Os
limites de nossa liberdade
Se pretendemos
refletir seriamente sobre a questão da liberdade humana, será prudente quem
decidir orientar suas meditações com a premissa segundo a qual a liberdade é graduada. Assumir que a
liberdade é graduada significa dizer que ela é uma experiência submetida a
graus. Assim, evita-se, em princípio, a crença, comum entre muitos de nós, de
que somos livres, sem fazer-se
acompanhar o adjetivo livres de um
advérbio modalizador, como relativamente.
Assumir
que somos relativamente livres é a
posição mais acertada quando percebemos que não faz sentido pensar a liberdade
senão nas esferas de relações sociais. Situada nas malhas da vida social, a
minha liberdade encontra seu primeiro obstáculo quando reconheço o direito que
o outro tem de exercer a sua. Na tentativa de ampliar meu domínio de liberdade,
acabo por reduzir as possibilidades de exercício de liberdade do outro. Em tais
circunstâncias, instaura-se um conflito de interesses. Não haveria vida em
sociedade se não houvesse mecanismos para regular e limitar o exercício de
liberdade individual, a fim de não só resolver possíveis conflitos, como também
não permitir que as pessoas ajam sempre, segundo sua vontade. Numa democracia, pelo
menos formalmente, a liberdade de cada cidadão deve ser garantida pela Lei, mas
também deve ser regulada por ela. Há outras formas de limitar ou anular nossa liberdade, como os mecanismos de coerção e de cooptar, conforme veremos.
Em seu Aprendendo a pensar com a sociologia
(2010), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman destina um capítulo para tratar da
relação entre poder, escolha e dever moral. Poder, escolha e dever moral são dimensões inerentes à
condição humana. Compreender como são experienciados em sociedade ajuda-nos a
entender de que modo o exercício de nossa liberdade se expressa e é limitado.
Bauman
está interessado em mostrar como as relações do tipo causa-efeito orientam
nossas ações e decisões cotidianas. O autor principia sua discussão, observando
de que maneira um evento causa outro. Se um evento X será sempre seguido de um evento Y, diremos que há entre eles uma
relação sem exceção. Nesse caso, postulamos haver uma lei que determina que X causa sempre Y. Por outro lado, se um
evento X causa, na maioria das vezes,
um evento Y, diremos que há então uma norma
que estabelece que uma vez X é quase
certo que ocorra Y. Ao contrário da lei, a norma admite exceções.
Para o
autor, explicações baseadas nos conceitos de lei e norma, com os quais
explicamos as relações entre eventos do mundo, não se aplicam, sem problemas,
ao domínio das condutas humanas. Neste domínio, os eventos são causados pela ação
de pessoas dotadas de certa liberdade de escolha. Elas agem segundo propósitos
determinados.
Serão
todas as escolhas tomadas de modo consciente? Podemos tomar decisões que
ocorrem num nível subconsciente ou inconsciente? Bauman acredita que sim e classifica
as ações do tipo “irrefletidas” em ações
habituais e ações afetivas.
Ações habituais são as que
praticamos no dia-a-dia em virtude do hábito. Acordamos, calçamos chinelos,
vamos ao banheiro, tomamos café da manhã, etc. Seguimos uma rotina e não nos
preocupamos em pensar sobre esses atos antes de executá-los, exceto se a rotina
é interrompida por algum imprevisto. Nesse caso, precisamos para tomar decisões
conscientes. As condutas habituais são herança dos processos formativos de
nossa cultura, isto é, dependem de processos de aprendizagem. Nelas,
sentimo-nos desobrigados a calcular, pensar sobre as ações que praticamos.
Segundo Bauman, “(...) elas só nos chamam a atenção quando algo não funciona,
isto é, quando a regularidade e a ordenação dos ambientes em que as praticamos
entram em colapso” (p. 99)
O
segundo tipo de ações é as ações
afetivas. Elas se originam das nossas emoções. Também nelas dispensamos
cálculos racionais. São engendradas por impulso e ignoram a orientação da
razão. Segundo o autor, uma ação é afetiva “quando permanece não reflexiva,
espontânea, não premeditada, e quando nela se embarca antes de qualquer
ponderação e argumentos ou projeção de consequências” (p. 100).
Por
fim, o terceiro tipo de ações é o das ações
racionais. Trata-se de ações executadas após ponderação e cálculos segundo
um plano racionalmente elaborado. Nelas, opera-se uma razão instrumental que
seleciona os meios adequados para a execução dos fins pretendidos. As ações
racionais podem orientar-se para fins mais valiosos do que outros; por
conseguinte, podemos dizer que muitas de nossas ações racionais são orientadas
por nossos valores. Dizer que nossas ações racionais estão calcadas sobre
nossos valores significa dizer que são motivadas por aquilo que é caro ao nosso
coração, por aquilo que apreciamos.
“Ao escolher nossos cursos de ação
por meio da deliberação consciente e racional, também antecipamos prováveis
resultados. Isso exige o exame da situação real na qual a ação terá lugar e dos
efeitos que com ela esperamos alcançar. Para tanto, normalmente levamos em
conta tanto os recursos disponíveis quanto os valores que orientam nossas
condutas”.
(p. 101)
Para
ilustrar a importância dos valores em nossas decisões quanto ao curso de nossa
ação, considere-se a situação em que eu tivesse de decidir entre investir
minhas economias para pagar a faculdade de meu filho ou investi-las para
realizar aquela viagem com que tanto sonhei. Se o que vale mais para mim é a
formação educacional de meu filho, será a ela que destinarei meu pecúlio.
Na
seção em que se ocupa da influência dos valores e do poder em nossas condutas,
Bauman nos lembrará a importância de considerarmos além dos valores, também os
recursos como fatores que podem ampliar ou limitar nossa liberdade. Segundo o autor,
numa situação como a que acabei de ilustrar, teremos de avaliar o alcance de
nosso poder econômico e o “peso” de nossos valores. É nessa avaliação que
tomamos consciência dos graus de nossa liberdade, já que nela torna-se claro
para nós o que podemos ou não podemos fazer.
Ao considerar a liberdade como algo mensurável em graus, somos levados a
relacioná-la ao acesso aos recursos necessários à sobrevivência. Em outras
palavras, não podemos deixar de pensá-la relativamente às desigualdades
sociais. Quanto menos acesso tenho aos bens culturais, porque meu poder
aquisitivo é baixo, menos liberdade eu disponho. Novamente Bauman nos
esclarece: “algumas pessoas desfrutam de gama mais larga de escolhas devido ao
acesso a recursos, e podemos nos referir a isso em termos de poder” (p. 102) (ênfase no original).
Entra
em cena a influência do poder no
exercício de nossa liberdade. Trata-se de um momento de extrema importância no
curso das reflexões do autor. Vou me demorar neste ponto. Leiamos, atentamente,
a definição de poder proposta pelo autor:
“Compreende-se melhor o poder como a
busca de objetivos livremente escolhidos para os quais nossas ações são
orientadas e do controle dos meios necessários para alcançar esses fins. O
poder é, consequentemente, a capacidade de ter possibilidades”.
(p. 102)
Pode-se
dizer que, de acordo com Bauman, o indivíduo que detém poder escolhe livremente
seus objetivos; tem a capacidade de agir sem obstáculos e controla os meios
através dos quais poderá alcançar os objetivos que escolheu. O poder, assim,
potencializa sua capacidade de ação. O poder lhe abre muitas possibilidades
para agir.
Do
papel que o poder desempenha no exercício de nossa liberdade, pode-se concluir
que:
a)
quanto mais poder dispõe uma pessoa, maior é seu campo de escolhas e maior é o
conjunto de resultados que podem ser realmente atingidos;
b)
quanto menos poder dispõe uma pessoa, menor será seu campo de opções e os
resultados que pretende atingir deverão ser reduzidos.
Atentemos
para as conclusões de Bauman, no que se segue:
“Assim, ter poder é ser capaz de
atuar mais livremente, enquanto ser relativamente menos poderoso, ou impotente,
corresponde a ter a liberdade de escolha limitada por decisões alheias – por
quem tenha a capacidade de determinar nossas ações”.
(ib.id.)
Não só
os adolescentes experimentam a desagradável sensação de ter sua liberdade
perturbada ou limitada pelos outros (especialmente, por seus pais), nós,
adultos, também vivemos situações em que nosso poder de atuação é reduzido pelo
poder de que é investido o outro para agir.
Sempre
que buscamos ampliar nossa própria liberdade, corremos o risco de desvalorizar
a liberdade do outro. Há dois métodos pelos quais a liberdade do outro pode ser
limitada: o de coerção e o de cooptar.
Por coerção, entende-se uma forma de
manipulação pela qual os recursos de que dispõem as pessoas tornam-se
inadequados à situação em que se acham, ainda que sejam adequados noutros
casos. Por exemplo, numa situação em que uma pessoa muito rica seja confrontada
com um assaltante portando uma arma de fogo, seus recursos econômicos não lhe
servirão para potencializar sua capacidade de agir. Nessas circunstâncias,
costuma-se dizer que não temos escolhas, embora até possamos tê-las, mas com um
custo muito alto: a possível perda de nossa própria vida.
Não
raro, somos confrontados com aqueles que exigem que reavaliemos nossos valores,
ainda que não lhes reconheçamos a autoridade para tanto. Segundo Bauman, “nas
condições extremas de campos de concentração, por exemplo, o valor da
autopreservação e da sobrevivência pode bem ofuscar as demais escolhas” (p.
103).
A
estratégia de cooptar consiste na
iniciativa de um indivíduo ou corporação de manipular uma situação de tal modo,
que o desejo de uns fica submetido aos objetivos de outros. A busca pelos
valores visados, nessas circunstâncias, depende da observância de regras que são estabelecidas por quem
detém o poder.
“Assim, o zelo e a eficiência com
que os inimigos são mortos são recompensados, destacando-se a posição social do
bravo soldado com medalhas e citações honoríficas. Os operários podem assegurar
melhores padrões de vida (aumento de salário) desempenhando seu trabalho com
mais dedicação e intensidade e obedecendo, sem questionar, aos regulamentos
administrativos. Os valores dos subordinados transformam-se, então, nos
recursos de seus superiores hierárquicos. Não são avaliados como fins em si
mesmos, mas como meios a mobilizar a serviço dos objetivos dos detentores do
poder. Quem está sujeito a essas manipulações não tem outra escolha senão
capitular, abrindo mão de parte considerável de sua liberdade”.
(p. 103)
Marx,
certamente, reconheceu quão limitada é a liberdade do proletariado no processo de produção capitalista. Despojados do controle dos meios de produção
e forçados a vender sua mão de obra em troca de um salário submetido à prática
de mais-valia, os trabalhadores das
sociedades capitalistas experimentam tão-só a ilusão de que são plenamente
livres e de que estão no controle de sua capacidade para trabalhar.
Retomando,
por fim, a importância dos valores no âmbito de exercício de nossa liberdade, é
imperioso insistir que não escolhemos todos os nossos valores, já que muitas de
nossas ações permanecem habituais e, portanto, insuscetíveis a ponderações e
justificações. Só as justificamos, caso sejamos instados a fazê-lo.
Quando
somos intimados a explicar nossas ações, sentimo-nos obrigados a legitimá-las. A
legitimação é uma forma de argumentar
no sentido de demonstrar a razão por que uma posição deve prevalecer sobre
outras. A legitimação justifica a autoridade de uma pessoa ou organização. Muitas
vezes, é por força da legitimação da tradição que agimos. A influência de práticas
e valores tradicionais sobre o exercício de nossa liberdade não pode ser
desconsiderada. Bauman nos ensina o seguinte:
“(...) o que foi unido nenhuma
presunção humana deve separar. Entretanto, mais que a consagração dos valores
por sua idade avançada, os que procuram a aceitação popular para os princípios
que pregam vão em alguma extensão escavar alguma evidência histórica genuína,
putativa, de sua antiguidade. A imagem do passado histórico é sempre seletiva,
e a deferência das pessoas com relação a ele pode ser listada entre as ações de
disputas contemporâneas sobre valores. Uma vez que se aceite que determinados
valores eram mantidos por nossos antepassados, eles se tornam menos vulneráveis
à crítica contemporânea. A legitimação
tradicional torna-se paulatinamente
atrativa em períodos de mudanças aceleradas que só geram inquietação e
ansiedade, quando parece, então, oferecer um conjunto de escolhas relativamente
seguro, menos angustiante”.
(p. 106)
A reivindicação de mais liberdade pelos indivíduos
não deixa de acompanhar-se de angústia. Disso tratou com autoridade Sartre.
Bauman
refere outras formas de legitimação, como a legitimação
carismática, comum, especialmente, no domínio da Igreja sobre os fiéis. Segundo
Bauman, “quanto mais forte for o carisma dos líderes, mais difícil é questionar
seus comandos e mais confortável para os seguidores de suas ordens quando
expostos a situações de incertezas” (p.107). No entanto, o autor nos lembra que
o carisma não é uma particularidade do comportamento das autoridades da igreja
ou de instituições. Ele surge sempre que a aceitação de determinados valores
decorre da crença em que a pessoa que os prega está investida de poder
privilegiado, que garante a verdade de seus pontos de vista.
Decerto,
seria possível avançar mais; todavia, creio suficientes estas notas de reflexão
sobre os fatores que podem limitar nossa liberdade, que se expressa socialmente
em graus. Se não somos totalmente livres, como pretender que sejamos dotados de
livre-arbítrio? Como a questão do livre-arbítrio tem uma série de implicações
(psicológica, neurológica, filosófica, biológica, teológica), deixarei para
dela tratar em outra ocasião.