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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"O debate acelera a inteligência" (Patrick Schneider)


                              Debatendo sem se debater

Um novo ano começou e eu ignorei as promessas e os planos. Basta-me a vida e a possibilidade de levá-la adiante. Já, há algum tempo, só me comprometo comigo mesmo, com o meu modo de me dar à vida. Esperança é palavra caduca em meu vocabulário. Esperar demais de algumas pessoas leva-nos, muitas vezes, à frustração. O conselho de Epíteto parece-me válido: a ordem das coisas, frequentemente, não pode ser mudada; mas podemos mudar nossas opiniões ou interpretações. Diante de uma circunstância adversa ou perturbadora, devemos ponderar, perguntando-nos se temos ou não influência sobre ela. São nossas visões sobre as coisas que nos inquietam ou nos perturbam. A serenidade, a mansidão e a busca por nos fazer incólumes a sofrimentos evitáveis são a meta do estoicismo. A felicidade depende do modo como nos posicionamos diante das adversidades. Segundo Epíteto, devemos buscar, nessas ocasiões, manifestar calma, serenidade e ser determinados.
A este espírito de prudência estóico quero acrescentar o espírito de ousadia nietzschiano. Á página 46, em Ecce Homo, escreve o filósofo alemão:

“A minha prática de guerra pode ser resumida em quatro proposições. Primeira: eu ataco somente as coisas vitoriosas; ou espero até tal se tornarem. Segunda: ataco somente as coisas para as quais não poderia encontrar companheiros onde estou só, onde sou o único a comprometer-me. Nunca articulei um passo que não me comprometesse; isto é (segundo o meu modo de ver), em que não me fosse dado agir corretamente. Terceira: não ataco nunca as pessoas; sirvo-me delas como duma possante lente de aumento com que se pudesse tornar visível algum mal comum mas oculto, difícil de ser pesquisado.(...) Quarta: eu ataco somente as coisas das quais se exclui qualquer antipatia pessoal, para as quais me falta todo e qualquer sedimento de esperanças tristes. Pelo contrário, atacar é, para mim, um sinal de benevolência, sendo às vezes até de reconhecimento. Para mim é uma honra proporcionar algo; uma distinção, quando uno o meu nome ao de uma coisa ou de uma pessoa: pró ou contra a mesma, tem o mesmo valor para mim. Se guerreio o Cristianismo, tenho pleno direito a isso, porque desse lado nunca me infligiram desgraças ou obstáculos; os cristãos mais convictos sempre me foram sobremodo benévolos. Eu mesmo, inimigo do Cristianismo de rigueur, estou bem longe de ter ódio aos seus prosélitos, sendo, como é, uma fatalidade de milhares de anos”.

O compromisso com a crítica à tradição e a ruptura com ela fazia parte da agenda nietzschiana. E, quase sempre, sinto-me impregnado desse espírito revolucionário, ainda que consciente de minha pequenez e impotência para modificar um dado estado-de-coisas estabelecido por um poder imediato ou secular. Não dou asas ao deslumbramento nem animo ideias utópicas; e, por vezes, fico de permeio com a renúncia e a persistência. Tendo a esta última como o filho tende ao colho da mãe e a ave tende ao ninho. Os meus pensamentos me acolhem, ainda que eles se enfraqueçam diante dos valores mais rígidos e das ideologias mais vigorosas e penetrantes, que ainda vicejam.
Se todas as produções de meu espírito, todos os escritos que trouxe a lume pudessem ser significativamente sumariados numa só palavra, eu escolheria a palavra engajamento. Engajar-se é comprometer-se; é participar ativamente de uma causa, é fazer ecoar nossa voz num dado domínio da dialética social (que inclui, evidentemente, esferas de saber e poder).
A internet, com suas redes de relacionamentos virtuais, decerto, favoreceu para que indivíduos interessados em engajar-se possam externar suas posições sobre temas de relevância social. Mas não estou admitindo que os espaços on-line destinados a debates sejam todos vantajosos e interessantes. Neles, se acha toda sorte de gente; os que mais me desagradam são os pseudointelectuais arrogantes, que ignoram a ética argumentativa, que deve prevalecer nas esferas de debates que se pretendam sérios. Dessa ignorância se segue uma sorte de sarcasmos, ofensas e baixezas linguísticas. A postura de Nietzsche, que não atacava, como nos confessa, as pessoas, mas tão só suas obras, não se faz sentir entre aqueles intelectualóides.
Não alardearei o mérito da humildade, mas desfraldarei a bandeira da decência intelectual. O desenvolvimento da intelectualidade não é possível sem a solidariedade ou mutualidade de intelectos. O intelectual é, para além do acúmulo de titulações, antes de tudo um agricultor do intelecto, alguém que aprecia demorar-se no cultivo de seus pensamentos e se deter a longas pesquisas. Ler é para ele atividade indispensável. Sucede, contudo, que, naquelas ocasiões, alguns dos participantes são incapazes de sustentar um debate sério e equilibrado; são carecidos de rigor racional e tornam-se, com frequência, suscetíveis às emoções mais pífias, ainda que ostentem em seus atos linguísticos certo ar de onipotência.
Por vezes, animo-me a dar-lhes a devida resposta, sem que ela se embarace em despeito ou jactância. E nunca perco de conta a quase certeza de que eu estou lindando com pessoas que se supõem capazes de participar de debates intelectualmente relevantes, mas que são estúpidas ou ignorantes sobre a necessidade de manter uma conduta em consonância com o simples bom senso: o saber se produz em conjunto. Filósofos e cientistas, por exemplo, não se julgam donos da verdade ou do saber; ao contrário, reconhecem continuamente sua ignorância, mas não desistem de buscar a verdade e de produzir conhecimento.
Não espero que o leitor depreenda destas palavras sentimento de indignação pessoal. Sou indiferente àqueles que se comportam presunçosamente, quando se julgam capazes de emitir opiniões peremptórias. Mas não sou indiferente à insistência em que qualquer debate que demande rigor racional, orientação argumentativa sólida deve ser realizado na base do pressuposto da ignorância; deve ser desenvolvido por indivíduos dispostos a aprender uns com os outros. Apenas os estúpidos tendem a rejeitar esse princípio inatacável.