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sábado, 12 de março de 2011

"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." (Adorno)

   O ideológico e a indústria cultural: um desafio pedagógico


São os homens, envolvidos num processo de produção material, que fazem a história da humanidade. O homem não se define apenas enquanto “ser”, mas, mormente, por seu “saber”. O homem é um ser natural humano que age tanto como “ser” quanto por seu “saber”.
Se lançarmos olhares sobre a organização dos homens no processo de produção, ao longo da história, não nos será custoso verificar que a humanidade é marcada por divisões contraditórias, que se caracterizam por lutas e conflitos que fazem mover a história: alguns são escravos; outros, senhores; uns são nobres; outros, servos; uns são operários, outros, patrões. Destarte, consoante ensinava Marx, a luta de classes é o motor da história.
É consabido que o sistema capitalista é, essencialmente, explorador. No capitalismo, tudo se transforma em mercadoria, inclusive os homens. No modo de produção capitalista, o operário vende sua força de trabalho, que se torna, pois, uma mercadoria, em troca de um salário. A função da mercadoria é atender a uma necessidade. No tocante à recepção pelo consumidor, deve-se ficar claro que essa necessidade é fabricada: oferecem-se as mercadorias aos indivíduos de tal sorte, que eles são levados a acreditar em que elas satisfazem suas necessidades. Há, no ato de consumir, uma satisfação que não se restringe ao objeto consumido, mas que transcende ao deleite proporcionado por ele. A satisfação, ou o gozo, reside no próprio ato de consumir – ato a que os indivíduos se abandonam através de uma vontade que atende aos imperativos do mercado. O consumismo, assim, levaria a um anestesiamento da consciência das massas.
A par do valor de uso de uma mercadoria, há seu valor estético. Tome-se a mercadoria “tênis”, por exemplo. Essa mercadoria tem um valor de uso, a saber, serve para calçar nossos pés. No entanto, não compramos tênis apenas pela razão de que eles servem para proteger nossos pés ou porque são necessários à mobilidade social (trabalhar, estudar, ir ao mercado, etc.); compramo-los também porque são sofisticados, porque exercem um efeito estético sobre nós. O acabamento da confecção, o designe, as cores, e outros recursos tecnológicos empregados, bem como a marca do fabricante são elementos que determinam a compra de um dado tênis. O tênis reveste-se, assim, de valores sociais referentes ao apelo estético que possui.
Para que se possa compreender o funcionamento das trocas de mercadorias no sistema capitalista, considere-se que, nas sociedades primitivas, um indivíduo que cultivasse abóboras podia trocá-las por outra mercadoria de que necessitasse (um tecido de linho, por exemplo). Todavia, não é o valor de uso que determina a troca, ou seja, que serviria de parâmetro para que se trocasse um par de sandálias por dois quilos de farinha, por exemplo.  Impunha-se estabelecer uma medida comum de troca. Essa medida comum é a quantidade de tempo empregado e necessário para a confecção da mercadoria. Assim é que, se o trabalho de um sapateiro, em termos de consumo de tempo, é maior que o de uma costureira, então é justo que um par de sapatos seja trocado por duas camisas. Ora, a confecção dos sapatos exigiu um consumo de tempo maior; logo seu valor de troca deve ser maior.
Hoje, ninguém troca mais um quilo de açúcar por um quilo de arroz, por exemplo. O dinheiro é o meio pelo qual as trocas são realizadas. Cabe lembrar que o preço de uma mercadoria não resulta exatamente de seu valor de troca; na verdade, na determinação do preço, entram fatores tais como custo da matéria-prima, tempo gasto na sua produção, produção e manutenção dos meios de produção, etc. Tais fatores constituem o chamado custo de produção. Na sociedade capitalista, é raro encontrarmos um sapateiro que fabrica calçados; em geral, o que se nota são indústrias de calçados.
Considere-se, agora, a estrutura de uma fábrica de calçados. Essa fábrica pertence a alguém. O dono da fábrica é que possui o capital, ou seja, ele é dono dos meios de produção e das mercadorias. É ele que comprará o couro e contratará os trabalhadores para confeccionar os sapatos. Terminada a confecção de um par de sapatos, por exemplo, o capitalista não poderá vender a mercadoria pelo valor resultante do preço do couro somado ao preço das horas de trabalho gastas, porque, senão, não obterá lucro algum. Para obter lucro, ou ele deverá vender o produto por um preço maior (o que nem sempre é possível, em virtude das condições do mercado), ou ele deverá pagar aos seus empregados um salário menor. Assim, se ele conseguir que os trabalhadores produzam dez pares de sapatos por dia e recebam apenas o correspondente ao valor (trabalho) acumulado em cinco pares de sapatos, o valor concentrado nos outros cinco redundará em lucro. Assim, no modo de produção capitalista, há um tempo de trabalho excedente não-pago; a diferença existente entre o salário pago aos operários e o valor de trabalho acumulado na produção da mercadoria constitui a mais-valia. A mais-valia, base do regime capitalista e prática econômica de exploração, tornou-se possível em um contexto sócio-histórico em que os trabalhadores, desapropriados dos meios de produção, reificados nos ambientes de trabalho, só possuíam a sua própria força de trabalho, a saber, a sua própria capacidade de trabalhar, como um produto passível de venda.
 Tomemos para reflexão o conceito de Indústria Cultural, doravante. A idéia fulcral que subjaz ao conceito de Indústria Cultural é a que toca à expansão da lógica da mercadoria para as esferas culturais. Assim, ao atuar na realidade humana e ao produzir novas necessidades, a Indústria Cultural oferece entretenimento com vistas a ocultar a contradição que resultaria da diminuição do tempo de trabalho. A Indústria Cultural impõe seu esquematismo aos produtores, reificando os homens, tornando-os peças da produção contínua e ampliada do capital. Avaliando a influência da televisão como parte do sistema da Indústria Cultural na vida cotidiana dos indivíduos, Renato Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo publicado no livro A Indústria Cultural hoje (2008: 113), escreve:


“Ela [a televisão] se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas penosas exigências do processo de trabalho, quer sejam estas físicas ou psicofísicas”.



O autor observa ainda que se trata de uma oferta ilusória que reforça a tendência anti-intelectualista da sociedade e que, oferecendo a diversão como uma espécie de subterfúgio às agruras do dia-a-dia, contribui fundamentalmente para a restituição da força de trabalho. A diversão é, assim, uma extensão do tempo de produção. Segundo Adorno, a diversão implica resignação. Tanto o processo de trabalho mecânico quanto a diversão dispensam a atividade do pensamento. Aliás, a televisão não reprime o exercício do pensamento, da reflexão; na verdade, ela não o exige. Diante da televisão, basta aos espectadores deixar-se embriagar pelo fascínio das imagens, que se transformam na totalidade do real. A fronteira entre a imagem e a realidade aparece à consciência de modo atenuado: a realidade produzida pela televisão acaba por se tornar, para os telespectadores, o próprio real. Nesse sentido, pode-se dizer, com Adorno, que a televisão promove a regressão da consciência.




“Essa regressão da consciência não é produzida, contrariamente ao que estamos acostumados a pensar, apenas pelo suposto baixo nível cultural impingido pela televisão comercial aos seus consumidores, mas, sobretudo, pelo conjunto dos aspectos implicados no consumo doméstico desse aparato tecnológico.”
(Franco, 116)


Tomando-se a atuação da Indústria Cultural no âmbito cultural, cabe observar que a cultura, pela ação desse sistema de entretenimento e manipulação social, sofre um processo de mercantilização, para cujo desenvolvimento concorrem a racionalidade da produção e a indústria. Assim, os vínculos culturais se revestem de homogeneidade e a Indústria Cultural confere a tudo um ar de semelhança. A dinâmica da Indústria Cultural se assenta na necessidade de repetição ilimitada e incessante de certos produtos. Essa repetição massacrante se observa nos programas de televisão, nas programações de rádio e em toda a indústria do entretenimento. Novamente, aqui, vale notar que a repetição engendrada pela Indústria Cultural, que martela na consciência dos indivíduos a necessidade de consumo, está relacionada à regressão dos nossos sentidos e de nossa condição humana – condição que se erige sobre duas faculdades especificamente humanas: pensar e saber.
No tocante à manipulação ideológica da Indústria Cultural, conforme já foi observado, os bens de consumo que são oferecidos às pessoas, apenas aparentemente atendem a necessidades que, por assim dizer, emanam delas. Os bens culturais são, na verdade, impostos como se fossem reivindicados pelos indivíduos. Através de uma rede de manipulações, na qual se incluem pesquisas de mercado promovidas pelos agentes da Indústria Cultural, vai-se determinando para toda a sociedade o que se deve fazer, como se deve fazer, o que se deve pensar, como se deve pensar, o que se pode ou não desejar, etc. Por isso, insistimos em que as supostas necessidades do público consumidor são, na verdade, imposições, são fabricadas por todo um complexo de ações institucionais, que influenciam o inconsciente do sujeito, fazendo-o acreditar que deseja determinado produto, que necessita consumi-lo, que se trata de algo indispensável a sua existência.
A Indústria Cultural é responsável por produzir indivíduos subjetivamente esvaziados que, no momento em que consomem, não só buscam uma identificação narcísica com o objeto manipulado, mas também se submetem docilmente aos imperativos do mercado.
Doravante, vamo-nos ocupar com um elemento das práticas sociais responsável pelo obscurecimento da realidade, ou seja, graças ao qual os homens representam para si a sua relação com as suas reais condições de existência: a ideologia. Portanto, na representação ideológica, consoante ensina Althusser, não é a realidade tal como é produzida pelos homens que se representa, mas a relação imaginária dos homens com sua própria condição real de existência.
Vamos assumir que a ideologia é um dos meios usados pelas classes dominantes para exercer sua dominação. A ideologia mascara as reais condições de existência dos homens. Obscurece as contradições, oculta a exploração do modo de produção capitalista. A ideologia se sustenta sobre a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas e sobre a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, entre aqueles que executam tarefas e aqueles a quem compete a produção das idéias, a quem cabe “pensar”. O trabalhador é, então, aquele que não deve pensar; deve tão-só despender seu vigor no processo de produção de mercadorias; o “pensador”, a seu turno, é aquele que, não trabalhando, se encarrega de produzir idéias.
Vamos adotar, para efeito de reflexão, o conceito marxista de ideologia em cujo cerne se acha a idéia de ocultação da realidade. A ideologia, consoante ensina Marilena Chauí (1980: 129), constitui:


“um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias, valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e com devem fazer. (...) A função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classe e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação ou o Estado”.



Fique claro, pois, que a ideologia é, por natureza, hegemônica, já que, necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, assim, constitui um instrumento de reprodução da ordem social que favorece a grupos dominantes.
Embora nos situemos na concepção marxista de ideologia, colhemos a contribuição do filósofo Mikhail Bakhtin que, ao tratar do conceito de ideologia, procura corrigir o equívoco perpetrado pelos marxistas, ao sugerirem que a relação entre a infra-estrutura e a superestrutura é direta. Em outras palavras, Bakhtin rever a proposição marxista, segundo a qual os acontecimentos da estrutura sócio-econômica repercutem imediatamente na esfera da superestrutura (em que se acham a cultura e a ideologia), situando a questão da ideologia não na consciência do sujeito, tampouco num universo supra-individual e transcendente, mas na esfera do cotidiano, o que o leva a propor uma ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano está em relação dialética com a ideologia oficial (a das classes e instituições dominantes). A ideologia do cotidiano é (re)produzida nos encontros casuais do dia-a-dia, nas esferas marcadas pela proximidade com as condições de produção e reprodução da vida.
Destarte, de um lado, se acha a ideologia oficial e dominante relativamente estável; de outro lado, a ideologia do cotidiano, relativamente instável. Ambas  em relação recíproca, constituindo o contexto ideológico pleno e único, inserido no processo global de produção e reprodução social.
Como adotássemos a perspectiva de Bakhtin, ao conceito de ideologia citado anteriormente deve acrescer-se a idéia de que a ideologia é a expressão de uma tomada de posição determinada. Essa tomada de posição redunda na adoção de uma perspectiva de classe, ou seja – considerando-se que o discurso é o lugar privilegiado da manifestação ideológica -, ao tomarmos posição em face de um assunto, de uma questão qualquer; enfim, ao participarmos das múltiplas práticas de linguagem, falamos a partir de um determinado lugar social, adotamos determinadas perspectivas, que, a seu turno, dizem respeito a posições de classes em conflito.
Tendo em conta que o discurso é o “lugar” da constituição do sujeito e da manifestação da ideologia, impõe-se considerar, em consonância com a perspectiva de Bakhtin, a natureza ideológica da palavra. Vamos assumir que toda palavra é signo ideológico. Em toda palavra utilizada, inscreve-se um “ponto de vista”. Toda palavra é tecida por inúmeros fios ideológicos, já que, ao tomar a palavra, o sujeito representa a realidade a partir de um lugar valorativo. A palavra acumula, assim, “as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade (...)”. (Stella, 2005: 178)
É preciso ter em conta, quando se considera o papel da palavra nas relações humanas, que a palavra é responsável pelo contato entre a consciência do sujeito – consciência cuja realidade é o signo – e o mundo exterior à mente, que também é constituído de palavras. A consciência é construída discursivamente, ou seja, pela inter-ação com o outro pela palavra.
Outrossim, na discussão sobre a ideologia, devemos reconhecer que o meio social envolve por completo o indivíduo. O sujeito tem natureza sócio-histórica e é função das forças sociais. O indivíduo se torna sujeito em virtude da interpelação ideológica, que o impele a tomar uma posição determinada.
Bakhtin ensina que, no nível da ideologia do cotidiano, as atividades mentais e a consciência ainda não ganharam um revestimento ideológico nítido. É somente no estrato da ideologia oficial que os conteúdos ideológicos ganham mais densidade e concretude, já que terão passado por todas as etapas de objetivação social, penetrando no eficiente sistema ideológico especializado e formalizado da arte, da moral, da religião, do direito, da ciência, da escola, da literatura, etc. À medida que as interações, no nível do cotidiano, se reiteram, reproduzindo padrões, vão-se integrando no sistema ideológico que se vem formando num determinado grupo social; assim, nos estratos superiores da ideologia do cotidiano, se consolidam as enunciações, as representações, que, então, se integram completamente ao sistema ideológico social.
Esperamos que fique elucidada a idéia de que o modo como os homens pensam, os conteúdos de sua fala refletem o modo como representam a sua relação com as suas reais condições de existência. Nossas opiniões, concepções, crenças sobre o real, sobre as relações sociais são produzidas nas práticas sociais, são produtos do meio sócio-cultural e ideológico em que nos situamos. Nosso ser é modelado pelo sistema social. Em suma, convém atentar para as palavras de Valdemir Miotello, que, em Bakhtin – conceitos-chave (2005: 176), escreve:


“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representações de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.


Para efeito de discussão, basta, de início, reter que as ideologias são produzidas nas práticas sociais, por homens sócio-historicamente situados. As idéias que nos ocorrem, as perspectivas que assumimos nas práticas discursivas não derivam de espaços transcendentes, “imaginários”, não brotam em nossa consciência, como a água emana de uma fonte. Não somos a origem do que dizemos: o sujeito não é a origem do seu discurso – tem apenas a ilusão de sê-lo;  ele é uma espécie de estação dos discursos; nas práticas discursivas, estamos constantemente reproduzindo outras práticas discursivas, adotando idéias, opiniões, argumentos, perspectivas veiculadas por outros discursos circulantes. A forma como representamos discursivamente a realidade é resultado do modo como nos relacionamos com essa realidade.
Um conceito que não pode ser ignorado, na consideração da ideologia, é o de alienação. A alienação torna possível o fenômeno ideológico. Consiste a alienação no fato de os homens não se reconhecerem como agentes sociais da história, como agentes produtores de suas próprias condições de existência. Ao contrário, alienados, eles se consideram produzidos por tais condições, eles se reconhecem como meros produtos da realidade, e não mais como produtores dela. A alienação inverte a relação entre realidade e produtor, de sorte que o produtor (homem) se torna o produto da realidade, a qual, por sua vez, torna-se uma entidade supra-individual que o domina, que o oprime, que o controla e esmaga. Os homens, alienados, atribuem a origem da vida social a causas “superiores”, sobre as quais eles não têm controle, tais como “deuses”, “natureza”, “razão”, “Estado”, “destino”, etc.
A título de ilustração de perspectivas ideológicas, assumir que o papel de mãe é um dom natural de toda mulher é assumir uma posição ideológica, ou seja, uma perspectiva afinada com os interesses das classes dominantes, uma vez que oculta o fato de que ser mãe é um papel determinado socialmente, e não um “dom natural”. Tampouco é uma posição a que toda mulher está predestinada. De certo modo, “ser mãe” não deixa de ser uma imposição social, já que existem expectativas sociais que acabam por “forçar” as mulheres a assumir a posição de “mãe”. Considere-se ainda dois temas tabu na sociedade, a saber, a virgindade das meninas e a homossexualidade. Tomemo-los no âmbito da família pequeno-burguesa e reconheçamos, de imediato, que, não obstante a verborragia institucional que acarretam, a valorização da virgindade das meninas e a repressão ao homossexualismo, quer entre os meninos, quer entre as meninas, têm razões que permanecem sob o véu ideológico e que, portanto, são ocultadas. Na família pequeno-burguesa, é necessário conservar a autoridade paterna e a domesticidade materna como forças para retardar o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, os quais serão úteis quando se tornarem arrimos econômicos, garantindo, assim, a unidade familiar. Por um lado, a defesa da virgindade está em consonância com a necessidade de evitar o fracionamento do capital: evita-se, assim, a constituição de novas famílias e a partilha do patrimônio acumulado decorrente da nova condição. Por outro lado, a repressão ao homossexualismo está afinada com o fato de que, nas relações homossexuais, não há reprodução e, portanto, não há vínculos familiares, que permitirão a reprodução do capital, pela geração de novos indivíduos para a inserção no processo de produção capitalista.
Se a ideologia mostrasse, por exemplo, que a repressão sexual e a conservação da virgindade estão ligadas à necessidade de conservar a energia vital para o trabalho, já que a atividade sexual diminui a rentabilidade e produtividade do trabalho alienado, ela se esfacelaria, não seria mais ideologia. Isso se deve ao fato de que a ideologia é, necessariamente, um sistema coerente e racional lacunar. Em outras palavras, o discurso ideológico é, por excelência, um discurso repleto de silenciamentos, de vazios, de lacunas. A ideologia é, assim, coerente “não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas” (Chauí, 1980: 130).
Conquanto não nos seja possível discorrer sobre esta questão neste texto, esperamos que a reflexão que desenvolvemos até aqui faça erigir a tese de que uma educação que se pretende transformadora tem de propiciar condições para a problematização das visões de mundo, das perspectivas ideológicas assumidas discursivamente e incorporadas pelos aprendizes de modo quase inconsciente. O trabalho com a prática de leitura deve atuar no nível da estrutura ideológica do texto, patenteando aos alunos as lacunas, os silenciamentos, as posições ideológicas assumidas pelo sujeito – sujeito que se apresenta no discurso de formas várias.  Durante a prática pedagógica, o professor deve-se esforçar por levar os alunos a se aperceberem do aparelhamento ideológico de que se serve a sociedade com vistas à conservação do status quo, pela imposição de padrões, de modelos de comportamento, atitudes, crenças, etc.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Indústria Cultural

            Aspectos (de)formativos da indústria cultural 
                                   revisitando a questão




Para compor este texto, foi necessário, obviamente, um estudo prévio, que demandou leitura bem variada e aturada de livros e artigos. À medida que lia, tomava notas de passagens dos textos, dava-lhes meus próprios contornos, estabelecendo, tanto quanto possível, as devidas relações entre elas. O esforço empreendido em organizá-las de acordo com um princípio de coerência semântico-discursiva não me livrou de experimentar um caos intelectual, quando me dei conta de que não mais reconhecia as conexões entre elas.
A essa dificuldade acrescente-se a própria complexidade nas quais estavam implicadas as questões. Impõe-se, então, reconhecer uma tarefa em cuja realização deverei empregar todo o vigor de meu espírito: tornar este texto inteligível ao leitor não iniciado.
Começarei, pois, parafraseando Kant: “despertei de meu sono encantado”, quando comecei a estudar sobre o conceito de indústria cultural e a compreender os processos de subsunção e dominação dos indivíduos mediante a transformação de bens culturais em mercadorias destinadas ao consumo de massas. Contudo, cuido ser importante que não me apresse, pois que não só poderei tropeçar nas palavras, como também confundi-lo, leitor.
Antes de fazer incursão no terreno do que se tem entendido por Indústria Cultural, conceito que remonta aos filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, convém situá-lo no interior da sociedade pós-moderna do capitalismo avançado.


1. Contexto sócio-histórico

A decadência das imagens e representações de inspiração religiosa e divina representa a dissolução do que restava de uma era pré-capitalista. As transformações históricas subsequentes – sociais, políticas e econômicas – que ocorreram desde o fim do século XIX e que se tornaram mais intensas a partir do século XX, mormente na Europa Ocidental, expressaram-se em termos de industrialização, urbanização e uma profunda reorganização da sociedade. Essas transformações carrearam novas formas de dominação social, dando ao conceito de ideologia novos contornos.
Urge, ter em conta, portanto, para a adequada compreensão dos mecanismos opressores e reificadores da indústria cultural, o contexto da pós-modernidade caracterizado pela saturação de imagens, pela influência massificadora dos simulacros nas condições de vida e de trabalho dos indivíduos (valores, práticas sócio-culturais). Essa sociedade, imersa em simulacros, em imagens que acabam por corresponder à totalidade do real é chamada por Guy Debord, filósofo e diretor de cinema, sociedade do espetáculo. Espetáculo, aqui, deve ser entendido como aparência. A sociedade do espetáculo é a afirmação de toda a vida humana como simples aparência. É, em síntese, a transformação da experiência humana em aparência.
A carência espiritual, decorrente do declínio das imagens divinas, veio a ser suprida com as imagens fornecidas pela industrialização e pela comercialização e pelo consumo de produtos numa escala mundial. A força de produção das imagens exerce influência nos processos formativos das pessoas. O que aparece e está em destaque esgota a totalidade do real.
Na sociedade do espetáculo, contrariamente ao que propunha Descartes, o juízo é mantido em suspenso quase permanentemente e este estado é reforçado pelo esquematismo da indústria cultural, o qual é responsável por impingir aos indivíduos um verdadeiro adestramento espiritual, fazendo-os acreditar que as ideias que possuem são inerentes à sua verdadeira consciência. Os indivíduos, então consumidores, permanecem entorpecidos, estado do qual só saem, caso se sintam impressionados.
Os indivíduos são induzidos ao consumo dos produtos culturais disponibilizados pela indústria cultural com a promessa de felicidade de que eles se revestem. O consumo de tais produtos sinaliza para o tipo de inserção social do indivíduo, cujo sucesso depende de sua identificação com os valores e produtos que se transformam em mercadorias.




1.2. Indústria cultural: sua atuação e dominância

Ignorando a problemática conceitual resultante da aproximação dos vocábulos indústria e cultura, para a composição do termo “indústria cultural”, é lícito considerá-lo como expressão do caráter industrial e padronizado da produção cultural, que se intensificou com o desenvolvimento da indústria e com a racionalização das técnicas de divulgação e distribuição de seus produtos, os quais foram destituídos de seu valor humano, resultado de trabalho espiritual e criativo, para destinarem-se ao consumo de massas carreando em si uma finalidade de dominação ideológica.
Os produtos culturais fabricados e seriados em processos industriais, disponibilizados pela indústria cultural, sucumbem aos interesses ideológicos, os quais se expressam por meio de um discurso que exalta e reitera o desejo pelo novo e pelo progresso, desejo que é criado nos indivíduos. A dinâmica que engendra a produção e comercialização dos bens culturais mascara, por força da ideologia, a verdadeira e mais antiga motivação do mercado: a obtenção de lucro.
Como bem observam Adorno & Hokheimer (1985: 95), a cultura, ao servir à comercialização, perde sua aura. As produções artísticas são destituídas de seu caráter transcendente e de sua função crítica e contra-hegemônica para tornarem-se meras mercadorias de consumo. As pessoas, por sua vez, consomem passivamente, ou seja, embotada sua consciência crítica, não precisam despender energia psíquica em tão prazerosa atividade. A indústria cultura promove a banalização e vulgarização da cultura e torna a consciência dos homens-consumidores infantilizada e regredida. A violência ideológica aí consiste em subestimar a capacidade espiritual e de compreensão dos indivíduos e de subjugar sua consciência. A semiformação fomentada pela indústria cultural é responsável pelo conformismo, o qual se expressa, consoante ensina Marcondes (2008: 53):

“[em] comportamento de dependência social e moral consistindo para um indivíduo em adotar de modo mais ou menos mecânico ou inconsciente sem exame ou espírito crítico, as opiniões, as normas, os modelos, os costumes e usos de seu meio social ou do grupo com o qual se identifica; aceitação do status quo”.

A indústria cultural atua no sentido de produzir uma regressão de consciências, de sorte que os indivíduos, impedidos de se auto-diferenciar, compõe juntos uma massa homogênea.  Os procedimentos empregados pela indústria cultural servem para iludir, manipular, fazendo da aparência a verdade. Dá-se um empobrecimento da produção cultural.


1.2. O poder ideológico

O conceito de ideologia é um desses conceitos para os quais há inúmeras definições, de acordo com o autor e sua perspectiva teórica. Limito-me, aqui, a considerá-lo como forma de representação do aparecer social de tal modo, que esse parecer se torna a realidade social. A ideologia, portanto, mascara ou oculta a realidade, invertendo a relação entre ela e as ideias: nos processos ideológicos, o real não justifica as ideias; ao contrário, são as ideias que justificam o real. Esta concepção de ideologia como forma de ocultamento da realidade social remonta à Marilena Chauí (2006).  Creio ser esta concepção adequada à discussão que ora desenvolverei.
A ideologia está a serviço da hegemonia. Sua função é deformar e manter o status quo, legitimando as condições de injustiça e opressão sociais. Conquanto a ideologia são se confunda com indústria cultural, é inegável a relação intrínseca entre elas. Parte inerente dos mecanismos de dominação e manipulação da indústria cultural, a ideologia estabelece padrões de comportamento que visam ao conformismo.  Os homens passam a acreditar que as ideias, então adquiridas, sejam suas próprias ideias.
A ação ideológica torna-se ainda mais perniciosa quando da observação do fato de que ela se traveste de um pseudo-liberalismo alicerçado na liberdade e na autonomia individuais, de sorte a impedir aos homens a livre expressão de sua individualidade e de sua singularidade.  Não há, portanto, espaço para subjetividades, as quais são convertidas numa organização totalitária de modos de pensar, agir e sentir.
A ideologia produz uma falsa consciência e padroniza a expressão do pensamento. A falsa consciência impede a autonomia intelectual.


2. A função da estandardização e da racionalização

A estandardização consiste no processo pelo qual os bens culturais são padronizados quando de sua fabricação e colocados em larga escala para a satisfação de massas de consumidores. Trata-se da produção em série do modelo fordista aplicado à cultura. O que se verifica, nesse processo, é a incansável repetição de padrões.
A estandardização da cultura, então transformada em cultura de massa, leva os indivíduos a se comportarem segundo certos padrões e esquemas, os quais são responsáveis por: a) imobilizar suas capacidades de autonomia de expressão; b) levá-los a identificar-se com as formas heterônomas que os homogeneízam.
A racionalização, a seu turno, encarada na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, pode ser entendida como

“a justificação de certas práticas de dominação como necessárias ao progresso e ao desenvolvimento social, ocultando, entretanto, os verdadeiros interesses da classe dominante”.
(Marcondes, 2006: 234)

A racionalização também pode ser entendida como uma técnica aplicada a um processo de produção a fim de torná-lo menos dispendioso e mais eficaz.
A aplicação da técnica e da ciência ao campo da comunicação fez com que elas deixassem de ser forças produtivas para tornarem-se instrumentos de poder e de dominação. Seu poder consiste em alienar e massificar os indivíduos das sociedades industriais e altamente administradas.
A razão instrumental, na medida em que fomenta processos de produção destinados a um fim (pois é isso que pressupõe), torna as relações entre homem e natureza e dos homens entre si, basicamente, instrumental, pragmática e utilitária.
Contra esse esvaziamento espiritual e emocional das relações humanas, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa, através da qual se poderia alcançar a revolução das relações humanas na dimensão cultural, a qual compreende arte, emoções, mitos, tradições, etc.


3. Considerações finais

A complexidade da questão levar-me-ia muito mais longe, o que não seria conveniente, dados os modestos propósitos desta exposição.  Muitos problemas ficaram em aberto, tais como o papel da mídia (televisão, rádio e cinema, especialmente) no processo de embotamento e de regressão das consciências, visto ter ela um poder, claramente, intensivo e manipulador; a realização efetiva da democracia, a qual não parece possível se não inclui as condições culturais; a liberdade relativamente ao impedimento de autonomia individual perpetrado pela ação da indústria cultural, etc.
A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador, após ter estado durante grande parte do tempo envolto aos livros – estas janelas que me abrem o mundo, que me traz à consciência as formas perniciosas de opressão, alienação e massificação sociais, cujo agravamento se atribui, em grande medida, à indústria cultural. Estou eu aqui inquieto, mas consciente desta existência frenética, acelerada e fugaz, que se escorre na liquidez do tempo moderno.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


Ideias

Minha alma abriga muitas ideias; eu as tenho em penca. Algumas são mais nobres; outras, mais grosseiras; outras mais são bem encorpadas; algumas outras são esquálidas. Há ideias ufanas; outras, humildes; algumas edificantes; outras destrutivas. Há ideias dolorosas; outras que, embora prazerosas, devem ser dolorosamente esculpidas.
Ideias são o que movem este complexo orgânico-corpóreo em cujo cérebro eu resido. Este centro nervoso orgânico é, contudo, demasiado pequeno em face da imensidão de minha alma e de suas ideias. Sucede, entretanto, que não é o espírito que faz a História, tal como o cria Hegel. Marx não hesitou em demolir este idealismo. A História é feita por homens concretos em suas relações nas esferas de produção. Essas relações, contudo, são caracterizadas por opressão, injustiças, alienação e desigualdades.
A vida me é uma carga muito pesada, que tenho de arrastar até que a morte, querida amiga, me liberte com a sua leveza.
Ainda que as ideias, como sejam virtuais, não resistam à inexorabilidade da facticidade (no sentido de Sartre), tendo de se conformarem a ela, precisam obedecer ao princípio de realidade, tal como definido por Freud, qual seja, a necessidade de encontrar alternativas que satisfaçam aos apelos transgressores do id, satisfazendo as exigências do superego.
No entanto, não levo muito a sério toda essa parafernália conceitual do psiquismo freudiano. Não sei que haja uma sombra de concretude. É apenas hipótese. Não há certeza. As certezas são inúteis na vida, não valem sequer o pãozinho de cada manhã. A única certeza inabalável a que os homens têm direito é a certeza de sua finitude. A morte levará o corpo à deterioração em pouco tempo, menos tempo do que ele levou para alcançar a forma adulta e plenamente desenvolvida. Isso não significa que seja longa a vida; ao contrário, sua fragilidade é surpreendente: pode findar no curto lapso que separa o deslocar de um pé da calçada à rua. Nossa alma não é capaz de apreender a vida em toda a sua extensão; nossa memória se funda no esquecimento; e a vida nos escapa a cada instante; cada novo dia é menos um dia de vida. O nascimento marca o começo de nosso esgotamento. Nossa vitalidade vai se esvaindo gota a gota; mas isto se dá quando nossa vida transcorre sem muitas tempestades e contratempos, pois que não é rara a possibilidade de que ela seja tragada num átimo.
Invejo as pessoas que estampam na face uma alegria gratuita, muito embora relute contra as paixões da alma e preze as virtudes. Não se precipite em julgar, caríssimo leitor, ser eu insatisfeito, tampouco ser-me aprazível cultuar o sofrimento e o tédio. Não condeno a alegria; persigo-a diariamente. Sucede que não me basta sua aparência; ela precisa ser consubstanciada, ter entranhas, ser transcendente. É que procuro continuamente me autotranscender. Para mim, o ser dos homens é autotranscendente. A autotranscendência define-se como se segue (Mondin, 2009: 74):
“[sua meta] é a de reencontrar a si mesmo por meio da aquisição de um ser mais verdadeiro, mais próprio e mais autêntico, realizando uma ação mais plena e mais completa das próprias possibilidades”.
Concluo, pois, que autotranscendo toda vez que escrevo, pois que, ao fazê-lo, releio-me, me re-intepreto, me decifro. Procuro, mediante a laboriosa prática da escrita, potencializar a latência de minhas ideias demasiado elevadas. É nesse instante em que minha alma alivia-se das incumbências pesadas da vida; liberta-se, ainda que por algumas horas, de suas garras opressivas.
Não me agrado das pessoas que não experienciam esse reencontro consigo mesmas, que vivem com os ouvidos voltados para a exterioridade, a fim de captar sua balbúrdia, ao invés de recolher-se ao silêncio de sua interioridade. Quão difícil é experienciar a densidade, a espessura nos relacionamentos de hoje! O que se percebe é a superficialidade das aparências, o culto à vulgaridade, a pasteurização da chanchada, agora sob a forma de programas televisivos que combinam a insignificância com o grotesco e os servem num mesmo prato ao telespectador faminto por entretenimento alienante. Um dia desses, assistindo ao programa Pânico na TV, da Rede TV, - não por vontade, mas por pachorra, que me impedia de opor-me ao comando do controle remoto, já que quem o detinha era meu pai – fiquei realmente assombrado com a baixa qualidade daquele produto televisivo. Em cena, estavam os apresentadores do programa; e sentado, numa cadeira, um homem muito gordo. Cada um daqueles arriava um pouco as calças, de modo a deixar a bunda de fora e deitava de bruços sobre o regaço do gordo. Perguntar-me-ia o leitor: com que propósito? Esta talvez não fosse a pergunta adequada, pois a bizarrice não carece de finalidade. Ocorreu, então, que, uma vez debruçado sobre as coxas do gordo, que estava sentado, um apresentador do programa levava uma forte e única palmada nas nádegas, sob o escândalo de gargalhadas de seus colegas de trabalho. Era um espetáculo bizarro de vulgaridade; um declarado atentado contra o intelecto dos telespectadores – ou contra o pouco do que ainda lhes restava. Este exemplo ilustra bem a idiotização a que é submetida a massa de (tel)espectadores, segundo Adorno. É um exemplo claro da baixa qualidade dos produtos oferecidos aos indivíduos pela Indústria Cultural.
Minha alma é um caldeirão de ideias fervilhantes. Em mim, o pensar se identifica com o ser. Pensando o ser, vou-me repensando. A linguagem e os pensamentos (ou ideias) são o maior legado que um homem pode deixar à posteridade. Esta é uma lição que todos os pais deveriam ensinar a seus filhos. Tudo o mais é efêmero, degradável. A escrita foi, sem dúvida, a maior das invenções humanas, porquanto por ela pode-se conservar vivos os filhos do espírito.
Não concordo com qualquer forma de reducionismo, por isso rechaço a crença num fisicismo. Não somos apenas um complexo físico-orgânico. Sinto-me atraído pelo dualismo cartesiano. Creio em que para além do corpo há uma alma, uma substância imaterial. Há um substrato imaterial que é envolvido pela estrutura orgânico-corpórea. Afinal, temos consciência superior – uma capacidade sensível e intelectual, graças à qual podemos analisar, sintetizar, avaliar, compreender, representar os objetos por meio de ideias, de conceitos. São várias as formas de consciência, dentre as quais se destaca a consciência reflexiva. Com esta refletimos sobre os produtos de nosso pensamento e sobre nosso eu-mesmo. A esta devemos a possibilidade de conceber o self como diferente do corpo. Não sou um corpo, sou um espírito – um ser imaterial – vivendo num corpo. Essa concepção não poderia vir de outra realidade, senão da consciência humana, que é capaz de negar sua própria condição corpórea - a única, aliás, que lhe permite viver no mundo.
A vida no mundo requer corpos, matéria. A força da gravidade atrai os corpos para o chão; esta lei nos obriga a ter os pés no chão, por isso não ficamos a flutuar pelo céu. Minhas ideias, no entanto, flutuam, alçam vôos, para anunciar a liberdade de meu espírito, em que pese à austeridade da matéria.