para a aquisição da linguagem. Na perspectiva gerativista, não é possível pensar a competência sem postular a existência de uma gramática universal inata que está inscrita na mente/cérebro do falante nativo. Nisso residem a coesão e a coerência a que nos referimos anteriormente: não podemos discutir o conceito de competência sem pensá-lo em sua relação com outros conceitos e sem situá-lo na totalidade do quadro teórico de que se origina. É a essa tarefa que nos dedicaremos doravante.

O conceito de competência linguística evoca o conceito de performance ou desempenho. A relação entre competência e desempenho, na forma como Chomsky a apresenta, deve ser pensada dicotomicamente. De um ponto de vista heurístico, a dicotomia competência/ desempenho tem o mesmo valor da dicotomia saussureana langueparole: visa a delimitar o objeto de estudo e, portanto, a determinar a área de interesse da ciência linguística. Tanto a parole saussureana quanto o desempenho chomskiano constituem domínios que estão fora da alçada da Linguística. Lyons dá-nos a saber a definição de desempenho.

 

Desempenho (...) é o comportamento linguístico; e é determinado não apenas pela competência linguística do falante, mas também por uma variedade de fatores não linguísticos que incluem, por um lado, convenções sociais, crenças acerca do mundo, as atitudes emocionais do falante em relação ao que está dizendo, seus pressupostos sobre as atitudes de seu interlocutor, etc. e, por outro lado, o funcionamento de mecanismos psicológicos envolvidos na produção de enunciados”.

 

 

É interessante ver a cisão entre o que diz respeito propriamente ao conhecimento do sistema de regras da língua (da sua gramática) e o que diz respeito ao uso desse sistema. O objeto de estudo do gerativismo será, pois, a competência linguística, e os modelos teóricos ou as gramáticas produzidas constituem hipóteses que visam a descrever e explicar essa forma de conhecimento inato e específico que todo falante nativo tem de sua língua materna.

Na medida em que é feita a separação rigorosa entre competência e desempenho, o primeiro conceito ganha coerência na sua relação com a ideia de um falante nativo ideal inserido numa comunidade linguística homogênea. A preocupação repousa em descrever a competência desse falante abstraído do contexto sócio-cultural; não de um falante concreto e específico, mas do falante-modelo concebido para representar a perfeição atribuída à competência linguística.

Sabe-se que o gerativismo privilegia o estudo da forma em detrimento do uso da língua, o que justifica o fato de ser considerado uma corrente representante do formalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a forma (estrutura) é estudada de um ponto de vista interno, o que o diferencia, em parte, do estruturalismo, que se apóia num ponto de vista externo. Assim é que a estrutura da língua resulta da operação das regras da gramática internalizada do falante. A preocupação gerativista recairá sobre o componente subjacente, implícito, não-verificável imediatamente. É claro que não se pode ter acesso à competência linguística do falante nativo senão por meio de suas produções; mas tais produções não exibem tudo que é necessário para descrever e explicar essa competência. Para tanto, os linguistas gerativistas postulam a existência de um nível subjacente, chamado estrutura profunda[4], sobre a qual é calcada a estrutura superficial, dotada de configurações fonético-fonológicas e imediatamente perceptível auditiva ou visualmente.

Como não seja nosso objetivo fazer densa incursão nas especificidades da abordagem gerativa, cuidamos ser necessário retomar a questão central em torno da qual nossa discussão se desenvolve. A esta altura, cumpre notar que o modelo gerativo surge como reação à visão reducionista e mecanicista de linguagem comum aos behavioristas, dos quais o linguista Leonard Bloomfield foi um representante.

O conceito de competência linguística foi a solução encontrada por Chomsky para as dificuldades que permeavam a explicação da aquisição da linguagem pelos behavioristas. Tratava-se de uma explicação de base mecanicista, orientada por um modelo do tipo estímulo-resposta, com o qual era explicado também o comportamento de certos animais. Com o conceito de competência, Chomsky fez ver à comunidade científica a importância da criatividade no processo de aquisição da linguagem; e mais ainda: a criatividade, segundo o eminente linguista, é uma propriedade basilar que distingue os homens dos animais (e das máquinas).

Gostaríamos de pôr termo a essa seção insistindo em que a separação rigorosa entre competência e desempenho implica a necessidade de pensar o conhecimento linguístico inato como algo desvinculado de outras capacidades cognitivas humanas. Assim, cremos não incorrer em erro ao afirmar que a competência linguística é considerada uma forma de conhecimento autônomo.

 

 

2.2. A competência linguística no funcionalismo: uma perspectiva estendida

 

No artigo intitulado de Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective (1989), Halliday e Hasan suscitam a questão sobre o conceito de função. Note-se o que nos ensinam os autores:

 

“In the simplest sense, the word ‘function’ can be thought of as a synonym for the word ‘use’, so that when we talk about functions of language, we may mean no more than the way people use their language, or their languages if they have more than one”.

(p. 15)

 

 

Como se vê, função identifica-se com uso. Pensar em função é pensar na finalidade com que a linguagem é usada, no papel que ela desempenha para os seres humanos. Para os autores, “people do different things with their language” (ib.id.).

Em An Introduction to Functional Grammar (1994), Halliday, no capítulo Clause as exchange, apresentará as quarto funções do discurso que considera primárias: offer (oferta), command (ordem), statement (declaração) e question (pergunta) (p. 69). Pensar a função é, então, pensar o que fazemos quando usamos a língua.

Num estudo exaustivo e minucioso, intitulado de A Gramática Funcional (2004), Neves, discutirá, no primeiro capítulo, a questão das funções da linguagem, preocupando-se, inicialmente, em nos oferecer um quadro sintético, mas não menos esclarecedor, das diferentes formas de se entender o conceito de função. Segundo a autora,

 

“(...) função pode designar as relações:

a) entre uma forma e outra (função interna);

b) entre uma forma e seu significado (função semântica);

c) entre o sistema de formas e seu contexto (função externa)”.

(p. 6)

(ênfase no original)

 

 

Claro está que a última concepção de função é a mais emblemática da perspectiva funcionalista, uma vez que ela nos permite entrever a necessidade de pensar a função em termos da relação entre língua e uso. Nessa relação é que reside a pedra angular do funcionalismo, que se pode exprimir no seguinte princípio: o uso exerce influência sobre a forma linguística. Na perspectiva de um funcionalista, as línguas têm a forma que têm em virtude do uso que delas é feito. Como o uso demanda a mobilização não só da competência linguística, mas também de outras formas de competência ou capacidades, a forma sofrerá pressões de ordem cognitiva e pragmática.

Convém ter em conta até aqui o deslocamento operado pela perspectiva funcionalista: da ênfase sobre a forma passa-se para a ênfase sobre a função; da preocupação com a forma passa-se para a preocupação com o uso. A forma passa a ser um meio para a realização das funções. Destarte, o objeto de estudo do funcionalismo é a língua em uso, ou seja, tomada na sua relação com o contexto sócio-cultural e com as funções às quais ela serve. Não estamos mais diante de um falante ideal, mas de um construtor linguístico social e culturalmente situado. É de se esperar que o conceito de competência linguística ganhe outra dimensão.

Em primeiro lugar, a preocupação com o uso linguístico e, consequentemente, com os fatores contextuais que o determinam impõe a necessidade de repensar o conceito de competência linguística. Os funcionalistas observaram que o uso da língua demanda outras formas de competências ou capacidades. Não basta ao falante nativo conhecer apenas as regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir e compreender enunciados nessa língua. Para ser bem-sucedido nas mais variadas situações comunicativas de que participa, além do conhecimento das regras dessa gramática, ele precisa utilizar suas produções linguísticas de modo adequado. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência linguística é reinterpretada como competência comunicativa[5], a qual consiste na capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. A competência comunicativa pressupõe a competência linguística, embora não exatamente nos termos como a concebe Chomsky; mas demanda dos especialistas a percepção de que usar uma língua é muito mais do que saber construir enunciados na base de um sistema de regras gramaticais.

A assunção do conceito de competência comunicativa implica o reconhecimento da importância de levar em conta a habilidade do falante para usar o seu conhecimento linguístico de acordo com as convenções sócio-culturais ou pragmáticas implicadas num contexto. Assim é que a competência comunicativa interage com outras formas de competências ou capacidades. Neves (id.), baseando-se em Dik, apontará quatro capacidades às quais a competência linguística está relacionada: a capacidade epistêmica, a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. Todas essas formas de capacidade envolvem manutenção e mobilização de conhecimentos variados. A capacidade social é, particularmente, interessante, por estar intrinsecamente relacionada à competência comunicativa. Referimos o excerto em que Neves define essa capacidade abaixo:

 

“d) a capacidade social: o usuário não somente sabe o que dizer mas também como dizê-lo a um parceiro comunicativo particular, numa situação comunicativa particular, para atingir objetivos comunicativos particulares”.

(p. 77)

 

Deve-se ficar claro, pois, que pensar sobre competência à luz das abordagens formalista e funcionalista implica a necessidade de pensar o modo como elas entendem a aquisição da linguagem. Na medida em que a abordagem funcionalista contempla o papel do contexto e se preocupa com a descrição da língua em uso, a sua concepção de aquisição da linguagem será diferente da concepção formalista.

O paradigma formal advogará que a criança desenvolve sua competência linguística na base de um input desestruturado e empobrecido - trabalho este que será compensado pelo fato de ela ser habilitada inatamente para fazê-lo. A criança é pré-disposta geneticamente a adquirir qualquer língua com uma facilidade e rapidez notáveis. O paradigma funcional, a seu turno, destacará a importância do ambiente, do entorno social na aquisição da linguagem e, portanto, no desenvolvimento da competência linguística (entendida como “competência comunicativa”). Para o funcionalista, o input compreende um conjunto de dados linguísticos estruturado e adequado ao nível de desenvolvimento da criança.

O processo de aquisição de linguagem, na perspectiva funcionalista, se dá pelo desenvolvimento de necessidades e habilidades comunicativas da criança em situações reais de interação com a sua língua. Assim é que a competência linguística não constitui um conhecimento estanque, ou seja, não é separado de todo o complexo cognitivo que permite a aprendizagem pela criança de outras habilidades necessárias à sua vida social.

 

  3. Conclusão

 

Coube-nos patentear, nesta exposição, a importância de se compreender duas correntes teóricas, que, tradicionalmente, são avaliadas de uma perspectiva antagônica, tendo em conta a articulação de seus conceitos com o domínio teórico em que surgiram e se desenvolveram. Ademais, parece-nos conveniente considerar o contexto histórico em que tais modelos apareceram, o que implica também a consideração das motivações que os engendraram. 

Destarte, o gerativismo surge como reação a um modelo teórico de base behaviorista, predominante na primeira metade do século XX, que procurava estudar a linguagem na base de um processo comportamental do tipo estímulo-resposta, ou seja, a criança, num dado ambiente, adquiriria sua língua materna por mera repetição (ou reprodução) dos dados linguísticos a que estivesse exposta. O conceito de competência linguística tem o mérito de apontar a importância da criatividade humana, mormente no que toca à aquisição da linguagem. Chomsky observou que o modelo behaviorista não dava conta do fato de a criança produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados que nunca teria ocorrido antes em sua experiência linguística, donde se segue que, para ele, a aquisição da linguagem independe de estímulo.

O funcionalismo, a seu turno, também surgirá por uma necessidade de dar conta de certas dificuldades encontradas pelo modelo gerativo. Assim é que muitas questões de que se ocupavam os gerativistas não poderiam ser explicadas satisfatoriamente sem a consideração do uso e do contexto. A crítica basilar dispensada pelos funcionalistas aos gerativistas repousa na tendência destes de fazer completa abstração do uso da língua, operando suas análises em frases apartadas de um contexto real de comunicação, de sorte que, não raro, tais frases eram forjadas pelo próprio analista.

É neste deslocamento de enfoque – da ênfase sobre a forma para a ênfase sobre a função (uso) – que devemos situar a compreensão do conceito de competência, nas duas abordagens em tela. Cremos, assim, que esse conceito, surgido no interior da abordagem gerativa, tem uma inegável importância para o desenvolvimento posterior da Linguística. Disso não se segue que ele será entendido do mesmo modo em outros modelos teóricos, que adotem, por exemplo, uma visão sociointeracional.

O modo como o conceito será entendido dependerá dos pressupostos na base dos quais a teoria foi construída. Na medida em que o funcionalismo adota a concepção de língua como ‘instrumento de comunicação’ (preferimos “lugar de interação”); na medida em que assume como escopo o uso, em que dá ênfase especial às funções comunicativas, em que entende a forma como meio de realizá-las; enfim, em que salienta a importância do contexto situacional e cultural na descrição e explicação do uso da linguagem, é esperado que a sua concepção de competência prescinda da natureza inatista reivindicada pelos gerativistas e que seja compreendida relativamente a outras formas de capacidade.

 

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4. Referências Bibliográficas

 

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980.

 

CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo, in Manual de Linguística. Mário Eduardo Martelotta (org.). São Paulo: Contexto, 2009.

 

HALLIDAY, M. A.K. . An Introduction to Functional Grammar (2ª ed.). London: Edward Arnold, 1994.

 

__________ HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.

 

HYMES, Dell. On communicative Competence, in The Communicative Approach to Language Teaching. Brumft, C.; Johson, K. (orgs.). Hong Kong: Oxford University Press, 1991.

 

LYONS, John. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

 

MUSSALIM, Fernanda; Anna Christina Bentes. Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos (vol. 3). São Paulo: Cortez, 2005.

 

NETO, José Borges. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

 

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

SANTOS, Raquel. A aquisição da linguagem, in Introdução à Linguística: objetos teóricos. José Luiz Fiorin (org.). São Paulo: Contexto, 2004.

 

TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2008.

 

 



 

[1] Ano em que foi publicado seu trabalho revolucionário Syntactic Structures.

[2] Versão portuguesa traduzida por Madalena Cruz Ferreira.

[3] Trata-se da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981. apud. Santos, 2004: 221).

[4] Entende-se por estrutura profunda “qualquer representação abstrata da estrutura de uma sentença que os linguistas postulam para fins de análise”. (Trask, 2008: 98). Atualmente, ela é considerada um expediente analítico com o qual se podem expressar certas generalizações a partir da estrutura superficial.

[5] O conceito foi cunhado por Hymes (1991).