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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"Se a alma humana é imortal, um crente do século XXI é tão imortal quanto o homem de neandertal" (BAR)


            
             Das gerações – enquanto existimos


A morte de um parente – como sucedera recentemente com minha avó materna – leva-nos a nos confrontar com o fato de que nossa existência é finita. Minha mãe hoje declarou-me: não importa quão dolorosa seja a morte de uma pessoa que amamos, temos de continuar a vida. Uma dolorosa verdade, sem dúvida: depois da morte, a vida deve continuar.
Assumir o ateísmo, afirmar a inexistência de qualquer divindade, de qualquer providência divina implica negar a existência da alma, como uma espécie de holograma, como uma entidade imaterial que, não obstante, é representada com contornos corpóreos (pense nos espectros representados no cinema). Assumir o ateísmo implica negar a possibilidade de uma existência a-corpórea ou espiritual depois da morte. Para os ateus, a morte é o fim da vida consciente; não há vida pós-morte; não há alma que transcenda à matéria.
É claro que a negação da vida pós-morte é baseada em evidências. Quando vemos um corpo num caixão, vemos um corpo imóvel, destituído de suas funções vitais (não há atividade cerebral, batimento cardíaco, respiração, etc.). Ninguém que morreu se manifestou a algum de nós, vivos, para nos dizer se há ou não uma vida após a morte. Mas, principalmente, há o fato de que algo como espírito (no sentido metafísico) não existe no universo materialmente organizado.
Muitos pensadores ateus insistem no fato da pluralidade de religiões ou cultos, cada qual deles com suas divindades. As três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) professam a crença em um único Deus, supostamente o verdadeiro. Os demais povos que não professam a crença no deus de Abraão, de Jesus Cristo ou de Maomé estariam errados. A pluralidade de religiões é, assim, mais uma evidência de que elas são criações culturais, humanas. Afinal, é razoável supor que, se o Deus de uma das três religiões monoteístas aqui referidas fosse o Deus verdadeiro, ele poderia revelar-se a todos os povos, de modo a contribuir para que todos, ao cabo, abraçassem a mesma crença (quem sabe assim pondo-se um fim às guerras ideológicas da fé?!).
Quem tiver a oportunidade de ler Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey, conhecerá muito sobre a trajetória humana neste planeta, desde o aparecimento dos primeiros hominídeos nos territórios do Quênia, Tanzânia e Etiópia (na África) até o século XX. A relação humana com o sobrenatural é, como sabemos, antiquíssima. Naquela obra, podemos ler a respeito da civilização que floresceu na Mesopotâmia, em 3.700 a.C.:

“Os sacerdotes, com seus rituais, sacrifícios e orações, pediam que os ventos soprassem na direção certa trazendo e molhando o chão ressecado. Imploravam também, quando suas preces eram atendidas além da medida, que a água das enchentes baixasse. E mais: proclamavam as maravilhas do universo”.
(p. 53)

Sabe-se que muitos povos primitivos atribuíam à natureza um simbolismo mágico. A ignorância desses povos tornava-os suscetíveis à atribuição de divindade a corpos celestes. Vejamos as passagens abaixo:

“Nas tribos nômades e nos vilarejos rurais, os fenômenos meteorológicos causavam muito medo. Na Tasmânia, os aborígenes ficavam apavorados com as grandes tempestades. “A chuva forte da noite”, escreveu um observador branco em 1831, “seguida do lampejo vívido de raios e de trovoadas ensurdecedoras fez os nativos demonstrarem enorme temor”. Na noite seguinte, a visão de uma “faísca elétrica” no céu escuro provocou gritos de pavor. Talvez a simples ideia de ser atingido aumentasse o medo (...)”
(p. 41)

“Os povos nômades, que viviam sob as estrelas, e os povos já estabelecidos em lugares fixos, que viviam sob os céus sem nuvens das primeiras civilizações do Oriente Médio, tinham toda a razão em observar o céu noturno – em noites sem Lua, era um tapete maravilhoso estendido sobre eles. Seu aspecto mudava constantemente, e os padrões das alterações eram observados e comentados. No clima seco da Austrália Central, onde não existiam rios permanentes, alguns grupos aborígenes consideravam a Via Láctea um grande rio celeste. Aos olhos de muitos povos, criaturas poderosas viviam no firmamento. Para outros, um buraco escuro na Via Láctea era a casa do demônio”.
(pp. 42-43)

Também na Idade Média, muitas pessoas, inclusive sacerdotes, acreditavam poder determinar o local exato onde morava o demônio.
A crença em que forças sobrenaturais (divinas ou demoníacas) estariam atuando por detrás dos fenômenos naturais, ou melhpor, seriam responsáveis por eles, remonta aos nossos antepassados. Naqueles tempos muito remotos, os seres humanos mantinham uma relação mítica com o universo natural; foram necessários milhares de anos para que o pensamento mítico fosse abalado pelo advento do pensamento racional.
Outro interessante testemunho de nosso gênio criativo para o misticismo religioso é dado por Daniel Dennett em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural. À página 109, no capítulo As raízes da religião, escreve:

“Os jivaro, do Equador, acreditam que você tem três almas, a alma verdadeira, que você tem desde o nascimento (esta volta ao seu lugar de nascimento depois da morte, e aí se transforma num demônio, que morre, por sua vez, virando uma mariposa gigante, que quando morre vira nevoeiro); a arutam, uma alma que você obtém por meio do jejum, banho em uma cachoeira e tomando um sumo alucinógeno (torna você invencível, mas tem o hábito infeliz de ir embora quando você está em dificuldade); e a musiak, a alma vingadora que foge da cabeça de uma vítima e mata seu assassino. É por isso que você tem que ficar fora do alcance da cabeça de sua vítima”.

Talvez, você se ria de uma crença tão fantástica, mas me pergunto sobre se há uma diferença fundamental entre crer numa alma que vira uma mariposa gigante e crer no Espírito Santo ou na ascensão de Cristo corporificado ao céu, ou ainda crer em que uma pequena rodela de pão ázimo e um pouco de vinho num cálice são realmente o corpo e o sangue de Cristo transformados.
O caso dos habitantes da ilha de Tana, no Pacífico, quando da chegada das forças norte-americanas, durante a Segunda Guerra Mundial, patenteia-nos quão ingênua é a crença num Messias. Os soldados americanos foram à ilha para recrutar trabalhadores que ajudassem na construção de uma pista de pouso e de uma base na ilha Efate, que era uma ilha vizinha de Tana. O retorno dos trabalhadores foi repleto de histórias sobre homens brancos e negros que possuíam riquezas inimagináveis ao povo de Tana. Os ilhéus ficaram confusos. Os que foram convertidos ao cristianismo deixaram de ir à igreja e iniciaram a construção de pistas de pouso, armazéns, capacetes, modelos de aviões esculpidos. Não tardaram a marchar com as letras USA pintadas, esculpidas ou tatuadas no peito e nas costas, professando a crença em John Frum como seu Messias (não há nenhum registro de que John Frum foi o nome de algum soldado americano).
Acompanhemos, nas palavras de Daniel Dennett, citando MotDoc (2004), o restante desse fato:

“(..) Quando o último GI norte-americano foi embora, no fim da guerra, os ilhéus previram o retorno de John Frum. O movimento continuou a florescer e, em 15 de fevereiro de 1957, uma bandeira norte-americana foi erguida na baía Enxofre para declarar a religião de John Frum. Nesse dia, todos os anos, é comemorado o Dia de John Frum. Eles acreditam que John Frum está esperando escondido no vulcão Yasur com seus guerreiros para entregar seus presentes ao povo de Tana. Durante as festividades, os anciãos marcham em uma imitação de exército, um tipo de treinamento militar misturado com danças tradicionais. Alguns levam imitações de rifles feitas de bambu e usam memorabilia do exército norte-americano, como bonés, camisetas e casacos. Eles acreditam que seus rituais anuais atrairão o deus John Frum do vulcão e entregarão sua carga de prosperidade a todos os ilhéus [MotDoc, 2004]”
(p. 111)

A visão de mundo apocalíptica, na bíblia, apontava uma destruição absoluta e iminente do mundo. No Evangelho de Marcos, disse Jesus que alguns de seus discípulos não provariam a morte antes da chegada ao poder do Reino de Deus. Aconteceu, contudo, que a geração passou e o Reino de Deus, cuja vinda era iminente, não veio (v. Ehrman, 2008).
No tocante à possibilidade de sermos nós, seres humanos, dotados de uma alma transcendente imortal, uma visão ateísta, para ser coerente, deve ater-se às evidências, todas apontam para a impossibilidade disso.
Eu aceito, sem inquietude e desespero, felizmente, o peso das evidências: nossa vida consciente sucumbirá à morte. Estou ciente de que os homens conferem à sua existência significações que lhes são caras. Acreditamos que gozamos de privilégios existenciais em comparação com as demais formas vivas, quer tenham alguma forma de inteligência desenvolvida ou não: somos amados por um deus todo-poderoso e somos dotados de uma alma que gozará da vida eterna após a morte. Mas, e se estivermos errados?
Nossos antepassados estavam errados ao endeusar estrelas? Povos primitivos atribuíam divindade ao sol. Estariam eles errados?
Recentemente, um furacão, chamado Irene, atingiu o Canadá e os Estados Unidos, matando, nesse último país, mais de dezoito pessoas.
(http://www.sidneyrezende.com/noticia/143211+furacao+irene+deixa+canada+sem+energia+eletrica).

   Assistindo a mais um dos sem-número de eventos naturais catastróficos, no Fantástico, ontem, concluí: ‘estamos diante de mais uma dentre as milhares evidências de que a natureza mostra sua força cega, indomável e soberana’. O que eu via era uma força extraordinária de uma natureza onipresente, que não dá espaço para nenhuma forma de deus todo-poderoso.
Fico pensando onde estão nossos antepassados? Seus espíritos ainda sobrevivem em algum lugar transcendente? Ou seremos só nós, homens civilizados da era moderna, os beneficiados pela imortalidade da alma? Serão os nossos deuses os vitoriosos, ao fim de nossa breve passagem pela vida?
O que sei (e sabemos todos) é que muitas gerações já passaram e as que estão vivendo também passarão. Outras mais, muito provavelmente, surgirão. É possível que as novas gerações venham a superar muitas de nossas ilusões, fantasias e crendices. É possível que essas gerações superem as formas de religiões existentes e estabeleçam outras, ou as eliminem a todas. Quem sabe essas gerações superem o a irracionalidade religiosa e alcancem um grau mais elevado de aperfeiçoamento moral e racional?
Penso ser assim a nossa existência: atravessada por gerações que se esforçam por trabalhar a relação dialética entre tradição e inovação, entre o velho e o novo, entre a conservação e a ruptura. Não podemos nos esquecer de que nós, hoje, pertencemos a uma geração de seres humanos que vivem num mundo secularizado (embora ainda marcado pela tensão entre racionalidade e fé) e, enquanto existimos, existem também as nossas visões de mundo, crenças, verdades, mas outras gerações também existirão e também produzirão e conservarão suas visões de mundo, crenças e verdades.
Se a crença na imortalidade da alma revelar-se verdadeira (um dia?), então um cristão do século XXI é tão imortal quanto o homem-de-neandertal.