Internato lírico
E
o céu veste seu manto negro novamente. Ignoro se há estrelas difusas pelo céu.
Este quarto em que me encontro mantém o movimento da vida a distância. Hoje foi
mais um dia em que fiquei internado em mim, sem, contudo, poder contar com a
assistência médica. Sou um interno na companhia dos livros. Ainda não fui
capaz de mensurar a gravidade disso. Há de haver algum malefício em entregar-se
demais aos livros. A televisão só me ocupa nos pequenos intervalos entre uma
leitura e outra, tempo em que me permito desafogar-me. Porque a leitura, se
levada seriamente, convoca-nos à imersão psicológica, emocional e intelectual.
Alguns livros me tumultuam a alma; outros mais me assombram. Tantos e tantos me
extasiam; outros ainda me seduzem. Por vezes, um trecho me captura o espírito
de tal modo que pressinto algo de grandioso e óbvio demais para ser notado. E
de fato não o é.
Todos
os meus livros são marcados com riscos do grafite de minha lapiseira. Longos
trechos sublinhados ocupam páginas inteiras. Também costumo acomodar algumas
palavras ou frases junto aos parágrafos. Normalmente, reescrevo uma frase que
me chama atenção; outras vezes, assinalo minha anuência ou divergência, como se
o autor pudesse sabê-lo.
Com
a mesma seriedade e dedicação com que me envolvo na leitura, derramo-me na
confecção de meus textos, se bem que, mesmo os tendo lido mais de uma vez,
ainda encontro uma série de inconsistências. Por vezes, noto alguns equívocos.
Um blog permite que possamos modificar o texto original. Quando percebo um
torneio frasal mal formulado, apresso-me em consertá-lo. Se percebo uma palavra
mal avizinhada, trato de bani-la, pondo-lhe no lugar outra que assente melhor e
não gere conflitos. A semântica é uma senhora idosa que não suporta intrigas. É
preciso respeitá-la. Devem-se evitar os abusos, os desvios.
Gosto
de pensar a escrita como um artesanato, porque demanda trabalho manual guiado
pelo intelecto; mas não só, evidentemente. Também porque demanda cuidado,
atenção, paciência, treinamento e é sempre passível de aperfeiçoamento. Todo
texto é um tecido (aliás, a palavra “texto” do latim “texere”, significa,
originalmente, ‘tecer’). Tanto o texto quanto o tecido constitui-se de uma
estrutura: no caso do texto, uma estruturação de unidades linguísticas; no caso
do tecido, uma estruturação de fios (de algodão, lã, etc.). Normalmente,
pensamos em texto como um todo demasiado complexo, constituído pelo
encadeamento de muitos enunciados. Mas um único enunciado é um texto, desde que
produzido com uma função comunicacional reconhecível e num dado contexto de
interação. Esse enunciado ou texto pode ser apenas uma única palavra, como a
palavra “cuidado”, produzida com entonação ascendente por alguém que alerta
outra pessoa de um perigo atual ou iminente. A interjeição “ai!” é também um
texto, quando produzida por alguém cujo pé foi pisado ou cujo dedo foi
involuntariamente martelado, enquanto pregava um prego.
As
melhores lembranças que tenho da sala de aula são aquelas em que me via
trabalhando com a leitura. E me esforçava por fazer falar meus alunos, depois
que eles liam algum texto que havia proposto. Frustrava-me algumas vezes,
porque o silêncio inicial era bastante resistente às palavras; não o suficiente
para me fazer esmorecer. A paixão me guiava o debate. Quando acabava a aula e
já tendo notado no semblante dos alunos a expressão de satisfação de quem ficou
seduzido, deixava a sala certo de que a felicidade estará sempre ao meu
alcance. Regozijo-me com a docência. Deixava a sala com a certeza de que
ensinar é minha vocação. E aprender continuamente é um privilégio que
conquistei quando deixei as carteiras universitárias licenciado nas Letras.
Letras de que são feitos os livros; palavras puxando palavras formando cadeias
de mais e mais palavras que se vão acumulando na alma para provocar a magia...
a magia do saber.