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terça-feira, 4 de setembro de 2018

"A realidade é meramente uma ilusão apesar de ser uma ilusão muito persistente." (Albert Einstein)


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  O meu olhar sobre o incêndio no Museu Nacional
O que as labaredas nos revelam sobre a condição humana?



O dia 2 de setembro de 2018 será marcado historicamente como o dia em que o Brasil e o mundo viram, com profundo pesar, um vasto acervo histórico (com mais de 20 milhões de itens) ser quase completamente consumido pelas chamas de um incêndio por cuja prevenção nossas autoridades políticas nada fizeram, a despeito dos inúmeros alertas feitos sobre a necessidade de adoção de medidas que, se não evitassem o incidente, contribuíssem, ao menos, para diminuir seus danos. Todos os jornais nacionais e internacionais, ao tratar o incidente como uma tragédia, não cessaram de sublinhar a ideia de que o incêndio no Museu Nacional representa uma perda lastimável de um patrimônio cultural cuja importância é reconhecida por toda a humanidade. Enquanto a maioria das pessoas, especialistas ou leigos, acompanhando a mídia em suas avaliações estereotípicas, pelas quais o incidente foi categorizado, por exemplo, como “uma devastação da história, da ciência, das artes e da memória brasileira”, reproduz a ideia de que um patrimônio cultural  foi destruído, eu gostaria de chamar a atenção para um aspecto muito mais profundo e trágico que a grande maioria das pessoas não soube reconhecer, ao assistir, incrédulas e pesarosas, às chamas consumindo o Museu. O meu olhar sobre o triste incidente é um olhar filosófico; é, portanto, uma forma de interpretação cuja elaboração e densidade ontológica não é imediatamente acessíveis aos não filósofos.
As pessoas, em geral, ao reproduzirem a ideia de que o incêndio no Museu Nacional representou a perda de um “patrimônio cultural”, pressupõem, em sua fala, o seguinte significado de “cultura”: conjunto de instituições como a arte, a literatura, a música, a dança, a ciência, a religião, etc. É o que estudiosos como Milton Bennett chamam de cultura objetiva. A cultura objetiva – também chamada de cultura material – encerra tudo que é produzido pela atividade humana e que por ela é transformado. Essa dimensão da cultura é acessível à experiência sensível dos membros de uma sociedade. Quando as pessoas comuns falam, então, de “patrimônio cultural”, estão se referindo a essa herança cultural material que é comum a uma sociedade. Mas cultura também apresenta uma face subjetiva. Nesse caso, Bennett fala em cultura subjetiva como o conjunto de crenças, valores, conhecimentos, ideologias; enfim, símbolos que modelam e informam a vida das pessoas nas relações que estabelecem entre si em sociedade. Não pretendo levantar um inventário das inúmeras propostas de conceituação da cultura. Quero apenas frisar que a cultura recobre mais do que os produtos das atividades artísticas, literárias, científicas, políticas do homem; ela constitui um grande sistema de atitudes, valores, normas, que estruturam as experiências do homem. Ela compreende um sistema de símbolos e significados. É nesse domínio semântico do termo cultura que devemos reconhecer o papel da linguagem ou do símbolo.
A faculdade da linguagem, ou seja, a capacidade que os homens têm de usar uma língua constitui a condição de possibilidade do desenvolvimento da cultura. De fato, a linguagem humana é produto da cultura, mas, ao mesmo tempo, não existiria cultura se o homem não fosse capaz de usar a linguagem articulada. Decerto, a cultura é um processo cumulativo, resultante de toda uma experiência histórica das gerações anteriores (concepção que é subjacente ao conceito de “patrimônio cultural”). Mas esse processo cumulativo historicamente constituído não seria possível sem a linguagem. Todo comportamento humano se origina no uso dos símbolos. Foi graças à ordem simbólica que os ancestrais antropoides se tornaram homens. Toda cultura depende, portanto, dos símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que criou a cultura e foi por meio do uso dos símbolos (palavras) que foi possível sua perpetuação.  Sem a linguagem verbal, não haveria cultura, e o homem seria apenas um animal.
De modo algum, pretendo dar a entender que o homem não seja um animal, que não pertença à natureza tanto quanto os demais animais, ou que seja ontologicamente superior ao animal. Como todo animal, também o homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de sobreviver. Mas, como seja um ser biológico destituído de instintos, o homem precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da produção da cultura. Geertz sustenta que todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, o qual se chama cultura. A cultura se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso, deve ser compreendida como uma das características da espécie homo sapiens sapiens juntamente do bipedismo e de um adequado volume cerebral.
Graças à linguagem e à cultura, o homem pôde se desprender da ordem natural, tomar distância de si e do mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si mesmo. A ordem simbólica é que torna possível ao homem refletir sobre seu próprio lugar no universo. É claro que, desde que o homem existe como efeito da emergência da palavra, ele se tornou um ser desnaturado e iludido sobre sua real condição no Universo. Ora, na medida em que a linguagem permitiu ao homem a construção de imensos edifícios de representação simbólica que se sobrepõem e parecem se elevar à ordem natural como gigantescas presenças de um outro mundo – o mundo do simbólico -, o homem pôde produzir os mais diversos sistemas de significados historicamente constituídos - entre os quais os mais importantes são a religião, a filosofia, a arte e a ciência -, a fim de que encontrasse amparo e sentido numa existência que,  se contemplada como um acontecimento puramente biológico e/ou natural, o levaria, muito provavelmente, à terrificante angústia e desespero total.
A emergência da palavra, ou o surgimento da ordem simbólica, rompe a suposta harmonia entre o homem e a natureza; desfeita essa harmonia, os caminhos pré-formados se perderam e a adaptação tornou-se inviável. Mas não nos enganemos: a preexistência de um mundo natural ao surgimento da ordem simbólica é uma ilusão. Esse mundo natural, essa totalidade ordenada de entes que existem independentemente do homem, não constituía ainda um mundo (uma totalidade significativamente ordenada) sem a linguagem.
Quero enfatizar, tendo em vista o que até aqui expus, que a importância da linguagem simbólica consiste em tornar possível ao homem uma transcendência, a qual consiste no desarrancamento do homem das relações imediatas com a natureza e na ascensão dele a regiões que permaneceriam inacessíveis, caso seu fato de ser no mundo estivesse circunscrito à experiência cotidiana. Como muito perspicazmente ensina Cassirer (2012, p. 48):


O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo.



Um conceito bastante esclarecedor de cultura nos é apresentado por Roberto DaMatta. Nele, o autor deixa-nos entrever ser a dimensão simbólica o fundamento da cultura:

Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações”.


Iluminada a necessidade de não limitarmos nossa compreensão de cultura ao seu aspecto material, que significado filosófico é possível trazer a lume a partir da experiência do incêndio no Museu Nacional? Ora, uma das funções da cultura é proteger o homem contra o terror que adviria da apreensão psicofisiológica de sua verdadeira condição no mundo. Uma das formas de que se servem os homens em sociedade para se proteger dessa visão aterradora, pode ser contemplada no espanto de Becker, em seu A negação da morte (2012, p. 228), com o fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem.

Houve época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões em cozinhas de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humanaElas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja a alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria, porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens enlouqueçam. (grifo nosso).


Estando o homem submetido ao regime da linguagem, do qual ele jamais pode sair, e tendo produzido esse vasto sistema de símbolos e significados que constitui o “mundo” próprio do homem, onde sua vida mesma acontece - isto é, a cultura -, é ele mesmo responsável por produzir toda uma série de crenças ilusórias que o conservam num estado persistente de torpor e autoengano.
Quando, por exemplo, ele se permite pensar na morte, os sistemas de crença complexos que estão a guiá-lo nesse exercício nunca o levam a pensar em si mesmo como um excesso de bagagem. O homem quase nunca, ao se defrontar com a certeza de sua morte, exercita seu pensamento até o ponto em que se convença de que não é mais do que um simples instrumento para transmissão do DNA. No entanto, se levasse sua reflexão sobre a sua própria morte até seus verdadeiros primórdios – a morte das células individuais -, seria forçado a admitir uma conclusão que, a muitos dos indivíduos de sua espécie, parecer-lhes-ia sombria e terrificante: cada um dos indivíduos da espécie humana é insignificante na condição de um organismo participante da totalidade do universo.
Do ponto de vista biológico, a despeito do que costumamos pensar, a morte não apareceu simultaneamente com a vida. A morte não é inextricavelmente ligada à definição de vida. As primeiras formas de vida, conhecidas hoje como bactérias, eram imunes à morte programada. Assim, os organismos unicelulares são, a rigor, imortais, porque não estão programados para morrer. Isso se deve ao fato de a morte programada ser consequência da reprodução sexuada e da pluricelularidade dos organismos. Ao longo de centenas de milhões de anos na escala evolutiva, o uso do sexo como um meio de reprodução foi acompanhado, na linha evolutiva que leva aos seres humanos, pela geração do DNA reprodutivamente irrelevante. O DNA só tem um único objetivo: reproduzir-se. A insignificância radical do indivíduo foi literariamente descrita por Schopenhauer e pode ser sumariada na formulação “quando um indivíduo morre, a natureza em seu conjunto não fica mais doente”. De fato, somente a sobrevivência da espécie interessa à natureza. Quando nossas células germinativas conseguem transmitir seu DNA à geração seguinte, nossas células somáticas e cada um de nós, você e eu, se tornam irrelevantes. Cada um de nós - eu e você - deixa de ter uma função biológica, por isso nossas células e nós mesmos devemos morrer para que a mudança possa ser transmitida à geração seguinte.
Depois que um número razoável de nossas células germinativas tiveram a oportunidade de transmitir seu DNA reprodutivo à geração seguinte, o resto de nós e nosso superestimado eu somático se tornam um excesso de bagagem, uma excrescência que deve ser eliminada. É esta a origem da senescência – o envelhecimento gradual e programado das células e dos organismos que elas compõem, independentemente dos acontecimentos do ambiente. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras.
Mas o que tudo isso tem a ver com o significado filosófico que tento iluminar a partir da consideração do incêndio no Museu Nacional? Esse significado profundo só vem a lume quando levamos em conta a insignificância radical do homem e de sua atividade, de sua obra, de seu trabalho, de seus esforços a partir do domínio de referência do Universo do qual o homem não é mais que um organismo biológico a cuja sorte esse Universo é completamente indiferente. O patrimônio cultural que se perdeu, cujo valor é incalculável, só tem importância única e exclusivamente para o homem. As chamas que consumiram o legado de todo um trabalho de pesquisa científica, que destruíram todos (ou quase todos) os registros materiais da existência de tantos outros homens e seres que, num passado remoto, produziram e se reproduziram em complexas relações com outros tantos homens e seres na superfície dessa pálido ponto azul chamado Terra revelam que é somente o homem o único ser vivo ontologicamente capaz de se preocupar com a preservação da memória de sua existência. Para todo o resto, digo, para todos os demais seres, para todo o Universo, a vida humana não passa de uma luz de vela que, tendo sido acesa no curso de terrificantes cataclismos cósmicos, combustões e processos de aparecimento e desaparecimento de espécies, brilha por um lapso de tempo breve para ser necessariamente apagada na vasta escuridão de um Universo desprovido de sentido e de memória.
As chamas que consumiram o Museu Nacional pareciam querer nos comunicar uma verdade que insistimos em ignorar (ou que permanece recalcada em nós): somos nós os únicos a reivindicar a nós mesmos o significado de nossa obra, de nossos rastos, de nossas dores, de nossas produções, de nossas lutas, de nossos sacrifícios, de nosso trabalho. É somente quando nos apreendemos como uma parte ínfima do Universo e quando somos absorvidos no silêncio de sua indiferença e na ausência de sua memória que podemos mensurar o que significou o incêndio do Museu Nacional. Os políticos que, seja por negligência, seja por desprezo, não ouviram os apelos daqueles que clamavam pela preservação do patrimônio cultural que o Museu representava, participam, mesmo sem o saber, dessa mesma tragédia humana que, vista da perspectiva do indivíduo imerso na cotidianidade mediana, assume a forma de uma tragicomédia, que é a vida de cada um de nós, organismos biologicamente sofisticados que anseiam por encontrar significado, sentido onde a Natureza ou o Universo se representa, aos espíritos argutos, como um bufão que expõe continuamente o ridículo que há no inveterado hábito do autoengano.


terça-feira, 5 de julho de 2016

"Nossos atos cotidianos são banais e insignificantes quando se realizam nas condições naturais da vida. O mero fato de viver, por si só, não significa nada" (Cioran)

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 A crueldade do real
                 Dissertação sobre o sentido e a ilusão


Esta exposição se desenvolverá com base no seguinte pressuposto fundador:

Toda crença religiosa torna inútil a filosofia, porquanto a religião, ao pretender fornecer uma resposta definitiva e incontestável à questão do sentido do mundo e do homem, proíbe a permanência da própria questão como tal. Não há mais questão; tudo está resolvido sem que nada verdadeiramente tenha sido dito ou pensado.


Tendo em vista esse pressuposto, considero o filósofo e o religioso como tipos antagônicos e defendo que o verdadeiro filósofo não tem outra escolha senão assumir um implacável ceticismo no tocante às alegações da religião. Se a filosofia não deve fazer qualquer concessão à pretensão da religião de estabelecer o “verdadeiro” sentido do mundo e do homem, também não deve silenciar sobre a pretensão da própria filosofia de atingir uma verdade “objetiva”. A filosofia, portanto, deve oferecer (e isso não é pouca coisa) a possibilidade de destruir os dogmas, as ideologias e todos os sistemas (filosóficos, políticos, religiosos) que tenham a pretensão de atingir e impor uma verdade positiva.
O presente texto visa, pois, a elaborar um modelo de compreensão do mundo que seja afinado com o valor da verdade filosófica, a qual, segundo Rosset (1989, p. 34-35), não fornece nenhuma certeza, “mas protege o organismo mental contra o conjunto de germes portadores de ilusão e de loucura”. Para a elaboração deste texto, sirvo-me de duas categorias hermenêuticas, as quais abrirão um horizonte de compreensão do real que permitirá iluminar o alcance da finalidade de toda empresa filosófica: as categorias do absurdo e do desespero.
O modelo de compreensão do real que apresentarei se articulará a essas duas categorias: o absurdo, tal como é definido na esteira da filosofia existencialista, recobre a impossibilidade de se justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um sentido. Sartre, por exemplo, relacionando o absurdo à existência de Deus, define-o como a impossibilidade, para o homem, de ser o fundamento de sua própria existência. Assim, o homem “está condenado a ser livre”, isto é, a ser responsável por seu ser e por sua própria razão de ser. A compreensão que Camus e Kafka têm do absurdo também será relevante ao desenvolvimento deste texto. Esses autores pensam o absurdo como ‘o incompreensível’, ‘o desprovido de sentido’, ‘o sem finalidade’. Assim, dizer da existência do mundo que é absurda é dizer que é desprovida de todo sentido e de toda finalidade. O desespero, por seu turno, será definido como “uma disposição absolutamente refratária a tudo que se assemelhe à esperança ou à expectativa” (Rosset, 1989). Nessa definição de “desespero”, que tomo a Rosset, o termo “disposição” não deve significar (e tomo a liberdade de o compreender assim) ‘propensão da psique’, mas disposição afetiva, no sentido heideggeriano. Assim, enquanto uma forma de disposição, o desespero descerra um modo de o indivíduo humano ser afetado pela existência.  De modo mais específico, o desespero consiste num afeto  que toma a forma de rejeição a toda esperança e promessas metafísicas. Essa rejeição se combina com uma atitude positiva, qual seja, a aceitação incondicional do real em sua crueza. O desespero, portanto, supõe tanto o abandono de qualquer busca de sentido metafísico ou último para o mundo quanto a afirmação incondicional do destinar-se do próprio real. Na medida em que o desespero supõe “o abandono da busca de sentido para mundo”, deve-se reconhecer que essa categoria se situa em um registro semântico de compreensão do real que é diferente do registro semântico no qual se inscreve a categoria do absurdo. O absurdo envolve a constatação da ausência de qualquer sentido último do mundo, mas a essa constatação precede a esperança, que então foi frustrada (donde a experiência do absurdo), de que o mundo fizesse sentido. Em outras palavras, o absurdo caracteriza um sentimento que irrompe na constatação súbita da mais profunda ausência de sentido do mundo; mas só o experimenta aquele que esperava (tinha esperança de) encontrar algum sentido no mundo. Apesar de se inscreverem em regiões de significação diferentes, desespero e absurdo não se excluem mutuamente. É possível conciliá-los numa mesma visão de mundo, porque o absurdo designa o fato da ausência de sentido do mundo, e o desespero designa certo modo de o homem reagir a essa (esmagadora) experiência.
Apresentem-se, doravante, as etapas de que se constituirá o itinerário de minhas reflexões. Na primeira etapa, desenvolvo a compreensão do real como inerentemente cruel, momento em que buscarei esclarecer o significado da expressão “crueldade do real” que está na base da constituição da filosofia rossetana. Na segunda etapa, abordo a condição do homem comum, à luz das categorias heideggerianas de ocupação e impessoal. Nessa etapa, estarei especialmente interessado na dinâmica que opõe realidade a ilusão como constitutiva da formação de três tipos neuróticos: o tipo “normal”, o tipo “neurótico” e o tipo neurótico criativo. Na terceira etapa, examino o argumento do desígnio em favor da existência de Deus, apresentando as objeções que os ateus e/ou céticos fazem a ele. Na quarta etapa, à guisa de um retorno à compreensão do real como inerentemente cruel com vistas a reforçar a inconsistência da crença em um Designer Inteligente, forneço um pequeno recorte da visão de mundo naturalista, ilustrando-a com referências à luta universal pela sobrevivência - constitutiva do tecido vital na ordem natural - e dou a saber algumas evidências que apontam para a inexistência de um projetista cósmico. Nessa etapa, também enfocarei o problema do mal e discutirei as tentativas teológicas de lidar com ele. A quinta parte é destinada às considerações finais.



1. O princípio de crueldade e a aceitação do real


O filósofo francês contemporâneo Clément Rosset, grande conhecedor de Nietzsche e autor de um pensamento do pior, pensa, em seu Princípio de crueldade (1989), a realidade como inerentemente cruel. Rosset é declaradamente um herdeiro da filosofia trágica da qual Nietzsche foi um autor emblemático. Nessa obra, Rosset declara “o que a moral censura não é, de modo algum, o imoral, o injusto, o escandaloso, mas sim o real – única e verdadeira fonte de todo o escândalo” (p. 24). A moral, portanto, não seria, para Rosset, mais do que uma ficção criada pelo homem a fim de tornar suportável a natureza cruel e escandalosa do próprio real. A moral surge da necessidade que sente o homem de reparar a crueldade inerente ao próprio real. Não há nenhum sentido de moralidade no real. Todo o real é imoral, e o que a moral faz não é outra coisa senão desaprovar o próprio real, na medida em que pretende “corrigir” o que parece ser um defeito do real.
O que Rosset entende por “crueldade do real”? É o próprio filósofo que responderá no seguinte excerto:

“Por “crueldade do real” entendo, em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. Não me estenderei sobre este primeiro sentido, mais ou menos conhecido de todos, e sobre o qual aliás tive a ocasião de falar alhures mais do que abundantemente; basta-me lembrar aqui o caráter insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita qualquer instância que fosse exterior a ela” (p. 17).


Como se pode depreender da passagem acima citada, a expressão “crueldade do real” é empregada com dois sentidos por Rosset:

1º sentido: a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade;

2º sentido: a forma “crua” com que se apresenta o próprio real que impossibilita os ornamentos metafísicos que o tornem suportável.

O real, segundo Rosset, é uma presença cruel – dolorosa e trágica – que se impõe de modo irremediável e em face da qual nos resta ou o assentimento ou a reprovação. A crueldade do real exprime o trágico e o doloroso, que torna o real indigesto justamente porque despoja o real de tudo o que nos impede de contemplá-lo em si mesmo. É preciso, então, reconhecer, com Rosset:

“A realidade é cruel – e indigesta – a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em si-mesma: tal como uma condenação à morte que coincidisse com sua execução, privando o condenado do intervalo necessário à apresentação de um pedido de indulto, a realidade ignora, por apanhá-lo de surpresa, todo pedido de apelo” (p. 17).


A natureza cruel do real também recobre sua indiferença a quaisquer tentativas de apelar a que ele se destine de modo a nos favorecer. Por isso, a crueldade do real consiste no fato de ele ignorar “todo pedido de apelo”. Em outras palavras, a crueldade do real consiste na rejeição ao homem de uma alternativa à necessidade de aceitar o real tal como é. Renunciar ao real significaria para o homem o próprio suicídio, mas isso não seria uma alternativa àquele que desejasse apenas intervir em seu favor na dinâmica cruel da realidade. Daí que, em escolhendo prosseguir vivendo, o homem parece ter duas escolhas: ou aceitar autenticamente a crueldade do real, o que significaria dar seu incondicional assentimento ao real, ou aceitá-la inautenticamente, o que significaria viver em conformidade com a crença de que ela oculta um sentido último a ser revelado na vida do pós-morte.
Um momento importante do pensamento trágico de Rosset, que assume como postulado a crueldade do real, é sua crítica à filosofia que, em sua origem metafísica, renunciou a levar em conta “unicamente a realidade” (Rosset, p. 12). Para Rosset, essa rejeição da filosofia, nas suas origens, em levar em conta “unicamente a realidade” não decorria de uma angústia perante a imensidade e impossibilidade de tal tarefa. Uma longa linhagem de pensadores compartilhava a ideia de que a realidade mesma, mesmo que pudesse ser inteiramente conhecida e explorada, jamais se prestaria a uma compreensão cabal e satisfatória, dado que ela mesma não fornece caminhos para a apreensão de seu sentido e natureza íntimos. A metafísica, segundo nota Rosset, se desenvolveu com base no princípio teórico da insuficiência do real. Nas palavras do filósofo, com base na ideia “de que a realidade só poderia ser filosoficamente levada em conta mediante o recurso a um princípio exterior à realidade mesma (Ideia, Espírito, Alma do mundo, etc.) destinado a fundá-la e explicá-la, e mesmo justificá-la” (p. 13).
Ouçamos Rosset no seguinte trecho abaixo:


“(...) suspeito muito de que a desavença filosófica com o real não tenha por origem o fato de que a realidade seja inexplicável, considerada apenas em si-mesma, mas sim o fato de que ela seja cruel e que consequentemente a ideia de realidade suficiente, privando o homem de toda possibilidade de distância ou de recurso com relação a ela, constitui um risco permanente de angústia e de angústia intolerável – no caso de que se apresenta a uma circunstância desagradável que torne, como por exemplo na ocasião da perda de um ente querido, a realidade subitamente insuportavelmente penosa ocorra que se lance um olhar subitamente lúcido sobre a realidade em geral. “Hipocondria melancólica”, observa Gérard de Nerval em um diário. “É um mal terrível: faze ver as coisas tais como são” (p. 16).



Como se pode compreender a partir da leitura do trecho acima, Rosset entende que a filosofia, em suas origens, evitou conciliar-se com o próprio real. Se ela evitou ocupar-se do real não foi porque ele é insuficiente em si-mesmo, não podendo, por isso, ser explicado, mas porque o real é demasiado cruel para manter o homem afastado de uma angústia que lhe seria intolerável. Parece que a filosofia se constituiu, na tradição, como um trabalho intelectual que visou “poupar” o homem da terrificante visão da crueldade do real; nesse sentido, a filosofia não se ocupou do real mesmo, mas forneceu ao homem simulacros reconfortantes do real.
Convém, no entanto, dizer que Rosset não deixa de reconhecer que a realidade não pode ser explicada por ela mesma. Ele reconhece que o real é sempre ininteligível e, nesse tocante, ele não diverge dos filósofos da tradição. O problema, para ele, deita suas raízes na suposição filosófica tradicional de que ser ininteligível equivaleria a ser irreal. Rosset acredita que os filósofos da tradição dissimularam a verdadeira dificuldade que sentiam em levar em conta o real e somente o real. Essa dificuldade não está no caráter incompreensível do real, mas “reside antes de tudo e principalmente em seu caráter doloroso” (p. 16).


2. A condição do homem comum: ilusão e realidade

2.1. O Dasein como ser-no-mundo: ocupação e ditadura do impessoal


Nesta seção, descerei a examinar a condição do homem comum, tarefa esta que se iniciará com algumas considerações sobre dois modos existenciais do ser-aí (Dasein). Não intentando me estender sobre todos os desdobramentos desses dois modos existenciais do ser-aí, estarei mais preocupado com a possibilidade de chamar a atenção do leitor para o fato de que o ser-aí existe originariamente numa relação de imediaticidade com o mundo e com os entes em geral.
O Dasein ou o ser-aí é o ‘lugar’ onde o sentido do ser acontece. O ser-aí é um ente aberto, em cujo ser está em jogo o próprio ser. O Dasein é o lugar onde o ser acontece, e, ao acontecer, desvela a totalidade dos entes. O ser-aí é um ser-no-mundo não no sentido em que se encontra num espaço geográfico no mundo, mas porque encontra no mundo sua própria morada (Casanova, 2010, p. 101). O ser-aí é essencialmente um existente. Como existente, ele se constitui a partir de um movimento ek-stático. Porque ek-siste, o ser-aí descerra o horizonte total, a partir do qual os entes se manifestam. O ser-aí libera o mundo como campo de manifestação dos entes em geral. Nas palavras de Casanova (2010, p. 91-92):

“(...) 1) o ser-aí existe; 2) a existência traz consigo um movimento de descerramento e liberação do mundo como campo de manifestação dos entes; 3) o surgimento mesmo desse horizonte torna possível a manifestação dos entes, que, em seguida, vêm ao encontro do ser-aí e requisitam dele um modo de comportar-se em relação a eles; 4) o ser-aí assume, então, um determinado modo de comportamento, se determina como o que é. Dizer isto, por sua vez, significa afirmar que o ser-aí é um ser-no-mundo, um ente que funda todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento originário em relação ao mundo”.


Ainda segundo Casanova, “existir é já sempre se ver jogado em modos fáticos de ser” (2010, p. 92). O ser-aí é um poder-ser que já sempre se encontra imerso em possibilidades existenciais específicas. O conceito de mundo, por seu turno, aponta para o descerramento do campo de manifestação da totalidade dos entes. Segundo Casanova (ib.id., p. 106), “[mundo] é um termo para descrever a amplitude total do horizonte a partir do qual o ser-aí incessantemente se relaciona com os entes intramundanos, com os outros seres-aí e consigo mesmo. Dizer “ser-no-mundo” é dizer ser-desde-o-mundo, de sorte que, fora do mundo, não existe Dasein e, consequentemente, não há a totalidade do real.
Uma vez que o ser-aí é um ser-no-mundo, ele já sempre se descobre a cada vez jogado abruptamente num mundo fático. Jogado numa facticidade, o ser-aí não se encontra, a princípio, numa relação teórica com o mundo. Na verdade, ele se apreende articulado com um horizonte ocupacional à luz do qual os entes intramundanos lhe vêm ao encontro como utensílios e, ao mesmo tempo, lhe requisitam um modo determinado de lidar com eles. Esse modo de lidar com os utensílios não é, por sua vez, determinado teoricamente, mas emerge de totalidades conjunturais que estruturam a facticidade.  A caneta que tenho diante de mim já se me apresenta numa malha referencial complexa que a determina radicalmente como o utensílio que ela é. Por isso, “toda ocupação com os utensílios envolve (...) um acompanhamento de uma rede referencial complexa com a qual os utensílios vêm ao nosso encontro (p. 97). Não se trata de dizer que um utensílio tem um lugar próprio seu fixado no mundo. O que se deve entender é que todos os lugares onde a caneta, por exemplo, pode aparecer se constituem a partir de um campo de uso sedimentado e de uma totalidade referencial da qual ela não escapa na maioria das vezes. A minha lida com a caneta faz vir ao meu encontro outros utensílios (o papel, o caderno, o livro, o corretor, o estojo, etc.) no interior de uma rede referencial. É importante frisar que aprendemos a nos movimentar no mundo de maneira não teórica, mas prática, no interior de uma rede referencial que vem ao nosso encontro conjuntamente com os utensílios. É nesse ‘vir ao nosso encontro’ da rede referencial com os utensílios nela articulados que vamos descobrindo o significado dos utensílios em geral. Novamente, friso que esse modo de lidar com os utensílios não é determinado teoricamente, mas emerge de totalidades conjunturais que configuram a facticidade.
O estar lançado em um mundo significa ir, paulatinamente, entrando em contato com uma série diversa de referências e mobilizadores estruturais dessas referências, ou seja, com os elementos em função dos quais as conjunturas se estruturam. São esses elementos mobilizadores das referências que tornam possíveis, a cada momento, os mais diversos usos dos utensílios (Casanova, 2006, p. 41).
Importa, então, compreender como o ser-aí chega a se determinar como ente que é. Segundo Casanova (2010, p. 91):

“O ser-aí só se determina efetivamente como o ente que é a partir de uma inter-relação incessante com o seu mundo. Jogado em um determinado mundo fático, ele assume comportamentos a partir de orientações que recebe do mundo circundante. Tais orientações emergem do fato mesmo de o ser-aí se ver absorvido de início e na maioria das vezes em campos de uso dos entes”.



A categoria da ocupação, em Heidegger, serve, portanto, à descrição do modo como o ser-aí de início e na maioria das vezes está no mundo. Heidegger nega o primado da postura teórica na relação do ser-aí com o mundo e com os entes intramundanos que lhe vêm ao encontro. O ser-aí existe originariamente sob o modo da imediatidade relacional com entes com os quais lida a partir de uma forma determinada de ocupar-se com eles. A postura teórica pressupõe um distanciamento em relação ao mundo e aos entes intramundanos e uma ruptura com essa imediaticidade originária. É claro que os campos de uso, ou seja, o mundo das ocupações práticas com os entes, têm uma estrutura semântica (ou seja, de significações) autotransparente ao ser-aí; mas esse mundo da ocupação é um mundo sedimentado que o ser-aí compartilha com outros seres-aí e sua imersão inicial nesse mundo não envolve nenhum tipo de questionamento ou reflexão sobre os entes e a complexa rede de referências com a qual eles vêm ao seu encontro.
O conceito de impessoal, por seu turno, recobre o conceito de mundo fático sedimentado. A fim de esclarecê-lo, lembro que um ser-aí é um ser que se descobre em um mundo sedimentado fático, o qual fornece de início e na maioria das vezes as possibilidades existenciais com as quais o ser-aí pode se confundir e já sempre deveras se confunde.
É na cotidianidade mediana, na qual o ser-aí está, desde o início, jogado, que se pode apreender o modo como ele é comandado pelo impessoal. No impessoal, o ser-aí é o que os outros fazem dele. O ser-aí se vê absorvido pelos outros indeterminados, passando a assumir os comportamentos do impessoal. Não devemos, contudo, pensar que o impessoal impõe uma possibilidade de ser ao ser-aí, tampouco que o impessoal estabelece preceitos claros a partir dos quais o ser-aí constrói a sua existência. A influência do impessoal se expressa na forma de demarcação de modo estável do que cada coisa é e daquilo em virtude do qual as coisas podem fazer parte de nosso projeto particular (Casanova, 2010, p. 114).
O impessoal estende seu poder de controle incessante sobre os campos de sentido[1] e define de antemão o que pode ou não aparecer como dotado de sentido. Assim, o poder-ser do ser-aí, que se realiza na forma de compreensão, fica circunscrito a seguir as orientações dadas pelo mundo fático e a mostrar a partir dessas orientações o que é interpretável.
Constituiria uma grande lacuna em minha exposição, se eu, tendo abordado o valor descritivo do impessoal em Heidegger, silenciasse sobre outra categoria à qual o impessoal está intimamente articulado, qual seja, a de decadência. No desenvolvimento da analítica existencial proposta por Heidegger, tudo está entrelaçado, razão por que deixar de notar a relação entre o impessoal e a decadência seria uma grande falta, ainda que minhas pretensões expositivas do pensamento heideggeriano sejam bastante limitadas.
Faz-se mister notar, então, que a decadência do ser-aí no impessoal correlaciona-se com o modo abrupto como o ser-aí se descobre no mundo. Uma vez decaído no impessoal, o ser-aí vê-se sob o domínio do falatório. Nessa situação, ele reproduz incessantemente o discurso dos outros. Decaído, o ser-aí se vê despojado de uma relação própria com seu caráter de poder-ser. A decadência descreve, portanto, a fuga de si mesmo do próprio ser-aí em meio à absorção na semântica fática do mundo cotidiano. A decadência do ser-aí, porquanto oculta do ser-aí o seu caráter de poder-ser, desvia-o da indeterminação originária que lhe é constitutiva e o abandona à condição circunscrita de ter de realizar-se a si mesmo em conformidade com as orientações sedimentadas nesse mundo impessoal em que está decaído. Em outras palavras, a decadência limita a possibilidade de o ser-aí realizar-se a si mesmo ao domínio das orientações sedimentadas no mundo do impessoal.
A decadência caracteriza o fato de que o ser-aí está jogado no mundo das ocupações; sempre empenhado no mundo das ocupações. Nessa situação, o ser-aí pode, a cada instante, perder-se a si mesmo, deixando-se tutelar pelos outros. A decadência constitui, assim, um modo impróprio de ser do ser-aí e torna a existência dele uma existência inautêntica. Inautêntica porque, na decadência, o ser-aí “é” como “são” os outros.
Com estas breves considerações sobre o modo originário de o indivíduo humano se encontrar no mundo, possibilitadas por uma revisita, bastante superficial, ao pensamento heideggeriano, espero ter conseguido lançar alguma luz sobre o caminho que passaremos, doravante, a percorrer. Esse caminho nos conduzirá a pensar no modo como esse homem da ocupação e do impessoal – o homem “comum” da cotidianidade – pode manter-se ignorante da “loucura de sua condição humana”. O desenvolvimento desse tema se fará com apoio na abordagem antroplógico-psicanalítica esposada por Ernest Becker, em seu A negação da morte (2012). Inicio, então, na próxima subseção, essa tarefa.



2.2. A loucura da condição humana

O filósofo cristão do século XVII Blaise Pascal expressou de maneira paradigmática os sentimentos de espanto e temor que podem invadir o homem acostumado a intensas elucubrações. Pascal inicia seu texto com a forma “contemplo”, sugerindo que o sentimento de abandono cósmico só chega a atingir o homem que ‘mira com o espírito’ sua insignificância “na infinita imensidão de espaços” que ignora e que o ignoram.


“Quando contemplo a pequena duração da minha vida absorvida na eternidade precedente e seguinte (...), o pequeno espaço que preencho e mesmo que vejo abismado na infinita imensidão de espaços que ignoro e que me ignoram, apavoro-me e admiro-me por me ver aqui e não lá, pois não existe razão por que aqui e não lá, por que agora e não então. Quem me colocou aqui? Pela ordem e pela intervenção de quem este lugar e este tempo foi destinado a mim?” (Pascal, 2005, 68 (205)).


Este texto fora escrito num século atravessado pela Revolução Científica, a qual, iniciada no século XVI, se estenderia até o século XVIII. É nesse período que o homem é “desalojado” do lugar que antes ocupava no universo. Galileu Galilei viria, em 1610, a confirmar o sistema heliocêntrico de Copérnico: a Terra, definitivamente, não era mais, como se acreditava outrora, o centro de todo o Universo. A confirmação de Galileu não significou apenas a compreensão do verdadeiro lugar ocupado pelo planeta que habitamos no universo; mas representou uma profunda crise na forma mesma como o homem se pensava e compreendia a si mesmo na ordem cósmica. Não foi só o planeta que habita que foi deslocado do centro do universo; foi o próprio homem que viu sua importância no plano da Criação deitar por terra.
Pascal soube bem apreender o espírito inquietante que caracterizava aquela época: o homem não podia mais assegurar-se de que sua existência tinha alguma razão ou propósito. Tomar consciência da contingência e do absurdo de sua existência era fonte de grande pavor para aquele homem que se via então confrontado com uma condição que, durante séculos, ignorava.  Com o advento da ciência moderna, o kósmos harmonioso, belo fechado, eterno, justo e perfeito descrito na cosmologia antiga cede lugar a um universo caótico, infinito, constituído de forças sem alma, de movimentos e choques cegos que acontecem em espaços totalmente desprovidos de limites, de significação e referência. O libertino Pascal se apavora justamente com o silêncio eterno desses novos espaços infinitos, dos quais o homem se vê como um habitante insignificante. A ciência moderna destrói toda a visão cósmica dos gregos e abala os alicerces ideológicos da Igreja Católica. Num universo em que o próprio Deus não goza mais de autoridade absoluta, é de se esperar que o homem, que até então era reconfortado pela crença de que ocupava um lugar privilegiado nesse Universo projetado para ele, experimentasse um angustiante sentimento de acosmia, isto é, um afeto que se traduz como estado de abandono, solidão, perda de si e desapropriação de sua ‘casa’. Acosmia significa: o mundo é destituído de um horizonte realizador do homem. O universo passa a ser um lugar inóspito e o homem não pode encontrar nele senão indiferença e opressão. É a condição humana que se revela radicalmente dramática, razão por que a maioria dos homens prefere manter-se desocupada de pensar nela. Pascal soube também ver que a própria aspiração do homem à felicidade tornou-se temerária – “se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, – escreveu o filósofo - não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos”. Ora, para os antigos gregos, a vida boa, isto é, a vida feliz é a vida reconciliada com o real. O homem feliz só pode sê-lo com a condição de que aceite o mundo como ele é. Ocorre que o mundo dos antigos exibia uma ordem divina, justa e boa. Situação diversa é a do homem seiscentista: a realização de sua felicidade e do comportamento moral não pode mais tomar o mundo como modelo; o universo que esse homem habita e que a ciência tratará de lhe revelar é caótico, desprovido de qualquer sentido e não dá mais sinais de possuir um caráter divino. Esse homem do século XVII é um homem desorientado, imerso num mundo no qual as referências pelas quais ele orientava a sua existência começaram a ruir uma a uma.
Não obstante a dramática revolução espiritual sofrida pelo homem seiscentista, de cuja análise eu não poderia me ocupar aqui, resta a pergunta: como pôde o homem continuar “tocando” sua vida? Esta pergunta não remete apenas ao homem do século XVII, mas toca à condição humana independentemente da época e lugar. Se Becker tem razão, ao assinalar que “o mundo real é simplesmente terrível demais para que se admita a sua existência” (2012, p. 168); se o real, a julgar pela condição dramática na qual se viu jogado o homem seiscentista, patenteia que o homem é um animal pequeno, atormentado, destinado ao envelhecimento e à morte inevitável, como é possível que não assistamos suicídios em massas? A resposta parece residir na ilusão nossa de cada dia. A ilusão protege o homem contra a visão terrificante da verdade da vida. Na ilusão, o homem se pensa como um ente importante, torna-se capaz de construir e levar adiante seu projeto causa sui; acredita desempenhar um papel importante no universo; considera-se, de certa maneira, imortal. Esclarecerei, em tempo, o que significa “ilusão” no contexto dessa discussão e o que significa “projeto causa sui”. Peço ao leitor um pouco mais de paciência no acompanhamento do desenvolvimento de minhas reflexões. Intentando situar o leitor no registro semântico em que será contemplado o conceito de ilusão, comunico-lhe, desde já, que estarei interessado em discutir como se produz a ilusão cultural.  É oportuno dizer que Freud pensava a ilusão como uma crença derivada do desejo humano. Assim, uma crença é ilusória quando motivada pelo desejo. Para Freud, a crença num Deus onipotente e providente é ilusória, porque o indivíduo que a nutre deseja que exista um Pai celestial e protetor que o alivie do sentimento de desamparo em face da vida. Sua crença em Deus é motivada pelo desejo de que exista tal Deus; por isso, na visão de Freud, essa crença é ilusória.
Por Ilusão, no entanto, conforme mostrarei à medida que eu for esclarecendo a contribuição antropológico-psicanalítica de Becker para a compreensão da condição humana, devemos entender uma representação criativa de mundo com o propósito de manter os homens afastados do terror que lhes provocaria a visão da verdade do real. É no domínio da cultura que essas ilusões “protetoras” são produzidas, de tal modo que não exageramos em pensar a cultura como uma teia de ilusões necessárias para viver. Antes de descer a pormenores sobre os desdobramentos da ilusão cultural e da condição do homem comum, precisarei expor algumas observações sobre o conceito de cultura, à luz do qual tudo que se seguirá deverá ser mais bem compreendido.
Um olhar, por algum momento, sobre nossa história evolutiva põe a descoberto o surgimento do homo sapiens há cerca de 80.000 anos, muito embora o gênero homo tenha surgindo há cerca de 200.000 anos, a partir de uma linhagem de ancestralidade que remonta ao Australopetecino africanus, cujo surgimento e evolução se deram há cerca de 2.500.000 anos.
Conquanto tenha evoluído por processos naturais idênticos aos dos demais animais, o homem é a única espécie conhecida que conseguiu, de certo modo, desarrancar-se dos imperativos naturais, criando uma espécie de sobrenatureza, a que chamamos de cultura. A cultura passou a ser reconhecida pelos estudiosos como o modo próprio de ser do homem. Com a cultura, o homem desenvolveu um sofisticado sistema linguístico, tornou-se capaz de fabricar e utilizar ferramentas – dominando o fogo -, passou a adotar um complexo e excepcional costume social sustentado pela generalizada proibição do incesto.
Embora possamos encontrar diversas formas de definição de cultura segundo o domínio do conhecimento em que esse termo se inscreve e segundo os autores que o empregam, uma acepção, em especial, será esposada por mim neste trabalho. Assumo a concepção de cultura do antropólogo brasileiro José Luiz dos Santos, segundo a qual a cultura é uma dimensão que, perpassando todos os aspectos da vida, dá sentido aos atos e aos modos de vida de uma determinada sociedade. À luz dessa concepção de cultura, devemos entender que a cultura molda o pensamento, o ideário de valores e comportamento dos indivíduos nas mais diversas situações sociais. A cultura está presente nas relações sociais em geral, nos atos políticos, nos fatos econômicos, na produção artística, nas práticas religiosas, etc. de uma comunidade.
A cultura é, portanto, o modo próprio de ser do homem nas suas vivências em coletividade. Esse modo de ser expressa-se, em parte, conscientemente; em parte, inconscientemente; e se exterioriza na forma de um sistema de modos de representar/pensar o mundo, de agir, de fazer, de se relacionar e de se reproduzir nesse mundo. Não menos importante: a cultura é a dimensão simbólica da vida social na qual o homem se relaciona com o Absoluto.
Esclarecida a noção de cultura, em consonância com a qual minhas reflexões sobre a condição humana se desenvolverão, passo, doravante, a considerar a constituição da realidade da vida cotidiana, trazendo à cena a contribuição de Beger & Luckmann, em A construção social da realidade (2007) com o objetivo principal de esclarecer, como não poderia deixar de fazer – e mesmo sob o risco de ser repetitivo – a função desempenhada pela língua/linguagem, entendida como sistema de signos que torna possível a constituição das experiências humanas, na construção da realidade da vida cotidiana. A questão a que não podemos nos esquivar, a esta altura de minha discussão, é: de que modo a linguagem atua na constituição da realidade da vida cotidiana? Consoante notam Berger & Luckmann (p. 38), “a realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada em cena”. Essa passagem evoca a já contemplada lição heideggeriana: o ser-aí já está desde sempre jogado num mundo fático. A vida cotidiana se abre ao indivíduo como um espaço sociocognitivo já ‘dado’. O indivíduo não é responsável pela gênese da fabricação desse espaço. A vida cotidiana o absorve em sua estrutura simbólica, na qual os objetos ocupam lugares significativamente pré-fixados, sem que ele, o indivíduo, tenha sido responsável pela produção dessa estrutura. Em virtude da linguagem, os indivíduos têm à sua disposição, na vida cotidiana, as objetivações necessárias que darão sustentação e sentido à sua existência. Eles já se acham inseridos numa ordem onde essas objetivações adquirem sentido. O que são essas objetivações? Objetivação é o processo pelo qual os produtos construídos pela atividade humana adquirem o caráter de objetividade. Desse modo, o homem age, vive e se relaciona com outros homens num mundo institucional. Esse mundo institucional é a própria atividade humana objetivada.
Vimos, quando tratei da condição originária do ser-aí como ser-no-mundo, que o ser-aí é um existente já sempre jogado numa totalidade de entes que vêm ao seu encontro numa conjuntura que constitui uma rede complexa de referências. Isso significa dizer que todo ente intramundano vem ao encontro junto com um horizonte utensiliar no qual o ente intamundano se deixa ser. Ciente de que meu interesse na contribuição da analítica-existencial heideggeriana sofra severas limitações determinadas pelo objeto de estudo desse texto, silenciei sobre o domínio da significância ao considerar o existencial da ocupação. Heidegger chama de significância à totalidade significativa que envolve uma multiplicidade de elementos. A significância inscreve, pois, o horizonte semântico na ordem do mundo fático. Esta lacuna, que, com estas rasas observações, só pôde ser parcialmente preenchida, será definitivamente obliterada ao cabo do curso de minhas considerações sobre o papel que a linguagem desempenha na constituição da vida cotidiana.
Retome-se, então, a ideia de que os objetos com os quais lidamos já se apresentam numa totalidade dotada de sentido. A linguagem, por assim dizer, enche nossa vida cotidiana de objetos dotados de sentido num campo reticular de significações que integra a dinâmica de nosso viver. Fazendo eco a Heidegger, mesmo que não explicitamente, Berger & Luckmann mostram-nos que é no mundo em que nos encontramos que nossa consciência é dominada pelo motivo pragmático. Toda minha atenção é dispensada à ocupação com os objetos (ou os entes intramundanos de Heidegger) que preenchem o espaço em que me encontro. Este é o meu mundo, por excelência.
Ainda que saibamos que a vida cotidiana tenha zonas que não nos são acessíveis da maneira como o são na ocupação, nosso interesse nessas outras zonas é indireto. Estamos mais intensamente interessados na totalidade dos entes implicados em nossa ocupação. Por exemplo, se eu sou um mecânico, meu mundo é a garagem e meu interesse recairá precipuamente sobre os entes que me vêm ao encontro nesse mundo fático.
A realidade da vida cotidiana, ademais, apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo do qual participo conjuntamente com os outros. Na vida cotidiana, estou continuamente em interação verbal ou não-verbal com os outros. Minha atividade natural com relação a este mundo corresponde à atividade natural dos outros; estes também compreendem as objetivações graças às quais este mundo é ordenado. É claro, porém, que a perspectiva deles desse mundo não é idêntica à minha. Sei também que meus projetos diferem dos projetos dos outros; podem até mesmo entrar em conflito com o projeto dos outros. No entanto, eu sei que há uma contínua correspondência entre meus significados e seus significados neste mundo de cuja estrutura semântica compartilhamos.
Não me parece suficientemente claro qual é a participação da linguagem no processo de objetivação da experiência humana; por isso, convém demorar-me um pouco mais nesse ponto. Para tentar esclarecê-lo, precisarei evocar a contribuição de Bakhtin para a compreensão da palavra como signo ideológico.[2] Das quatro propriedades definidoras da palavra ou do signo linguístico, a que se refere Bakhtin, duas serão relevantes para nós: a interiorização e a participação em todo ato consciente.[3] 
A propriedade de interiorização consiste no fato de a palavra ser o único meio de contato entre a consciência do sujeito, ela mesma constituída de palavras, e o mundo externo, também povoado de palavras. Destarte, eu compreendo o mundo no confronto entre as palavras de minha consciência e as palavras que circulam no mundo externo à minha consciência. Por sua vez, a propriedade de participação em todo ato consciente recobre o fato de a palavra funcionar tanto nos processos internos da minha consciência, por meio da compreensão e interpretação que faço do mundo, quanto nos processos externos de circulação da palavra nas diversas esferas sociais de uso da língua. Bakhtin ensinará que a realidade da consciência é o signo, isto é, a consciência é um produto socioideológico, ela é povoada de palavras. As palavras vão compondo a consciência à medida que vou interiorizando os discursos ao longo da vida.
Com base nas duas propriedades da palavra descritas acima, podemos entender a afirmação de que a linguagem é que torna possível que uma experiência individual – digamos, ‘perseguir animais silvestres para matá-los’, categorizada pela forma [CAÇA], se transforme em objeto de conhecimento a ser partilhado e aproveitado por todos os integrantes de uma sociedade. Objetivada a experiência de [CAÇA], isto é, dando-lhe um investimento simbólico (conceitual), ela pode ser incorporada em um conjunto mais amplo de tradições mediante a instrução moral, a poesia, a alegoria religiosa, etc. Pela linguagem e graças a ela, a experiência humana adquire significado, passando a ser ensinada às novas gerações. Sem linguagem, não haveria significações, não haveria possibilidades de conteúdos cognitivos integrais (Vygotsky); enfim, não haveria a possibilidade mesma de produção da complexa rede de significações, práticas, normas, modos de fazer, de pensar e de viver que chamamos cultura. A linguagem é o ponto de articulação entre nossa vida mental e a vida sócio-cultural. Sendo um sistema de símbolos, a linguagem é responsável pela construção de representações, pela operação sobre elas, bem como pela transformação da nossa experiência com a realidade em conceitos, através dos quais a classificamos, a categorizamos. Segundo Vygotsky, a linguagem é a própria possibilidade de inserção do homem no mundo. É graças à linguagem que a realidade “objetiva” se traduz em realidade subjetiva, e vice-versa. A linguagem permite, portanto, que o que está ‘fora’ da consciência e que se toma como real corresponda ao que é real ‘dentro’ da consciência. Esse progressivo processo de tradução do real nas duas direções é possível, porque a palavra, conforme vimos, é o único meio de contato entre nossa consciência e a realidade exterior. Não só nossa consciência é povoada de signos pela progressiva interiorização de discursos ao longo da vida, como também o mundo da experiência sensível é estruturado pelas significações sedimentadas e viabilizadas pela linguagem. Não se nega – deve-se dizer – que nos relacionamos com o mundo através dos nossos sentidos, que os entes vêm ao nosso encontro para fins utensiliares (tocamos, manuseamos as coisas, sentimos cheiros, vemos cores, etc.); mas afirma-se que linguagem e percepção sensorial estão intimamente ligados, de modo que o mundo percebido em termos de forma e cor é um mundo percebido com sentido ou significado. Em outras palavras, o mundo com o qual entramos em contato mediante nossa experiência sensível é um mundo semiotizado.
Cada experiência sensorial que temos das coisas no mundo é, necessariamente, única e subjetiva, donde a necessidade de perguntar: de que modo o mundo exterior percebido através de nossos sentidos entra a fazer parte de nossa consciência e passa a ser um mundo acessível ao outro? A resposta é: o mundo percebido toma parte de nossa consciência na forma de conhecimento, o qual supõe nossa capacidade de representar em conceitos aspectos desse mundo em nosso espírito. Mas a representação mesma depende de um sistema simbólico, ou da palavra, a qual permite a transformação do material que nos afeta os sentidos em conceitos ou conteúdos da nossa consciência. Isso é possível porque a palavra permite-nos criar conceitos através dos quais categorizamos, classificamos, enfim, representamos nossas experiências. O conhecimento socialmente relevante está, portanto, fundado na linguagem. Todo conhecimento declarativo de nossa sociedade é primariamente linguístico, isto é, conhecimento textualmente fundado. Quando pensamos no conhecimento coletivo e complexo, que têm relevância social, devemos entender que são os textos que produzimos que são responsáveis pela elaboração, diferenciação, estruturação, controle, crítica, transformação, constituição e apresentação desse conhecimento. A linguagem, através dos textos que produzimos – como este que o leitor vem lendo –, não só torna visível o conhecimento, mas também os tornam sociocognitivamente existente. A linguagem é, portanto, o ‘lugar’ onde se realiza a própria transcendência do animal humano, consoante nota Berger & Luckmann ( 2007, p. 61):

“A linguagem constrói, então, edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo. A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas de símbolos historicamente mais importantes desse gênero”.


E prosseguindo com os autores, na mesma página, não devemos perder de vista que:

“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão do senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias”.


Magia do símbolo, se podemos dizer assim: possibilitar ao homem relacionar-se com o ausente, com o irreal, com o hipotético. Graças à função de simbolização da linguagem, o homem liberta-se da relação imediata e direta com as coisas, podendo tornar presentes à consciência dos outros objetos que não estão física, espacial e temporalmente acessíveis à experiência imediata deles, podendo reportar-se ao passado, projetar-se mentalmente para o futuro, construir “mundos” fictícios.
A questão: de que modo o mundo exterior percebido através de nossos sentidos entra a fazer parte de nossa consciência e passa a ser um mundo acessível ao outro? – que enunciei acima e que vim até aqui procurando responder, pode ter uma resposta ainda mais clara, quando consideramos o fato de que por mundo semiotizado deve-se entender também e, fundamentalmente, a totalidade de categorizações [recortes] de experiência que se tornam, por isso, socialmente acessíveis e reproduzíveis. Graças à linguagem, eu posso objetivar minhas experiências pessoais; posso categorizá-las, isto é, inseri-las em amplas categorias, de modo a torná-las dotadas de sentido não só para mim como também para os outros. No momento em que são categorizadas ou tipificadas, minhas experiências se tornam anônimas, porque podem ser reproduzidas pelos outros. Por exemplo, se me envolvo em uma briga com minha sogra, essa experiência subjetiva pode ser categorizada como “aborrecimentos com a sogra”. Essa categorização não é só inteligível para mim, como também para qualquer outra pessoa. Note-se que na categorização opera-se uma generalização: qualquer um pode ter e sabe o que é ter “aborrecimentos com a sogra”, muito embora cada experiência desse tipo vivenciada subjetivamente seja única. Categorizando minhas experiências biográficas, ou seja, reunindo-as em ordens gerais de significados, por meio da palavra (ou linguagem), torno-as subjetiva e – sobretudo – objetivamente reais. Qualquer casal sabe o que significa ‘ter uma DR’, ou seja, ‘discutir a relação’. A categorização da experiência vivida por casais que buscam fazer ponderações sobre os impasses da vida a dois como ‘discutir a relação’ torna essa experiência objetivamente real, acessível a qualquer pessoa na condição de namorado/namorada e/ou cônjuges. Por categorizações sucessivas de nossas experiências vamos constituindo o mundo, o próprio real. A linguagem é, portanto, estruturante da relação entre a cognição e o social na constituição da ação humana. Se está clara a vinculação entre linguagem e cognição, cumpre ainda enfatizar que a significação do mundo não é possível fora da práxis. Portanto, sem práxis, não há significação. A significação é resultado da produção de discurso, o qual é um tipo de ação que se faz conjuntamente com os outros. O termo práxis deve ser entendido aqui no sentido marxista: conjunto de atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, de um modo geral, as condições sociais de existência. Não poderei aqui me estender sobre a sobredeterminação da linguagem pela práxis.
Creio bem assentado o terreno teórico pelo qual se articularão minhas reflexões sobre a ilusão cultural. Passo, então, a discuti-la, doravante. Comecemos por atentar para o seguinte trecho de Becker (2012, p. 228):

“Houve época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas agüentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões em cozinhas de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humana. Elas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja a alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria, porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens enlouqueçam”. (grifos meus).



Nesse excerto, Becker expressa seu espanto com o fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem. O autor descreve o mundo fático da ocupação humana. E categoriza as atividades que nesse mundo se realizam como “a loucura da condição humana”. Está claro que as atividades a que se refere Becker são fontes de estresse e cansaço e está claro que essas atividades constituem o próprio destinar-se do viver humano na cotidianidade mediana. Mas devemos nos perguntar por que o autor vê tais atividades habituais, constitutivas do viver comum,  como “a loucura da condição humana”. Compreender o sentido com que foi empregada a palavra “loucura” é uma parte importante do processo de compreensão global do texto. E a compreensão do que significa “loucura da condição humana” depende de que reconheçamos que Becker opõe essa loucura à espécie de “loucura” vulgarmente conhecida como uma doença psiquiátrica (a loucura de hospício). O que se dá na loucura de hospício, também conhecida como esquizofrenia? No sentido etimológico do termo, esquizofrenia (do grego skhizo = dividir + phren = mente) significa “mente dividida”. A esquizofrenia caracteriza-se por uma acentuada quebra do contato com a realidade. A personalidade esquizofrênica sofre uma fragmentação e o doente constrói para si um mundo excessivamente conceptual determinado pelo sentimento. Sem entrar nos detalhes clínicos dessa patologia, é bastante dizer que o que conhecemos como ‘loucura’ aponta para o fato de que há uma ruptura da relação “normal” entre a mente e o real. Aos olhos das pessoas saudáveis, o “mundo” do esquizofrênico parece não fazer sentido algum, pelo menos não parece dotado do sentido socialmente estabelecido e aceito. Becker parece querer dizer que a mesma ruptura de sentido ou a falta dele pode muito bem caracterizar as atividades rotinizadas da cotidianidade mediana. Essa “loucura” que é própria da condição humana não é, no entanto, percebida como tal pelo homem comum. Ao contrário, o homem comum identifica essas atividades rotinizadas, nas quais se envolve por necessidade de sobrevivência, com o próprio viver. Quem negaria que viver é isto: empregar diariamente o corpo e a alma num trabalho que nos consome quase o dia inteiro? Lembremos o que nos ensina Heidegger a respeito do modo originário como o ser-aí se encontra no mundo: jogado no mundo, o ser-aí está desde o início e na maioria das vezes ocupado com os entes intramundanos. Ocupação é, aqui, a palavra-chave para compreender o modo originário de existir no mundo. A ocupação nos previne contra “o desespero total”. Enquanto permanecem imersos naquelas atividades rotineiras, os homens estão protegidos contra a realidade. Becker destacará o fato de que o homem comum vive numa espécie de esquecimento da angústia (p. 230). Como podemos compreender essa angústia? Um caminho de compreensão nos é aberto por Heidegger. Vale, então, determo-nos um pouco na forma como Heidegger pensa a angústia.
A angústia, em Heidegger, é um modo de ser decisivo na construção de uma existência autêntica por parte do ser-aí. Para que possamos compreender o papel da angústia na apropriação dessa existência autêntica, precisarei esclarecer uma noção sobre a qual me mantive em silêncio até aqui, e que vem a ser a noção de “em virtude de”. O “em virtude de” descreve o fato de que a lida com os utensílios para o ser-aí é orientada por necessidades, por propósitos. Assim, o computador que vem ao meu encontro juntamente com uma totalidade conformativa só se inscreve num campo de jogo existenciário porque tenho necessidade de me expressar, de otimizar meu trabalho, etc. Essas muitas necessidades que emergem na lida com os entes intramundanos estão articuladas como o poder-ser do ser-aí. Assim, segundo pontua Casanova (2010, p. 102), “jogado no mundo e familiarizado com os campos de uso, nós realizamos incessantemente atividades que envolvem necessariamente utensílios dotados de uma significação precisa em virtude de algo que se encontra em uma relação direta com o poder ser do ser aí” (grifo meu). Assim, as atividades às quais se reporta Becker são realizadas cotidianamente pelas pessoas em virtude de, em última instância, manter sua subsistência. Esses vários “em virtude de” se acham disponíveis no mundo fático. A angústia abre o horizonte a partir do qual o ser-aí possa descobrir em seu si mesmo aquilo em virtude do qual precisa existir como o ser aí que ele é. A angústia quebra, por assim dizer, o modo habitual com que o ser-aí existe na relação com os “em virtude de”, para que ele possa confrontar-se com o seu caráter mais próprio de poder ser. Na angústia, a confrontação do ser-aí com o seu caráter de poder ser se expressa na forma de cuidado. Cuidado, para Heidegger, é o modo de ser do ser-aí. O cuidado expressa a assunção pelo ser-aí da responsabilidade pelo poder ser que ele é. O cuidado pressupõe que o ser-aí tem de responsabilizar-se por si mesmo, pelos outros seres-aí e pelos entes intramundanos. A angústia descerra para o ser-aí o poder-ser que é,  e isso significa dizer o nada que ele é, visto que ele não se define por essência alguma, visto que o ser-aí é na dinâmica existencial que ele é. A angústia traz consigo o nada constitutivo que o ser-aí é; por conseguinte, abre o espaço para que o ser-aí assuma-se como cuidado. Para que possamos compreender bem o papel da angústia como modo de ser do ser-aí, devemos recordar como o ser-aí existe no impessoal, justamente porque a angústia abre a possibilidade de uma quebra do domínio irrestrito do impessoal. Acompanhemos novamente Casanova:

“Antes de sua dinâmica existencial, o ser-aí não é essencialmente nada e tudo que ele é precisa ser conquistado como um modo de ser. Desta forma, o ser-aí não tem como não assumir de algum modo a responsabilidade pelo seu ser. Ele pode se desonerar, claro, dessa responsabilidade. Como vimos, ele pode transferir essa responsabilidade para o seu mundo. Todavia, ninguém pode fazer isto por ele. Como tanto a assunção da responsabilidade pelo poder ser que se é quanto a desoneração dessa responsabilidade são modos de ser do ser-aí, eles já se mostram originariamente como modos de o ser-aí cuidar de seu ser”. (p. 128-129).


Na lida cotidiana com os utensílios, ou ainda, nas atividades rotineiras nas quais estão envolvidos os indivíduos juntamente com os utensílios, como as que Becker descreve, esses indivíduos tendem a atribuir ao seu mundo das ocupações a responsabilidade pelo seu ser. Assim, diz o mecânico: “sou mecânico, consertar carros é parte do que sou”. Mas  ele se esquece ou não se dá conta de que consertar carro é uma possibilidade de ser entre outras. Como lembra Casanova no excerto acima, o ser-aí não é nada fora da dinâmica existencial, e uma vez jogado nessa dinâmica, o que ele é precisa ser conquistado como um modo de ser. Quer o ser-aí assuma a responsabilidade pelo poder ser que é, quer não, ele já se mostra num certo modo de “cuidado” de seu ser. Mas é só na angústia que emerge fenomenalmente para o ser-aí a articulação entre o ser-aí, o poder-ser e a existência. É somente na angústia que o ser-aí conquista o modo de ser enquanto cuidado, já que a angústia abre a possibilidade de suspensão do domínio do discurso fático cotidiano. A angústia torna possível que o ser-aí se singularize, passe a ocupar-se do seu poder-ser si mesmo, do poder-ser que se é sempre.
A angústia mostra ao ser-aí que, desde sempre, ele é um ser “engajado” nas ocupações e preocupações da vida cotidiana.  A angústia descerra para o ser-aí (Dasein) os existenciais fundamentais de sua estrutura: a existencialidade, a facticidade e a decadência. A descrição heideggeriana da angústia revela ser ela extremamente problemática para o ser-aí: por um lado, a angústia torna possível ao ser-aí a apropriação do seu poder-ser, liberando-o da existência inautêntica; por outro lado, confronta-o com o nada que ele é e com a necessidade de sempre tem de conquistar o modo de ser que é. Ora, a última coisa que o homem comum deseja é confrontar-se com o nada originário que ele é enquanto Dasein.
Essas considerações sobre a angústia, na perspectiva fenomenológica heideggeriana, não devem sugerir uma correspondência unívoca com a angústia a cujo esquecimento se refere Becker. Mesmo que divirjam na maneira como compreendem a angústia, tanto Heidegger quanto Becker estão de acordo – assim me parece – quanto ao fato de que, uma vez esclarecidos os homens sobre sua própria condição, desatados da rede de ilusões culturais que conformam suas vivências, a sua existência se realiza como angústia. Angústia é o modo de ser do homem confrontado com a “crueza” de sua condição.
Em suma, uma parte da “loucura da condição humana” consiste no fato de o homem ter de empenhar-se em atividades e deixar-se absorver pela totalidade semântica de seu mundo fático, a fim de evitar confrontar-se com sua verdadeira condição enquanto animal biologicamente desamparado que se vê jogado no mundo para nele edificar o que tem de ser, decair, inevitavelmente envelhecer e morrer. Na próxima subseção, concentrar-me-ei no problema da ilusão cultural.

2.3. A ilusão cultural: os tipos normal e neurótico

Conforme assinalei, no penúltimo parágrafo da subseção anterior, será necessário determinar o horizonte desde o qual Becker considera a angústia. Essa será minha preocupação nessa seção mais adiante. Por ora, cumpre-me a tarefa de dilucidar o que significa assumir que o homem necessita para viver de ilusões que são engendradas e mantidas pela cultura. Na análise antropológico-psicanalítica da condição humana feita por Becker, o problema da ilusão e, de modo especial, o da ilusão cultural articula-se com o estudo do tipo neurótico. É preciso, então, compreender, em primeiro lugar, como definir o tipo neurótico, a fim de que possamos avançar no trabalho de compreensão do problema da ilusão cultural.
Becker nota que a neurose encerra três aspectos interligados. O primeiro dos quais diz respeito ao fato de que a neurose caracteriza as pessoas que têm dificuldade para lidar com a verdade da existência; nesse sentido, a neurose é universal, pois que todos nós, em alguma medida, sentimos alguma dificuldade de viver com os olhos abertos para a verdade da vida. O segundo aspecto diz respeito ao fato de a neurose constituir uma resposta particular que damos à verdade da vida. Nesse sentido, a neurose caracteriza o modo particular com que cada um de nós reage à vida. Finalmente, o terceiro aspecto toca à dimensão histórica da neurose. A análise que Rank faz dela aponta para o reconhecimento de que a neurose é um estado característico da existência humana consequente do desaparecimento das ideologias tradicionais que serviam para disfarçá-la. Não é que não existam ideologias modernas, mas estas não cumprem com a mesma eficiência o papel que cabia às ideologias tradicionais. Segue-se daí que, para Rank, o homem moderno é um animal profundamente adoecido, pois não pode mais contar com as mesmas ideologias vinculativas que davam sustentação ao seu projeto causa sui. Com esses aspectos caracterizadores da neurose em mente, podemos introduzir outro conceito com o qual a neurose está relacionada, ou, de modo particular, com o qual o tipo neurótico se relaciona, a saber, o conceito de caráter.


2.3.1. A formação do caráter

A neurose, nota Becker, é um problema de caráter (p. 219). Por isso, ao exame das características do tipo neurótico, devem preceder algumas palavras sobre o que é o caráter e sobre como ele se constitui. Começo com um convite a que olhemos à nossa volta para nos certificarmos de que as pessoas, em geral, não se preocupam com o fato de que suas ideias não correspondem à realidade. Um grande número de pessoas usa de suas ideias como meios para se defender de sua própria existência, como meios para espantar a realidade.
Todos os nossos significados que vão dotando nossas experiências de mundo de sentido nos são inculcados por força de nossas relações com os outros. Assim, por exemplo, os valores de certo e errado, bom e mau, nosso nome, quem somos, tudo isso é enxertado em nós por força das relações com os outros em sociedade. Além disso, crescer significa acumular uma enorme quantidade de repressões, sem as quais se tornaria impossível viver decididamente em um mundo que é esmagadoramente incompreensível, pleno de beleza, é verdade, mas também fonte de terror.
O caráter, entendido como mentira vital, é uma forma de defesa de que o animal humano lança mão contra o problema do “ser homem”. O homem como problema pode ser caracterizado nas palavras seguintes de Becker:

“Para o homem, o seu corpo é um problema que tem que ser explicado. Não só o corpo que é estranho, mas também sua configuração interior, suas recordações e seus sonhos. Ele não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria fazer, o que pode esperar. Sua existência lhe é incompreensível, um milagre como o restante da criação, mais perto dele, bem perto de seu coração que bate, por isso mesmo ainda mais estranho. Cada coisa é um problema, e o homem não pode apartar de si coisa alguma”. (Becker, 2012, p. 75).


Tal como descrito no trecho de Becker, o problema do homem remonta à inquietação pascaliana em face dos abismos infinitos que fazem o homem estremecer, que o fazem tomar consciência de sua pequenez e insignificância na imensidão de um universo indiferente mergulhado num silêncio eterno. Para Becker, a dificuldade básica do homem é ser, ao mesmo tempo, deus e verme: ser um deus com um ânus. O que significa “ser um deus”? Significa pretender ser imortal. O que significa “ter um ânus”? Significa ser uma criatura e, como tal, ser atravessada pela impermanência radical.
Vamos, doravante, encaminhar mais esclarecimentos sobre o que significa dizer que o caráter é um mentira vital. Precisamos voltar-nos para a condição humana, a fim de compreender o caráter como mentira vital. Consideremos o homem. Ele vive à custa de mentir para si mesmo sobre si mesmo e sobre o mundo (as religiões e outras formas de ideologias, como as políticas, o provam). O homem vive numa autotapeação constante. Se o abstrairmos, por um momento, desse espaço simbólico em que sua vida acontece – a cultura – para tomá-lo como uma criatura natural, depois de o examinarmos, concluiremos que a natureza não o dotou dos meios necessários para que ele pudesse acomodar-se bem ao mundo. O homem teve de inventar e criar sozinho os expedientes e desenvolver em si a equanimidade para conseguir viver.
O caráter – que nada tem que ver, no âmbito psicanalítico no qual o consideramos, com qualidades morais – o caráter, repito, é resultado de uma repressão global que o indivíduo tem de fazer de todo o espectro de sua experiência, a fim de que possa fruir um sentimento de valor interior e segurança básica. O animal não-humano, em contrapartida, já está programado com um equipamento instintual que lhe fornece a sensação de segurança. A situação do homem é radicalmente diversa. Consoante assinala Becker (p. 77), “o homem, pobre criatura desnuda, tem de construir e obter o seu próprio valor interno e sua segurança”. Mas ele só consegue construir esse valor interno e essa segurança, em todo caso, ilusórios, conforme veremos, à custa de erigir um muro maciço de repressões ao longo da vida, donde se segue que o homem adulto é um indivíduo dramaticamente reprimido. Vejamos quais são as repressões fundamentais sem as quais a vida para o homem se tornaria demasiado insuportável. O homem precisa então reprimir:

1) sua insignificância no mundo;

2) seus fracassos na tentativa de viver de acordo com as normas e os códigos adultos;
3) seus sentimentos de inadequação física e moral, tanto a inadequação de suas boas intenções quanto sua culpa e suas más intenções; também os desejos de morte e o ódio que sente ao ser frustrado pelos adultos;

4) a inadequação dos pais, suas ansiedades em relação a eles;

5) as funções do seu corpo, as quais significam sua mortalidade, sua indiscutível transitoriedade no mundo natural.

Agora, lancemos, por um breve momento, alguns olhares sobre a condição da criança e nos perguntemos: o que angustia a criança? A resposta: o fato de que a vida é demais para ela e de que, na verdade, ela tem de evitar um excesso de pensamento, de percepção e de vida. A criança precisa evitar a morte, que espreita qualquer atividade despreocupada, que lhe espia sobre os ombros enquanto ela, criança, brinca. Novamente, devemos recordar o ensinamento de Heidegger: a angústia básica do homem é uma disposição afetiva que o faz confrontar-se com o fato de ser um ser-no-mundo.
As defesas contra o desespero da condição humana é que formam o caráter de uma pessoa. O desespero que está em consideração aqui não deve significar a mesma coisa que significa o desespero que, definido no limiar deste texto, é uma categoria que, juntamente da categoria do absurdo, orienta a construção de toda a tessitura de minhas reflexões. O desespero, tal como defini no início deste texto, tem um caráter reconciliador com o real; mas o “desespero da condição humana” a que tenta fugir o próprio homem se traduz na forma de desamparo, de terror, aflição, ao sermos afetados pela percepção de que não controlamos nossas vidas, de que podemos ser nada mais do que um trêmulo acidente num planeta localizado numa pequena porção de um universo com aproximadamente 200 bilhões de galáxias.
Não queremos admitir que somos fundamentalmente desonestos no que tange à realidade; não queremos reconhecer que mentimos para nós mesmos. Não podemos suportar o sentimento de nossa radical solidão cósmica; por isso buscamos apoio em algo que nos transcenda,  seja num deus,  seja num estilo de vida, seja numa atividade que requer completa dedicação. O importante é que permaneçamos ignorantes e desocupados da insignificância que consiste em ser uma criatura formada a partir do carbono.
As defesas que formam o caráter de uma pessoa sustentam uma grande ilusão. O homem se queixa do estresse da vida diária; mas busca-o para manter-se protegido contra o desespero total. O caráter é, portanto, nossa couraça contra o desespero, e perdê-la significa correr o risco da morte ou da loucura. O caráter é uma defesa neurótica contra o desespero. Se ele for abandonado, restará um desespero avassalador que, emergindo de nossos subsolos para mergulhar seus tentáculos em toda a nossa fisiologia, será a consequência inevitável da percepção da nossa verdadeira condição como criatura que, mesmo curada de sua infelicidade neurótica, ainda terá de lidar com a infelicidade da vida.
A função do caráter é, portanto, permitir à pessoa uma defesa contra o desespero. O caráter é sua tentativa de evitar a loucura, o terror de que essa pessoa seria tomada, caso se lhe iluminasse no espírito a verdadeira natureza do mundo. De que natureza se trata? O que significa dizer “verdadeira natureza do mundo”? Sem me demorar nos desdobramentos polissêmicos do termo “natureza” (natura), basta reter que ele significa “essência”. Falar em “natureza do mundo” é falar de “essência do mundo”, isto é, aquilo que faz o mundo ser o que é. O que Schopenhauer nos ensina sobre essa matéria virá bem a propósito. Em sua obra O mundo como Vontade e Representação (2001), Schopenhauer estudará o mundo sob dois pontos de vista: o mundo como representação, que é o mundo fenomênico, deveniente; e o mundo como vontade. Schopenhauer assumirá que a Vontade, que é um princípio metafísico, é a essência do mundo. A Vontade é una e idêntica em si mesma, eterna e infinita; existe para além do espaço, do tempo e não está submetida ao princípio da razão (causalidade). A Vontade é um impulso cego, sem finalidade, de ser, de viver. Ela sustenta o mundo, mas se objetiva nos fenômenos do mundo, desde as formas inorgânicas (as forças físicas e químicas) até atingir seu grau máximo de objetivação no homem. A vontade não nos é acessível ao conhecimento intuitivo, mas podemos constatá-la em nosso corpo, pois nosso corpo é o ‘lugar’ de sua objetivação.  Schopenhauer, embora admita que a conformação dos fenômenos uns com os outros envolva um princípio teleológico imanente à dinâmica da natureza, adverte que essa conformação não elide o conflito inerente ao tecido vital. Há que reconhecer, segundo Schopenhauer, uma luta geral na natureza que se prende à essência da vontade. A Vontade de que fala Schopenhauer não tem escopo final. Ela é desprovida de toda finalidade. Apenas o ato particular tem uma finalidade; a vontade mesma não a tem. Leia-se um trecho em que Schopenhauer fornece-nos uma descrição notavelmente heraclitiana do mundo, à luz da qual a harmonia não elide o conflito permanente que se dá no domínio fenomênico como resultado da contradição interna da vontade consigo mesma:

“A harmonia só se estende nos limites em que ela é necessária para a existência e subsistência do mundo e das criaturas, que, sem harmonia, teriam já acabado há muito tempo. Eis por que motivo esta harmonia se limita a garantir a conservação e as condições gerais de existência à espécie, não ao indivíduo. Portanto, graças à harmonia e à adaptação, as espécies no mundo orgânico, as forças gerais da natureza no mundo inorgânico coexistem umas com as outras e mesmo se apóiam mutuamente, em compensação, a luta íntima da vontade que se objetiva em todas estas ideias[4] traduz-se na guerra até a morte – guerra sem tréguas – que os indivíduos dessas espécies fazem e ao conflito eterno e recíproco dos fenômenos das forças naturais”. (p. 170).


Para não me desviar demais do que me propus esclarecer, não discutirei, em pormenores, o que se nos põe a pensar esse excerto. Cingir-me-ei a assinalar que a harmonia que encontramos nos fenômenos da natureza tem uma extensão limitada à garantia da existência e subsistência do mundo e dos entes que nele existem. A Vontade, como coisa em-si, como essência do mundo, não garante a harmonia, pois que a Vontade se caracteriza essencialmente por um conflito consigo mesma. É ao fundo íntimo essencial do universo que devemos remontar, a fim de buscar a origem da guerra sem tréguas em que se traduz a vida. Donde ser forçoso concluir, retomando-se a questão sobre a verdadeira natureza do mundo, que esta natureza não é mais do que conflito permanente da Vontade com ela mesma. Daí se poder dizer, concordando com Schopenhauer, que a essência da vida é dor; daí também ser imperioso anuir à clareza Schopenhaueriana, ao nos advertir: “existe uma contradição notória em querer viver sem sofrer” (p. 100), ao que acrescentará: “contradição que está totalmente envolvida na palavra “vida feliz” (ib.id.).
Gostaria de lembrar ao leitor que esta é apenas a minha atribuição de sentido à expressão “a natureza verdadeira do mundo”, não necessariamente será a de Becker. Becker não dá a conhecer indubitavelmente o que entende por essa expressão, cabendo ao seu leitor, mapear, ao longo do texto, o seu significado, o que exige certo esforço interpretativo que não deve submeter-se à busca por responder “o que o autor quis dizer”. É perfeitamente plausível admitir, sem que façamos uma interpretação não autorizada pelo projeto de sentido que sustenta o discurso de Becker, que, na verdade, “a verdadeira natureza do mundo” é não ter natureza (essência) alguma. Nesse caso, negaríamos que se possa conhecer alguma natureza íntima e verdadeira do mundo, simplesmente porque o mundo carece de tal natureza. Não há nada para conhecer que se situe para além das aparências. Só podemos constatar a presença absurda do mundo, sua ausência de fundamento, de razão de ser. Sua radical contingência seria, assim, o que podemos alcançar pela reflexão aturada. Não obstante julgar plausível essa interpretação, mantenho a compreensão de que “a verdadeira natureza do mundo” é a Vontade cega, sem finalidade, visto que essa compreensão se ajusta bem à concepção do real como essencialmente cruel – concepção cujo esclarecimento e desenvolvimento constituem o objetivo principal deste estudo.
A Vontade, para Schopenhauer, é um esforço sem fim. Esse esforço não tem, portanto, escopo final. Nas palavras de Schopenhauer,

“Em resumo, a vontade sabe sempre, quando a consciência a ilumina, o que quer em tal momento e em tal lugar [como sucede com o homem]; o que ela quer em geral, ela nunca o sabe. Todo ato particular tem uma finalidade; a própria vontade não a tem; como todos os fenômenos naturais isolados, a sua aparição em tal lugar, em tal momento, é determinada por uma causa que lhe dá fundamento; mas a força mais geral que se manifesta nesse fenômeno não tem ela própria causa, visto que ela é apenas um grau das manifestações da coisa em si, da vontade que escapa ao princípio da razão. A única consciência geral de si mesma que a vontade tem é a representação total, o conjunto do mundo que ela percebe: ele é a sua objetidade, a sua manifestação e o seu espelho (...)” (p. 173).



Antes de retomar o problema do caráter de que me ocupava, vale chamar a atenção, em primeiro lugar, para o fato de que a postulação da Vontade como essência íntima do mundo não alija da compreensão de mundo schopenhaueriana o absurdo, porquanto a Vontade é esforço sem finalidade alguma. A própria vida, como objetivação da Vontade, se manifesta sem propósito, sem finalidade. A Vontade objetiva-se nos entes do mundo orgânico como um querer sem fim. Em segundo lugar, essa luta geral na natureza está ligada à essência da Vontade, e a essência da Vontade se expressa como contradição da Vontade com consigo. Em que consiste essa contradição da Vontade com ela mesma? Só poderei dar uma resposta parcial, ou seja, uma resposta que não contempla toda significação dessa contradição. Mas o essencial deverá elucidá-la e nos ser bastante. Schopenhauer dirá que é o egoísmo essencial a todos os seres na natureza que revela a contradição íntima da Vontade. A Vontade, para manifestar-se, deve submeter-se ao principio de individuação – o tempo e o espaço. Cada grau de objetivação da vontade, desde as forças naturais – graus inferiores da objetivação da Vontade – até o homem, fenômeno superior da Vontade, luta sem cessar disputando um com o outro a matéria, o espaço e o tempo. Cada fenômeno da Vontade, movido pelo princípio natural do egoísmo, tende sempre para atingir um estado mais elevado; mas isso só consegue eliminando outro fenômeno com o qual entra em conflito. Assim, a Vontade de viver, isto é, a Vontade, objetivando-se em cada fenômeno – seja uma criatura viva como um animal – “alimenta-se” de si mesma, já que “uma criatura viva só pode manter sua vida à custa de uma outra” (p. 155).
Volto a tratar da questão que abandonei, a partir de agora. Minha atenção recaía sobre a formação do caráter. Ficou claro que o caráter se forma a partir de uma série de repressões e também que o caráter é uma mentira vital. O caráter indica que o homem vive num estado de autoilusão, de autotapeação. O caráter é uma defesa contra o desespero. Resumindo assim o que vimos, evoco uma questão que nos é apresentada por Becker e que deverá iluminar o curso das reflexões subsequentes. Pergunta Becker: “o que é que o homem faria com uma plena consciência do absurdo?” (2012, p. 84). É provável que uma tal consciência o paralisasse ou o levasse para o hospício. É bem verdade que a pergunta diz respeito ao efeito psíquico que a consciência do absurdo teria sobre o indivíduo. E é justamente o esclarecimento acerca do absurdo da existência que o homem quer evitar e evita moldando seu caráter. O caráter tem o único propósito de lhe servir como uma cortina que obscurece a crueldade da vida.
O caráter permite ao homem vicejar na cegueira, tornar-se presunçoso em relação ao terror. Sartre compreendeu bem essa autoilusão do homem, caracterizando-o como uma “paixão inútil”, isto é, o homem vive enganado a respeito de sua verdadeira condição, como nota perspicazmente Becker: “o homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (p. 85). É preciso reconhecer que a defesa contra a consciência do modo como o mundo é verdadeiramente é indispensável para se continuar vivendo: “como tirá-la das pessoas e deixá-las alegres?” (ib.id.).
Por mais atraente que nos possa parecer a recomendação do psicólogo americano Abraham Maslow, segundo a qual as pessoas deveriam se permitir ter a experiência do que ele chama de “cognição do ser”, a qual consiste “na abertura da percepção à verdade do mundo”, uma verdade escondida pelas distorções e ilusões neuróticas que protegem o indivíduo de experiências esmagadoras, o próprio Maslow soube reconhecer os perigos de tal experiência, embora não tenha chegado a apresentá-los em pormenores. Mas podemos entrevê-los e sumariá-los sob a expressão da seguinte observação: a cognição do ser nos levaria a questionar radicalmente nosso lugar no mundo e ver o mundo tal como é verdadeiramente constituiria uma experiência terrificante e arrasadora. Sua consequência é aquela que a criança buscou com todo esforço evitar na construção de seu caráter ao longo de sua socialização: impossibilitar uma atividade rotineira, automática, segura, autoconfiante.
Uma visão desanuviada da verdadeira natureza do mundo impede o indivíduo de viver despreocupado, instalado em sua zona de conforto num mundo que, de qualquer modo, parece bem ajustado para abrigar a vida e, em especial, a vida humana. Tomar consciência da verdadeira natureza do mundo, consoante nota Becker, também “coloca um animal trêmulo [como o homem] à mercê de todo o cosmo e do problema do significado do mesmo” (p. 85).
Podemos, agora, responder, com alguma margem de segurança, o que significa ser “normal”. Significa continuar negando a verdadeira natureza do mundo, significa continuar servindo-se do caráter para proteger a si mesmo do desespero e do terror que sobreviriam à percepção da verdade sobre o real, significa, enfim, continuar a seguir o rebanho.


2.3.2. A ilusão cultural

2.3.2.1. O tipo neurótico “normal”

Ao me debruçar sobre a descrição da dimensão ilusória, constitutiva do viver cotidiano, estarei interessado em definir quem é o homem comum. Definindo o homem comum, espero conseguir lançar luzes sobre o significado e a função da ilusão cultural.
Segundo Becker (p. 230), o homem comum é aquele que conseguiu “erigir um maciço muro de repressões” para obnubilar o problema da vida e da morte. Esse homem comum não mede esforços para esconder o problema da vida e da morte. Para escapar ao terror que lhe provocaria um instante de reflexão sobre sua condição humana, ele é capaz, inclusive, de deflagrar guerras, oprimir e causar dor e sofrimento como formas de manter-se ocupado e alienado de sua trágica condição. Luiz Gonzaga de Bem, em seu Confissões de um filósofo desesperado (2009), apresenta-nos um recorte da tragicidade inerente à condição humana, que acredita estar relacionada ao fenômeno da individuação e o peso da liberdade e responsabilidade que ela acarreta:


“O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a seu um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo necessário. E é essa escolha que organiza a nossa harmonia individual, o sentimento de nosso equilíbrio moral. É ela que constitui a tragédia e que faz com que os meus dramas não sejam simples farsas. Eles apresentam uma lei de sacrifício: o sacrifício da multidão de vidas que poderíamos viver e que, no entanto, não vivemos. E a vida, não é uma farsa, é uma tragédia”. (p. 135-136).


O ser “um” significa ser um “eu”. Não se trata de aderir a uma compreensão determinística do “eu”, conforme ficará mais claro no próximo excerto de Bem, que citarei adiante. O que está em jogo, na dimensão trágica do homem, segundo o autor, é a sua liberdade ontológica. Sou responsável pelo que sou e por aquilo que faço do que fizeram de mim. Bem faz ecoar aqui a posição existencialista de Sartre, para quem a liberdade leva o homem a tomar consciência do projeto que ele é. Na liberdade, o homem, sente-se desamparado, pois não pode contar com nada mais nem com ninguém. Na liberdade, o homem precisa assumir a responsabilidade pelo que é e pelo seu destino. Lançado no mundo, o homem é responsável por tudo quanto faz. Mas o homem experiencia a sua liberdade, à qual ele está ontologicamente condenado, como angústia. O homem, na visão de Sartre, não é um ser acabado; ele precisa ser inventado todos os dias.
No excerto abaixo, Bem caracteriza a vida humana como drama, e novamente, de modo ainda mais claro, assume uma posição existencialista consagrada por Sartre. Leiamos com atenção o fragmento:

“Por essa razão eu disse muito formalmente e não como simples metáfora que a vida é drama: o caráter de sua realidade não como o da mesa cujo ser consiste tão-só em estar aí, mas em ter cada qual de ir-se fazendo por si, instante após instante, em perpétua tensão de angústias e júbilos, sem que tenha nunca plena segurança sobre si mesma. Não é essa a definição de drama? O drama não é uma coisa que está aí – não é em nenhum bom sentido uma coisa, um ser estático -, mas sucede, encontra-se, é um suceder-lhe algo a alguém, é o que acontece ao protagonista enquanto lhe acontece” (p. 136).


Ora, o ser para o qual o Dasein (o ser-aí) é a locanda, a clareira, é um acontecer; o ser se mostra sendo. Se “ser” é sendo, é acontecer, segue-se, se nos for dado acompanhar Bem, que ser é “drama”. E, como o ser-aí é o ser no qual está em questão o sentido do ser, esse sentido se expressa como seu drama. A pedra, esta mesa, a cadeira onde me sento são seres-em-si e, por isso, não estão abertos à experiência de “não ser o que se é e ser o que não se é” (cf. Sartre, Ser e o Nada). O ser-em-si é pleno de si, é compacto, não pode não ser o que é. Somente para um ser que se caracteriza pela “ausência de si” (falta-lhe o “si” que o determina a ser o que é), somente para o homem, chamado por Sartre de “para-si”, a experiência de ter de fazer-se continuamente, de nunca ser o que se é, é possível, já que o homem é verdadeiramente o único existente. E a existência é experiência dramática para o homem, para quem existir é trabalho incessante de edificação de si sobre a indeterminação originária que jamais o abandona enquanto existente.
Becker, por sua vez, oferece-nos outra forma de compreender o caráter trágico da condição humana. O trágico de nossa condição deve ser buscado no fato de o homem ser um animal consciente de si mesmo. Leiamos com atenção o seguinte excerto:


“O que significa ser um animal consciente de si mesmo? Significa saber que se é alimento para vermes.Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo pelo qual certo tipo de homem cultural se rebela abertamente contra a ideia de Deus. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos do homem para se divertirem”. (p. 115-116).



Retomando o curso das considerações sobre o homem comum, é imprescindível enfatizar que normalidade e neurose não têm limites rigorosos. Tenhamos isso em mente, a fim de que não incorramos no engano de acreditar que os tipos comum e neurótico sejam tipos radicalmente distintos. Feita essa advertência, passemos a contemplar a condição do tipo normal à luz da oposição entre ilusão e realidade.
O projeto causa sui é uma presunção que tem o indivíduo de sua invulnerabilidade em virtude de estar protegido pelos outros e de viver sob o abrigo dos significados fornecidos pela cultura. Esse projeto está na origem da crença do indivíduo de que ele é importante e que pode desempenhar um trabalho valioso em favor da humanidade. Sucede, contudo, que o projeto causa sui é uma ilusão - ilusão em dois sentidos principais: 1) distorção da real condição do homem como criatura; 2) autoengano motivado pelo desejo de sua vida mesma possuir algum significado na totalidade do universo. No entanto, o universo, que se tivesse voz bradaria, parece pronto para demonstrar que não devemos ignorar os sinais da verdade sobre a vida humana: todos os modos de ela se dar (entenda-se “se configurar”) indicam que ela não passa de um interlúdio insignificante “de um perverso drama de carne e osso que chamamos evolução” (Becker, 2012, p. 230). Tendo voz, o universo acrescentaria: o Criador não se importa com o destino do homem “ou com a perpetuação dos indivíduos mais do que parece ter-se importado com os dinossauros ou com os tasmânios” (ib.id.).
Resumidamente, o tipo humano normal pode ser assim caracterizado:

1) é mais envolvido pela mentira da vida cultural, pelas ilusões do projeto causa sui;
2) está certo de que o jogo cultural é a verdade, a inabalável verdade;

3) adere mais facilmente à ideologia da imortalidade e age em conformidade com ela.


Penso que uma compreensão suficientemente satisfatória da ilusão cultural deve esperar pela apresentação das características dos tipos neurótico e criativo. Sem embargo, a ilusão cultural se prende ao fato de que é a cultura que determina nossa visão de mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, nossos comportamentos, nossos gostos e mesmo nossas posturas corporais. A cultura molda nosso pensamento e fornece os significados com os quais damos sustentação e algum sentido[5] para a nossa existência. A ilusão cultural é a forma generalizada com que o autoengano respeitante quer à condição individual, quer à condição humana, enraíza-se na estrutura da consciência para produzir modos de ser ajustados à vida social. O indivíduo humano tem necessidade de segurança, sem a qual seu desenvolvimento e crescimento se tornariam impossíveis. Ele não pode sentir permanentemente que sua vida está em perigo; e a cultura deve lhe garantir (o sentimento de) segurança. O indivíduo tem necessidade de pertencimento, isto é, ele necessita sentir-se membro de uma coletividade, necessita sentir que é amado e acolhido. A menos que essa necessidade seja satisfeita, seu desenvolvimento não será pleno. O indivíduo também tem necessidade de estima. Ele precisa sentir-se valorizado, sentir que ocupa um lugar, que desempenha um papel. Ele deseja ter êxito. E a cultura deve também aqui lhe vir em socorro. Finalmente, o indivíduo necessita de auto-realização. Ele necessita desenvolver “valores” superiores, como a paz, a justiça, o belo; necessita de sua vida tome parte, de algum modo, no trabalho de melhoria das condições de existência da coletividade a que pertence ou mesmo do mundo. São esses valores superiores que, para ele, dão sentido à sua vida[6]. Novamente, é a cultura que deve favorecer sua auto-realização.


                   2.3.2.2. O tipo neurótico

Principio minha abordagem do tipo neurótico, destacando a seguinte proposição: a neurose é um problema de caráter (Becker, 2012). Becker inicia sua exposição sobre o tipo neurótico pela inadequação natural do homem. Segue-se o que Becker nos tem a dizer a esse respeito. Notemos que o autor externará o que entende por “verdade da vida”.


“Quando dizemos que a neurose representa a verdade da vida, uma vez mais queremos dizer que a vida é um problema esmagador para um animal desprovido de instinto” (p. 219).


O instinto prepara os animais não-humanos para todos os atos necessários à sobrevivência. O homem, porque desprovido de instintos, tem de aprender quase tudo. Um bebê não provê sozinho sua alimentação; por outro lado, a maioria dos animais já é auto-suficiente ao nascer. O instinto, na medida em que é uma forma de percepção que desencadeia uma reação programada, determina o comportamento dos animais não-humanos. Também devemos ao instinto a delimitação do fragmento do mundo que o animal irá habitar e onde irá se desenvolver. Por isso, os animais têm habitat; o ser humano, não. O mundo do homem é todo o planeta, situado numa galáxia entre bilhões de outras sobre cuja existência, natureza e imensidade ele só pode especular. Na carência de instintos que o preparam para todos os atos de sobrevivência, o homem desenvolveu uma extraordinária capacidade de adaptação aos mais variados ambientes naturais. Essa extraordinária capacidade de adaptação parece compensar a ausência de defesa natural contra a percepção do mundo exterior. O homem é um animal completamente aberto à experiência. Ele se relaciona não só com os indivíduos de sua espécie, mas também com os animais de outras espécies. Ele não vive apenas atado ao momento presente, mas projeta seu espírito para o futuro, o seu interesse para um passado remoto, os seus temores para bilhões de anos adiante.
Freud distinguiu rigorosamente o instinto (instinkt) da pulsão (trieb). Segundo Freud (2014, p. 49), as pulsões “[são] as forças que supomos existir por trás das tensões de necessidades do isso [id]. Elas representam as exigências físicas feitas à vida psíquica”. As pulsões são tendências, impulsos que extrapolam a consciência e que têm sua fonte numa excitação corporal localizada. Não poderei, neste texto, evidentemente, me estender sobre a importância das pulsões para a compreensão da natureza humana, mas vale acrescentar outro aspecto que distingue o instinto da pulsão: o instinto possui um objeto específico, ao passo que a pulsão não o implica. As pulsões jamais podem tornar-se objeto da consciência; elas são o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo. Embora se situem no inconsciente, as pulsões, mesmo aí, são sempre representadas por uma ideia ou afeto.
Voltando nossa atenção à função vital da neurose, não devemos perder de vista o fato de que a neurose atende a um propósito bem determinado: proteger o indivíduo contra o mundo. Essa proteção se dá da seguinte forma. A neurose reduz o tamanho do mundo para o indivíduo e impede que este seja importunado por experiências que o fariam mergulhar em terrores e desespero (entendido como aflição decorrente da perda de mundo, perda do conjunto de referências que dava sustentação à vida desse indivíduo). Na neurose, o indivíduo aliena-se tanto dos terrores do mundo quanto do desespero e da angústia que lhe fustigariam todo o corpo se viesse a ser exposto àqueles terrores. É dessa forma que a neurose livra o indivíduo de uma paralisia que o impediria de agir ou mesmo de viver.


“Nunca será demais repetir a grande lição da psicologia freudiana: a de que a repressão é a autoproteção normal, uma auto-restrição criativa – numa acepção verdadeira, o substituto natural do instinto, para o homem” (Becker, 2012, p. 219).



Pode-se caracterizar essa aptidão natural do homem para auto-restrição como “parcialização”. O homem bem ajustado à dinâmica do seu mundo fático possui uma capacidade impressionante de parcializar o mundo, a fim de que possa agir de modo satisfatório. Assim, os seres humanos parecem programados pela natureza para tomar da vida apenas a fatia que conseguem mastigar e digerir. O homem normal é aquele que cumpre adequadamente essa função. O homem normal é aquele que é bem-sucedido na parcialização do mundo, na imersão numa parte reduzida dos “espaços imensos que o ignoram e que ele precisa também ignorar”.
O homem normal é aquele que se proíbe ruminar problemas eternos, como o do significado da vida e da morte, a razão da aparição dos entes, como esta rosa que o agrada ou aquela constelação que admira. Consoante nota Becker, fazendo eco a Kierkegaard, “a maioria dos homens se poupa dessa complicação, mantendo-se concentrada nos pequenos problemas de suas vidas, tal como a sociedade em que vivem traça esses problemas para eles” (p. 219). Esse é o tipo de homem que Kierkegaard chamará de “filisteu”. Insisto, citando Becker, neste ponto: “a essência da normalidade é a recusa da realidade” (p. 220, grifo meu).
Cuido necessário fazer aqui um esclarecimento, porque, afinal, desloquei o foco de minhas considerações sobre o tipo neurótico para o tipo normal, e o leitor pode estar se perguntando por que voltar a mencionar o homem normal numa seção dedicada à explanação sobre o tipo neurótico. Em primeiro lugar, conforme já assinalei, todos nós temos traços neuróticos em nossa personalidade. Em segundo lugar, o tipo neurótico e o tipo “normal” não se distinguem rigorosamente. Lembro também que estou transitando num espaço teórico específico do tratamento da neurose. As teorias sobre a neurose são muitas e bastante variadas. Reich, por exemplo, entende que a neurose é uma couraça que construímos para poder lidar com a realidade. Nesse sentido, ela é o próprio caráter, que foi objeto de discussão anteriormente. Um aspecto importante da neurose são os mecanismos de defesa utilizados pelo indivíduo para suportar o peso da realidade. O neurótico tende, por meio desses mecanismos de defesa, a distorcê-la.  Mas é igualmente certo que todas as pessoas se utilizam de tais mecanismos, muito embora o neurótico os empregue como sua principal forma de ajustamento ao mundo de sua cultura. Teles (2004, p. 22), ao levantar a questão “quem é o neurótico?”, responde da seguinte maneira: “A verdade é que a nossa compreensão da neurose está longe de ser clara e completa”. E acrescenta: “este aspecto do comportamento humano é muito difícil de estudar”.
Como, então, entender que eu tenha tornado a falar do tipo normal? Salta evidente a resposta: é que o tipo normal é, em certa medida, também neurótico. Seu caráter é seu mecanismo de defesa contra a verdade do mundo. Estando clara essa falta de distinção rigorosa entre um tipo e outro, passemos a um segundo momento de minha discussão sobre o tipo neurótico e sobre a neurose. Quando nos ocupamos a pensar sobre a neurose, somos levados a reconhecer que a neurose é uma questão de graus. Há os neuróticos bem ajustados, chamados, portanto, de “normais”, porque conseguem viver bem com suas mentiras sobre o mundo e sobre si mesmos. Mas ocorre, com frequência, que a neurose pode significar o fracasso das precárias mentiras de que o indivíduo se vale para encobrir a realidade e a verdade de sua própria condição. Algumas pessoas sentem dificuldades para manter suas mentiras. O mundo se torna, assim, pesado demais para elas, e os “subterfúgios” de que se servem para manter afastada da consciência a verdade sobre a natureza do mundo começam a perder sua eficácia.
Devemos agora ver o tipo neurótico sob outra perspectiva. Um indivíduo neurótico é aquele cuja vida acarreta sérias dificuldades a si mesmo ou aos outros à sua volta. Quando as mentiras sobre a realidade se tornam ineficazes, devemos reconhecer nesse fracasso um caso também de neurose. O tipo neurótico é, então, aquele indivíduo que evita fazer novas escolhas, que se impõe muitas coerções. Destarte, uma pessoa, por exemplo, que esteja esperando encontrar salvação num relacionamento amoroso e que se veja fracassando na busca desse objetivo demasiado estreito é neurótica. Ela pode tornar-se passiva e dependente da pessoa amada, e temerosa de viver sozinha.
Podemos, todavia, contemplar o problema da neurose sob outro prisma. Há um tipo neurótico que não se caracteriza por operar um estreitamento do mundo, mas sim por exibir uma imaginação vívida, por operar uma abertura, demasiado lata, à experiência. Esse tipo neurótico abocanha um pedaço maior do mundo. Esse tipo neurótico é, pois, o oposto do tipo que vimos estudando. O tipo neurótico que, até aqui, descrevemos bloqueia a percepção da realidade. Veremos, mais adiante, como se define outro tipo neurótico, o neurótico criativo. O tipo neurótico criativo sente sua solidão com intensidade, apropria-se, de modo vívido, de sua individualidade. Esse tipo neurótico se destaca, está menos inserido na cotidianidade mediana, experimenta uma segurança mais reduzida, que compromete sua ação cultural automática. O mundo se lhe torna, por isso, um problema total – “com todo o inferno vivo que essa exposição provoca” (Berger, 2012, p. 223). Esse tipo neurótico “abocanha” uma parcela maior do mundo, muito maior, aliás, do que pode mastigar.
Por ora, basta atentar para a síntese dos dois tipos neuróticos cujas características foram apreciadas nesta subseção, as quais nos dá a saber Becker no seguinte trecho:

“Podemos ver que a neurose é, por excelência, o perigo em que incorre um animal simbólico cujo corpo lhe constitui um problema. Em vez de viver biologicamente, o homem vive simbolicamente. Em vez de viver da maneira parcial, para a qual a natureza lhe deu condições, ele vive de maneira total tornada possível pelos símbolos. A pessoa substitui o mundo real, fragmentário da experiência, pelo mundo mágico do eu, que a tudo abrange. Uma vez mais, nesse sentido, todos são neuróticos, já que todo mundo, de algum modo, hesita em manter contato com a vida e deixa que a visão simbólica que tem do mundo arranje as coisas: é para isso que serve a moralidade cultural. Nesse sentido, também, o artista é o mais neurótico, porque também toma o mundo como uma totalidade e o transforma em sua maior parte simbólica”. (p. 225, grifos meus).


Os trechos que destaquei em negrito merecem aqui alguns comentários. Cabe, em primeiro lugar, observar que Becker reconhece que o homem é um animal simbólico, isto é, um animal capaz de usar símbolos para constituir um mundo próprio que é, essencialmente, um mundo simbólico. Mas mundo simbólico não mundo ficcional, algo como um simulacro do “verdadeiro” mundo. O mundo simbólico é mundo como totalidade entretecida de significados, é “mundo” estruturado por conceitos e/ou categorias graças à função de simbolização da linguagem. Devemos ter em conta a lição do linguista Edward Lopes (2011, p. 41), ao nos ensinar: “toda significação é, em última instância, verbal: a inteligibilidade requer uma linguagem de signos verbais”. Obviamente, o mundo onde vive o homem está repleto de outras formas de linguagem, mas é somente a linguagem verbal que pode sempre traduzir todos os signos não-verbais. Mesmo não sendo um especialista em arte, posso expressar em palavras o que vejo numa pintura representativa da arte abstrata; mas dificilmente um pintor conseguirá traduzir de modo inequívoco expressões linguísticas como “vazio da existência”, “ideias sorrateiras”, “luzes estilhaçadas”, “mortalha da alegria”, etc. Pense ainda num ator que tenha de representar, sem qualquer fantasia, uma “flor”. Como usar nosso corpo para representar algo como uma “flor”? Sabemos que usamos nosso corpo para significar. O teatro explora a linguagem corporal. O dedo polegar estendido para cima pode significar ‘agradecimento’, ‘simples cumprimento’, ‘assertiva’, pode indicar que estou bem, etc.
É preciso, então, sublinhar este ponto: fora dos quadros da linguagem verbal, dos signos, portanto, não há possibilidade de inteligibilidade para o homem. Mas cumpre ainda esclarecer o que devemos entender por simbolização. Uma forma de definir simbolização é afirmando que ela é uma faculdade de representar o real por meio de um ‘signo’ (uma palavra, um símbolo, um ícone, etc) como representante do real. A simbolização torna possível, assim, estabelecer uma relação de significação entre alguma coisa e alguma outra coisa. Benveniste dirá que a faculdade de simbolização permite a formação de conceitos como algo distinto do objeto concreto. O filósofo Charles Peirce, evocando a concepção tradicional de signo, chamará de signo um ente mediato, isto é, uma coisa que está por outra coisa. O signo linguístico, em particular, (o morfema, a palavra, a frase) é um ente dicotomicamente dividido em uma face material-sonora e uma face significativa (o seu significado).
O significado do signo é a parte inteligível que intermedeia a estrutura sônica e o referente extralinguístico (a coisa de que o signo é signo). O significado de um signo, segundo Peirce, é outro signo, pois, para que possamos apreender o significado de um signo, tornando-o inteligível, precisamos expressá-lo, traduzi-lo com outros signos. O significado é sempre, pois, uma ausência que só se preenche com outros signos que lhe explicitam. Peirce entedia o significado como interpretação do signo. Para ele, o significado é sempre uma função ou relação entre um signo (por exemplo, “casa”) e seus interpretantes (isto é, os signos que utilizamos na definição de “casa”). Peirce entende que, ao pronunciar um signo, este faz vir à mente de nosso interlocutor um interpretante ou vários interpretantes, ou seja, outros signos equivalentes que lhe esclarecem o significado. Em suma, o signo, para Peirce, é um representâmen, a saber, aquilo que representa algo para alguém. O signo que, por sua vez, vem à mente do meu interlocutor no momento em que pronuncio um determinado signo, é seu interpretante.
É o próprio Peirce que, em seu Semiótica (1977), nos dará a saber o que ele entende por representar. O signo, portanto, não é a coisa, mas está no lugar da coisa, ele é um representâmen. Segundo Peirce, representar é “estar em lugar, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (p. 61). Assim, se produzo um signo complexo como “a casa de meu irmão”, o que ponho à presença de meu interlocutor não é casa de meu irmão como objeto concreto do mundo; o que faço vir ao mundo é um representante da casa enquanto objeto concreto do mundo com a qual posso ter uma experiência sensorial. Magia da linguagem, portanto: fazer o ausente torna-se presente à mente.
Não devemos concluir do exposto que a linguagem espelhe o real, que ela seja uma espécie de fotografia do mundo real. O que chamamos de real é produto de uma complexa interação entre percepção-cognição, linguagem e cultura. Não há um real já dado, estruturado antes da linguagem, antes da complexa relação entre percepção-cognição, linguagem e cultura. Já tratei desse tema em outros textos publicados neste blog e não cabe aqui retomá-lo. Se fiz essa advertência, foi tão-só para mostrar que a língua/linguagem não cumpre a função de espelhar o mundo tal como é, na suposição de que existe um mundo já organizado ou pronto que podemos conhecer por uma simples tradução em signos.
Como lembra Leibniz, independentemente do modo como o mundo se constitui, o fato é que nós só temos acesso às coisas nele pela mediação da linguagem. É a partir do modo como articulamos as palavras em enunciados que organizamos as informações de nossa experiência sensorial. As palavras não são etiquetas para as coisas, nem os significados estão fixados antes da interação verbal. Quando estive em Fortaleza, passei por uma experiência (diria várias) linguística interessante. A moça que namorei disse que o colchão de ar “secou”. Isso mesmo “secou”. Estranhei, porque o colchão não estava molhado. Notando meu estranhamento, ela me explicou: “secar” aqui a gente usa também para dizer “esvaziar”. Esse caso é ilustrativo e interessante, não porque indique simples diferença de significado de palavras entre regiões onde se fala o português. Mostra muito mais. Mostra que os significados que atribuímos às nossas palavras são sempre negociados na interação. Mostra que para que consigamos saber que significados estão sendo atribuídos às palavras que usamos na interação nosso interlocutor precisa dispor de modelos sociocognitivos mais ou menos semelhantes aos nossos. Faltou-me o background cultural que me permitisse atribuir à palavra “secar”, naquele contexto, o significado “esvaziar”, que era parte do conhecimento sócio-cultural e linguístico de meu interlocutor. Embora já não se possa sustentar, convincentemente, a tese forte de Sapir-Whorf, segundo a qual a língua determina nossa maneira de ver o mundo a tal ponto que falantes de línguas ou variedades linguísticas diferentes viveriam em mundos completamente diferentes, é ponto pacífico entre os estudiosos que se ocupam da relação entre linguagem e percepção-cognição que a língua que falamos influencia o modo como “vemos” o mundo. Isto é, cada língua “recorta” o real de modo diferente. Assim, embora vivamos numa mesma realidade, reconhecível por seres humanos dotados de um equipamento cognitivo semelhante, é igualmente verdade que as formas como categorizamos o mundo, ou seja, como segmentamos o universo amorfo e contínuo da experiência, não serão exatamente as mesmas, uma vez que os grupos humanos falam línguas diferentes e vivem em culturas diferentes. É por isso que minha interlocutora codifica a experiência ‘perda de ar do colchão’ como [secar], isto é, ‘o colchão secou’, ao passo que eu, falante da variedade do português do Rio de Janeiro, educado em um contexto cultural que não é exatamente o mesmo, codifico a mesma experiência – ‘a perda de ar do colchão’ - com a forma [esvaziar], isto é, ‘o colchão esvaziou’.
Ainda segundo Leibniz, nossas definições – isto é, o que Leibniz entende como a articulação de nomes que explicam outro nome – não descrevem a ordem das coisas como se já estivesse fixada anterior e independentemente da linguagem/ língua. Essa totalidade ordenada que chamamos mundo ou real é fabricada num processo interativo do qual fazem parte a percepção-cognição, linguagem e cultura. Acompanhando Leibniz, somos forçados a concluir que não há estrutura íntima do mundo independente da linguagem. A linguagem não se reduz a um mero instrumento de comunicação, tampouco a um instrumento empregado para descrever um mundo previamente ordenado. Para Leibniz, a linguagem apresenta-se como condição para que realizemos e consumamos nossa natureza pensante e racional. Sem linguagem, para ele, não haveria razão. A linguagem não é mero instrumento para o exercício do pensamento; muito pelo contrário, sua função é construtiva com respeito aos nossos conteúdos mentais. Em uma palavra, a matéria do pensamento são os símbolos. Pensamos com palavras. Pensar é articular palavras em enunciados. Em suma, para Leibniz, o pensamento é, essencialmente, simbólico. Não podemos pensar senão pelo auxílio de símbolos. Fora da linguagem, não há possibilidade de pensamento conceitual para o homem. Acresce-se a isso que o mundo significa para o indivíduo porque, primeiramente, significa para os outros. Isso nos leva a concluir que o mundo significa na instância intersubjetiva fundada em práticas discursivas. Se o real só pode ser conhecido como representação que se constrói nas práticas discursivas, se o significado é produto de uma construção por parte de usuários linguísticos na condição de participantes da interação verbal, ou ainda, em outras palavras, se o significado é interacionalmente construído no uso da língua, deve-se então admitir que conhecer é um processo de natureza simbólica ou semiótica e sócio-interacional.
Resta ainda perguntar como podemos entender as expressões “mundo mágico do eu” e “visão simbólica”. No tocante à primeira expressão, creio que podemos lhe atribuir o sentido de ‘mundo idealizado em conformidade com o desejo ou os sentimentos do ‘eu’’, sendo o próprio ‘eu’ resultado de uma interpretação. No que tange à segunda expressão, penso que, embora não possamos nos relacionar com o mundo e conhecê-lo fora do domínio simbólico, podemos ipso facto produzir representações que o falseiem. A visão simbólica do mundo é sempre uma forma de representá-lo. A forma como o significamos influenciará nossas ações, nossos comportamentos. Tentarei ilustrar a possibilidade de falseá-lo com um exemplo. Se eu tomo conhecimento de que um avião caiu e categorizo esse evento como [ACIDENTE], posso estar certo de que minha categorização corresponde a uma das formas como as pessoas compreendem o mundo e como elas, nessa mesma condição, classificariam o acontecimento. Vamos ignorar a possibilidade de que minha categorização possa ser equivocada, se investigações viessem a demonstrar que o avião caiu devido a um atentado terrorista. Nesse caso, o evento não poderia ser classificado como ‘acidente’. Supondo que o avião tenha caído por uma falha mecânica, estou certo em categorizar o acontecimento como [ACIDENTE]. Essa categorização se faz nas práticas discursivas e supõe um contrato comunicativo na base do qual ela expressa um saber comum, algo que compartilho com uma comunidade de fala. No entanto, suponhamos que eu atribua ao acidente aéreo outro significado, ou seja, o simbolize como ‘aviso’, ‘advertência’. Digamos que o acidente seja interpretado por mim como um aviso para que eu não faça minha viagem de avião na semana que vem. Nesse caso, o acidente aéreo ocorrido passa a significar mais do que acidente; ele se torna, para mim, um representâmen de perigo iminente, um aviso, um mau presságio. Mas agora não posso contar facilmente com o respaldo do contrato comunicativo, isto é, o significado ‘mau presságio’ atribuído por mim ao ‘acidente aéreo’ não necessariamente será aceito por meu interlocutor. Em outras palavras, esse significado, por extrapolar um padrão de compreensão do mundo previsto pela comunidade linguística ou epistêmica que me assegura a adequação da categorização que fiz do evento como [ACIDENTE], deverá ser negociado. O que quero chamar a atenção aqui é que o mundo pode, para mim, ter significados outros além daqueles que a comunidade cultural, linguística e/ou epistêmica lhe atribuem por convenção. Nesse caso, o contrato comunicativo deverá ser renegociado. Desde que eu acredite que o acidente aéreo foi um aviso para mim, eu desmarcarei minha viagem. Nesse caso, minha visão simbólica do mundo inclui a crença de que acidentes podem significar mais do que ‘acontecimento fortuito geralmente infeliz’. Porque creio nisso, altero meu comportamento, adiando a viagem na esperança de que outra ocasião me será mais favorável.
Mas resta responder por que acreditar que um [ACIDENTE AÉREO] significa ‘mau presságio’ é uma interpretação falseadora do mundo? No final das contas, não é a comunidade epistêmica e/ou linguística que aceitará ou não o significado que atribuo a uma ocorrência do mundo, independentemente do modo como o mundo de fato se constitui? Sim. Muitas pessoas aderem a superstições e, se eu estou em interação com pessoas para as quais as superstições descrevem estados-de-coisas verdadeiros, há grande chance de que o significado ‘mau presságio’ que eu atribuo ao evento empírico [ACIDENTE AÉREO] seja aceito. Mas pode suceder que meu interlocutor não seja tão crédulo e rejeite esse significado como pura superstição. Ao rejeitá-lo, meu interlocutor dá indicações de que suas crenças acerca do mundo se esteiam em pressupostos alinhados com a visão científica de mundo. Para meu interlocutor, crer que um acidente aéreo significa ‘mau presságio’ é falso ou sequer é uma crença verificável. Na verdade, em termos popperianos, a crença de que acidentes aéreos são maus presságios é irrefutável; e por sê-lo, não se presta à determinação de seu valor de verdade por quaisquer meios racionais e empíricos possíveis. Como testar essa crença? De que modo podemos determinar se [ACIDENTE AÉREO] comunica uma mensagem para nós, como a que alega quem acredita em ‘maus presságios’? Independentemente dos acirrados debates epistemológicos sobre a prática científica, muitos de nós estamos prontos para rejeitar certas crenças sobre o modo como o mundo funciona simplesmente valendo-nos de nossas teorias científicas “espontâneas”, que se pautam pelo único princípio de que crenças só são verdadeiras se descrevem os fatos. Se alguém pretende que um fato, como [ACIDENTE AÉREO], significa mais do que [ACIDENTE DE AVIÃO], essa pessoa quer “ver” no real algo a mais do que ele nos autoriza a ver. Como o signo é ‘aquilo que está no lugar de’, ele, com frequência, existe na independência da realidade empírica. É claro que os conceitos que os nossos signos criam são constituídos de propriedades apreensíveis a partir de nossas experiências de mundo. Por exemplo, o signo [BRUXA] reúne em si os conceitos de ‘mulher’, ‘velha’, ‘feiticeira’, etc., isto é, compomos o conceito de [BRUXA] a partir de elementos (outros conceitos) que fazem parte de nossa experiência de mundo (e o conceito de ‘Deus’ não foge à regra). Pouco importa que bruxas não existam fora de nossa imaginação, para efeito de produção de um conceito como o de bruxas. O signo [BRUXA] e seu conceito existem, e isso é suficiente para recriar “mundos” onde bruxas são pessoas que vivem, voam em vassouras, fazem feitiços, etc. Se passo a acreditar que as bruxas existem para além dos contos ou narrativas fantásticas, se insuflo o real com “coisas” que não se prestam ao testemunho empírico universal, então produzo uma visão falseadora do mundo.
Em suma, o tipo neurótico “tem dificuldade de manter o equilíbrio entre a ilusão da sua cultura e a realidade de sua natureza” (Becker, 2012, p. 230). No sintoma neurótico, “a ilusão de que se é invulnerável é desmascarada” (p. 231). Em síntese, são as seguintes as características que melhor nos esclarecem sobre o tipo neurótico:
a) ele se isola dos outros;

b) não se engaja livremente na parcialização do mundo feita pelos outros;

c) não pode viver segundo os enganos de que se alimentam os outros acerca da condição humana.



2.3.2.3. O tipo neurótico criativo

Nesta subseção, concentrar-me-ei na análise do tipo criativo, que é também um tipo neurótico – o mais neurótico, segundo Becker. Principiemos por ouvir Becker ao acenar para os acontecimentos que serão desencadeadores da neurose:


“(...) o heroísmo pessoal através da individualização é uma empresa muito ousada, precisamente porque separa a pessoa de confortáveis “aléns”. É preciso uma força e uma coragem que o homem comum não tem e nem poderia compreender (...). O ônus mais aterrorizador da criatura é ficar isolada, que é o que acontece na individualização: a pessoa se separa do rebanho. Esse movimento a expõe à sensação de estar completamente esmagada e aniquilada porque ela se destaca muito e tem tanto para carregar em si mesma. São esses os riscos quando a pessoa começa a criar consciente e criticamente o seu próprio arcabouço de auto-referência heróica”. (p. 210, grifo meu).


“Separar-se do rebanho” – nisso consiste a “solução criativa”. O tipo neurótico criativo é aquele que “fica separado do conjunto comum de significados compartilhados” (p. 211). Becker refere o artista como representante paradigmático do tipo humano criativo, mas, até certo ponto, as características que são atribuídas a ele podem ser estendidas ao filósofo. O filósofo é também uma pessoa que se separa do rebanho e que busca, através de sua obra – o seu pensamento – “criar consciente e criticamente o seu próprio arcabouço de auto-referência heróica”.
Dispensando nossa atenção exclusivamente à situação do artista, devemos reconhecer que, para ele, a existência se torna um problema que reclamará uma resposta ideal. A obra de arte será, então, a resposta ideal quando ele já não pode mais aceitar a resposta dada pela sociedade ao problema da existência. O artista, produzindo a obra de arte, busca responder ao problema da existência tal como ele pessoalmente o entende. Mas não só: a obra de arte é também uma resposta ao problema da existência do próprio artista, enquanto indivíduo. Ele é uma pessoa dolorosamente separada do rebanho, tal como o filósofo cuja obra mais ou menos ideal é seu pensamento.
O problema com o qual o artista tem de lidar é o de seu isolamento, de sua extrema individualização. Ele também aspira à imortalidade através de seu talento artístico, de suas dores que dão forma à sua obra. Consoante nota Becker, “seu trabalho criativo é, ao mesmo tempo, a expressão de seu heroísmo e a justificação desse heroísmo” (p. 211). O autor nos dá a conhecer ainda a extensão do drama a que se vê entregue o artista:

“Como é possível justificar o próprio heroísmo? Seria preciso ser como Deus. Vemos ainda mais, agora, como a culpa é inevitável para o homem: mesmo como criador, ele é uma criatura assoberbada pelo próprio processo criativo. Se você se destaca tanto da natureza, que tem de criar a sua própria justificativa heróica, isso é demais. Eis como compreendemos algo que parece ilógico: quanto mais você se desenvolve como um ser humano característico livre e crítico, maior é a culpa que sente. Seu próprio trabalho o acusa, fazendo-o sentir-se inferior. Que direito você tem, afinal, de bancar Deus? Em especial se o seu trabalho for grandioso, absolutamente novo e diferente. Fica imaginando onde vai conseguir a autoridade para introduzir novos significados no mundo e força para suportar tamanha empreitada. Tudo se resume no seguinte: a obra de arte é a tentativa do artista de justificar o seu heroísmo de forma objetiva, na criação concreta. Ela é o testemunho de sua absoluta originalidade e de sua transcendência heróica”. (p. 211, grifo meu).



Ao criar, o artista cria significados novos, significa de modo radicalmente diferente o mundo. Mas ele mesmo não pode justificar a sua empresa criativa, pois que, mesmo sendo criador, não deixa de ser criatura: uma criatura que cria e que sabe que sua obra é tão efêmera quanto ele próprio artista, tão desprovida de sentido quanto sua existência (a dele, artista) mesma. Ele não pode ser o fundamento de sua obra. Não importa o que faça o artista e quão genial seja, ele não conseguirá fugir de si mesmo. Sua pretensão de ir além de si mesmo, com segurança, lhe está proibida por sua condição de criatura; e é esta condição da qual jamais pode apartar-se que o leva de volta a confrontar-se com a natureza da qual se esforça por se destacar. Sua obra, porque material, visível, é impermanente. Comparada com a transcendente majestade da natureza, sua obra, por maior que seja, não pode simbolizar a imortalidade desejada por seu criador. No mais alto cume de sua genialidade, o homem ainda continua sendo uma criatura. Por isso, o artista e o louco estão tão próximos: ambos estão presos às suas maquinações, ambos estão unidos na reivindicação de sua singularidade na criação (Becker, p. 212).
Antes de levar a cabo esta subseção, resta responder à questão: por que o tipo criativo, de que o artista é um exemplar por excelência, é o mais neurótico? Devemos responder: porque o tipo criativo recusa peremptoriamente os mecanismos que são psiquicamente necessários para viver de modo saudável. Na medida em que recusa tais mecanismos, furtam-se a si mesmo as ilusões que tornam a vida suportável. O tipo criativo está mais próximo da verdade sobre a vida do que os demais e justamente por isso ele sofre mais. Lembro que a parcialização que o tipo criativo faz do mundo é muito maior do que a parcialização feita pelo homem comum. O heroísmo pessoal do tipo criativo pretende expandir-se num grau de intensidade tal, que os “aléns” confortáveis que são culturalmente forjados deixam de ser eficazes; a bem da verdade, na intensa expansão desse heroísmo pessoal, esses “aléns” se rompem, deixando em seu lugar o desértico absurdo da condição humana que, na urgência de vicejar, reclama novas edificações de significados. O drama humano que surge do confronto com o absurdo se exprime, agora, na necessidade de escolher entre o suicídio e a criação de novos significados e valores que, sem conseguir mais mascarar o absurdo, são eles mesmos absurdos. O homem absurdo deve agora ou criar a si mesmo como ente absurdo que é, ou debater-se contra a tentação do suicídio, pois que os significados sedimentados que até então escondiam dele a verdade sobre sua condição como criatura se lhe mostraram ineficazes.



3. Um caso de ilusão cultural: o Argumento do Desígnio


A crença de que o Universo deve ter necessariamente uma causa e que essa causa é Deus constitui um exemplo claro de ilusão cultural, com a qual 2,4 bilhões de pessoas (número este concernente aos cristãos apenas)[7], em todo mundo, dotam suas vidas de sentido. Nessa parte de meu estudo, deter-me-ei a examinar o argumento do desígnio com vistas a apontar suas inconsistências. Como o argumento do desígnio suponha a referência a pressupostos que estão articulados num sistema doutrinário filosófico-teológico que subsidia a fé cristã, precisarei, antes de me lançar à tarefa cuja realização me proponho, esclarecer que Deus é este a que diz respeito o argumento do desígnio. Convido, pois, o leitor a me acompanhar na exposição sobre a natureza de Deus à luz da metafísica cristã. Tomo para referência nessa exposição a contribuição reconhecidamente importante do filósofo cristão São Tomás de Aquino (século XIII). Se escolho São Tomás, é, principalmente, porque a segunda e a última de suas cinco vias pelas quais ele busca “demonstrar” a existência de Deus já prefiguram a estrutura do argumento do desígnio.


3.1. Deus na metafísica cristã, segundo Tomás de Aquino

O pensamento de São Tomás primou pela abrangência e profundidade, buscando revisitar toda a filosofia e toda a teologia a partir de conceitos e princípios tomados a Aristóteles. Com São Tomás, deu-se a virada decisiva para Aristóteles, bem como foi possível a fundação da escolástica aristotélica.
Tomás de Aquino tomou de Aristóteles a doutrina da potência e do ato e a adaptou ao tratamento da relação entre matéria e forma, substância e acidente e, no domínio metafísico, da relação entre essência (essentia) e ser (esse) de todo existente. Mas São Tomás foi além de Aristóteles, ao entender o ato (energeia) como “ato de ser” (actus essendi). O ato de ser constitui o princípio da realidade atual, isto é, da existência, e também de todo conteúdo do ser atual ou das perfeições ontológicas do existente. Para Tomás, todo conteúdo positivo – atributo de um existente e que dele pode ser dito, o qual Tomás chama perfeição, está fundado no ser e é posto pelo ser. Por conseguinte, toda perfeição é uma perfeição do ser.
Deus é o ser mesmo. Esse é o conceito tomista de Deus. Para São Tomás, Deus “é o ser mesmo subsistente em si”. Deus é a existência necessária da plenitude originária e ilimitada de toda a realidade e toda perfeição do ser. Esse pensamento não é completamente novo, mas constitui bem uma síntese do que acerca de Deus nos disseram Platão (o Bem), Aristóteles (o ato puro do Motor Imóvel) e até os neoplatônicos, entre os quais Plontino (o Uno-Originário) e Proclo (Deus como plenitude transbordante em ser e perfeição).
Na fé bíblico-cristã, Deus é compreendido como plenitude do ser espiritual-pessoal dotado de razão, sabedoria, liberdade e poder criador. Esta era também uma concepção esposada por Santo Agostinho, mas foi São Tomás quem examinou em pormenores, de modo totalmente novo, essa compreensão de Deus com base em princípios aristotélicos. Com São Tomás, a compreensão de Deus se inscreve no quadro de uma doutrina do ser.
Vejamos, em linhas gerais, essa doutrina. São Tomás, convidando-nos a atentar para a experiência, faz-nos ver que todas as coisas que se nos dão à experiência sensível são finitas, limitadas no ser. Não só uma coisa é o que a outra não é, mas há graus de perfeição das coisas. O existente finito não é o ser mesmo; deste se distingue por possuir uma essência finita. A essência é um princípio de limitação do ente, mediante a qual o ente é colocado em uma forma essencial específica. A essência do ente é a instância limitadora da atribuição do ser ao ente. Mas não é a essência do ente que fixa o ser (a possibilidade de aparecimento do ente); a essência existe em potência (é possibilidade de ser) e se opõe ao ato de ser (a realidade do ser). A limitação determinada da forma essencial específica do ente se encontra na essência finita do ente. O existente, portanto, é contingente. Mas, se existe, é então realizado como ente finito por meio do ato de ser.
O ser, por sua vez, é totalmente si mesmo e não é limitado por nenhuma essência finita. Segue-se daí que a realidade originária, absolutamente necessária (o ser não pode não ser) é o ser. O ser é também a plenitude originária ilimitada de toda perfeição do ser. Essa plenitude originária e ilimitada, absolutamente necessária, que encerra em si perfeições infinitas, é Deus.
Em Deus, ser e essência é o mesmo. A essência de Deus não reponde pelo que Deus “é”. A essência, em Deus, não é um princípio limitador, como sucede nos entes finitos. Do contrário, Deus seria contingente como as coisas finitas e precisaria ter um princípio primeiro. Deus é a sua essência e a sua essência é o ser mesmo, assinala São Tomás. Destarte, tudo preexiste em Deus. Todas as coisas de toda a criação são realizadas de antemão não só nas ideias de Deus, no projeto divino de mundos possíveis, mas já na realidade originariamente infinita do ser mesmo que é Deus.
Na metafísica cristã, Deus transcende tudo que é mutável, inclusive a nossa razão. Deus é o ser mesmo. É fonte de articulação de nossa experiência e fonte de normatividade de nossos comportamentos. Deus garante a origem e a finalidade de toda criatura. Sendo causa criadora e ordenadora do universo, e sustentadora da totalidade dos entes, tudo faz sentido. Deus é o princípio absolutamente uno (Cabral, 2015, p. 57). É Deus, em sua unicidade, que garante a máxima inteligibilidade do universo (ib.id., p. 57).
Deus existe em si mesmo: Deus subsiste como substância em si mesmo. Deus não é um ser geral, que se espraiaria por todos os existentes ou que precisa se realizar nos entes do mundo. Deus existe enquanto plenitude do ser em si mesmo, na transcendência absoluta em relação à totalidade dos entes. Os existentes finitos tomam sua realidade ontológica própria e participação finita no ser pelo ato criador de Deus. Deus é universalmente perfeito, pois que ele dirige todas as perfeições de todas as coisas. Todas as perfeições de todas as coisas devem preexistir em Deus de uma forma superior.
A questão, então, que se impôs a São Tomás foi a de determinar como podemos conhecer o ser mesmo de Deus e dizer algo a respeito dele. Não podemos ter conhecimento direto de Deus em si mesmo. O que podemos é atingir um conhecimento de Deus por analogia. Partindo dos conteúdos do ser do mundo da experiência e destituindo deles todos os limites do finito, podemos transportá-los de maneira ascendente para Deus. Isso é possível porque há semelhança entre as coisas finitas e o ser de Deus. Ora, se Deus é a causa primeira de todas as coisas finitas, conclui São Tomás, deve haver certa semelhança entre Deus e as coisas finitas. Não se trata, evidentemente, de uma semelhança unívoca, como a que existe entre coisas do mesmo gênero ou espécie, porque Deus ultrapassa todos os modos finitos de ser. Trata-se de uma semelhança analógica.
Como seja analógico esse “método” pelo qual podemos conhecer a Deus, só podemos atribuir a Deus os conteúdos ontológicos da experiência (tais como sabedoria, poder, bondade, amor, etc.). Por ser analógica, essa forma de conhecimento de Deus deve guiar-se pela diferença qualitativa entre a forma como esses conteúdos existem na experiência e a forma como eles existem em Deus. Em Deus, esses conteúdos ultrapassam tudo aquilo que pensamos e compreendemos, e apontam para dentro do mistério infinito de Deus. Atribuímos a Deus uma bondade que excede em perfeição a bondade que encontramos na nossa experiência humana. A bondade de Deus é infinitamente perfeita e superior à bondade humana. Na transposição dos conteúdos ontológicos de nossa experiência para Deus, devemos atender na necessidade de preservar o caráter ilimitado e perfeito deles em Deus.
É no contexto da possibilidade de conhecimento analógico de Deus que São Tomás fornecerá seus cinco famosos caminhos pelos quais ele pretendeu demonstrar a existência de Deus. Uma vez que meu objetivo é também argumentar que uma compreensão teísta do mundo é inconsistente com a crueldade inerente ao modo de destinação do real, vou-me limitar a referir as segunda e quinta vias propostas por São Tomás.
Antes de referir as duas vias que me interessarão e de comentá-las, quero acrescentar que, na metafísica cristã, Deus é o suporte do devir (Clemente de Alexandria). Deus é o princípio dos princípios. Esse princípio é o horizonte de busca para os comportamentos humanos. Deus é o uno; a unidade é Deus. Deus é o mensurador, sem ser mensurado (Santo Agostinho). A unidade que Deus é orienta a retidão do pensamento humano. Deus é o horizonte de inteligibilidade das ações humanas. Deus mensura as ações humanas. Deus é o Bem Absoluto (Santo Agostinho).
Leiam-se as duas vias de São Tomás, reproduzidas abaixo:


A segunda via baseia-se na causa eficiente. Encontramos nas coisas sensíveis uma ordem de causas eficientes, já que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois se assim o fosse existiria antes de si mesmo, o que é impossível. Também não é possível proceder indefinidamente nas causas eficientes. Em todas as causas eficientes ordenadas, em primeiro lugar está a causa do que se encontra no meio, e o que se encontra no meio é causa do que está em último lugar, tanto se os intermediários forem muitos, quanto se for um só, tiradas as causas, tira-se o efeito; logo, se não for primeiro nas causas eficientes, não será nem em último, nem no meio. Se, porém, procedermos de forma indefinida nas causas eficientes, não haverá primeira causa eficiente, e portanto não haverá também efeito último nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso. Logo, é necessário admitir alguma causa eficiente primeira, à qual todos chamam Deus.
A quinta via é derivada do governo das coisas. Vemos que as coisas que não têm inteligência, como, por exemplo, os corpos naturais, agem para uma finalidade, o que se mostra pelo fato de sempre ou frequentemente agirem da mesma forma, para conseguirem o máximo, donde se segue que não é por acaso, mas intencionalmente, que atingem seu objetivo. As coisas, entretanto, que não têm inteligência só podem procurar um objetivo dirigidas por alguém que conhece e é inteligente, como a flecha dirigida pelo arqueiro. Logo, existe algum ser inteligente que ordena todas as coisas da natureza para seu correspondente objetivo: a este ser chamamos Deus”.[8]


Da leitura dessas duas vias tomistas em favor da existência de Deus, podemos concluir que: a) Deus é a causa incausada da cadeia de causas eficientes; b) Deus é o autor da ordem teleológica do cosmo. Deus é a causa primeira de todo o devir. Como criador da ordem de finalidades (ordem teleológica), Deus determina a ação dos entes. Deus é quem garante a origem e a finalidade de toda criatura. A inteligibilidade de todo o universo encontra sua condição de possibilidade em Deus. Não há caos: com Deus, tudo “faz sentido”. Como causa incausada, Deus é o princípio e fim de toda a criação. Deus é a raiz do devir, bem como o fim do devir. É a unidade que sustenta a pluralidade do movimento.
Deus é o ser mesmo, o princípio absolutamente uno (indivisível), transcendente ao espaço, ao tempo e ao devir. A perfeição de Deus garante que todos os seres “façam sentido”. Como é necessário que toda imperfeição inerente à pluralidade dos caracteres das criaturas seja removida de Deus (por exemplo, essência/existência, substância/acidentes, matéria/forma, gênero/espécie), deve-se, forçosamente, admitir que Deus só pode ser concebido em sua unidade e unicidade. Unidade quer dizer, originalmente, a indivisibilidade do ente. Unicidade, por seu turno, recobre o caráter de ser único. Apesar de a ordem do mundo se compor de uma pluralidade de entes finitos, essa ordem revela uma unidade. Ora, a unidade da ordem não pode ser resultado da pluralidade das partes; a unidade da ordem é constante e estável. Se a unidade da ordem do mundo não é acidental, então sua causa deve ser um único ser dotado de máxima unidade, a saber, Deus.
Cumpre ainda salientar, em suma, que o Deus cristão sempre foi a instância que assegura aos entes a sua identidade (essência) e à existência humana o seu sentido. Deus é, portanto, “princípio de sustentação de tudo que é e princípio de inteligibilidade última de todo e qualquer ente” (Cabral, 2015, p. 76). Segundo Cabral (p. 84), “todo Deus pensado metafisicamente é um Deus teísta”. E acrescenta: “entenda-se por teísmo o Deus onto-teo-lógico pensado como fundamento e causa suprema (eficiente e final) de toda realidade contingente”.
Supondo esteja suficientemente claro o horizonte semântico em que se inscreve o Deus suposto pelo argumento do desígnio, passo a examiná-lo, a fim de lhe desvelar as inconsistências. É necessário que o leitor não as perca de vista, quando, na quarta etapa de meu estudo, eu for abordar a visão de mundo naturalista. Nessa quarta etapa, procurarei patentear que a visão de mundo teísta não se sustenta quando nos ocupamos em examinar a natureza do mundo. Essa visão falseia claramente o modo como o mundo verdadeiramente é.




3.2. O Argumento do Desígnio e suas inconsistências


O Argumento do Desígnio encerra dois pressupostos que o tornam atraentes para muitas pessoas: 1) é inspirado no espanto em face da beleza e majestade da natureza; 2) assenta na crença de que a descrição dos aspectos da natureza que nos causam admiração só pode ser feita adequadamente se os considerarmos como produtos do trabalho de uma Inteligência Suprema.
Os ateístas insistem, no entanto, que a rejeição da hipótese de um Designer Inteligente, sustentada pelo argumento, não diminui o sentimento de admiração perante o reino natural.
O argumento do desígnio tem uma versão famosa na analogia do relógio proposta por William Paley (1802) em sua obra Teologia Natural, cuja leitura se tornou obrigatória para duas gerações de estudantes britânicos, incluindo Charles Darwin, que confessou ter-se admirado das conclusões de Paley.
Com sua analogia do relógio, Paley argumenta que, se examinarmos o mecanismo complexo e intricado do relógio, ficaremos, sem sombra de dúvida, convencidos de que sua regularidade sugere um propósito ou desígnio. Prossegue Paley, afirmando que a complexidade e regularidade do mecanismo do relógio encaminham a conclusão de que ele foi inventado. Se o relógio é produto de uma invenção, é forçoso concluir que ele teve um inventor. Ora, quanto mais intricada ou complexa é a invenção, tanto mais talentoso e inteligente é o seu inventor, e mais sofisticado é o projeto ou desígnio.
Essa primeira parte do argumento não carreia problema algum. Paley orienta-nos para a conclusão final de que, se observarmos simplesmente o mecanismo interno de um relógio, teremos de admitir forçosamente que sua ordem e complexidade indicam um projeto intencional e este, por sua vez, a existência de um relojoeiro inteligente, ou seja, o projetista.
O segundo momento do argumento – este, certamente, problemático – começa com um convite de Paley a que atentemos para o universo. Segundo Paley, observando cuidadosamente as obras da natureza, veremos que elas parecem resultar de um trabalho de engenharia ainda mais complexo e maior, e em um grau que excede todas as estimativas. Por analogia com a complexidade observada no relógio, temos de concluir que também na natureza manifesta-se um desígnio. Ora, a manifestação de um desígnio supõe a existência de um agente inteligente (conforme ficou comprovada na primeira parte do argumento). Logo, deve haver um agente inteligente na origem da complexidade da ordem natural e, como essa complexidade excede todas as estimativas, esse agente inteligente não poderia ser um ser humano. Segue-se daí que o agente inteligente responsável pela complexidade da natureza é Deus.
Na verdade, o Argumento do Desígnio baseado na analogia não foi uma invenção de Paley. Ele já fora atacado por David Hume em seu Diálogos sobre a religião natural, livro publicado um quarto de século antes de Teologia Natural de Paley.
Vamo-nos concentrar, primeiramente, nas objeções levantadas por Hume ao argumento do desígnio. O primeiro erro do argumento, segundo Hume, diz respeito à analogia entre artefatos humanos (no caso, o relógio) e a ordem natural. Hume nega que haja similaridade entre os dois, que permita uma comparação inteligente. Para Hume, foi a experiência que nos habituou a concluir que, quando vemos, por exemplo, uma “casa” ou um “relógio”, deve ter existido como causa eficiente um inventor. Mas a desigualdade entre casas e relógios, de um lado; e o universo, de outro, é tão grande, que o máximo que podemos atingir é uma suspeita concernente a uma causa similar. E nada mais.
Mesmo admitindo a analogia, as conclusões a que chegamos acerca do projetista divino são desconcertantes ou assustadoras. A mais grave delas é que Deus é sujeito a erro (essa objeção é sustentada pela simples observação dos produtos da evolução darwinista), uma vez que os eventos e processos naturais são, com frequência, gratuitos, estranhos e desnecessariamente destrutivos.
Hume, não se contentando com essas objeções, apresenta mais duas. A primeira das quais consiste em admitir que não há nenhuma boa razão para privilegiar a mente sobre a matéria, quando se trata de descrever o mundo. Hume se refere aqui ao fato de o argumento pressupor uma Inteligência, uma mente racional na origem do universo. Para Hume, é forçoso perguntar por que devemos tomar o pensamento como modelo de todo o universo. Hume responde que tal suposição só pode ser explicada pela vaidade humana. Mas a objeção, sem dúvida, mais forte apresentada por Hume é que não estamos justificados para crer que ordem indique, necessariamente, desígnio fundamental. Ora, observa Hume, a coerência entre as partes e a estabilidade do todo constituem a condição necessária para que um universo possa existir. Logo, da simples observação da ordem no reino natural não cabe inferir que ela manifesta um desígnio. Hume argumenta, nesse tocante, que a ordem, em si, não garante desígnio; é preciso demonstrar que a ordem só pode existir por meio do desígnio, e isso o argumento do desígnio não demonstra.
Desde a publicação de A Origem das Espécies, em 1859, as críticas à analogia do argumento do desígnio se apóiam em bases científicas em vez de puramente filosóficas. Os Novos Ateístas Daniel Dennett e Richard Dawkins, por exemplo, notam que os defensores do argumento do desígnio, quer na versão antiga (que data do século XVIII), quer na versão contemporânea, baseiam sua causa numa falsa disjunção: ou a ordem do universo foi projetada ou é produto do acaso. Se foi projetada, concluem que seu autor é Deus; se, no entanto, a complexidade e a ordem são produto do acaso, então ela é simplesmente absurda.
Dennett e Dawkins afirmam que há uma falsa escolha aí. Há uma terceira explicação plausível para a ordem e a complexidade da natureza: a seleção natural. O mecanismo da seleção natural explica o surgimento da complexidade e da ordem no reino orgânico sem apelar ao desígnio e ao acaso. Ora, as mudanças genéticas consequentes da seleção natural aparecem “por acaso”, mas o próprio processo de seleção natural não é acaso. É importante reconhecer, com Dennett, que a seleção natural não demonstra a inexistência de Deus; mas mostra realmente que a hipótese de Deus não é necessária para explicar a ordem e a complexidade no mundo natural. De minha parte, ainda que aceitando, provisoriamente, que a seleção natural não demonstre, no sentido lógico do termo, a inexistência de Deus, preciso enfatizar que ela torna a hipótese de Deus como projetista insustentável. E, a despeito das evidências que a tornam insustentável, ainda haja quem ouse mantê-la, esse alguém deverá resolver as graves dificuldades que na explicação pela seleção natural inexistem.
Vamos considerar, doravante, uma versão mais recente do argumento do desígnio, chamado de argumento antrópico. O argumento antrópico evita os problemas que a seleção natural acarreta para a defesa da existência de um Designer Inteligente, já que, sob o foco desse argumento, não se encontra a complexidade do cosmos.
O argumento antrópico assenta na afirmação de que o universo está tão sintonizado para sustentar a vida, que tal estado de equilíbrio só pode ser explicado razoavelmente pela suposição de uma Inteligência divina como causa. O que o argumento antrópico pressupõe é que quanto maior é o número de condições necessárias para a vida, menor a probabilidade de serem consequências do acaso. O argumento antrópico implica a crença de que, de algum modo, o universo “sabia” que vínhamos. Mas será mesmo que há razão forte para supormos que o universo foi projetado sob medida para nós, seres humanos?
Faz-se mister notar, em primeiro lugar, que aqueles que rejeitam o argumento alegam que seus proponentes confundem sintonia fina com direção. É a vida baseada no carbono que culminou com o universo, e não o contrário. Ademais, o universo, de modo algum, está sintonizado com a vida, porque a maior parte de sua imensidão parece espaço vazio e inóspito à vida. Outros críticos do argumento insistem em que é provável que haja não só um universo, mas multiversos e em que não há razão para supor que algum deles, além do nosso, esteja sintonizado com a vida.
Deve-se acrescentar que, conquanto tenha sido a teoria da evolução de Darwin que arruinou o argumento de Paley, há, no argumento do desígnio e em suas versões mais recentes, um grave problema que ele suscita e não resolve. O argumento do desígnio não mostra que o seu poderoso e infinitamente inteligente projetista é sumamente bom, nem onipotente, nem onisciente. Há muitos males que qualificamos de “naturais” no mundo que parecem simplesmente gratuitos e decorrentes de erros de engenharia e que nenhuma teodiceia conseguiu explicar satisfatoriamente.
Mesmo que a seleção natural não elida a hipótese da existência do Deus teísta (o que cuido muito discutível), ela traz sérios problemas para a alegação de que o Criador é sumamente bom, dado que o mecanismo pelo qual se dá a evolução – isto é, a seleção natural – envolve muita violência e acarreta sofrimento gratuito às criaturas, razão por que a hipótese de um Criador sumamente bom se torna inconciliável com o processo de evolução das espécies.
Não faltam evidências que apontam para a insustentabilidade da crença num Projetista Inteligente. Muitas espécies vivas carregam os sinais de modos de vida anteriores, como partes do corpo que não têm nenhuma utilidade. Essas partes inúteis são conhecidas como “órgãos vestigiais”. Os órgãos vestigiais recobrem uma série de estruturas desnecessárias, sem função alguma. Por exemplo, constituem órgãos vestigiais os olhos dos peixes que vivem em cavernas e os ossos rudimentares dos membros traseiros de algumas espécies de cobras e baleias. Em nós, seres humanos, há o apêndice, que, no passado, desempenhou um papel importante na digestão, mas que hoje não tem nenhuma função orgânica. O cóccix é outra estrutura vestigial remanescente em nós de ancestrais comuns. Os adolescentes, especialmente, sabem quão dolorosos podem se tornar os sisos. Os dentes do siso são os terceiros molares vestigiais que os nossos ancestrais utilizavam para ajudar na trituração do tecido vegetal. Como os dentes do siso são os últimos dentes permanentes a nascer, geralmente falta espaço na boca para acomodá-los. Eles podem ficar embaixo do tecido gengival preso por outros dentes ou osso, do que resulta inchaço ou dor. Os dentes do siso que chegam a romper o tecido gengival parcialmente ou nascem mal posicionados podem causar vários problemas de saúde. Se nossas mandíbulas, na maioria dos casos, não acomodam os dentes do siso, a mandíbula de nossos ancestrais os acomodava, porque ela era maior. Quem acredita na existência de um Projetista Sobrenatural Inteligente terá dificuldades para explicar por que ele, diminuindo as mandíbulas, manteve os dentes do siso? Somente um processo cego em cuja direção não há finalidade pode explicar por que os dentes do siso se conservaram mesmo sem desempenhar função alguma e com o custo de acarretar alguns prejuízos. Sucedeu que a dieta humana se modificou, as mandíbulas diminuíram por força da seleção natural, mas os terceiros molares ou dentes do siso ainda podem se desenvolver na boca humana, mesmo que eles já não sejam mais úteis e possam tornar-se até prejudiciais. Por um feliz acaso, o homem pode evoluir de modo a tornar-se capaz de corrigir, em muitos casos, os “erros” de “engenharia” da seleção natural. A hipótese do Designer Inteligente também não consegue explicar as anomalias orgânicas que são sinais de simples erro de projeto. Somente a evolução natural pode explicá-los. O sistema nervoso das girafas, por exemplo, inclui alguns nervos que se estendem do cérebro ao peito, voltando para a laringe. Esse caminho de ida e volta foi herdado dos peixes, que não têm pescoço. No peixe, esse caminho faz sentido, mas nas girafas não. A presença dos órgãos vestigiais constitui, como se pode ver, evidência suficiente para refutar a crença num Designer Inteligente a comandar o desenvolvimento das espécies. A alegada “perfeição” e finalidade na constituição dos seres vivos, que só poderia explicar-se pela suposição de um Designer Inteligente, são facilmente falseadas por uma observação cuidadosa da anatomia dos seres vivos.
Não poderia deixar de notar que o argumento antrópico ignora uma forte evidência que torna falsa a suposição de que o universo se constituiu de tal modo que parece ter sido “projetado” para nos receber. Ora, um aspecto importante do fenômeno a que Darwin chamou “evolução natural” é que nossa história é evolutiva e todos os seres vivos são primos. Todas as espécies existentes, incluindo, naturalmente, a espécie humana, ou as já extintas, evoluíram a partir de um ancestral comum há mais de 3 bilhões de anos. Esse progenitor universal de todos os organismos sobreviventes é semelhante a algum tipo de bactéria. Nosso DNA guarda enorme semelhança com o DNA dos chimpanzés, nossos primos mais próximos, mas também compartilhamos com as bactérias uma grande extensão de sequências de DNA. Ora, o número de bactérias que povoam a Terra excede espantosamente ao número dos demais organismos. Desse fato devemos inferir o seguinte: 1) se o mundo foi projetado, ele parece tê-lo sido para favorecer, com um incrível sucesso, a adaptação daqueles que são os organismos numericamente dominantes até hoje; 2) se o mundo foi projetado, suas condições foram de tal modo ajustadas para o aparecimento e desenvolvimento desses microorganismos que, na escala evolutiva, precederam  e favoreceram o aparecimento de todas as formas de vida existentes ou já extintas. Stephen Gould, em Lance de dados (2001), chamando-nos a atenção para o fato de as bactérias serem os organismos dominantes na Terra, lembra-nos também que elas são os tipos de irmãos dos quais, se pudéssemos, preferiríamos manter distância:

“Por qualquer critério possível, razoável e justo, as bactérias são – e sempre têm sido – as formas de vida dominantes na Terra. O fato de não conseguirmos apreender o mais evidente dos fatos biológicos surge, em parte, da cegueira de nossa arrogância, mas também, em grande parte, como efeito de escala. Estamos muito acostumados a ver os fenômenos de acordo com a nossa escala – tamanhos medidos em metros e idades em décadas -, como típicos da natureza. A bactéria está além de nosso grau de visão e talvez não viva mais do que o tempo que eu levo para almoçar, ou que o meu avô gastava com o seu charuto, à noite. Mas então, quem sabe? Para uma bactéria, os corpos humanos talvez pareçam amplamente dispersos, realmente eternos (ou pelo menos geológicos), montanhas maciças, adaptados para toda forma de exploração e que representam pouco perigo, a menos que uma cápsula de penicilina atinja alguns destes detestáveis irmãos” (p. 241-242)


À guisa de antecipação do tema sobre cuja discussão me debruçarei na quarta e última etapa desta exposição, evoco estas lúcidas palavras de Weisberger, que deveriam ser recitadas como uma oração de penitência por todo aquele que vive numa espécie de semi-obscuridade no tocante ao mais grave problema implicado na crença do Deus das três Religiões do Livro:

“A existência do mal é a ameaça mais fundamental ao conceito ocidental tradicional de um Deus sumamente bom e todo-poderoso. Tanto o mal natural, o sofrimento que ocorre em resultado de fenômenos físicos, e o mal moral, o sofrimento que resulta da ação humana, abrangem o problema do mal. Se o mal não pode ser explicado, então a crença no conceito ocidental tradicional de Deus é absurda”. (Weisberger, 2010, p. 220, ênfase no original).




4. A crueldade do real: o fracasso das teodiceias


Toda a discussão que, doravante, desenvolverei nesta seção orienta-se pela concepção filosófica denominada de naturalismo, segundo a qual não existe nada que seja exterior à natureza, a saber, ao mundo físico e às forças que produzem os fenômenos naturais. Assim, o naturalismo alija de seu domínio qualquer elemento sobrenatural ou princípio transcendente.
Duas serão as minhas preocupações fulcrais: a) em primeiro lugar, buscarei evidenciar a compreensão do real como intrinsecamente cruel a partir da concepção darwinista da vida como “luta pela sobrevivência”; 2) em segundo lugar, examinarei duas das principais teodiceias formuladas para explicar a existência do mal e do sofrimento num mundo cujo Criador, segundo crença hegemônica no Ocidente, é um Deus sumamente bom e onipotente. São elas: a teodiceia do mal como um meio para um bem maior e a teodiceia do mal como consequência do livre-arbítrio. Se, ao cabo dessa tarefa, eu conseguir, pelo menos, assegurar o valor de verdade da proposição schopenhaueriana, segundo a qual “existe uma contradição notória em querer viver sem sofrer”, meu objetivo não terá sido de todo malogrado. Reconhecer a inextricabilidade entre vida e sofrimento, reconhecer que o sofrimento é constitutivo da tessitura do tecido vital é o primeiro passo para que superemos nossa mentira vital e reconheçamos que, nas iniciativas humanistas e solidárias destinadas a amenizar o sofrimento de todos os viventes capazes de sofrer, devemos estar mobilizados não por um interesse em recompensas divinas (porque estas não existem), mas pela certeza de que uma tarefa importante e irrenunciável do processo de viver é combater, na medida de nossas possibilidades, o sofrimento onde quer que ele faça suas vítimas. Essa tarefa só pode se revelar urgente, no entanto, para aqueles que alcançaram o conhecimento de que o sofrimento, tanto quanto a morte, é o que nos iguala a nós animais humanos aos animais não humanos superiores aos quais a generosa mãe natureza concedeu também a capacidade de sofrer. Todavia, a solidariedade no sofrimento, tão bem distribuído na ordem natural, não significa que devamos insistir em atribuir um sentido a ele. Se, como nos ensina a sabedoria oriental, da qual Schopenhauer deriva a força e a verdade de seu pensamento, “viver é sofrer”, devemos também reconhecer que viver é um esforço contínuo de reconciliação com o real, com a sua inapelável tragicidade. Se o real rejeita a tentativa de lhe atribuir um sentido último, toda aprovação do real deve ser, necessariamente, uma aprovação trágica. Ou a aprovação é trágica, ou não há, como lembra Rosset, aprovação.
Esta última parte deste estudo – devo confessá-lo – foi a que mais tempo me tomou em seu planejamento. Durante a pesquisa que precedeu sua confecção, precisei resistir ao desânimo que, com frequência, se me hospeda em todo o corpo, inibindo-me a vontade, todas as vezes que me encontro a pensar em questões que, uma vez consideradas com perícia intelectual e mantidas resguardadas da nossa tendência ingênita à credulidade que nos desvia do real, me apresentam verdades tão límpidas, que não carecem de ser enunciadas. Para combater esse desânimo, fortaleço em mim a convicção de que uma grande maioria de pessoas ou não consegue percorrer o caminho necessário para apreendê-las, ou, em percorrendo o caminho, insistem, quase sempre, em rejeitá-las; e essa convicção, por algum momento, me parece suficiente para me animar o interesse em iluminá-las. Todavia, estou seguramente convencido de que não é por meio de exercício argumentativo que se consegue tornar essas verdades de tal modo entranhadas na fisiologia dessas pessoas, que venham a lhe alterar significativamente o modo de ser. Toda visão de mundo se constitui de um núcleo duro de crenças que, dada a consistência de sedimentação delas, dificilmente são destruídas. Fatores pessoais e culturais se misturam para constituir uma visão de mundo, a qual é responsável pelo modo como pensamos o mundo e o entendemos. As crenças nucleares da visão de mundo influenciam decisivamente o nosso comportamento, as nossas reações às ocorrências do mundo. Estas crenças são axiomáticas, simplesmente aceitas como “dadas” e revelam nossa identidade, valores éticos, posições políticas, padrões de avaliação, etc. Por isso, constitui sinal de ingenuidade pretender que a articulação de argumentos, por mais coerente e afiada que seja, tenha, por si mesma e independentemente de circunstâncias que podem causar profundos abalos, um efeito transformador na visão de mundo das pessoas. Consciente disso, todo este meu texto e, em particular, esta última parte, não se produziu com o objetivo de modificar a visão de mundo de potenciais leitores. Não obstante, o valor deste trabalho não deve ser mensurado segundo o alcance transformador em um público de leitores, mas segundo sua consistência na exposição de verdades que permanecem sendo verdades, independentemente do modo como nos apeteça pensar o mundo.


4.1. A vida e a questão do sentido


Aí está você, lançado no mundo, tendo a morte como seu acontecimento futuro principal. Sem nenhuma razão para encontrar-se neste meio sócio-cultural em vez de em outro. Você mesmo, um ser humano trêmulo, habitante de um universo indiferente aos seus objetivos e aspirações. Para evitar que você sucumba ao desespero total, sua cultura lhe molda um caráter, lhe constrói uma armadura que o impede de sofrer a invasão de intuições perturbadoras sobre a natureza verdadeira do mundo. E só depois que você tenha sido doutrinado numa tradição religiosa e aprendido que a vida tem sentido, porque existe um Deus que o garante, é que você poderá, na escola, receber algumas lições sobre biologia. Uma lição de que, provavelmente, você jamais se esqueceu é a que lhe ensina sobre a cadeia alimentar, que distribui num sistema os produtores, os consumidores e os decompositores. A cadeia alimentar constitui a base do ecossistema. Ao longo da cadeia alimentar, os organismos produtores transferem energia e nutrientes aos consumidores. Essa transferência é cíclica, pois se completa quando do retorno dos nutrientes aos produtores. O retorno é possível pela ação dos decompositores que transformam a matéria orgânica dos cadáveres e os excrementos em compostos mais simples, num ciclo ininterrupto de transferência de nutrientes. A energia é um bem indispensável à sobrevivência de todo organismo, por isso todos os organismos, independentemente do lugar que ocupam na cadeia alimentar, a utilizam para a manutenção de sua vida.  Essa breve e bastante superficial descrição da cadeia alimentar deve nos permitir apenas inferir que o metabolismo, isto é, o processo geral pelo qual os organismos vivos se apropriam e se utilizam da energia de que precisam para desempenhar suas funções vitais, constitui um aspecto fundamental da definição da vida. São muitas as definições propostas para o termo vida nas ciências da natureza e eu não tenho pretensão de adotar alguma delas. Mas uma lição igualmente importante de nossas aulas de biologia é que um ente só pode ser considerado um organismo vivo se exibir todos os seguintes fenômenos: a) desenvolvimento: passagem por etapas seqüenciais que vão da concepção à morte; b) crescimento: acumulação e reorganização de matéria proveniente do meio natural; excreção dos produtos indesejáveis; c) movimento, acompanhado ou não de locomoção no ambiente; d) reprodução: capacidade de gerar indivíduos semelhantes; e) resposta a estímulos: capacidade sensitiva e de reação às possíveis mudanças no meio natural; f) evolução: capacidade de transformação de sucessivas gerações e de adaptação delas ao meio ambiente.
O que aprendemos sobre a cadeia alimentar nos foi transmitido com os termos técnicos consagrados na ciência biológica. O objetivo das aulas é simplesmente nos levar a compreender os mecanismos envolvidos no processo da vida. Não nos é estimulada a experiência do espanto. Raramente, um aluno é tomado de assombro em face do fato de a cadeia alimentar não passar de uma cadeia de carnificina incessante durante a qual a necessidade de matar é condição indispensável à manutenção do processo de viver nas condições naturais. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras.
Conforme nos ensina Dawkins, em seu O Gene Egoísta (2007, p. 132), toda máquina de sobrevivência tem como objetivo a sua sobrevivência individual e a reprodução. Por isso, ainda segundo Dawkins,

Os animais (...) não medem esforços para encontrar e capturar alimento, para evitar serem eles mesmos capturados e comidos, para evitar doenças e acidentes, para proteger-se das condições climáticas desfavoráveis, para encontrar membros do sexo oposto e persuadi-los a acasalar-se, e para conferir aos seus descendentes vantagem semelhantes àqueles que eles próprios desfrutam”. (ib.id.).


Os esforços dos animais descritos por Dawkins no trecho acima constituem evidências que corroboram a visão da vida como um esforço contínuo de resistência dos  organismos à tendência intrínseca da vida ao aniquilamento, isto é, à morte. A morte não é uma simples circunstância consequente do processo de viver; ela é um dos momentos constitutivos da dinâmica do processo de viver (no sentido de que, enquanto vivo, carrego em mim a possibilidade sempre aí da minha morte). Essa compreensão do processo da vida pode ser ampliada com a observação de que a extinção é o destino de todas as espécies. Ora, a vida na Terra começou há cerca de 4 bilhões de anos e evoluiu em milhões de milhões de direções diferentes, e está destinada a findar em entropia máxima muito antes do resto do universo. Também o Sol, sem o qual a vida na Terra não seria possível, explodirá ou se consumirá em cerca de 5 bilhões de anos, reduzido a cinzas tudo que gira à sua volta. As estrelas não terão destino diferente. Olhar o universo a partir dessa perspectiva niilista, a qual acena com a tendência de tudo que existe desaparecer no Nada absoluto, não é esposar uma visão pessimista sobre a vida; é, na verdade, atingir uma compreensão radical do caráter deveniente de tudo que há.  Consideremos o que significa ser no tempo. Ou seja, o que significa a experiência do tempo, para nós, humanos? Significa a experiência do fluxo incessante de todas as coisas, do passar, do fugaz, do aniquilamento, da dissolução, donde resulta a experiência de nulidade de tudo que fazemos. Marcel Coche (2000, p. 175) soube bem ver qual é a pergunta mais radical que subjaz à clássica pergunta “Por que existe alguma coisa em vez de nada?”. A pergunta mais radical é outra, diz o filósofo. Trata-se de perguntar “Por que fazer alguma coisa em vez de nada?” Se a destinação de tudo que há é o aniquilamento, se a experiência do tempo, que é a do devir, é a própria experiência de estarmos rodeados pelo nada (já que tudo que é deixa de ser, num fluxo contínuo), por que fazer alguma coisa em vez de nada fazer?
Já insisti, neste texto e noutros, que o homem está condenado a produzir sentido. Mas a própria experiência de construção de sentido, por força da consciência que tem o homem de ser no tempo, está, em última instância, destinada ao fracasso. Vou explicar por que a entendo como destinada ao fracasso. Sentido é um termo difícil de definir. Simplesmente porque o sentido é marcado por uma ‘ausência de si’. Quando nos perguntamos sobre o sentido da palavra “casa”, queremos saber qual é o significado da palavra “casa”, ou seja, o seu conteúdo semântico, o seu significado denotativo. Não vou aqui descer a discussões sobre a distinção entre significado e sentido, como a estabelecida por Frege, nem tecer considerações sobre o que significa falar em “sentido” nas teorias do discurso. Para a elucidação de meu pensamento, basta, inicialmente, tomar a palavra “sentido” como sinônimo de “significado”. Mas o sentido da palavra “casa” não é nem a estrutura sônica ou, em termos saussureanos, a imagem acústica /kaza/ nem o referente concreto que o signo “casa” designa no mundo. O sentido está de permeio, por assim dizer, entre o significante (a imagem acústica) e a coisa significada. Notemos que o sentido tem um papel de articulação. Todavia, diferentemente do que pensava Saussure, assumirei que essa articulação não é a da imagem acústica com a coisa designada pelo signo, mas a da imagem acústica, ela própria “a imagem psíquica do som” (Saussure), com o conceito, que é também um componente de ordem mental. Mas o sentido só pode atualizar-se através de outros signos. Se eu forneço o sentido da palavra “casa”, o faço através de uma definição que resulta da combinação de outros signos. Assim, o sentido de “casa” é “edifício destinado à habitação”. Evidentemente, este é um dos sentidos de “casa”, já que as palavras são polissêmicas. Mas o aspecto polissêmico das palavras não deve nos interessar.
Disse que o sentido “está de permeio”, mas como poderia “estar entre duas coisas”, se o sentido é ‘ausência de si’, é um ‘lugar vazio’? Como poderia ‘uma ausência’ ocupar um lugar? É que o sentido é a determinação de uma ausência que significa na combinatória de outros signos. Nunca encontramos, de fato, o sentido em si (veja “eis o sentido!). O sentido de um signo é outro signo ou combinatória de signos. Evidentemente, esse outro signo significante ou combinatória de signos só pode atualizar o sentido por convenção, ou seja, são os membros de uma comunidade linguística que se colocam de acordo quanto ao sentido que vão atribuir às palavras. Ou seja, são os membros de uma comunidade linguística, compartilhando experiências de mundo, que acordaram que uma estrutura sonora como /kaza/ significará ‘edifício destinado à habitação’.
Retomo, agora, a questão que me motivou a tratar do problema do sentido. Insisto, que o sentido continua sendo um problema para a Linguística, a filosofia e as ciências cognitivas. A tradição semiológica nos habitou a pensar no sentido como um componente do signo, ou seja, uma das duas faces do signo. Saussure chama as duas partes do signo de “significante” e “significado” e toma o “significado” como sinônimo de “conceito”. Mas o que não se aprofundou, até onde eu consigo ver, é a distinção ontológica entre significante, que tem caráter sensível, material (é uma combinatória de sons articulados), e o significado (ou sentido) que não é um ente do mundo, que não é um componente material. Só tenho acesso ao significado ou sentido por meio de outros signos, que, por sua vez, são entidades dicotomicamente divididas em um significante (estrutura sonora) e um significado (conceito, conteúdo mental?). Mas só posso acessar o conteúdo mental que o meu interlocutor associa a um signo por meio de outros signos.
Por que a experiência humana de construção de sentido está destinada ao fracasso? Se não sabemos o que é o sentido (na verdade, parece-nos que ele é o próprio vazio, é ausência de si), então devemos evitar abordá-lo como se ele pudesse nos revelar sua natureza própria. A forma como podemos agora nos interrogar sobre o sentido deverá levar em consideração conceitos como o de “coerência”, “articulação”, “continuidade”, “princípio de inteligibilidade e interpretabilidade”. Quando dizemos de um texto que ele tem coerência, queremos dizer que ele “faz sentido”; e um texto “faz sentido” – aqui darei a conhecer apenas um modo de compreender o que é “fazer sentido” - , quando o leitor consegue estabelecer uma coesão conceitual cognitiva entre as expressões linguísticas do texto e o conhecimento de mundo que o leitor tem arquivado em sua memória.[9] Para fins de argumentação, a palavra-chave que interessa aí é coesão (ligação).  Um texto ou um acontecimento faz sentido quando podemos estabelecer ligações entre os componentes (no caso do texto) ou entre os episódios (no caso de um acontecimento). Além disso, o sentido, quando pensado relativamente ao texto, não se encontra no texto em si, mas é construído na interação entre autor e leitor. A construção do sentido depende do princípio de inteligibilidade do texto, ou seja, o texto tem de ser inteligível, tem de construir um ‘mundo textual’, que constitui um modelo de mundo construído pelo autor e que deve corresponder, ao menos parcialmente, ao conhecimento de mundo do leitor. Novamente, o sentido do texto depende de que se possa estabelecer uma ligação, uma articulação entre o mundo construído pelo texto e o nosso conhecimento de mundo enquanto leitores. O sentido envolve também a noção de continuidade. Se produzo um texto como “Joana voltou para casa, mas agora minha mãe está doente”, esse texto, aparentemente, estranho, só fará sentido se meu interlocutor conseguir estabelecer uma continuidade (de sentidos) entre os conhecimentos ativados pelas expressões do texto. No exemplo em tela, o leitor precisa conseguir estabelecer alguma relação entre o evento ‘Joana voltou para a casa’ e ‘minha mãe está doente’ com base em conhecimentos que já disponha previamente. Note-se que o enunciado não nos fornece todos os conhecimentos necessários para a sua compreensão. Boa parte desses conhecimentos deve ser partilhada entre os interlocutores. Se meu interlocutor sabe que “Joana” é minha irmã, que ela fugiu de casa, que minha mãe estava aflita e que a família estava preocupada com a possibilidade de minha mãe adoecer em virtude da preocupação com a ausência de minha irmã, então lhe será possível reconstruir o sentido pretendido por mim ao produzir o enunciado. Considerando-se todos os conhecimentos que se espera sejam partilhados e a estrutura sintática do enunciado, formado por duas orações articuladas pelo operador “mas”, que contrapõe um estado-de-coisas a outro, o meu interlocutor pode construir para o enunciado o sentido: ‘Joana não voltou a tempo para evitar que minha mãe adoecesse’.  Ora, nesse caso, o locutor pretende que seu interlocutor aceite a interpretação que ele, locutor, faz do ocorrido: Joana agora nos causou outra preocupação, a saber, a preocupação com o estado de saúde de nossa mãe. Novamente, estamos diante de um fato bastante interessante: mesmo que o sentido possa ser compreendido como construção de relações, apreensão de uma continuidade, como um efeito dependente de princípios de inteligibilidade e de interpretabilidade, o sentido só se materializa por meio de um complexo sígnico, ou seja, de uma frase ou texto. Parece que, ao pretendermos capturar o sentido em sua transparência, como algo que, emergindo das palavras, se pudesse “visualizar”, ele nos lança novamente para outras palavras, para outros signos e assim sucessivamente. Acredito ter encontrado uma saída para a dificuldade em que me envolvi na problematização do sentido, mas não darei a conhecê-la neste texto, já que não é aqui o lugar adequado para apresentá-la.
Devemos, agora, considerar o que se segue. Quando pensamos no conceito de “continuidade”, vem-nos à mente a ideia de ‘caráter ou qualidade do que é contínuo’. “Contínuo, por sua vez, diz-se do que não é dividido na extensão ou não é interrompido na duração. Continuidade também se imbrica com a ideia de estabilidade, já que “estabilidade” supõe também a ideia de “permanência”. Transpondo o conceito de continuidade, subjacente à compreensão do sentido, para o domínio ontológico-fenomenológico, busquemos ponderar sobre o que significa dizer que “minhas atividades fazem sentido”. Se eu digo que minhas atividades fazem sentido, quero dizer que consigo estabelecer entre elas uma ligação, uma continuidade (e continuidade implica, nesse caso, estabilidade). Mas cumpre ainda acrescentar a essa compreensão do sentido um componente fundamental do homem: o desejo. As atividades que realizo fazem sentido se elas estiverem em harmonia com o meu desejo, se eu puder representá-las como meios para a satisfação de meu desejo. E nós não desejamos senão bens, e o sumo bem que desejamos é, como nos ensinara Aristóteles, a felicidade. Logo, as atividades que eu realizo só fazem sentido, em última instância, se a continuidade que posso estabelecer entre elas, as ligações que elas mantêm entre si me encaminham para a realização de minha felicidade. Não cabe aqui fazer incursão na tematização filosófica da felicidade. Basta que aceitemos que ela é o sumo bem a que tende todo homem. Independentemente da forma como cada pessoa entende o que é uma “vida feliz”, o que estou tentando mostrar é que o sentido é o efeito de minha capacidade de estabelecer ligações entre minhas experiências, entre meus atos, minhas atividades, de tal sorte que essas ligações assegurem a ou me encaminhem para a realização de meu desejo de felicidade. Uma vida humana da qual se pode dizer que é dotada de sentido é uma vida em cuja destinação (isto é, cujo modo como a dinâmica de seus eventos me afeta) se pode estabelecer ligações entre seus momentos e/ou eventos constitutivos, as quais, por sua vez, devem encaminhar-me para a realização de minha felicidade.
Por que a experiência de construção de sentido está destinada a fracassar? Lembro que essa questão se nos apresenta em função do reconhecimento de que o tempo é o passar incessante de todas as coisas, é a impossibilidade de que as coisas durem. O tempo nos revela esta grande verdade: tudo que é torna-se o seu contrário, ou seja, deixa de ser. Ora, o tempo não nos pode dar a continuidade, a estabilidade, no sentido de ‘permanência’, exigida pela necessidade que temos de construir sentido. Assim, por exemplo, quem extrai sentido para a sua vida na experiência do trabalho, porque esse alguém é um ‘ser no tempo’, está sempre sujeito a perder aquilo que faz sentido. Essa pessoa pode deixar o cargo que ocupa e que lhe dá certo status e poder para ocupar um cargo de menor representatividade. Isso pode significar a redução de seu salário e dos poderes de que antes gozava. Ou, em caso de uma grave crise econômica, pode vir a perder o emprego. Como diz a canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Como não há vida possível senão no tempo e como o homem é um ser que tem consciência de que vive no tempo, como “o tempo “segue na mesma marcha”  - em nós, mas independente de nós” (Coche, 2000, p. 182, ênfase minha), somos presas da lei do tempo que tudo encaminha para o nada e a própria vida torna precária nossa tarefa de atribuir sentido às nossas experiências, às nossas atividades. Como a vida não pode garantir a continuidade, a estabilidade exigida pelo sentido por força do fato de ser uma vida temporal, o homem sente a necessidade de produzir, na imaginação, uma ligação que transcenda o tempo, uma ligação que o contente na esperança de existir no mundo do ser, que é o oposto do mundo do devir, onde a lei é a impermanência de tudo que existe. A experiência do tempo revela ao homem que ele é também um ente impermanente, destinado a não durar como tudo o mais. A fugacidade ou a impermanência constitui o modo como a vida se destina para o homem e essa destinação da vida torna frágil a experiência do sentido. Enquanto o homem “habita” o tempo, o sentido continua sendo uma experiência precária, destinada a não resistir à inexorabilidade da lei do tempo. A religião produz no homem a esperança de que o sentido último de sua vida consista numa ligação que transcenda o tempo. Por isso, o sentido da vida só pode ser entendido como sentido transcendente. Esse sentido quer dizer: minha vida extrai sua coerência, sua coesão, de uma outra vida, de uma vida fora do tempo - a vida eterna, ou a eternidade -, garantidora da estabilidade, da continuidade exigidas pela minha necessidade de sentido.
Antes de encerrar esta subseção, lembro que, ao nos debruçarmos sobre o funcionamento da língua, observamos que ‘ordem’, em língua, produz sentido. Assim é que a ordem em que se distribuem os termos da oração determinará um dado sentido. A oração “João ama Maria”, em que “João” ocupa a posição de sujeito e “Maria” ocupa a posição de complemento do verbo “amar”, significa uma coisa diferente do que a oração “Maria ama João”, na qual a ordem em que aparecem os constituintes “João e “Maria” se alterou. Nesse caso, “João” é o complemento, e “Maria” é o sujeito. Semanticamente, o que temos é uma troca de papéis semânticos entre os SNs (sintagmas nominais): em “João ama Maria”, “João” é o experienciador, e “Maria” é o objeto; em “Maria ama João”, “Maria” é que é o experienciador; e “João”, o objeto. O que a língua nos ensina, nesse tocante, acerca do sentido é que ele exige ordem, ordenação, organização. Não há sentido no caos, assim como não há sentido  na sequência que não obedece a nenhum padrão regular da gramática do português: “de banana comeram bolo o”. Analogamente, a atribuição de sentido ao viver depende de que nossas experiências, nosso mundo fático seja dotado de ordem, de organização. A expressão “minha vida está uma bagunça” confirma que a vida é uma experiência que supõe ordem, ordenação, organização, e o sentido é produto dessa ordem. O sentido do viver cotidiano é garantido por esquemas cognitivos pelos quais ordenamos cada ação que realizamos. Esses esquemas se chamam rotinas. A forma do destinar-se da vida cotidiana é a da rotina. E rotina implica ordenação e é ela que nos dá a ilusão de sustentabilidade do sentido. Se a rotina sofre uma quebra profunda, por exemplo, com a descoberta de um câncer que nos forçará a freqüentar hospitais, a submeter-se a sessões de quimioterapia e a suportar estados intensos de debilidade, que envolvem dor, anemia, diarréia, náusea, vômito, etc., somos lançados numa perturbadora crise de sentido. O sentido da vida, em circunstâncias como esta, é colocado em questão, o sofrimento nos expõe à fragilidade da vida, à fragilidade do sentido e à compreensão do ser, que, em circunstâncias como esta,  nos desvela o caráter dramático da finitude do ser-aí que cada um de nós é. Finitude não significa o caráter mortal do homem, mas seu modo próprio de existir marcado pela antecipação da “totalidade de sua existência que se estende como um arco do nascimento à morte”. (Stein, 1976, p. 71). Essa consciência e antecipação do modo finito de existir são estruturadoras do modo de ser do Dasein.


4.2. A luta pela sobrevivência

Recordem-se, em princípio, os dois sentidos em que Rosset (1989) entende a crueldade do real:

1º sentido: a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade;

2º sentido: a forma “crua” com que se apresenta o próprio real que impossibilita os ornamentos metafísicos que o tornem suportável.

Esta subseção será destinada à exposição de evidências que acenam com o caráter impiedoso da natureza, para o que me socorrerei do que Charles Darwin nos ensinou sobre o processo de evolução das espécies e, particularmente, sobre a luta pela sobrevivência implicada nesse processo. Serão dois os meus objetivos ao longo desta parte de minha exposição: 1) corroborar o caráter doloroso da realidade, a que se refere Rosset; b) contribuir para o esclarecimento acerca da incongruência entre a crença na existência de um Criador sumamente bom que projeta um mundo cuja ordem revela sua bondade e inteligência infinita e o que podemos saber acerca do modo como o mundo realmente é. Buscarei argumentar no sentido de que não verificamos aquilo que esperaríamos encontrar se o mundo tivesse sido criado por um Deus cuja existência é afirmada pela tradição teísta. A crença na existência do Deus teísta falseia nossa visão do mundo. Essa crença, como defende Freud, é ilusória porque decorre do nosso desejo de que o mundo fosse diferente do que é. Daniel Dennet chama nossa atenção para o fato de que podemos compreender o caráter ilusório da crença em Deus sob outra ótica: uma parte das pessoas que diz acreditar na existência de Deus crê, na verdade, na crença em Deus. Nesse sentido, a crença na crença em Deus é tão importante quanto a crença na democracia, no domínio da lei ou no livre-arbítrio. São ilusões tomadas como indispensáveis ao viver em sociedade e as pessoas, em geral, temendo admitir “que muito da sabedoria popular tradicional a respeito de Deus não merece mais crença que a sabedoria popular a respeito de Papai Noel ou da Mulher Maravilha” (ib.id. p. 225) - o que, em última instância, é um temor por assumir sua  liberdade - creem nisso e não se demonstram dispostas a abandoná-las. Independentemente de Deus existir ou não, conforme nota Dennett (2006, p. 261), a opinião generalizada é que “sem religião, cairíamos na anarquia e no caos, em um mundo em que “qualquer coisa vale””.  A expressão “crença na crença em Deus” pretende sublinhar dois fatos: um dos quais, que se deve entrever, é que, na maioria das vezes, nossas crenças a respeito do mundo implicam a existência das coisas no mundo, as quais são, assim, a causa de nossas crenças; o outro fato é que a crença em Deus pode significar apenas crença no conceito de Deus, ou melhor, crença na funcionalidade do conceito de Deus.
O que o argumento do desígnio em favor da existência de Deus ignora é que a suposição de um Designer Inteligente na origem do universo não dá conta do modo como a vida realmente se manifesta no âmbito da natureza. Uma das razões por que a crença no Designer Inteligente é inadequada para explicar o mundo tal como é diz respeito aos defeitos de “engenharia” que podemos observar facilmente nas formas de vida. A outra razão, que, na seção anterior apontei, e que agora será desenvolvida em pormenores, é que a vida em seu estado natural se constitui pela luta universal pela sobrevivência ao longo da qual se verifica uma grande quantidade de sofrimento e destruição de organismos. Essa luta universal pela sobrevivência só pode ser explicada adequadamente pela postulação do mecanismo de seleção natural. A luta pela sobrevivência é um efeito do processo de seleção natural, ou seja, é uma das formas pelas quais a seleção natural se dá. É somente pelo mecanismo de seleção natural que podemos apreender a lógica subjacente à violência inerente ao modo como a vida se manifesta na natureza.
A crença no Designer Inteligente obscurece nossa consciência da verdade acerca do modo como o mundo realmente é. Por isso, quem “vê” e entende o mundo com base na crença num Criador infinitamente bom e sumamente inteligente não vê o mundo tal como é; o que vê são simulacros de um mundo recriado nas representações coletivas constituídas e mantidas pelo sistema ideológico que subsidia sua fé. De certo modo, o mundo que o crente “vê” não é o mesmo mundo visto pelos que não creem em Deus.
Comecemos por atentar para o que significa, em termos gerais, a seleção natural. Dawkins, em seu O Gene Egoísta (2007), assim se expressa a respeito da seleção natural:

“A seleção natural, na sua forma mais geral, significa a sobrevivência diferencial de entidades. Algumas entidades vivem e outras morrem, mas, para que a morte seletiva tenha algum impacto sobre o mundo, uma condição adicional tem de ser satisfeita. Cada entidade tem de existir na forma de um grande número de cópias e ao menos algumas dessas entidades devem ser potencialmente capazes de sobreviver como cópias – durante um período significativo de tempo evolutivo” (p. 86, ênfase no original).



Dizer que a seleção natural “significa a sobrevivência diferencial de entidades” é dizer que a seleção natural ou, como também chamou Darwin, “a persistência do mais capaz”, é o mecanismo pelo qual se preservam as diferenças e as variações individuais favoráveis e eliminam-se as variações nocivas. A seleção natural é o mecanismo propulsor da evolução natural. Trata-se de um mecanismo criador da complexidade biológica. A evolução natural, por sua vez, consiste no longo processo contínuo através do qual, a partir de um ancestral comum, os seres vivos vão sofrendo modificações, mudanças, por meio da aquisição de caracteres hereditários. Trata-se, portanto, de um processo gradual de mudanças químicas e físicas que começou antes mesmo do surgimento da vida propriamente dita e que continua até hoje.
Um aspecto fundamental da seleção natural, suficiente para lançar por terra a crença num Designer Inteligente, reside no fato de que não há finalidade ou direção nesse processo, de modo que, “se hoje favorece algumas formas, pode certamente alterar a pressão a favor de outras formas de acordo com uma nova interação entre os conjuntos de parâmetros em jogo” (Landim & Moreira, 2009, p. 34).
Uma compreensão do mundo calcada sobre o princípio da seleção natural e do fenômeno da evolução das espécies pode afinar-se com a ideia de que os seres vivos são máquinas criadas pelos seus genes, os quais evoluíram “– em alguns casos, por milhões de anos, num mundo altamente competitivo” (Dawkins, 2007, p. 39).
Tendo em vista o fato de que a luta pela sobrevivência é uma consequência inevitável da atuação da seleção natural, ela deve ser compreendida como um acontecimento indispensável à manutenção da estabilidade da organização da própria vida. Darwin (2009) explica esse fato pelo princípio de progressão geométrica do aumento dos indivíduos. Se o aumento do número de indivíduos se tornasse muito notável, não haveria regiões que os pudessem alimentar. A vida depende, portanto, da morte de certo número de seres vivos para que seu equilíbrio e manutenção sejam possíveis. Segundo Darwin,

“A luta pela sobrevivência resulta inevitavelmente da rapidez com que os seres vivos organizados tendem a se multiplicar. Todo indivíduo que durante o estado natural d ávida produz muitos ovos ou muitas sementes deve ser destruído em qualquer período de sua existência ou durante uma estação qualquer, porque, de outro modo, dado o princípio do aumento geométrico, o número dos seus descendentes se tornaria tão notável que nenhuma região os poderia alimentar. Também, como nascem mais indivíduos do que os que conseguem sobreviver, deve existir, em cada caso, luta pela sobrevivência, quer com outro indivíduo da mesma espécie, quer com indivíduos de espécies diferentes, quer com as condições naturais da vida” (p. 9, ênfase no original).

Conforme podemos ver, a luta pela sobrevivência constitui também uma medida para solucionar um desperdício: o nascimento de um número superior de indivíduos do que a quantidade que consegue sobreviver. Em outras palavras, a dinâmica cruel da vida opera segundo o princípio de eliminação do excesso: nascem muito mais seres do que aqueles que conseguirão subsistir. A luta pela sobrevivência está a serviço da manutenção do equilíbrio inerente à ordem natural, evitando que existam superpopulações que tornariam, pelo consumo excessivo, escassos os recursos naturais para a manutenção da vida. Uma região onde se proliferassem muitos descendentes de uma espécie tornar-se-ia incapaz de prover a subsistência de todos os seres vivos que a habitassem.
Numa outra passagem, Darwin deixa claro o caráter funcional da luta pela sobrevivência. Dessa luta depende o bom funcionamento da seleção natural, já que, na luta pela sobrevivência, sobrevivem apenas os indivíduos da espécie cujas variações se demonstraram úteis a esses indivíduos nas relações com outros seres vivos e com as condições físicas da vida. Seguem-se as palavras de Darwin:


“Devido a esta luta, as variações, por mais fracas que sejam e seja qual for a sua origem, tendem a preservar os indivíduos de uma espécie e se transmitir à descendência logo que sejam úteis a esses indivíduos nas suas relações com os outros seres organizados e com as condições físicas da vida. Os descendentes terão, por si mesmos, em virtude disso, maior probabilidade de sobrevida, porque, dos indivíduos de uma espécie nascidos periodicamente um pequeno número sobrevive. Denominei este preceito, pelo qual uma variação, por mínima que seja, se conserva e se perpetua se for útil, seleção natural, para indicar as relações desta seleção com que o homem pode operar”. (p. 6-7).



Darwin também nos alerta para o fato de que, se ignorarmos o princípio da luta universal pela sobrevivência, ou não conseguimos ver bem todo o processo de autogestão da natureza, ou interpretamos de modo errado os casos atinentes à distribuição, à raridade, à abundância, à extinção e às variações dos seres vivos. Ainda, segundo Darwin, quem se habitou a ver apenas a exuberante beleza da natureza e sua superabundância de alimentação não é capaz de ver a natureza em sua totalidade, isto é, não vê que a beleza exuberante e a generosidade de sua providência coexistem com sua dinâmica intrinsecamente destrutiva e sua imprevidência periódica. Em outras palavras, o belo e o feio, a abundância e a escassez, a criação e a destruição evidenciam que a vida se constitui pela dinâmica relacional dos contrários. Quem vê apenas um elemento dos pares parcializa o mundo e, assim, não vê, de fato, como o mundo realmente é.

“Nada mais fácil que admitir a verdade deste princípio: a luta universal pela sobrevivência; nada; nada mais difícil – e falo por experiência – do que ter este princípio sempre presente no espírito, pois, caso contrário, ou se vê mal toda a economia da natureza, ou se atribui sentido errado a todos os casos relativos à distribuição, à raridade, à abundância, à extinção e às variações dos seres organizados. Contemplamos a natureza exuberante de beleza e prosperidade e notamos, muitas vezes, uma superabundância de alimentação, mas não vemos, ou esquecemos, que as aves, que cantam empoleiradas descuidadas num ramo, se nutrem principalmente de insetos ou de grãos; e que, fazendo isto, destroem seres vivos; esquecemos que as aves carnívoras e os animais de presa estão à espreita para destruir quantidades consideráveis desses alegres cantores, destruindo-lhes os ovos ou devorando-lhes os filhos; não nos lembramos sempre que, se há superabundância de alimentação em certas épocas, o mesmo não se dá em todas as estações do ano”. (p.7-8).



Esse trecho nos dá testemunho do caráter cruel do real. A maioria de nós se maravilha com a majestade do mundo natural ao mesmo tempo em que não demonstra perplexidade em face do fato de que essa mesma ordem natural majestosa cerca de perigos e pune mortalmente os seus filhos descuidados.
A visão de mundo naturalista, consoante se pôde ver, é incompatível com a visão de mundo teísta. Uma vez que o teísta alega existir um Deus criador, onipotente e sumamente bom, ele precisará explicar por que um Deus com tais atributos criou uma ordem natural que, para se conservar, tenha de causar tanto sofrimento e destruição? Quando observamos a natureza, sem a mistificação da realidade pela crença num Criador sumamente bom, todo-poderoso e inteligente, podemos nos dispensar de justificar a existência do mal e do sofrimento no mundo. Uma compreensão da verdade sobre a natureza nos revela que: a) cada ser orgânico tende sempre a multiplicar-se; b) logo, cada um deles estará inevitavelmente envolvido numa luta por certo período de sua vida; c) tanto os mais novos quanto os mais velhos indivíduos estão sujeitos inevitavelmente a uma destruição incessante, e isso ocorre durante cada geração, ou em alguns intervalos recorrentes; d) sempre que a destruição cessa, por um período breve que seja, o número de indivíduos de uma espécie torna a crescer consideravelmente. O crescimento exponencial da quantidade desses indivíduos parece exigir a ocorrência de novos eventos de destruição dos produtos excedentes.
Já se constatou que, entre as melhores espécies de pombos-cambalhotas de bico curto, morrem mais filhotes no interior do ovo do que aqueles que conseguem sair, razão por que os criadores ficam alerta para o momento em que o filhote se esforça para quebrar a casca do ovo, a fim de ajudá-lo caso haja necessidade. A natureza poderia produzir um pombo de bico muito curto em benefício da própria ave, mas, nesse caso, a seleção seria mais lenta e rigorosa e ocorreria ainda dentro do ovo: somente os que teriam bico mais duro sobreviveriam, já que os que tivessem bico mole morreriam dentro do ovo. A natureza poderia, alternativamente, produzir uma casca de ovo mais delgada, a fim de facilitar a saída dos filhotes. A seleção natural pode modificar profundamente a conformação de um animal, mesmo que essa modificação só lhe seja útil uma única vez na vida. Não nos podemos dispensar de perguntar como um projetista sobrenatural inteligente poderia, num caso, pecar por uma ineficiência nociva; e noutro, cometer um erro de avaliação de proporcionalidade entre a modificação feita e a duração de sua utilidade.
Esse caráter esbanjador, desastroso e ineficiente é o que se pode esperar de um processo como o da seleção natural, que envolve tentativa e erro numa escala gigantesca e sem planejamento. De fato, há muitos desperdícios ao longo do processo, muito embora os produtos exibam sinais de sofisticação e elegância. É claro que todo o processo que culminará com a sobrevivência dos mais capazes tem um custo grandioso: há muito sangue e sofrimento envolvidos. Dawkins, em seu O Capelão do Diabo (2005, p. 24), lembra que “Darwin não estava exatamente brincando quando cunhou a expressão “capelão do Diabo” numa carta a seu amigo Hooker em 1856: “Um livro e tanto escreveria um capelão do Diabo sobre os trabalhos desastrosos, esbanjadores, ineficientes e terrivelmente cruéis da natureza!”.
Um dos fatos mais importantes que a evolução por seleção natural nos dá a conhecer é que no estado natural da vida a norma é suplantar o seu vizinho na transmissão de genes às futuras gerações. Nessas, apenas os genes mais bem-sucedidos orientarão o desenvolvimento das gerações futuras, codificando nos seus indivíduos uma única mensagem: explorem o meio ambiente, inclusive seus amigos e parentes, a fim de maximizar o sucesso dos seus genes. Quando o que se constata, ao estudarmos a configuração da dinâmica vital na natureza, é a vigência de uma única regra que instrui os organismos vivos a trapacear sempre que isso lhes trouxer um provável benefício final, somente a necessidade de perpetuar a autoilusão pode explicar que um grande número de pessoas não consiga, com os meios de sua capacidade racional, inferir daí que, havendo um Criador, ele se parece mais com um engenheiro velhaco e inventor da trapaça como meio de ganhar a vida do que uma autoridade e fonte de todo sentido de moralidade em relação à qual devemos conduzir nosso comportamento.
Para uma grande linhagem de pensadores, de Hesíodo a Freud, passando pelos filósofos pré-socráticos da costa jônica, Empédocles, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, vida e morte não se opõem de forma irredutível, mas integram a dinâmica do viver. Entre esses dois estados, se desenvolve uma eterna e renovada dinâmica de construção e destruição, de geração e corrupção, de nascimento e perecimento, ódio e amor. Essa compreensão à luz da qual vida e morte são estados estruturantes do real representa bem o modo como funciona a dinâmica do que chamamos hoje natureza, ou seja, o mundo bio-físico como totalidade de entes que se distribuem em reinos (mineral, vegetal e animal) e que está submetida a leis próprias.
Se a violência permeia toda a dinâmica da vida, a evolução de uma tendência à violência é estratégica. Assim, os organismos só recorrem à violência em circunstâncias em que os benefícios esperados superam os custos envolvidos. Segundo Dawkins (2007, p. 69), “esse discernimento é especialmente verdadeiro em espécies inteligentes, cujos cérebros grandes as tornam sensíveis aos benefícios e custos esperados em uma dada situação e não tão-só às vantagens adquiridas em média ao longo do tempo evolutivo”.
Vejamos, antes de pôr termo a esta subseção, alguns outros exemplos que evidenciam o caráter cruel (nos dois sentidos entendidos por Rosset) da realidade, especificamente da ordem natural cuja criação se atribui a um Criador sumamente bom. Novamente, enfatizo que meu objetivo consiste não só em ampliar a visão que costumamos ter da natureza, circunscrita à sua exuberância, mas também em mostrar que a crença num Criador benevolente torna-se absurda quando nos detemos na contemplação da dinâmica cruel das relações entre as formas vivas.
Os guinchos são aves que constroem os seus ninhos em grandes colônias. Os ninhos são dispostos no chão muito distante uns dos outros. Ao nascer, os filhotes são pequenos e indefesos; por isso, podem ser facilmente engolidos. É bastante comum que uma fêmea espere a sua vizinha sair, possivelmente para pescar, para, então, avançar sobre um dos filhotes para devorá-lo. Desse modo, ela obtém uma refeição farta e nutritiva sem ter o trabalho de apanhar um peixe, deixando o próprio ninho entregue à investida assassina de um invasor.
As fêmeas do louva-a-deus são grandes insetos carnívoros. Em geral, eles se alimentam de insetos menores, como as moscas. Todavia, estão dispostas a atacar tudo quanto se mova. Na época do acasalamento, o macho, cautelosamente, se dirige até a fêmea, monta nela e copula. Tendo oportunidade, a fêmea o come, arrancando-lhe, primeiramente, a cabeça, seja assim que ele se aproximar dela, seja quando estiver montado nela, seja no fim da cópula. Talvez, fosse mais sensato que ela esperasse a cópula terminar para devorá-lo. Mas a perda da cabeça não priva o restante do corpo do cadenciado movimento sexual. Uma vez que a cabeça do inseto abriga alguns centros inibidores, ao arrancá-la, a fêmea melhora o desempenho sexual do macho. Mas, se esse for o caso, a melhora do desempenho sexual é um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.
Que devemos pensar sobre o comportamento dos pinguins-imperadores da Antártida, que ficam à beira d’água hesitantes antes de mergulhar, já que correm o risco de serem devorados por focas? Mas, para que saibam se há focas ou não, é necessário que um deles se encoraja a mergulhar. Ocorre que nenhum deles se atreve a fazê-lo, de modo que todos ficam esperando e, às vezes, chegam a se empurrar uns aos outros para dentro d’água. A regra do comportamento, nesse caso, é: alguém, desde que não seja eu, deve se sacrificar em favor da espécie, mesmo sob coação. Para o conjunto de genes, importa sempre garantir a sobrevivência da espécie, mesmo que, para isso, seja necessário sacrificar um indivíduo. Devemos, portanto, atender na lição de Dawkins (2007, p.47), ao nos esclarecer sobre o seguinte: “se são as espécies que competem naquilo que Darwin chamou de luta pela sobrevivência, o indivíduo deveria ser considerado um peão no jogo, a ser sacrificado quando o interesse maior da espécie assim o exigir”.
É comum que filhotes de gaivotas fiquem a andar a esmo. Em consequência disso, é fácil que venham a se aproximar do ninho de uma vizinha adulta, sendo quase sempre devorados por ela.
Um relato impressionante sobre o instinto assassino de animais nos é dado por Steven Pinker, em seu livro Os anjos bons de nossa natureza (2013). Conta o autor que, quando chimpanzés estão em equilíbrio de força, eles, embora interajam de maneira hostil, não chegam a atacar violentamente uns aos outros, limitando-se, ao contrário, a emitir gritos curtos e repetidos, a sacudir galhos e a atirar objetos, até que o bando menos numeroso se ponha a fugir. No entanto, segundo Pinker, a primatóloga Jame Goodaall, observando pela primeira vez os chimpanzés na natureza por longos períodos, descobriu que, quando um grupo de chimpanzés encontro outro grupo em menor número ou um indivíduo sozinho pertencente a outra comunidade, os animais do grupo mais numeroso não gritam, nem se eriçam, mas aproveitam a vantagem numérica. Se o estanho for uma fêmea sexualmente receptiva, eles podem catar seus pelos e tentar se acasalar com ela. Se ela carregar um filhote, na maioria das vezes, eles a atacam e depois matam e comem o filhote. Se, ao invés, encontram um macho solitário ou isolado do seu grupo, perseguem-no com ferocidade assassina. Dois dos perseguidores o imobilizam, os demais o espacam, arrancam seus dedos e genitália a mordidas, “dilaceram-lhe a carne e torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traquéia” (Pinker, 2013, p. 75-76). O desfecho desse caso emblemático de crueldade na natureza nos é fornecido por Pinker na forma como se segue:


“Em uma comunidade, os chimpanzés escolheram matar cada macho de uma comunidade vizinha, um evento que, se ocorresse entre seres humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos dos ataques não são desencadeados por encontros fortuitos; resultam de patrulhamentos de fronteira nos quais um grupo de machos sorrateiramente procura e ataca qualquer macho solitário que avistar. Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um rival, e uma fêmea forte, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de uma fêmea mais fraca”. (ib.id.).


Os ataques sanguinolentos dos chimpanzés são, portanto, muitas vezes, resultado de uma tática de extermínio, que envolve um paciente e cuidadoso trabalho de reconhecimento da região onde estão as vítimas em potencial, e emboscadas com resultados fatais.


4.3. Deus e o Problema do Mal: uma revisão crítica das teodiceias

4.3.1. Deus, segundo Clemente de Alexandria (séc. III E.C)

Jô 4: 8  “Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor”.


Embora tenha sido pouco original em suas exposições acerca de Deus, a compreensão que Clemente de Alexandria tinha de dEle é paradigmática no tocante ao seu efeito de mistificação de nossa consciência de mundo. Em outros termos, ao apresentar as ideias de Clemente de Alexandria sobre a natureza de Deus, buscarei mostrar que elas são produtos da imaginação de seu autor e que contrariam grosseiramente o que sabemos acerca do mundo. Espero que, tendo em vista tudo o que foi discutido na seção precedente e o que virei a discutir nas próximas seções, o caráter enganoso das proposições clementianas não deixem margem a qualquer dúvida de que seus conteúdos recriam um mundo que não é o mundo da nossa experiência empírica comum. Começo, pois, por fazer uma sucinta apresentação de quem foi Clemente de Alexandria.
O primeiro instituto cristão de ensino superior apareceu na cidade de Alexandria, região para onde convergia a cultura helenística nos inícios do século III. E.C (Era Comum). Desse grande centro do saber, onde se cultivavam a filologia e as ciências da natureza, participou Tito Flávio Clemente, também conhecido como Clemente de Alexandria, filho de pais gentios, nascido, provavelmente, em Atenas por volta de 150 E.C.
Clemente de Alexandria, embora advogasse que a filosofia devesse submeter-se à fé cristã, não deixou de reconhecer sua utilidade. Para ele, a filosofia era útil para todos os que professavam a fé cristã. A filosofia serve de um instrumento para a defesa dessa fé. Clemente acreditava que o estudo da filosofia era um vocação que contentava a Deus.
Sua Teologia Natural pautava-se, em linhas gerais, pelas seguintes proposições:


1) A existência de Deus é universalmente conhecida

Clemente julgava que essa afirmação era evidente. Ele notou que não há povo que não creia em algum ser supremo. Para ele, todos os homens elaboram uma ideia de Deus, já que essa ideia lhes estaria inscrita em sua alma. Assim, os homens experimentam uma espécie de “antecipação” do saber sobre Deus. Esse saber é resultado de uma influição divina de que se beneficiaram também os filósofos. Também eles, que já falavam sobre um Deus único, princípio e fim do universo, foram receptores da iluminação natural de Deus.


2) O conhecimento negativo de Deus se aufere por via analítica

Para alcançar um saber aproximativo de Deus, devemos recorrer ao processo analítico, através do qual, partindo dos dados da experiência sensível, podemos chegar ao princípio espiritual de todas as coisas. Essa análise se desenvolve na forma de uma série progressiva de abstrações. Na sua primeira etapa, removemos das coisas sensíveis as três dimensões que a constituem: o comprimento, a altura e a largura.  Mas ainda resta um simples ponto que continua a ocupar um lugar no espaço. Prosseguindo com o processo, abstraímos esse ponto espacial, a fim de obter tão somente uma unidade espiritual, ou uma causa situada acima de todo lugar, de todo tempo e de todo conhecimento. O processo analítico deve nos conduzir à abstração de todos os aspectos corporais e incorporais do ser, tendo em vista a elevação à grandeza de Cristo. Somente quando conseguimos formular o conceito de imensidade, obteremos certo conhecimento do Todo-Poderoso, muito embora permaneçamos, em todo caso, ignorantes quanto ao que Deus é. O processo analítico por analogias deverá nos levar a afirmar a radical transcendência de Deus. Clemente chegou a dizer, em consonância com Fílon, que Deus está acima da própria Unidade.

4) Deus é o Criador de todas as coisas

Os desdobramentos dessa proposição têm, para esta discussão, uma relevância imensa. Clemente é pouco original em suas exposições acerca de Deus como Criador. Ele afirma, acompanhando de perto a tradição, que Deus é o criador de todas as coisas e o princípio absoluto de tudo. A despeito do fato de ele não nos oferecer uma concepção clara e inequívoca da Criação, esta, segundo afirma, é atribuída ao Logos (o Verbo). Na Bíblia, relata-se que o Verbo criou o mundo a partir do nada.

Segundo Clemente, a criação resulta de um ato livre da vontade de Deus. O ato de criação é expressão da bondade de Deus. Mas Deus não é bom no mesmo sentido em que o fogo é quente, isto é, não há uma necessidade na bondade de Deus; a bondade de Deus é voluntária, isto é, livre. Isso significa dizer que Deus escolhe ser bom. Ora, se a bondade de Deus decorre de uma escolha livre, então Deus pode escolher, em vez da bondade, a indiferença moral, ou o mal. Da observação da grande quantidade de mal e sofrimento que há no mundo é razoável inferir que Deus escolheu uma dessas opções ou as duas em vez da bondade.
Ao assumir que “Deus é o criador de todas as coisas”, Clemente se compromete com uma afirmação que responsabiliza Deus pela existência de todo sofrimento e mal que há no mundo. Como vimos, quando chamei a atenção para a superioridade numérica das bactérias como habitantes do mundo, se seguirmos Clemente (e todos os autores cristãos)  e se não quisermos evitar as exigências da razão, deveremos responsabilizar Deus pela criação desses microorganismos que, como sabemos, nos causam muitos males, muitos dos quais mortais. Se Deus é o criador de todas as coisas, na extensão desse sintagma – “todas as coisas” - devemos incluir além das bactérias, os vírus e todos os parasitas que causam doenças aos seres humanos, animais e plantas. Do Antraz ao Ebola, incluindo o HIV, que segundo estimativas oficiais, é responsável pela morte de cerca de 25 milhões em todo o mundo,[10] e a bactéria altamente perigosa chamada Clostridium difficile, comum em hospitais ao redor do mundo e a Clostridium botulinum, portadora da toxina botulínica, a mais maligna então conhecida (a Clostridium botulinum é uma bactéria que interrompe o funcionamento neural, causando botulismo e morte por paralisia) - todos esses microrganismos malignos, enfim, fazem parte da Criação e, portanto, foram criados pelo Deus sumamente bom de Clemente.
Ainda segundo Clemente, todas as coisas existentes, inclusive o tempo, foram criadas pela vontade livre de Deus. Deus quis criar o mundo (com todos os agentes patológicos que nele encontramos), e o mundo se fez. A vontade criativa de Deus não é temporal, mas eterna e intemporal. Tudo que existe se originou de um só ato simples da vontade de Deus; e tudo que continua a subsistir até então é produto exclusivamente de sua vontade. Deus é o mantenedor da ordem da criação; é o sustentador do mundo. Demais, reza Clemente que tudo que Deus criou é bom. Essa proposição segue-se, logicamente, do que Clemente afirma a respeito de Deus: se Deus é absoluta bondade, segue-se que tudo que faz é bom. Para Clemente, Deus é bondade e amor (aqui retoma a posição de João 4: 8). A bondade e o amor são a única razão de sua atividade criadora, não lhe sendo possível criar algo mau. A julgá-lo por suas crenças acerca de Deus, Clemente não o tipo de pessoa que gostaríamos de ter como analista político ou conselheiro conjugal em tempos de crise. 


4.3.2. O Problema do Mal: uma revisão crítica das teodiceias


Com vistas a esclarecer alguns pontos que possivelmente possam estar nebulosos, retome-se a afirmação de Clemente de Alexandria “tudo que Deus criou é bom” e nos perguntemos como foi possível que Clemente enunciasse tal crença? Teria sido ele incapaz de ver que não é verdade que “tudo que Deus criou é bom”, que, se Deus é o Criador de tudo, então também é o Criador dos males que nos causam sofrimento e morte? Teria sofrido ele de demência? Supondo que suas faculdades mentais estivessem preservadas, como foi possível que ele acreditasse sinceramente no que afirmou? Talvez, jamais saberemos a resposta; só podemos conjecturar.
Vimos que Freud define a ilusão como uma crença motivada pelo desejo; vimos observando que a ilusão, acompanhando a proposta de Becker, prende-se à construção do caráter como meio de evitar o confronto com a verdade sobre o mundo. Também tive a preocupação de sublinhar que essas não são as únicas maneiras de teorizar sobre o conceito de ilusão. Na verdade, ilusão é um fenômeno explicado pela física, pois que trata-se, deveras, de um erro de percepção que implica sempre um objeto (como nas chamadas ilusões de óptica). O Dicionário Técnico de Psicologia (2006) recomenda a distinção entre ilusão e delusão. Delusão, precisa o Dicionário, não deve ser confundida com ilusão. A definição dada ao termo delusão aplica-se bem ao que vimos considerando como “ilusão”. Assim, delusão é uma “crença indestrutível numa ideia ou grupo de ideias obviamente contrárias à lógica, à realidade do meio externo ou às crenças correntemente aceitas da cultura dos indivíduos” (p. 78). Pelo menos em parte, parece que Clemente sofreu de delusão. Embora sua crença de que “tudo que Deus criou é bom” tenha sido aceita em sua época (e ainda hoje não parece suscitar controvérsia para muitas pessoas), ela é inegavelmente contrária à conformação fenomênica do mundo. Quem ousaria negar que há muitas coisas no mundo que são claramente males? Quando o desejo é manter a crença na existência de Deus, a imaginação ignora os limites impostos pela razão. Sempre é possível desrespeitá-los, apelando, no entanto, a eles segundo as conveniências do momento (“os limites de nossa razão impedem-nos de conhecer os desígnios da divindade”). A teologia é a tentativa de racionalizar a linguagem da imaginação. Por isso, seu lógos pode pretender, como o fez em sua história, que os males são “aparências” ou que o mau é privação do bem (Santo Agostinho). Todo o contorcionismo racional do discurso teológico parece decorrer, em última instância, de uma tendência natural do cérebro humano: a de projetar propósito e mente no mundo.
Crianças, povos primitivos e animais superiores como cães e gatos têm a propensão a projetar mente ou intencionalidade em coisas inanimadas e em processos não vivos, como trovão, vento, desmoronamentos, etc. Essa tendência é particularmente constante, quando refletimos sobre a existência do universo. Nesse caso, somos naturalmente habituados a pensar que a existência do universo só pode ser explicada se supusermos um agente causador inteligente, dotado, portanto, de intencionalidade. Essa propensão também é comum quando, ocorrendo uma tragédia, perguntamos “por que esse câncer foi afetar justamente o meu filho?”. Nesse caso, esperamos que haja um sentido ou propósito nesse acontecimento (é um aviso de Deus, é um sinal divino para que mudemos nossos comportamentos, etc.). Mas a possibilidade de fazer tal pergunta não significa que ela tenha uma resposta. A pergunta somente indica que temos uma propensão psicológica a projetar sentido e propósito no mundo, a despeito do fato de um exame cuidadoso do mundo poder nos mostrar que o mundo não revela, em si mesmo, significado ou propósito em suas ocorrências. Essa propensão a projetar propósito e mente em coisas inanimadas é uma propriedade do tipo de cérebro de que nos dotou a evolução.
Considere-se, à guisa de introdução à abordagem das questões para as quais voltarei minha atenção adiante, como devemos compreender a “dor” do ponto de vista evolutivo. Quando consideramos a seleção natural a partir dos genes, suas unidades fundamentais, somos levados a reconhecer que eles “seguem” uma única orientação: produzir mais e mais cópias de si mesmos. Os genes só “querem” conservar sua sobrevivência e reprodução. Os genes não se importam com nosso sofrimento. Na verdade, eles não se importam com nada.
É claro que, numa perspectiva evolutiva, a dor serve à adaptação biológica. Porquanto é um sistema de alerta e de motivação da ação, a dor aumenta a sobrevivência e a reprodução. Assim, a predação, o sofrimento do parasitismo, as dores causadas por doenças como o câncer se explicam pela natureza da competição, mutação, genes egoístas e “seleção natural”. Não há nenhum sentido, racionalmente satisfatório que se possa inferir de eventos como a escassez de alimentos, a fome e a morte delas decorrentes. Mas esses eventos podem ser explicados nos termos da biologia evolutiva, ou seja, procurando determinar se há alguma regularidade passível de ser traduzida em termos lógicos. Essa regularidade existe e ela pode ser explicada assim: havendo um tempo de fartura, a consequência será o aumento significativo da população; esse aumento significativo da população implicará maior consumo dos recursos naturais disponíveis; em consequência disso, o estado natural de fome e sofrimento será restaurado.
Se queremos explicar a quantidade excessiva e gratuita de dor e sofrimento que atinge a nós, seres humanos, e aos seres sencientes com quem compartilhamos o planeta, devemos ponderar sobre os processos da evolução. São eles que fizeram evoluir em nós os mecanismos para sensibilidade à dor, mas não de modo convenientemente eficiente, que os fizessem saber cessar quando já não mais necessários. E isso se deve ao fato de que não há uma mente com um propósito a governar tais processos; eles são desprovidos de inteligência e finalidade.
Portanto, o mecanismo de dor, em geral, é adaptativo, mas não funciona com perfeição em todas as situações - e nem poderia. Como, então, é possível ainda evitar reconhecer que as propriedades que encontramos no universo são justamente aquelas que esperaríamos encontrar se, desde o momento em que nos puséssemos a pensar sobre o funcionamento do real, dispensássemos a hipótese de um desígnio ou propósito, e não supuséssemos nada além de indiferença cega e implacável?


                                                                          §§

Concentremos nossa atenção na discussão sobre o problema do mal e nas tentativas de lidar com ele. Essas tentativas foram chamadas de teodiceia por Leibniz, em 1710.  Há diversos tipos de teodiceias. Passarei em revista os principais tipos, muito embora só venha a dispensar atenção especial a dois tipos de teodiceia: a do livre-arbítrio e a que explica a existência do mal como um meio para produzir um bem maior. Escolhi ocupar-me delas por acreditar que elas continuam a condicionar a compreensão que os cristãos de hoje tem do problema do mal quando precisam defender a sua fé. Essas duas espécies de teodiceias parecem estruturar os discursos dos religiosos quando se encontram em situações em que precisam fazer a defesa de sua fé. Evidentemente, na maioria das vezes, essa defesa se desenvolve pela mera apropriação do legado argumentativo teológico, sem qualquer preocupação em submeter esse legado a uma crítica filosófica. Assim, quando se trata de explicar o mal moral, ou seja, o mal consequente dos atos humanos, a explicação agostiniana ainda atrai muitos defensores. Basta recorrer, assim, ao livre-arbítrio da vontade, ainda que, ao longo da história da filosofia e mais modernamente nas neurociências, tanto filósofos quanto cientistas venham contestando a existência do livre-arbítrio. Neste texto, não irei me aprofundar na exposição sobre as contribuições das neurociências que apontam no sentido da rejeição do livre-arbítrio, se bem que alguns insights filosóficos que se confirmariam nessas ciências não deixarão de ser considerados.  É importante deixar claro que rejeitar o livre-arbítrio não é negar ao homem a liberdade. Livre-arbítrio e liberdade não podem ser tomados como termos equivalentes. A distinção entre eles já fora feita em Agostinho e deverá ser mantida, se bem que noutro domínio discursivo que não o teológico. Não vou, contudo, antecipar a problemática. Basta, por ora, que tenhamos em mente a ideia de que “livre-arbítrio” não deverá ser tomado como sinônimo de “liberdade”. Os seres humanos podem ainda continuar a ser livres, sem, contudo, terem realmente “livre-arbítrio”.


4.3.2.1. O problema do mal e sua inscrição na teologia

Quando nos referimos ao “problema do mal”, devemos estar cientes de que queremos nos referir a um problema que se inscreve no domínio do discurso teológico. É evidente que o “mal” é um problema para o Dasein e é uma questão pertinente a muitas disciplinas (a sociologia, a psicologia, a política, etc.). No entanto, a expressão “o problema do mal” deve significar “o problema que consiste em conciliar a crença na existência de um Deus onipotente e infinitamente bom com a evidência do mal e do sofrimento no mundo”. Assim, a expressão “o problema do mal” se apresenta como um problema eminentemente teológico ou, tomando o cuidado de não excluir de seu tratamento a filosofia, diremos: um problema eminentemente filosófico-teológico. 
Embora consagrado com a designação argumento do mal, o argumento que leva em consideração a universalidade do sofrimento mereceria ser chamado de argumento do sofrimento do inocente. Esse argumento constitui o maior desafio à sustentação da crença na existência do Deus teísta. O argumento do sofrimento do inocente tem, sem dúvida, sua mais irretocável e significativa expressão no sofrimento da criança, que, para o filósofo francês contemporâneo Marcel Conche (2000), “é um mal absoluto, mácula indelével na obra de Deus, e seria suficiente para tornar impossível qualquer teodiceia” (p. 61). Conche, referindo-se a Dotoiévsky, lembra que, para este autor, “toda teodiceia deve ser julgada pela capacidade de fornecer justificativa para os sofrimentos das crianças” (p. 55). Creio desnecessário reunir aqui alguns exemplos de sofrimento de que são acometidas as crianças; basta que o leitor ligue a televisão, leia os jornais para constatá-los. Sabemos que o problema do mal preocupou de modo especial Santo Agostinho, e grande parte de sua produção intelectual foi dedicada ao tratamento dele. Segundo nos dá testemunho Conche, Agostinho chegou a manifestar seu desconcerto em carta escrita a São Jerônimo ao confrontar-se com o sofrimento das crianças. Leia-se o trecho abaixo:

“O sofrimento das crianças deveria ser suficiente para confundir os advogados de Deus. Porém, quando muito, eles o levam em conta. Santo Agostinho quase chega a constituir uma exceção: “Quando se chega às penas das crianças”, escreve a São Jerônimo, “fico num grande embaraço e não sei o que responder... Não são elas derrubadas pelas enfermidades, dilaceradas pelas dores, torturadas pela fome, pela sede, fragilizadas nos seus membros, privadas do uso dos sentidos, atormentadas pelos espíritos imundos?... Deus é bom, Deus é justo, Deus é onipotente, não podemos duvidar disso sem que estejamos loucos, mas, que nos digam por que justo motivo as crianças são condenadas a sofrer tantos males”. Gostaríamos de ter sabido qual foi a resposta de Jerônimo, mas ela não veio. Talvez até mesmo ele tenha ficado embaraçado”. (Conche, 2000, p. 60-61).


                                                                                                        
Agostinho, numa clara demonstração de que não estava disposto a abandonar sua fé num Deus que não pode ser senão o Bem Supremo, julga que seria louco se negasse a Deus os atributos da bondade, justiça e onipotência. Entanto, a razão intervém em ato de protesto: loucura é não ver que entre o Deus teísta e o real há uma incompatibilidade que se impõe a quaisquer manobras de fé. Ora, o próprio Santo Agostinho inclui entre os males que afetam as crianças a privação do uso dos sentidos. Comecei a escrever este texto numa semana em que médicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Fundação Altino Ventura de Pernambuco descobriram que a microcefalia causada pelo vírus da zika pode ser a causa de uma lesão na mácula ocular em bebês. Essa lesão pode gerar desde problemas visuais leves até a cegueira. Os médicos recomendam que as mães que, durante a gestação, suspeitaram de ter contraído o vírus da zika levem seus bebês para fazer exames, ainda que eles não tenham nascido com microcefalia. As pessoas, em geral, quando não são afetadas diretamente por um mal como este, isto é, na condição de espectadores, reagem com lástima e receio, que se fundem nas expressões “Jesus!”, “Meu Deus!”. Essas exclamações funcionam como atos de fala pelos quais as pessoas pedem indiretamente a Deus que mantenha afastados esses males de seus filhos e, por compaixão, dos filhos de outras mães grávidas. Em face de males, as pessoas pedem a Deus proteção e se, por alguma imperscrutável razão, Deus não atende ao apelo e permite que eles as atinja, elas buscam, a todo custo, escapar ao desespero, aconselhando-se com um sacerdote ou buscando respostas na Bíblia. É preciso considerar também que a lamentação que as pessoas expressam ao constatar que há muitos males naturais nos espreitando jamais se converte numa revolta espiritual necessária para que alcancem um verdadeiro estado de reconciliação com o real. A revolta espiritual consistiria em protestar contra as tentativas de buscar um sentido para os males que nos afetam. As explicações religiosas do mal buscam justamente isto: o sentido. Elas atendem à necessidade humana de atribuir sentido ao sofrimento. Não é o sofrimento em si que é intolerável, mas a falta de sentido do sofrimento. Já procurei demonstrar, em outros trabalhos, que o sofrimento, no cristianismo, não é experienciado como um obstáculo para o exercício da fé. E as teodiceias não são mais do que provas disso. Elas cumprem uma única função: dar sentido ao sofrimento. Muitos cristãos chegam a afirmar que o sofrimento é uma experiência necessária ao crescimento espiritual, crença esta que tem apoio na visão paulina do sofrimento. Essa crença me parece ser uma expressão ideologizada da mortificação ascética que marcou o comportamento de devotos cristãos, ao longo da história do desenvolvimento da fé cristã. As pessoas que a afirmam podem chegar ao absurdo de desejar o sofrimento (mas não o provocar a si mesmas), por acreditarem que ele é uma oportunidade para imitar a Cristo.
É preciso, no entanto, ter em mente o seguinte: o argumento do mal só constitui um sério problema para a fé teísta. Os que sustentam uma visão deísta da divindade não são constrangidos a responder a ele, simplesmente porque, para o deísmo, o problema do mal não constitui um verdadeiro problema. Sabe-se que o deísmo sustenta a crença num Deus criador que não intervém nos assuntos humanos. Para os deístas, Deus existe e criou o mundo, mas tendo-o criado, dele se afastou e se mantém, assim, num estado de indiferença em face do curso das coisas e da felicidade humana.
O argumento do mal põe em dúvida a existência de Deus apelando para que se leve em conta o sofrimento difundido e indiscriminado que aflige os seres humanos e os animais não humanos. Esse argumento deve sua força ao fato de focalizar um fenômeno que atinge pessoalmente todos nós e que, por isso, não pode ser negado, salvo por cinismo. Sempre que ocorre um desastre natural que mata centenas de pessoas, sempre que uma criança morre de leucemia ou de zika, sempre que os seres humanos matam inocentes, em todas as épocas, há/houve pessoas que não evitaram perguntar como esses acontecimentos podem conciliar-se com a existência de um Deus sumamente bom e todo-poderoso. Até hoje, o dilema de Epicuro (341-270 AEC) não foi solucionado de modo satisfatório; e não o foi – penso eu – porque a conclusão que ele encaminha não pode ser outra senão a de que Deus não existe. Esquematicamente, o dilema de Epicuro formaliza o seguinte raciocínio:

1) Deus quer eliminar o mal, mas não pode;
2) Deus pode eliminar o mal, mas não quer;
3) Deus não pode nem quer;
4) Deus quer e pode.

Se 1), então Deus não é onipotente; se 2), então Deus não é bom; se 3), então Deus é mau; se 4), então por que o sofrimento inocente no mundo?

Os proponentes do argumento do mal levam em consideração o sofrimento que acarreta debilidade física ou mental, ou mesmo a morte, sem que dele se possa inferir algum propósito. Naturalmente, os homens de religião sempre buscaram evidenciar um propósito no mal e sofrimento que grassam no mundo, no interesse, evidentemente, de salvar sua fé em Deus. Susan Neiman, em seu O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia (2003) sublinha que a teodiceia serve à seguinte função:


“A teodiceia, em sentido estrito, permite ao crente conservar sua fé em Deus diante dos males do mundo. Num sentido amplo, é uma maneira de dar significado ao mal que nos ajuda a encarar o desespero. As teodiceias inserem os males em estruturas que nos permitem continuar a viver no mundo” (p. 264).


Como se vê, as teodiceias estão entre os dispositivos pelos quais a ilusão cultural, indispensável para viver a vida, se expressa. Teodiceias (theos = Deus; dikaios = justiça) são argumentos que visam a absolver Deus da responsabilidade pela presença do mal no mundo. A teodiceia permite ao crente conservar sua fé em Deus diante dos males do mundo. Em sentido amplo, ela atende à necessidade de dar significado ao mal, a fim de evitar que sejamos absorvidos pelo desespero extremo.
O sofrimento a que alude o argumento do mal é uma calamidade que pode ser breve e intensa (como ser assassinado ou morto por um terremoto) ou prolongada e debilitante (como ser mortificado pela doença de Lou Gehrig, também conhecida como Esclerose Lateral Amiotrófica, que se caracteriza pela degeneração progressiva dos neurônios motores e que leva à morte em pouco tempo). O sofrimento a que se refere o argumento do mal pode também ser causado por uma força da natureza, como terremoto, enchentes, tsunamis, ataques de animais não-humanos, vírus, bactérias, ou pode ser causado pela violência de outro ser humano. Quando o sofrimento é causado por um ser humano (por exemplo, o assassinato, o espancamento de alguém ou de algum animal), temos o que se considerou chamar de mal moral. Quando causado por agentes naturais ou eventos naturais, temos o mal natural ou físico.
Vou atacar o primeiro tipo de mal, na próxima subseção. Em seguida, concentrarei minha atenção na discussão do mal natural. Por fim, apresento as teodiceias que podemos encontrar nas Escrituras Bíblicas, limitando-me a pontuar que elas não conseguem responder ao anseio de sentido das sensibilidades do mundo de hoje. Ao cabo desta exposição, aguardarei confiante de que eu tenha sido bem-sucedido em defender que uma aprovação verdadeira do real só é possível pela rejeição a qualquer tentativa de atribuir sentido à crueldade inerente à dinâmica da vida. Aprovação trágica do real quer dizer sim ao real e ao seu caráter inapelavelmente cruel, nos dois sentidos em que o adjetivo “cruel” é entendido pelo filósofo francês Rosset.



4.3.2.2. O mal moral

O argumento destinado a justificar o mal causado pelo ser humano a outro ser humano (e devemos acrescentar, hoje, a outro animal superior) apela para a existência do livre-arbítrio da vontade. O argumento que busca inocentar a Deus do mal causado pelo homem assenta no pressuposto de que o livre-arbítrio é um bem. Ainda hoje, para muitos crentes, inocentar a Deus da responsabilidade pelo mal provocado pelo ser humano com base na alegação do mau uso do livre-arbítrio garante-lhes o conforto necessário para manter a sua fé. O argumento do livre-arbítrio serve tanto para explicar por que Deus permitiu que uma Suzane Richtofen premeditasse e viabilizasse o assassinato dos próprios pais quanto para explicar por que Deus não interveio para salvar os 6 milhões de judeus exterminados nos campos de concentração de Auschwitz. Desses 6 milhões de seres humanos assassinados pelos nazistas, no que ficou conhecido como Holocausto, 1, 5 milhões eram crianças. Entre elas, havia 1 milhão de judias, dezenas de milhares ciganas, além de crianças alemães portadoras de deficiências físicas e mentais que viviam em instituições, crianças polonesas, e crianças que moravam nas regiões ocupadas na União Soviética – todas elas mortas pelo que foi chamado pelos nazistas de “Solução Final”. Atualmente, dificilmente um filósofo cristão ou teólogo sério buscará desenvolver uma teodiceia para explicar os acontecimentos de Auschwitz, sem experimentar um mal-estar moral. Como nota Neiman (2003, p. 280), “Auschwitz foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade na natureza humana que esperávamos não ver”.  Para os que se dedicam seriamente a pensar sobre o problema do mal, Auschwitz dizimou todas as categorias conceituais pelas quais Deus foi até então pensado. Depois de Auschwitz, é o próprio conceito tradicional de Deus que não pode ser mais mantido. É claro que essa necessidade de repensar a compreensão que temos de Deus, em lugar de simplesmente negar sua existência, é um problema que se impôs aos intelectuais que se confrontaram com os acontecimentos de Auschwitz. É claro que houve ortodoxos judeus que compreenderam o extermínio de 6 milhões de seres humanos como um juízo de Deus sobre os judeus, os quais estariam sendo punidos por terem se afastado da lei tradicional (trata-se de uma retomada de uma teodiceia bíblica para explicar por que o povo escolhido sofria). Essa teodiceia assenta na crença de que Deus abandona aqueles que se desviam de seu caminho. Uma segunda maneira de rejeitar o que Auschwitz representa para o compromisso com a fé em Deus é alegar que os nazistas são demoníacos e que o que os alemães fizeram não nos diz nada sobre a natureza humana. Não obstante algumas tentativas de justificar o terror de Auschwitz, fato é que a barbárie ali cometida arruinou as teodiceias modernas, levou à derrocada as crenças anteriores no progresso da humanidade. O século XX tornou os modelos de sofrimento em que Nietzsche inspirou-se para erigir uma filosofia afirmadora do mundo simplesmente obsoletos. Oportunas são as palavras de Neiman ao comentar sobre a esterilidade da visão nietzscheana sobre o valor do sofrimento, depois de Auschwitz:

“Descrições de Auschwitz deixam pouco espaço para as alegações nietzschianas sobre o valor do sofrimento, pois praticamente todos os observadores compartilhavam a opinião de que esse sofrimento não criou nada de valor quer para qualquer indivíduo que o tenha testemunhado, quer para a humanidade como um todo. Esta não é uma afirmação moral, mas empírica. Auschwitz nada produziu além de possibilidades que jamais deveriam ter sido abertas, feridas que nunca podem cicatrizar (...)”. (Neiman, 2006, p. 292).


Reforço aqui a ideia de que, salvo desonestidade intelectual e um descompromisso com um senso de moralidade, os estudiosos que se dedicam a refletir sobre o problema do mal dificilmente seriam convincentes ao propor teodiceias calcadas sobre o livre-arbítrio que ignorassem os acontecimentos de Auschwitz. É verdade, porém, que, para o homem comum, quase nunca é verdadeira e espiritualmente afetado pelas implicações que um acontecimento como o de Auschwitz carreia para a sua confortável defesa de Deus mediante a insistência no mau uso de livre-arbítrio pelo homem, o genocídio de crianças, em qualquer circunstância, não o leva a questionar profundamente sua fé. Por mais espantoso que isso possa parecer, não devemos tomá-lo como alguém racionalmente embotado, mas como alguém para quem é simplesmente intolerável viver num mundo onde o terror e o sofrimento são desprovidos de qualquer sentido. Para essa pessoa, vale a frase de Camus: “Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento”. Na cotidianidade, reunidos em rebanho, os homens, tementes a Deus, mesmo cônscios de que o sofrimento de inocentes parece absurdo, seguem na marcha a aguardar a Revelação Final, que suplantará a “Solução Final” e pela qual, segundo creem, o Verbo anunciará a Eternidade do Sentido.


4.3.2.3. Santo Agostinho e o problema do mal

4.3.2.3.1. Contextualização

A crença no livre-arbítrio da vontade, que subjaz ao argumento do livre-arbítrio em favor da justiça de Deus, deve sua disseminação, na história do pensamento ocidental, a Santo Agostinho (século IV). Será, por isso, necessário apresentar, resumidamente, a importância de Agostinho enquanto o mais influente teólogo do pensamento cristão até hoje.  Agostinho de Hipona foi o grande sintetizador de dois corpora teóricos da Antiguidade, a saber, o pensamento greco-romano (filosofia) e o judaico-cristão (fé). Coube ao bispo de Hipona construir as bases de uma nova cultura que se tornou hegemônica no Ocidente, donde o merecido epíteto “Pai do Ocidente”.
Foi com Santo Agostinho que a filosofia patrística e, talvez, a filosofia cristã alcançaram seu apogeu. Agostinho está entre os raros pensadores cuja filosofia não pode ser dissociada de sua vida. Sua vida inteira consistiu numa busca de Deus e, no centro de seu pensamento, sempre esteve o próprio Deus. Em sua busca de Deus, Agostinho não se esquivou de pensar quiçá o mais espinhoso problema – o da existência do mal no mundo.
O enfrentamento do problema do mal por Agostinho se deu num contexto teológico e de vida marcado pela ruptura com a doutrina maniqueísta, da qual Agostinho fora simpatizante na qualidade de ouvinte, durante nove anos. Será suficiente delinear o que foi o maniqueísmo e quais foram seus principais ensinamentos.
O maniqueísmo é uma religião de origem persa, criado por Manes, no século III, que se difundiu por todo o Império Romano e pelo Ocidente cristão. Durante esse período, o maniqueísmo alcançou florescimento e foi muito influente nos primórdios do cristianismo. Sua doutrina combina aspectos do zoroastrismo, antiga religião persa fundada pelo profeta Zaratustra, com elementos de outras religiões orientais e inclusive do cristianismo. Os maniqueus sustentavam que o universo era governado por dois princípios opostos: o do Bem e o do Mal, isto é, a Luz e as Trevas. Os seres humanos, por consequência, tinham duas almas: uma presidida pelo princípio do Bem; e outra, pelo princípio do Mal. O mal era, para os maniqueus, dotado de natureza metafísica e ontológica. O indivíduo não era livre, tampouco responsável pelo mal que faz.
Durante o tempo em que estava sob influência da doutrina maniqueísta, Agostinho concebia a realidade, Deus e o mal como substâncias materiais. Santo Agostinho jamais chegou a se tornar um membro plenamente qualificado da seita, mas ficou sobremaneira admirado com a atitude maniqueísta de repulsa aos dogmas católicos. O espírito racionalista de Santo Agostinho conciliava-se bem com o caráter acentuadamente materialista da metafísica maniqueísta.
Dois acontecimentos, no entanto, foram determinantes para a emancipação espiritual de Santo Agostinho, a qual se iniciou pela ruptura com o maniqueísmo e culminou, não sem que se encenasse um turbulento combate em seu espírito, com sua conversão ao cristianismo: o contato com Santo Ambrósio, ao qual deveu, especialmente, sua renúncia ao racionalismo; e o contato com o neoplatonismo, doutrina filosófica que lhe abriu o caminho para uma metafísica do espírito, à luz da qual a concepção de Deus que até então tinha Agostinho, por influência da sua simpatia pelo maniqueísmo, se transformou. Doravante, Agostinho passava a conceber a Deus como ser incorpóreo espiritual. Ao se debruçar sobre o problema do mal, Agostinho procurava polemizar com os maniqueus. Essa polêmica foi, especialmente, marcada pela divergência com que Agostinho pensou o mal, conforme veremos. Mas, antes de trazer à cena discursiva o modo como Agostinho pensou o problema do mal, convém ainda esclarecer um pouco mais a influência tanto de Ambrósio quanto do neoplatonismo sobre o pensamento de Santo Agostinho.
Conquanto as pregações de Ambrósio não tenham levado Agostinho, de imediato, à Igreja Católica, elas trouxeram à sua alma algumas luzes e foram, aos poucos, dissipando as dúvidas que ainda lhe restavam no espírito como sinais da influência maniqueísta. Graças a Ambrósio, Santo Agostinho pôde manter-se distante do ceticismo. Atento aos sermões de Ambrósio, o bispo de Hipona colheu deles o conceito de “substância espiritual”, fundamental para a superação e refutação do maniqueísmo. Com Ambrósio, Agostinho aprendeu que o Deus do Cristianismo, Uno e Criador, não é uma substância corpórea ou material, mas espiritual.
No que toca à importância do neoplatonismo para o desenvolvimento do pensamento de Agostinho, é indispensável pontuar que especialmente de Plotino Agostinho aproveitou a famosa tríade na qual o mundo inteligível se divide hierarquicamente em três hipóstases ou substâncias primeiras: o Uno, a Inteligência ou Noûs e a Alma. No topo da hierarquia, se acha o Uno, que é o Bem-Superior, transcendente, perfeito, eterno, infinito e necessário. Desse primeiro Princípio, emana a segunda hipóstase, que é a Inteligência ( ou Espírito, ou Lógos ou Noûs). A Inteligência é uma cópia do Uno. Ela foi engendrada imediatamente pelo Uno e, por isso, é a mais perfeita, embora não tenha a unidade perfeita. A Inteligência marca o início da multiplicidade, já que carreia em si uma divisão: por um lado, ela contempla diretamente o Uno, do qual faz parte; e, por outro lado, contempla a si mesma, sendo consciente de si mesma.  A Inteligência é, portanto, ao mesmo tempo, Inteligência que pensa, e Ser, enquanto é pensada.
O mundo inteligível encerra-se com a terceira hipóstase, a Alma do mundo, que é uma substância também espiritual, princípio que anima o universo, que dá vida a todos os corpos. É importante dizer que a noção plotiniana de hipóstases inteligíveis como realidade superior ao mundo sensível deu grande impulso ao pensamento de Agostinho. Em primeiro lugar, porque, através delas, Agostinho corroboraria a concepção cristã de Deus, que aprendeu com Ambrósio. Deus ou o Super-Bem de Plotino é um ser único, substância espiritual transcendente, que não tem corpo nem extensão. Em segundo lugar, Agostinho que, a esta altura já tinha ao menos tomado conhecimento do Evangelho de São João, pôde, a partir da leitura de Plotino, estabelecer uma estreita relação entre o Lógos de Plotino e o Verbo do Evangelho de João.
Fato não menos importante para a evolução do seu pensamento é o que Agostinho aprendeu a respeito da matéria no monismo plotiniano. Na sua união com a Alma universal, a matéria dá origem aos seres corporais. A matéria é a última processão do Uno e, como tal, é eterna e necessária. Ainda que esteja extremamente afastada do Bem, a matéria não constitui um princípio ontológico independente. A matéria é o extremo limite do Uno, de modo que para além dela não há mais processão alguma, ou não existe mais nada. Em virtude de sua extrema distância relativamente ao Bem ou Uno, a matéria é o lugar da obscuridade, da multiplicidade, logo fonte ou possibilidade do mal. Quando a matéria encontra-se em estado de natureza pura, isto é, sem estar unida à Alma do mundo, Plotino considera-a como privação – falta de forma, indeterminação, distanciamento do Bem, o não-Ser, ao qual Plotino dá o nome de “nada”. A noção de “nada” como equivalente de não-ser irá influenciar profundamente o pensamento de Santo Agostinho e veremos que essa noção será decisiva na concepção agostiniana do mal.


4.3.2.3.2.  O enfrentamento agostiniano do problema do mal


O enfrentamento do problema do mal por Agostinho iniciou-se a partir da perspectiva ontológico-metafísica. As questões de que se ocuparia Agostinho eram as seguintes: a) qual a substância do mal?; b) onde ela está?; c) qual é a sua origem?; d) como ele entra a fazer parte do mundo?
No que tange à primeira questão, é conhecida a solução dada por Agostinho: o mal carece de substância (essência). Em outras palavras, o mal é destituído de realidade ontológica, isto é, é o não-ser. Essa conclusão se segue, necessariamente, de duas premissas que fundamentam todo o pensamento agostiniano: 1) Deus é o Bem; 2) tudo que provém de Deus tem de ser bom. Logo, sendo Deus o Bem, ele não pode ser autor do mal.
Como se pode ver, não há, para Agostinho, uma oposição entre substância do bem e substância do mal, pois o mal carece de substância; o mal é privação do bem. Se o Bem é a integralidade da natureza do ente, o mal é a degradação da integralidade da natureza do ser. Para Agostinho, uma vez que Deus é o Bem Supremo, todas as coisas criadas carreiam o princípio do bem. Uma oposição entre o bem e o mal fica, portanto, impedida pelo fato de que, sendo Deus o Bem Supremo e Criador, não pode haver mal na criação. Se houvesse uma oposição entre coisas boas e coisas más, o Criador seria destituído do controle sobre as coisas criadas e, se assim fosse, ele estaria sempre sujeito à derrota pelo mal. A possibilidade de uma derrota para o mal tornaria o Sumo Bem corruptível e, portanto, mutável. Mas o Bem Supremo, que é Deus, é incorruptível e imutável. Deus é absolutamente imutável.
À medida que Agostinho vai avançando no tratamento do problema do mal, ele se vê obrigado a considerá-lo na relação com Deus, donde a necessidade de lidar com a seguinte questão desconcertante: como o Deus cristão, incorruptível Criador e Senhor de todas as coisas, não tem participação no mal? Lembremo-nos do pressuposto estruturador de toda a filosofia agostiniana: existe um Deus Criador e Soberano; o homem e tudo o mais que existe são suas criaturas. Agora, vejamos quais são os problemas que se seguem desse pressuposto no enfrentamento do problema do mal:

1) se não foi Deus que criou o mal, então Deus não é mais o Criador de todas as coisas, pois o mal não faz mais parte da criação;

2) se, por outro lado, Deus é, de fato, o Criador de todas as coisas, então o mal é parte da Criação e, consequentemente, Deus é o autor do mal.

Ora, Agostinho nega, justamente, que Deus seja o autor do mal. Uma terceira questão ainda se impõe no curso do enfrentamento do problema do mal:

3) como pode Deus ter criado o mal, se após a criação viu Deus que todas as coisas são boas? (Gênesis 1, 31).

Devemos ter em mente que a incorruptibilidade de Deus é um postulado de fé; por isso, é inegociável. A crença na incorruptibilidade de Deus alicerça todo o pensamento teológico agostiniano. Estar sujeito à corrupção não é um bem, mas é afastar-se do bem. Deus, sendo o Sumo Bem, não pode estar afastado do bem. Deus é a substância suprema do Bem.
Ao ver-se flertando com uma aporia, Agostinho decide operar uma “virada” na abordagem do mal. Agostinho procurará desenvolver a partir de então uma abordagem moral do problema do mal.



                                                                         §

Influenciado por Ambrósio, que sublinhou a adequação da interpretação alegórica dos textos bíblicos para a sustentação da tese da boa natureza da criação, e munido de conceitos colhidos do pensamento de Plotino, Agostinho operou um deslocamento do problema do mal, até então situado no domínio estrito da discussão metafísica, para o domínio da moral. Cabe dizer que Agostinho não abandonou a convicção de que Deus não é o autor do mal e que o mal é apenas uma ausência de bem.
Tendo deslocado o problema do mal para o domínio da moral, Agostinho fez aparecer a centralidade do homem, que passaria a ser responsável pela introdução do mal no mundo. A causa do mal reside, assim, no mau uso do livre-arbítrio da vontade, que é um bem relativo. O livre-arbítrio envolve a crença na indeterminação da vontade e na responsabilidade absoluta. Se o homem pode responder pelo curso da vontade, então ele tem responsabilidade absoluta. O livre-arbítrio deve ser entendido como o único conceito da tradição ocidental que dá conta da culpa. Mas é preciso desfazer uma compreensão bastante limitada e comum da relação do problema do mal com o livre-arbítrio. Os cristãos pouco instruídos na letra da doutrina tendem a pensar a relação do mal com o livre-arbítrio como um problema circunscritamente moral. O texto bíblico, no entanto, não autoriza essa limitação e uma leitura do Catecismo da Igreja Católica (2000)  é suficientemente esclarecedora da repercussão do mau uso do livre-arbítrio na totalidade do Cosmo. Voltarei a esse tema, mais adiante, quando me detiver na exposição sobre o Pecado Original.
Sublinhe-se que, ao atribuir à responsabilidade humana a introdução do mal no mundo, Agostinho preserva a onipotência e a imutabilidade de Deus. O mal continua carecendo de substância. Mas, sendo ele, agora, consequência do mau uso do livre-arbítrio, o mal passa a ser visto como uma perversão da vontade que se desvia de Deus. Em uma palavra, o mal é agora o pecado. Para Agostinho, o mal moral é o pecado. Assim, o mal não se encontra em Deus (Deus não é o autor do mal), mas no homem, sempre que se afasta do Sumo Bem por ato de corrupção da vontade.
A doutrina agostiniana do mal contempla, assim, dois vieses: do ponto de vista ontológico-metafísico, o mal nada é; mas, do ponto de vista moral, o mal é o pecado. O pecado é a vontade que viola a ordem estabelecida na criação. O pecado é um distanciamento do bem pelo uso da vontade livre do homem. A vontade, porque foi concedida por Deus ao homem, é boa. Mas, por força do livre-arbítrio, o homem pode optar pelo mal, tornando-a má.
Se o mal moral pode ser explicado pelo mau uso do livre-arbítrio, como Agostinho explica a existência do mal natural? Aqui Agostinho parece pecar por uma “economia teórica”. As doenças, os terremotos, enchentes são males naturais cuja causa, segundo Agostinho, reside no pecado, vale dizer, no mal moral. Esses males são consequência do pecado original. Como o pecado original tem em sua centralidade o homem, o problema do mal, em Agostinho, é, por conseguinte, um problema genuinamente humano.
Antes de explicar o que Agostinho entende por “livre-arbítrio”, façamos uma pausa para que possamos compreender a doutrina do Pecado Original, da qual a explicação do mal pelo exercício do livre-arbítrio toma a sua coerência. O Pecado Original, também conhecido como A Queda, impossibilita que o livre-arbítrio forneça o horizonte de sentido no interior do qual a natureza humana é reintegrada. O Pecado Original caracteriza a tendência congênita da corrupção dos atos humanos.


4.3.3. O Pecado Original

O pecado original é um problema ontológico, cuja origem está num ato de desobediência a Deus cometido pelo primeiro homem. O pecado original significa a deterioração da ordem do todo. Essa deterioração ou perversão da totalidade se deu pelo uso do livre-arbítrio.
O texto do Catecismo (2000) reza que “a partir do primeiro pecado, uma verdadeira “invasão” do pecado inunda o mundo” (§ 401, p. 113). Nesse mesmo texto, aprendemos que, em decorrência do pecado original, se deu “uma corrupção universal”. Conforme vemos, é a harmonia de toda criação que se torna corrompida, que é rompida, e “a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil” (ib.id.). A acosmia, a cujo significado me referi no início deste trabalho e que encontramos no espanto pascaliano, é, portanto, explicada pelo pecado original. O pecado original torna o cosmo um lugar inóspito ao homem e o homem não encontra nesse lugar um horizonte de realização de si, donde a experiência de abandono na imensidão de espaços escuros e indiferentes.
O texto do Catecismo elenca as graves consequências que o primeiro pecado acarretou ao homem: 1) “o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido”; 2) “a união entre o homem e a mulher é submetida a tensões”; 3) “suas relações serão marcadas pela cupidez (cobiça) e pela dominação” (ib.id.). Por fim, por causa do pecado cometido pelo homem, “a morte entra na história da humanidade” (ib.id.).
Todos nós, seres humanos, sofremos a pena pelo pecado cometido por Adão. O texto do Catecismo é explícito: “todos os homens estão implicados no pecado de Adão” (§ 402, p. 114). O que parece uma atribuição injusta de crime é justificado pela sentença: “o gênero humano inteiro é em Adão como um só corpo de um só homem” (§ 4004, p. 115). O pecado original é transmitido congenitamente, isto é, a todos os descendentes de Adão. É que a justiça e a santidade originais foram concedidas a toda a natureza humana. Ao pecarem, Adão e Eva transmitem seu pecado à natureza humana, a qual, doravante, se torna decaída. O pecado original é, assim, “um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais” (§ 404, p. 115). O pecado original é um pecado contraído; é um estado e não um ato.
O pecado original não tem caráter de falta pessoal em nenhum descendente de Adão. O Pecado original é uma condição ontológica. Esse pecado submete cada ser humano a um estado de privação de santidade e justiça originais. A natureza humana tornou-se, com ele, subjugada pela ignorância, pelo sofrimento e pela necessidade da morte. É a natureza humana que, a partir do pecado original, torna-se irremediavelmente inclinada ao pecado, isto é, ao mal moral.

4.3.4. O livre-arbítrio como faculdade de escolha


Para Agostinho, o livre-arbítrio não é o mesmo que liberdade. Para ele, livre-arbítrio é a faculdade de escolha com a qual nascem todos os homens. Por sua vez, a liberdade é, segundo Agostinho, amor ao bem. O homem é tanto mais livre quanto mais próximo ao bem está. Ou, dizendo doutro modo, quanto mais próximo do bem está o homem mais livre é a sua vontade. Embora não caiba aqui adentrar na discussão sobre o papel da Graça na condução do livre-arbítrio para o bem, não me escusarei de dizer que, sem o auxílio da graça, que provém de Deus, a vontade humana não pode escolher o bem.
A liberdade, para Agostinho, é sempre orientada para Deus; é, por isso, uma liberdade vertical. O livre-arbítrio, por sua vez, é um componente da vontade que, uma vez corrompida, impulsiona o homem a escolher o que é mau. O livre-arbítrio é a faculdade de escolha entre o bem e o mal. Quando o livre-arbítrio destina-se a Deus, o homem experimenta a glória; mas sucede, com frequência, que o homem orienta seu livre-arbítrio para a busca de bens inferiores. Ao escolher o mal, o homem escolhe bens criados e finitos que o afasta de Deus. É a escolha de bens inferiores no lugar de bens superiores que caracteriza a escolha do mal. Assim, o mal supõe que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo precisamente o pecado na escolha incorreta entre os bens. E por que o livre-arbítrio tende a escolher os bens mutáveis e inferiores? Porque, segundo Agostinho, o livre-arbítrio, embora seja um bem, é um bem deficiente. O homem, pelo Pecado Original, tornou-se incapaz de conduzir o livre-arbítrio para a escolha dos bens superiores, sem o auxílio de Deus.  A vontade peca sempre que se afasta do Bem imutável para orientar-se para o seu bem particular, quer interior, quer exterior. Em O livre-arbítrio (1995), Agostinho não dá margem à dúvida ao nos ensinar sobre essa propensão da vontade:


“Ela volta-se para seu bem particular, quando quer ser senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a apropriar-se de coisas alheias, ou de tudo o que lhe diz respeito; e volta-se para um bem inferior, quando ama os prazeres do corpo”. (p. 141)



Como eminente conhecedor da alma humana, Agostinho reconhece que o homem não escolhe o mal pelo mal, até porque o mal é destituído de realidade ontológica. As escolhas más são as de bens inferiores que nos afastam do Bem Supremo, que é Deus. O homem nunca quererá o mal para si; por isso, nota Agostinho, “acontece que aqueles bens desejados pelos pecadores não são maus de modo algum” (ib.id.). Tampouco a vontade livre do homem é má. Para Agostinho, “o mal consiste na aversão da vontade ao Bem imutável para se converter aos bens transitórios” (p. 142). Como a aversão ao Bem Supremo e a escolha dos bens mutáveis não são resultado de coação, observa Agostinho “o infortúnio que se segue será um castigo justo e merecido”. (p. 142).
Cumpre, por fim, notar que por vontade devemos entender uma disposição para agir. A vontade consiste numa atividade pessoal e consciente que resulta de um desejo e que se realiza na intenção de se obter um fim determinado. A vontade é um querer livre, um querer que se autodetermina, mas ela mesma é indeterminada, isto é, nada, a priori, determina o seu curso. É essa compreensão da vontade que subjaz à noção de livre-arbítrio da vontade. Como o livre-arbítrio é um bem relativo, ele pode ou não proporcionar um bem.
Cuido suficientes esses esclarecimentos sobre a concepção agostiniana do livre-arbítrio, tendo em vista os propósitos que subjazem ao curso de minha exposição doravante. As próximas seções serão destinadas à revisão crítica das teodiceias. Começarei pela crítica à teodiceia do livre-arbítrio, que pretende justificar a existência do mal moral no mundo. Posteriormente, examinarei o problema do mal natural e articularei algumas objeções a dois tipos de teodiceias, as quais não são necessariamente estanques, mas podem-se apresentar enredadas: a teodiceia pedagógica e a teodiceia do mal como meio necessário para o bem. Finalmente, na última parte deste estudo, aponto as teodiceias que se podem entrever nos textos bíblicos, sem pretender discuti-las, já que uma discussão competente pode ser encontrada em O Problema com Deus (2008), de Bart D. Ehrmann.


4.4. O mal moral e o argumento do livre-arbítrio

Já foi dito que o mal moral é a espécie de males causados pelo homem e que a teodiceia que busca justificar a bondade de Deus e inocentá-lo a despeito desses males apela para o uso do livre-arbítrio. A teodiceia do livre-arbítrio deve sua expressão teológica a Santo Agostinho. Quando examinamos a concepção agostiniana de livre-arbítrio, aprendemos que ele é um bem. O argumento do livre-arbítrio, portanto, afirma que o livre-arbítrio é bom. É preciso explicitar o pressuposto que confere ao argumento seu poder de persuasão. O argumento do livre-arbítrio pressupõe que é melhor ser uma criatura capaz de tomar decisões livres do que ser um autômato programado para agir de determinado modo, mesmo que esse modo seja bom. Assim, como Deus seja onisciente ele sabia disso, quando concedeu o livre-arbítrio aos seres humanos, mas também sabia que poderia ser usado para fazer o mal e causar sofrimento no mundo. Não obstante, assegura o argumento, a bondade intrínseca do livre-arbítrio – pois Deus, como vimos em Santo Agostinho, não é autor do mal – tem mais importância que o mal que ele pode ocasionar. Seria um mal muito maior, se Deus o tivesse negado aos homens.
Assim, por exemplo, sempre que acontece um assassinato ou sempre que um homem-bomba detona a bomba atada ao seu corpo matando inocentes à sua volta, há alguém que saca do argumento do livre-arbítrio para justificar o mal, se for confrontada com o silêncio divino. Ao longo da história ocidental, os homens, com frequência, mataram em nome de Deus ou em nome da fé em Deus. No mundo cristão, são exemplos disso As Cruzadas e a Inquisição. No mundo árabe, bastar citar os atentados terroristas que nos assombram nos dias atuais. De modo algum, pretendo sugerir que a fé tenha sido e seja o único fator envolvido nesses eventos, tampouco suponho possível estabelecer uma equivalência sócio-histórica entre eles. Mas, embora ciente de que esses acontecimentos têm cada qual suas especificidades culturais, políticas, militares, ideológicas e teológicas, todos eles se inspiram na crença de que os atos cometidos são justos aos olhos de Deus. O terrorismo islâmico, embora beba na fonte de um inextirpável ressentimento que remonta a décadas ou mesmo a séculos e embora tenha motivações políticas e econômicas, também se inspira na crença de que seus atos são consonantes com a Vontade de Deus, independentemente do fato de a comunidade mulçumana repudiá-la e aos atos insistindo que os extremistas não representam o que realmente prega o Islã. O que pretendo fazer ver é que o argumento do livre-arbítrio falha sempre que atos moralmente condenáveis cometidos por seres humanos envolvem, de algum modo, a referência ao nome de Deus como uma das motivações. Se Deus não pode ser responsabilizado por atos criminosos cometidos em seu nome, como suporiam os defensores do argumento do livre-arbitrio, é difícil não responsabilizá-lo por omissão, pela indiferença. Mesmo que Deus não se sentisse motivado a intervir para evitar que inocentes morram (que é o que esperaríamos de um Deus bom e todo-poderoso), ele deveria, ao menos, intervir pelo bem de sua reputação, tal como faria qualquer pessoa que prezasse pela moral e que soubesse (e Deus, porque onisciente, sabe) que seu nome está sendo usado para justificar atos hediondos e condenáveis. Mas Deus não o faz, o que deveria levar os que nele creem a repensar seriamente o que pensam a seu respeito. O silêncio de Deus deveria sinalizar para os crentes sua completa indiferença para com o sacrifício de inocentes, mas também sua indiferença perante sua imagem pública. Há algo moralmente inaceitável na crença de que Deus esteja justificado em assistir sentado seus filhos matando seus irmãos inocentes, muitos dos quais crianças, pelo simples fato de que ele os presenteou com o poder de livre escolha. Ademais, a doutrina do livre-arbítrio, conforme vimos, envolve a crença de que os homens são incapazes de orientar seu livre-arbítrio para a busca de bens superiores sem a condução de Deus. Se Deus sabe que sua condução é necessária para que os homens façam bom uso do livre-arbírtrio, por que não os orienta tal como um pai responsável mantém o equilíbrio de seu filho na condução de uma bicicleta? Pode-se negar que a firmação de que a interferência de Deus no livre-arbítrio humano é um mal maior que a não interferência. Basta pensarmos no comportamento de seres humanos e novamente atentar para o comportamento que se espera de um pai. É absurdo afirmar que um pai não deve impedir que seu filho brinque com fogos de artifício, porque, se o fizesse, seria um mal maior do que ver seu filho com os dedos da mão decepados. Ora, se é moralmente apropriado intervir para proteger o próprio filho, por que não é até mais apropriado nosso Deus Pai intervir para evitar nossa propensão para a destruição mútua. Quando levamos em conta os acontecimentos terríveis de que são protagonistas hoje os terroristas e de que foram, no passado, Hitler, Stalin e Pol Pot, a necessidade de uma intervenção de Deus passa a ter uma urgência significativa.
Até aqui minha argumentação se desenvolveu no terreno comum em que viceja a crença na existência de Deus. Em nenhum momento, suscitei que só podemos explicar razoavelmente a indiferença de Deus pela afirmação de sua inexistência. De fato, essa é a minha posição pessoal: Deus não pode intervir para evitar que os homens continuem a matar inocentes em seus conflitos aterradoramente absurdos simplesmente porque Deus não existe. Ao postular a inexistência de Deus, evitamos todos os impasses e o tempo desperdiçado em discussões sobre a justiça divina (teodiceia), alterando o estatuto do mal e do sofrimento, que deixariam de ser um problema teológico ou metafísico, para ser um problema que merece um tratamento efetivamente orientado pela necessidade de adotar medidas que possam, senão extirpá-lo (pois, como venho mostrando, o mal e o sofrimento são inerentes aos processos que tornam possível a dinâmica da vida), evitá-lo quando possível ou atenuar seus efeitos deletérios.
Retomando-se o problema com o argumento do livre-arbítrio, creio que, desde sua elaboração até seu uso corrente, ele se apresentou como suficientemente explicativo, contribuindo para alimentar a crença de que não há outros fatores implicados na decisão de cometer um ato mau, ou se há, esses fatores são muito pouco influentes. No entanto, ignorar que haja fatores sociais, econômicos, psicológicos – e atualmente, como mostram as neurociências e a biologia evolutiva – genéticos a influenciar de modo significativo o curso de nossas ações é compreender de modo deficiente – para dizer o mínimo - a complexidade da natureza humana.
Devemos ter em conta, para que não haja nenhum estorvo a dificultar a compreensão da sequência de minha exposição, a necessidade de distinguir entre livre-arbítrio e liberdade. A palavra “arbítrio” recorta um campo semântico do qual fazem parte as noções de ‘resolução’, ‘decisão’, ‘escolha’, ‘determinação’. Assim, o árbitro é aquele que detém o poder (não absoluto) de decidir sobre uma questão, de determinar o que deve ser feito. Quando se anexa o adjetivo “livre” ao substantivo “arbítrio” no composto “livre-arbítrio”, quer-se, com esse procedimento, comunicar a ideia de que o arbítrio não está limitado a nada, razão por que Santo Agostinho dirá que a vontade é indeterminada. Não há nada que a obrigue a fazer isso ou aquilo. O livre-arbítrio confere ao homem total poder para decidir sobre o curso de seus atos. O livre-arbítrio, portanto, parece existir em completa independência de um ambiente estruturado com balizadores que restringem ou refreiam nosso poder de agir. A postulação da liberdade humana, no entanto, não supõe a existência de um ambiente em que o homem viveria segundo os caprichos do seu bel-prazer. Ao contrário, a liberdade é um postulado necessário para explicar ontologicamente um tipo específico de ente que foi capaz de construir um mundo que lhe é próprio, um mundo cuja existência sinaliza o desarrancamento desse ente dos imperativos da ordem natural original. A liberdade não está em contradição com um ambiente constituído de normas, regras de conduta, expectativas sociais, leis, etc. Ao contrário, as normas, as regras, as leis são dispositivos que, organizando o ambiente institucional, que é produto das atividades humanas, devem visar a garantir o exercício da liberdade dos homens. Escapa à alçada deste trabalho um tratamento filosófico do tema da liberdade, que recebeu interpretações variadas segundo os filósofos e as doutrinas que esposaram, a ponto de alguns negarem que os homens sejam verdadeiramente livres em qualquer sentido (vejam-se, por exemplo, Schopenhauer e, contemporaneamente, Guy Debord).
A fim de que a defesa do livre-arbítrio seja bem-sucedida é necessário, em primeiro lugar, demonstrar que o livre-arbítrio é realmente bem muito valioso, de modo que sua inexistência significaria um grande prejuízo. Em segundo lugar, é necessário demonstrar que possuir livre-arbítrio está necessariamente ligado ao mal no mundo, de tal sorte que não poderiam existir seres humanos com livre-arbítrio sem mal.
Estou ainda me movimentando pelo domínio epistemológico comum no qual se mantém a crença na existência do livre-arbítrio. Vale dizer que para muitos pensadores, entre os quais se acham filósofos como Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche, John Searle e neurocientistas como Benjamin Libet e Stefan Bode, entre outros, a crença no livre-arbítrio é uma ilusão . De qualquer modo, para fins de argumentação, continuarei mantendo que os seres humanos são dotados de livre-arbítrio e que ele desempenhe a função alegada pela tradição teológica.
A crítica à teodiceia do livre-arbítrio deve começar por insistir em que não é óbvio que haja uma impossibilidade lógica ou outra na existência de seres humanos dotados de livre-arbítrio que têm a incapacidade de deliberadamente pecar, ou pelo menos a incapacidade de cometer os crimes abomináveis que desfilam pela história. Mas é verdade que Platinga argumenta em favor de que Deus não tinha o poder de criar um mundo onde haveria pessoas livres sem a possibilidade de mal moral..
Cunhando o conceito de “depravação transmundial”, Platinga busca demonstrar que, em qualquer mundo possível em que uma pessoa é livre, essa pessoa, em alguma ocasião, agiria de modo moralmente errado. Platinga entende por “escolha livre” as ações que não são determinadas por forças externas ao indivíduo. Os indivíduos verdadeiramente livres também não estão determinados a agir de certo modo em virtude da pressão de forças internas, como pulsões, obsessão psicológica, etc.
Contrariamente ao que pensa Platinga, é possível dizer que podemos imaginar um mundo possível no qual as pessoas têm a capacidade de agir incorretamente, mas nunca o fazem. Novamente, quando se trata de inquirir sobre o que Deus poderia ter feito, sobre as implicações de sua onipotência, a imaginação é uma aliada dos raciocínios. Bastaria, então, imaginar que Deus poderia criar seres humanos que, embora tivessem a capacidade para agir incorretamente em algumas ocasiões, mas nunca o fizessem em circunstância alguma. A liberdade para escolher seria preservada, mas não haveria mal moral, porque as ações pecaminosas não seriam escolhidas.
Há, portanto, que ter em mente a distinção entre a capacidade de escolher livremente e a capacidade de cometer o ato. Todos experienciamos a escolha de objetivos que nunca se realizam, mas da não realização dos objetivos não se segue que nossa escolha não foi livre. Parece, pois, razoável defender que se pode escolher livremente sem que sejamos capazes de efetivar o ato que é resultado da escolha. A questão que se coloca é, então, se por livre-arbítrio devemos entender “o poder fazer de outro modo” ou “o poder escolher de outro modo”. Se estivermos de acordo com a ideia de que a escolha livre não precisa recobrir “o poder fazer de outro modo” e que ela se define apenas como “poder escolher de outro modo”, sendo essa a condição a ser respeitada para que seja uma escolha livre, então devemos perguntar por que Deus não tornou irrealizáveis as ações resultantes de escolhas que produziriam males atrozes.
Uma vez que a imaginação, nesta seara, não parece encontrar limites rigorosos, por que não podemos nos permitir imaginar um mundo idêntico ao mundo em que vivemos, exceto pelo fato de que as pessoas seriam dotadas de um poder especial que lhes permitiria impedir o dano resultante de um ato mau? Nesse mundo possível, o mal seria evitado só se a pessoa em questão, por exemplo, na condição de testemunha de uma iminente decapitação, escolhesse livremente usar esse poder. Os atos maus continuariam a ser cometidos às escondidas, mas as carnificinas terrificantes poderiam ser evitadas. Em tal mundo possível, não se exigiria a intervenção direta de Deus, nem o homem seria privado do livre-arbítrio.
O argumento do livre-arbítrio não dá conta de males que não decorrem da imoralidade humana, embora envolvam seres humanos quer como agentes cujas ações não tinham por finalidade provocar o mal, quer como pacientes de circunstâncias infelizes. Há males que, embora envolvam seres humanos, são efeitos de erro humano. Assim, alguém pode calcular mal a rapidez com que faz uma curva, bater com o carro em outro veículo matando todos os ocupantes dentro dele. Há também acontecimentos que causam a morte de pessoas inocentes que não seriam o tipo de coisa que esperaríamos se houvesse um Deus providente. Em 2012, uma jovem é atingida mortalmente, quando estava na calçada, por uma roda de caminhão que se soltou. Ainda que se tenha descoberto que a vistoria do veículo estava atrasada, não houve, nesse caso, uma intenção deliberada do motorista do veículo de causar a morte da vítima. Trata-se de um acidente, um acaso infeliz dentre os muitos acasos infelizes de que tomamos conhecimento ao longo da vida (v. http://globoplay.globo.com/v/2116701/). Outro caso de morte acidental que não se esperaria se realmente existisse um Deus providente, zeloso, administrando o mundo, é o de um sargento cujo casamento durou menos de seis horas. O rapaz, que trazia no bolso uma tulipa, corria brincando com uma das madrinhas quando tropeçou e caiu. Na queda, a tulipa quebrou e lhe abriu um corte na veia femural (v. http://oglobo.globo.com/rio/noivo-morre-ao-cair-com-copo-no-bolso-em-casamento-na-ilha-6772943).



4.4.1. O livre-arbítrio: uma ilusão cultural

Depois de apresentadas algumas objeções à crença teológica no livre-arbítrio da vontade, passarei agora a encaminhar uma refutação do argumento do livre-arbítrio servindo-me, para tanto, de pressupostos do materialismo filosófico. Procurarei questionar justamente o que a crença no livre-arbítrio pressupõe: a existência de uma vontade livre. O desenvolvimento dessa crítica, em todos os seus pormenores, o leitor poderá encontrar em Viver (2008), de Sponville.
Principio pretendendo que o leitor aceite a conclusão do seguinte raciocínio. Se concordarmos com a crença de que o homem não escolhe o mal pelo mal, mas que busca sempre um bem para si (como vimos em Agostinho), ainda que por meios reprováveis (uma pessoa decide assassinar outra para ficar com a riqueza da vítima), então devemos nos perguntar se um ato mau que executa pressupõe sempre uma escolha livre por não fazê-lo. O segundo ponto a considerar é que o “eu” que escolhe é uma história, e, por trás dele, à sua revelia, atuam “forças” (pulsões), das quais ele não está consciente e as quais influenciam as suas decisões. As nossas escolhas não se fazem apenas segundo cálculos racionais; nossas emoções, paixões, crenças, temperamento terão também uma influência.
Mas é necessário avançar com o argumento. Para tanto, servindo-me, como disse, de pressupostos materialistas, assumirei que a alma ou mente não existe sem o cérebro; mas vou além disso: alma e corpo são uma coisa só. Dessa proposição devemos extrair uma conclusão importante: a alma ou o “eu” não é uma substância. Por não ser uma substância, o “eu” é determinado como efeito. A crença no livre-arbítrio está calcada sobre a crença na substancialidade do “eu”, ou seja, o livre-arbítrio envolve a existência de um “eu” como senhor de sua casa (o corpo). Destarte, crer no livre-arbítrio é crer que um mesmo indivíduo, num mesmo momento, possa querer duas ações contraditórias (cometer um assalto ou não cometer um assalto), entre as quais ele poderia escolher livremente. Assim, haveria um “eu” que existe independentemente de suas escolhas, um “eu” que as precede como sujeito ou causa delas. A crença no livre-arbítrio supõe também que o “eu” permanece idêntico a si mesmo depois de ter escolhido. O livre-arbítrio decorre, portanto, de uma visão substancialista do “eu”, que culmina com a noção de alma. Mas, se, por outro lado, o “eu” não existe em si mesmo, se a alma não existe como substância, então o “eu” deve reduzir-se à sucessão de seus atos, seus desejos ou volições.
Os homens creem-se livres porque ignoram as causas que o fazem querer. Eles chamam livre esse querer – a vontade -, que é um efeito, cujas causas ignoram. Os homens, na verdade, ignoram quase tudo: em primeiro lugar, ignoram quem eles são; ignoram sua história, ignoram o que está a lhe acontecer no interior de seu corpo/cérebro. Cada homem ignora o peso de seu passado. Conforme assinala Sponville (2008, p. 88), “o eu é sempre finito e atual, mas infinita a cadeia de causas”.
É preciso, no entanto, afastar a conclusão de que o passado determine completamente quem somos. Trata-se de assumir que a vontade age segundo uma ordem de causas que constitui o presente, que é o próprio real. Por conseguinte, uma vontade absolutamente livre não existe. Há tão-só uma vontade necessária, porque real, que é o efeito finito e determinado, a cada vez, de uma cadeia infinita de causas. Chamamos vontade o resultado último, num dado momento, dessas causas todas que ignoramos. Mas, por ser resultado, essa vontade não pode ser livre, ou seja, diferente do que é. Há uma identidade entre quem eu sou e os meus atos, meus desejos, de modo que “o eu só é sujeito de seus atos na medida em que é sujeitado a suas causas” (Sponville, 2008, p. 89). O eu é tão instável, flutuante quanto instáveis, flutuantes são esses atos, esses desejos, sendo tão determinado quanto estes. O eu não é nada mais do que o conjunto de seus atos. O eu é sua vida, que não poderia se escolher nem os escolher.
A crença no livre-arbítrio supõe a anterioridade do sujeito em relação a seus atos e sua independência, ao menos relativa, em face deles. Mas, se a realidade do homem se reduz ao que ele faz, ele é uma causa entre as causas (muitas vezes, determinante, porque vontade), mas sempre determinada, porque causa entre causas, efeito entre efeitos. O eu é o que ele faz, e o que ele faz o constitui, por isso também o eu não é uma substância, mas sua história. Ocorre que o fazer que o faz o eu não poderia escolher, uma vez que ele é resultado desse fazer. Nem pode o eu evitar esse fazer, pois que esse fazer é a sua vida mesma. Assim, segundo Sponville (p. 90), “o eu nos domina por sua ausência mesma e nos encerra em seu nada”.
Se, por um lado, nos parece que “eu faço o que eu quero” é verdadeiro; por outro lado, é igualmente verdadeiro que o que eu quero resulta do que eu sou; mas o que eu sou resultado que eu fui (história) ou fiz (minhas ações passadas). Segue-se daí que o “eu é sempre prisioneiro de si (ib.id.). O “eu” é seu corpo, sua história, suas fantasias, seus traumas, do que se depreende que “ninguém se escolhe, cada um se suporta” (ib.id.). Sponville sumaria o caráter ilusório da crença no livre-arbítrio no que se segue:


“A crença no livre-arbítrio repousa pois nessa sensação de uma defasagem, no âmago da ação, entre sua realidade e sua potencialidade, entre o que eu faço e o que poderia fazer. Mas essa defasagem, se pode ser vivida ou sentida durante a ação, não existe nela (uma ação é o que é, não o que teria podido ser), mas diante dela: é a defasagem entre a ação efetiva, quando esta ocorre, e a imaginação dessa ação antes dela ter ocorrido, quer esse “antes” designe uma anterioridade real (se imaginamos o que vamos fazer), quer uma anterioridade reconstruída (se repensamos a posteriori no que teríamos podido fazer” (Sponville, 2008, p. 92-93).



A esta altura, gostaria de pontuar que a crença no livre-arbítrio tem seu origem num domínio discursivo específico: o teológico. Essa crença nasce para dar conta de questões que preocupavam, particularmente, Santo Agostinho, as quais são subsumidas no problema do mal. Santo Agostinho não tinha à sua disposição os conhecimentos, as pesquisas de que dispomos hoje. Embora grande conhecedor da psique humana, não chegou a conceber a possibilidade de haver algo nos homens que age à revelia deles, algo a partir do qual eles agem sem saber que o fazem.[11] Em outras palavras, Agostinho não chegou a elaborar a hipótese de um inconsciente que determinasse a vida consciente do homem. A hipótese do inconsciente, embora prefigurada em Nietzsche, foi a principal contribuição de Freud à psicologia. O inconsciente é a hipótese estruturadora de toda a teoria psicanalítica. E sua elaboração permitiu a Freud afirmar que “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. Todas as nossas ações, escolhas, tendências, desejos têm, em última instância, causas inconscientes. Nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências e desejos escapam ao domínio do inconsciente.
O livre-arbítrio – cabe acrescentar – se representa relativamente a um futuro condicional (“eu poderia ter feito x”). O indivíduo, na imaginação, põe a si um futuro já disponível, mas aberto. Na representação, ele crê ter a opção entre vários futuros e crê que foi ele mesmo quem, enquanto causa suficiente, fez um destes futuros se atualizar. Todavia, isso suporia que esses futuros, antes mesmo de virem à efetividade do presente, já estivessem, paradoxalmente, presentes (no tempo) como futuros.
Uma ação só pode ser considerada livre antes de ela ocorrer. O livre-arbítrio não diz respeito à ação enquanto ocorre, mas sim à anterioridade (ao momento da escolha) da ação, ou seja, ao espaço de tempo em que ela ainda não se deu. Portanto, só se crê no livre-arbítrio antes da ação. Liberdade não é o mesmo que livre-arbítrio: a liberdade é liberdade para fazer o que se faz; o livre-arbítrio, por sua vez, é uma faculdade ou liberdade de querer.


4.4.2. A vontade não é livre de querer ou não querer

A vontade só pode ser livre no respeitante às ações ainda não consumadas. Vontade é o próprio querer, mas o querer é o ato da vontade. Cabe sublinhar essa identidade da vontade com o ato: a vontade e o ato são a mesma coisa.
Uma vez que se assuma essa identidade entre a vontade e o ato, pode-se compreender melhor o que está em jogo no conceito de livre-arbítrio. O livre-arbítrio está calcado sobre a suposição de que para todo ato que se produza num instante t2  é sempre possível imaginar que o indivíduo teria podido, em t1, decidir não o consumar. Acontece que aqui a imaginação intervém a posteriori, ou seja, é somente depois que o ato se realiza num instante t2  que acreditamos ter sido possível ao sujeito não consumá-lo. Cremos que o sujeito que age, em t2, era livre em t1 de consumar ou não o ato, visto que t2 ainda não existia. Destarte, tomamos a vontade como causa livre de um ato que se deu por força dessa causa. Ocorre, contudo, que, se esse for o caso, ignoramos que a vontade é um efeito de uma cadeia de causas, necessariamente, precedentes. Não explicamos o que causa a vontade.
O filósofo Daniel Dennett deu uma contribuição importante para a discussão sobre a possibilidade ou impossibilidade do livre-arbítrio, que vale aqui mencionar. Ele argumentou que, se pensarmos bem, jamais desejaríamos que uma alma tivesse a liberdade para fazer tudo que quiser. Se o comportamento fosse escolhido por uma vontade absolutamente livre, então as pessoas não poderiam ser, de fato, consideradas responsáveis por suas ações. Pode parecer estranha essa forma de argumentar, tão acostumados que estamos a pensar que a responsabilidade só pode ser imputada a alguém que é livre para agir. Mas o que Dennett quer dizer é que, na vida real, nossas decisões sobre quais ações devemos tomar se dão em consideração à ameaça de punição, de tal sorte que a responsabilidade deve ser imputada ao sujeito porque ele sabe que, ao agir, deve fazê-lo respeitando as normas vigentes. Segundo Dennett, um indivíduo que tivesse vontade livre não se envergonharia com a perspectiva de opróbrio, tampouco recearia sentir uma pontada de culpa que, talvez, inibisse a tentação de cometer um ato perverso no futuro. Uma vontade totalmente livre é simplesmente incompatível com a esperança de que os códigos morais e legais reduzam atos malignos, já que a vontade livre envolve sempre a possibilidade de um agente livre poder agir num domínio diferente do das relações de causa e efeito. A moralidade e a lei deixariam de ter utilidade. Até poderíamos punir o transgressor, mas a punição se daria a título de vingança, porque ela não teria nenhum efeito previsível sobre o comportamento futuro do transgressor ou de pessoas cientes da punição. Parece que Dennett quer nos chamar a atenção para o fato de que a vontade é passível de certo controle, ou orientação. Não podemos fazer tudo que queremos porque o mundo em que vivemos é de tal modo organizado que a vontade só pode querer aquilo que está autorizada a querer. A vontade não é totalmente livre, porque o sujeito, ao decidir sobre uma ação é sempre afetado pela perspectiva de apreço ou vergonha, recompensa ou punição. É o superego que fará seu trabalho aqui: não sou livre para querer porque há uma voz do Outro em mim que me proíbe de querer qualquer coisa. A vontade é, assim, sempre compelida (ao menos probabilisticamente) a respeitar as possíveis consequências das ações.
Vejamos, agora, outro problema que torna falsa a crença no livre-arbítrio. Refiro-me à existência dos psicopatas. O senso-comum e a psicanálise nos permitem dizer que a psicopatia ou transtorno de personalidade antissocial caracteriza um tipo humano. A crença de que os psicopatas possam ser “tipos humanos” está implícita em nossas reações habituais sempre que, tomados por perplexidade, nos perguntamos como uma pessoa pôde fazer o que fez. Em geral, tendemos a ver os psicopatas como tipos humanos perversos, cruéis, diferentes da maioria das pessoas. Cremos haver alguma coisa neles que os leva a fazer o que fazem. E a psicanálise e as neurociências autorizam-nos a dizer que isso é verdade. Um assassino pode não ser um lunático, mas é possível, hoje, detectar alterações na estrutura morfológica de seu cérebro que não se verificam na média da população. Entre essas alterações, pode-se referir uma amígdala diminuída, um hipermetabolismo em seus lobos frontais ou um gene deficiente para a monoamina oxidase A, que atua em seu descontrole (Pinker, 2004, p. 244). Se submetido a um teste psicológico, é possível que um psicopata demonstre uma antevisão cronicamente limitada, o que o faz ignorante das consequências, ou uma teoria da mente que o torna incapaz de avaliar o sofrimento dos outros.


“Afinal, se não existe fantasma na máquina, alguma coisa no hardware do criminoso tem de torná-lo diferente da maioria das pessoas, as que não feririam ou matariam nas mesmas circunstâncias” (ib.id.).


O transtorno de personalidade antissocial ou psicopatia é um distúrbio de comportamento no qual intervém duas espécies de causas: uma de ordem neurológica e outra socioafetiva. Segundo o psiquiatra Antony Storr, autor do livro A agressividade humana (2012), “um quarto e metade dos psicopatas agressivos demonstra anomalias no ritmo elétrico do cérebro, que podem ser detectadas e gravadas por meio de eletroencefalograma” (p. 168). Uma menor quantidade de psicopatas exibem anomalia genética. O autor, que escreveu o livro em 1968, afirma que “se fazem necessárias muitas pesquisas adicionais até que se estabeleçam os tipos físicos e psicológicos das personalidades psicopatas” (p. 169). Hoje já dispomos de uma vasta bibliografia dedicada ao estudo da psicopatia. Independentemente dos tipos de fatores envolvidos, os quais podem ser reunidos em dois grupos – relações parentais, marcadas por carência de afetividade e anomalias neurológicas -, é ponto pacífico que os psicopatas são incapazes de empatia, de amor, compaixão, culpa, arrependimento ou remorso. Eles têm uma personalidade perversa, que pode acompanhar-se ou não de um sadismo sexual, e matam por puro prazer, porque – fato importante para esta discussão – não conseguem comandar e protelar seus impulsos destrutivos. (Veloso, 2010)[12]. Storr confirma essa incapacidade que tem o psicopata de controlar seus impulsos destrutivos. Segundo o autor, “não há dúvidas (...) de que há uma parcela da população cujo controle imediato está abaixo da média e que algumas dessas pessoas sofrem de imperfeições provindas da natureza ou da criação”. (p. 169, grifo meu). Como se pode ver, a existência de psicopatas não só lança sérias dificuldades sobre a tese do livre-arbítrio, como também se soma ao conjunto de saberes sobre o mundo que tornam absurda a crença na existência de um Deus bom e onipotente. E permita-me o leitor a elaboração de um raciocínio que não exigirá muito esforço em termos de processamento cognitivo. Em primeiro lugar, é inegável que existem os assassinos, que muitos deles sofrem de psicopatia e que, por isso, cometem atos com tamanha crueldade e indiferença ao sofrimento do outro, e que só podemos explicar seu comportamento se pudermos mostrar que há algo neles que os pré-dispõem a fazer o que fazem. O psicopata, portanto, não escolhe matar, simplesmente porque ele sofre de um déficit em termos de controle de seus impulsos destrutivos. Uma das características mais assustadoras do comportamento de um psicopata reside no fato de que ele não sente ou sente muito pouco remorso por sua conduta. Nas mesmas circunstâncias, a maioria dos seres humanos experimentaria um extremo sentimento de culpa.
Se, portanto, é possível explicar a anormalidade do comportamento de um psicopata pela conjugação de causas neurológicas e socioafetivas, se, em parte, o psicopata sofre de defeitos oriundos da natureza, é forçoso concluir que a crença num Deus bom e Criador, que aliás é também onisciente, para ser minimamente razoável, depende de que consigamos explicar por que Deus fez existirem pessoas pré-dispostas à psicopatia. Já vimos nos autores cristãos visitados neste estudo que Deus é o Criador de todas as coisas e que tudo que ele criou é bom. Se isso é verdade, devemos concluir que a psicopatia é boa e que os psicopatas são bons, o que é absurdo. Ora, a razão obriga-nos a admitir que, se há psicopatas, Deus os fez assim e sabendo de antemão das atrocidades que viriam a cometer. Se podemos demonstrar que a psicopatia tem, em parte, uma base neurológica, orgânica ou genética, então devemos responsabilizar a Deus por sua nefasta engenharia. É possível que, no futuro, eu venha a reunir mais evidências que corroborem esta conclusão; mas ela já vale, desde já: não podemos escapar da conclusão de que, se Deus existe, ele é responsável ou culpado da existência de pessoas que desenvolvem a psicopatia e que matam inocentes. O crente tem de lidar com a questão “por que, afinal, Deus permitiu que existissem no mundo pessoas com comportamento psicopata?”, se quiser preservar a razoabilidade da crença em Deus.
Deve-se concluir, por tudo que se expôs, que a crença no livre-arbítrio não passa de uma ilusão cultural, que pretendendo garantir a justiça de Deus, pretendendo justificar a própria esperança na existência de Deus, protege as pessoas contra o absurdo e contra o tormento causado pela visão da crueldade do real. Mas a crueldade do real se nos impõe de modo que não nos dá o direito à escapatória. A crueldade do real nos mostra que há seres humanos cuja perversidade pode extrapolar os limites do que a própria natureza parece admitir como tolerável. O homem, com ódio, tira prazer do ato de prolongar a agonia de suas vítimas indefesas e demonstra engenhosidade na criação de métodos de tortura que causem o mais excruciante sofrimento com uma duração que excede o suportável (e a história está repleta de exemplos disso; vejam-se os instrumentos de tortura inventados na Idade Média). Esse comportamento sádico e cruel próprio do homem não encontra explicação convincente na suposição da existência de um livre-arbítrio da vontade.
Encerro esta subseção com uma passagem do filósofo judeu alemão Hans Jonas, colhida de seu livro O conceito de Deus após Auschwitz (2016), no qual o autor nos faz ver que o evento de Auschwitz não pode ser explicado por nenhuma das teodiceias elaboradas para justificar a Deus em face da presença do mal no mundo. Segundo o filósofo alemão, Auschwitz nos obriga a repensar o conceito tradicional de Deus, e Jonas delegou a si essa tarefa. Basta evocar as palavras com as quais o autor denuncia a inadequação das teodiceias tradicionais para lidar com o aterrador acontecimento de Auschwitz:


“Nem fidelidade ou infidelidade, crença ou descrença, nem culpa ou punição, nem julgamento, testemunho e esperança messiânica, não, nem mesmo a força ou fraqueza, heroísmo ou covardia, aprovação ou submissão tiveram ali um lugar. De tudo isso, Auschwitz, que também devorou as crianças e bebês, nada sabia, por nada disso (com raras exceções) o trabalho, como o de máquinas de uma fábrica, teve lugar. Não pelo amor de sua fá as vítimas morreram (como morreram, afinal, as “Testemunhas de Jeová”), nem por causa de sua fé ou por qualquer autodeclarado desvio de seu ser como pessoas foram elas assassinadas. A desumanização pela absoluta degradação e privação precedeu suas mortes, nenhum vislumbre da humanidade foi deixado àqueles destinados à solução final, dificilmente um traço de dignidade foi encontrado nos espectros esqueléticos sobreviventes dos campos libertados. E, entretanto, paradoxo dos paradoxos: foi o antigo povo da “aliança”, na qual já não acreditava nenhum dos envolvidos, nem assassinos nem vítimas, mas, no entanto, apenas esse povo e nenhum outro, sob ficção de raça, tinha sido escolhido para essa indiscriminada aniquilação, a mais monstruosa inversão da eleição em maldição, que desafiou toda possível atribuição de sentido. De fato, então, apesar de tudo, existe uma conexão de um tipo totalmente perverso entre os seguidores de Deus e profetas de outrora, cujos descendentes foram assim reunidos fora da diáspora e reunidos na unidade da morte conjunta. E Deus deixou isso acontecer. [Mas] Que Deus poderia deixar isso acontecer? (p. 19-20, grifo meu).




4.5. O mal natural

O chamado mal natural compreende o sofrimento que atinge os animais não-humanos e a nós mesmos quando somos vítimas de desastres naturais, de doenças e da morte. É fato que a dor natural, a decadência e a morte são inevitáveis nas criaturas orgânicas. Mas, no momento em que se crê num Deus todo-poderoso e sumamente bom que estaria na origem de tudo que existe, a pergunta que reclama uma resposta é: haveria alguma transgressão da ordem natural, se Deus, por exemplo, fizesse regiões da Terra que são especialmente suscetíveis de desastres naturais serem tão inóspitas aos seres humanos e aos animais que elas se tornariam praticamente inabitadas? É realmente necessário que haja tantos vírus prontos para nos causar prejuízos e mesmo a morte? Será mesmo que o Deus Todo-Poderoso dos cristãos não poderia ter criado um mundo menos hostil?  Estima-se que, no Brasil, 132 pessoas morrem por ano atingidas por raios.[13] Ora, isso não o tipo de coisa que esperaríamos num mundo criado e governado por um Deus sumamente bom e todo-poderoso. Mortes causadas por descargas elétricas provindas do céu evidenciam a indiferença da natureza e deveriam ser suficientes para tornar falsas as alegações de que existe um Deus que está no controle de todas as ocorrências do mundo. Quando se trata de refutar a crença no Deus teísta pela observação do mal natural, o ateu tem à disposição um número incalculável de evidências que apontam para a conclusão da inexistência desse Deus como o único caminho razoável. Por isso, chega a ser um desperdício de tempo intentar a exaustão na coleta de casos empíricos.
No entanto, o tempo  que seria dispensado à apresentação das evidências do mal natural que concorreriam para elaboração de uma argumentação sólida em favor da inexistência do Deus teísta pode ser empregado na discussão das teodiceias que foram produzidas com o propósito de explicar o mal natural. Entre estas, citem-se as seguintes:

1) o mal é necessário como contraparte do bem;
2) o mal é necessário como meio para o bem;
2.1) O mal é necessário para um bem de curto ou de longo prazo;
2.2) o mal é necessário como castigo do pecado;
2.3) O mal é necessário como aviso da natureza para a humanidade;

3) O mal é subproduto necessário das leis causais.

Se conseguirmos demonstrar que poderia haver menos abundância de sofrimento, então algum sofrimento é desnecessário ou gratuito, de sorte que não pode ser explicado pela hipótese da existência de Deus. A crença no Deus teísta não se sustenta, se não for possível oferecer uma explicação razoável para o mal natural.
Quando o teísta alega que o mal é necessário para alcançar um bem maior, seu raciocínio opera com base na crença na instrumentalidade do mal para o atingimento de um fim desejável, ou seja, o bem. Ora, ateus e teístas dificilmente estariam em desacordo quanto ao fato de que o mal não é desejável, mas eles discordam quanto a suposta utilidade do mal. É importante enfatizar que toda teodiceia pretende dar sentido a um fenômeno cuja existência é reconhecida por todos os seres humanos – o sofrimento. O sofrimento não é apenas objeto de saber, é algo que experienciamos em nosso corpo, é um mal que sentimos, que nos afeta enquanto viventes.
Os que defendem ser o mal necessário para alcançar um bem de curto ou longo prazo recorrem, geralmente, a analogias que, se bem examinadas, não funcionam. Um exemplo tipicamente empregado é o do cirurgião ou do dentista que extrai um dente. A despeito do fato de que, nesses casos, evita-se a dor pelo uso de anestesia - o que atesta ser o sofrimento ou a dor por si mesmos sem função para o alcance do bem-estar -, admitamos que o pós-operatório seja um estado desagradável, mas, ainda assim, um bem maior do que o estado anterior em que nos encontrávamos – o de enfermidade.
Há graves problemas nessa analogia. O primeiro deles é que os tipos de males que encontramos no mundo e aos quais se refere o argumento do mal são de natureza muito diferente, de sorte que não se prestam a tais analogias. Os males que encontramos no mundo não acarretam nenhum bem de curto ou longo prazo. Que bem se segue de um desastre natural como um terremoto que destrói uma cidade inteira, matando grande parte de seus habitantes, incluindo crianças? Em segundo lugar,  a explicação que toma o mal como meio para um bem maior não dá conta do sofrimento dos animais, aos qual Darwin se refere ao descrever a luta pela sobrevivência no mundo natural.
Uma vez que se assuma que o Deus cuja existência se pretende seja compatível com o mal é um Deus onipotente, é-nos lícito dizer que Deus poderia ter criado um mundo no qual os males não fossem tão excruciantes, disso resultando a necessidade de uma menor quantidade de mal para alcançar bens futuros. Todavia, a experiência empírica mostra-nos que a intensidade dos males é desproporcional ao resultado final. Uma criança que sofre de Tay-Saches, uma doença congênita que causa grave deterioração das habilidades mentais e físicas, cegueira, surdez, incapacidade de engolir, atrofiamento dos músculos até a paralisia, e que vem a morrer por causa desse mal, deveria nos fazer repudiar qualquer justificação do mal como um meio para um bem maior, mais ainda se inspirada no conforto desprezível de imaginar que a criança estará junto de Deus. Ora, uma vez que se crê que Deus é capaz de transgredir as leis naturais para produzir “milagres”, tais sofrimentos parecem ainda mais gratuitos.
Espero que eu tenha conseguido demonstrar, sem deixar espaço para algum tipo de objeção que já não seja prevista, que um Deus todo-poderoso e sumamente bom poderia dar origem ao bem sem o mal, ou pelo menos dar origem a menos mal do que o terrível sofrimento de que o mundo está impregnado.
Antes de levar a cabo esta seção, gostaria de apresentar três objeções a um tipo de teodiceia que explica o mal, sobretudo o mal natural, pela alegação de que o mal tem uma funcionalidade pedagógica. Os teístas, assim, não raro, no esforço inveterado de inocentar a Deus pelos males do mundo, costumam recorrer ao argumento segundo o qual o mal ou o sofrimento é um expediente necessário para desenvolver espiritual e moralmente os seres humanos. Esse tipo de teodiceia é uma variante das teodiceias anteriormente citadas, já que nela também se pressupõe que o mal serve para alcançar algum bem. No entanto, o bem a que visaria a permissão divina do mal é o aperfeiçoamento espiritual e moral dos homens. Essa teodiceia é chamada de teodiceia pedagógica.
1ª objeção. Nem sempre o sofrimento acarreta melhora moral ou espiritual. Ao contrário – e nossa psicologia intuitiva o confirma -, mais frequentemente produz personalidades traumatizadas, com sérios problemas de comportamento. Frequentemente, o mal infligido a uma pessoa arrasa sua saúde física e seu bem-estar psicológico. Se os males que nos afetam fossem capazes de produzir um bem, os consultórios de psicanálise deveriam estar todos vazios. Muitas pessoas que passam por acontecimentos traumáticos (assaltos, acidentes de carro, terremotos, inundações, etc.) desenvolvem uma perturbação de pós-stress traumático.
2ª objeção. A extensão e intensidade do sofrimento que acomete os seres humanos são desproporcionais ao objetivo que consistiria em formar a alma e contrárias à bondade de Deus. Com certeza, para que os seres humanos sejam capazes de compaixão e solidariedade, não precisam ser submetidos a pesares excruciantes.
3ª objeção. O sofrimento que atinge os animais não-humanos é surpreendentemente horrível. Parece sem sentido e, portanto, cruel da parte de um Criador permiti-lo.

Quanto mais Charles Darwin descobria sobre o mundo orgânico mais convencido ficava de que o sofrimento e a morte eram as duas grandes constantes nele. Animais atacam animais, grande parte da prole perece antes de poder se reproduzir, e fome, doença e predação matam espécies inteiras. Embora a imagem seja de Tennyson e não de Darwin, ele não teve dificuldade para avaliar a natureza como tendo “dentes e garras agressivos”.
A vespa icnêumone, bela e delicada criatura, veio a simbolizar, para Darwin, a crueldade inerente da natureza. A fêmea da espécie põe ovos dentro de lagartas vivas que ela paralisa com uma ferroada. As larvas chocam dentro da lagarta viva e a devoram de dentro para fora. Depois de descrever esse modo horrivelmente carnívoro de parir, em uma carta ao biólogo de Havard Asa Gray, Darwin concluiu: “Não vejo, tão claramente quanto outros veem, provas do desígnio e da caridade em nenhuma parte à nossa volta. Parece-me haver miséria demais no mundo”.
Richard Holloway, em seu Entre o monstro e o santo (2013), faz uma observação sobre a crueldade da natureza que nenhuma das partes do debate pode ignorar:


A natureza é impiedosa (...). Pode ser esplêndida em sua ferocidade implacável, mas também é assombrosa em sua indiferença. Metade dos filhotes de urso polar morre no primeiro ano de vida. O Kalahari mata elefantes jovens que tentam atravessá-lo à procura de água. E por todo reino animal os predadores emboscam a vítima antes de se lançarem ao ataque paralisante. Em meio à vida, estamos na morte. É a crueldade da ordem natural que fortalece o ateu contra qualquer ideia da existência de um criador benevolente. Isso foi logo o que Darwin observou, embora ele mesmo tenha sido benevolente demais ao presumir o papel que descreveu: “Que livro um capelão dos infernos escreveria sobre as obras desajeitadas, desperdiçadas, equivocadas, baixas e terrivelmente cruéis da natureza”. O fato é que a natureza é uma vasta cadeia alimentar, e matar é tão intrínseco à sua finalidade quanto o sexo. A luta é tão fundamental quanto a trepada. A vida que engatinhava há bilhões de anos no mar de substâncias químicas luta não só para se reproduzir, mas para se manter principalmente caçando outras criaturas” (p. 63, grifos meus).



Os excertos destacados em negrito dão testemunho das teses principais defendidas neste texto: 1) a natureza é cruel; 2) a dinâmica da vida se manifesta como geração e destruição, luta e morte; 3) a vida é, essencialmente, luta pela sobrevivência. Queiramos admitir ser a natureza impiedosa, como pensa o autor, queiramos entendê-la, ao invés, como simplesmente indiferente ao sofrimento de suas criaturas, o fato é que qualquer das maneiras como a compreendamos patenteia que a crença no Deus teísta é inconsistente com as ocorrências do mundo. Há, por assim dizer, uma antinomia entre a crença nesse Deus e a visão do modo como o mundo dinamicamente se constitui. Ou ainda: essa antinomia da crença no Deus teísta com o mundo revela que a natureza do mundo consiste num conflito incessante entre forças   que atuam pela necessidade de dominação, de crescimento à custa do sofrimento e destruição das criaturas vivas. Evitando mascarar a crueldade dessa dinâmica do mundo com adornos metafísicos, não escapamos de dar razão a Nietzsche: a trama do real é resultado de um jogo agonístico de vontades de poder.


4.6. As teodiceias bíblicas: crítica e síntese

Ehrman é uma autoridade reconhecida nos estudos sobre as origens do cristianismo e sobre a vida de Jesus. Em seu livro O problema com Deus (2008), o autor investiga as respostas bíblicas à questão que, como vim mostrando, abala desde a raiz a crença na existência do Deus teísta, qual seja, por que sofremos? Na qualidade de historiador da Bíblia, Ehrman contesta, nesse livro, as explicações dadas pelos autores bíblicos acerca dos motivos de um Deus onipotente permitir que soframos.
Deste excelente livro, me aproveitarão duas contribuições importantes. A primeira delas se expressa na forma de um testemunho honesto do autor. Leiamo-lo:


“Se há no mundo um Deus todo-poderoso e amoroso, por que há tanta dor excruciante e tanto sofrimento indizível? O problema do sofrimento me atormentou durante muito tempo. Foi o que me levou a pensar na religião quando jovem, e foi o que me fez questionar minha fé quando mais velho. Por fim, foi a razão pela qual eu perdi minha fé (...)”. (p. 11).



Essa confissão de Ehrman a respeito do que o levou a abandonar sua fé suscita-nos a questão: por que a maioria das pessoas não chega a abandonar sua fé quando confrontada com a mesma questão que inquietou Ehrman durante muito tempo? Essa é uma questão que persiste em me acompanhar, desde que a fé deixou de fazer qualquer sentido para mim, desde que passei a rejeitar com veemência a crença no Deus judaico-cristão. Essa é a questão que me impele ao estudo da religião. A veemência com que rejeitei a crença no Deus teísta, com o tempo, foi-se abrandando em face da perplexidade com que constato que a crença em Deus permanece ainda forte no mundo, mesmo que sejam acessíveis as evidências – incontáveis! – que a tornam falsa, insustentável, em uma palavra, ilusória. No que tange à questão que me faço e que Ehrman nos permite fazer, ela pode ser respondida – e é uma resposta admitida pelos estudiosos – através da alegação de que as pessoas precisam da crença em Deus para evitar sucumbir ao desespero total, que sobreviria à perda dela. A crença em Deus, malgrado não resistir ao que, de fato, sabemos sobre o mundo, é, para muitas pessoas, confortante; e isso, para além de quaisquer argumentos que se pretendam persuasivos, lhes basta. Se aquela resposta parece satisfazer a questão sobre a razão por que as pessoas não abandonam a crença em Deus, ela não dá conta de explicar como o conforto pode justificar interpretações de acontecimentos que podem até ser mesmo ofensivas.
Vejamos um exemplo de interpretações ofensivas. Crer em Deus envolve a crença na possibilidade de milagres. Uma pessoa pode acreditar sinceramente que foi por um milagre que seu filho, uma criança, foi curado de um linfoma. Sucede que, como sabemos pela experiência, com frequência, enquanto uma criança se cura de um linfoma, outra morre. Assim, há uma contradição evidente entre dois fatos: uma pessoa se alegra com a cura de seu filho e crê que isso se deu por um milagre de Deus, enquanto uma outra pessoa pranteia a morte de seu filho por causa de um câncer. Escusa elaborar mais exemplos análogos, pois sabemos que há pessoas que, por uma série de circunstâncias felizes (explicáveis em termos biológicos), superam um câncer grave enquanto outras, por uma série de circunstâncias infelizes, não sobrevivem. Se a pessoa que crê no milagre como explicação para a cura de seu filho estiver certa, como explicar que Deus, autor do milagre, não tenha conferido a mesma graça ao filho da outra pessoa, que veio a morrer? Há algo problemático na distribuição da justiça divina. Como a pessoa que crê no milagre pode estar justificada para crer que seu filho foi curado por Deus, se o filho da outra pessoa, também uma criança, não mereceu a mesma graça? Como crianças, os filhos das duas pessoas têm igual merecimento, são ambos inocentes de qualquer imputação de “falta”. Se a pessoa cujo filho foi curado agradece a Deus e manifesta esse agradecimento publicamente, ela não faz senão externar sua total indiferença para com o sofrimento alheio. Há algo de imoral na crença dessa pessoa, que nos justifica a censura de um gesto de agradecimento público a Deus. As pessoas podem crer no que quiserem, mesmo que suas crenças sejam absurdas; mas não podem ou não poderiam publicar essas crenças quando elas sinalizam egoísmo e indiferença para com o sofrimento alheio.
Com esse exemplo, quero mostrar que a suposta graça de Deus não é distribuída com justiça. Muitas crianças morrem de AIDS na África; por isso, uma criança que tenha conseguido sobreviver com o vírus HIV durante muito tempo sem manifestar a doença até que pudesse se tratar e gozar de uma saúde tão boa quanto a de uma pessoa soronegativo não pode ser considerada como agraciada por Deus. Sua sobrevida pode ser explicada por outros fatores, como, por exemplo, o fato de algumas doenças não tomarem o curso que naturalmente se esperam delas. Outros fatores estão associados ao organismo da pessoa, seus hábitos de vida, etc. Sabe-se que algumas pessoas são mais resistentes ao vírus HIV que outras; algumas sequer desenvolvem AIDS. Esse fato é objeto de pesquisa científica, e os cientistas vem se debruçando atualmente sobre a investigação das causas que fazem com que algumas pessoas não desenvolvam AIDS. O que se sabe até agora é que o CD-8, uma célula de defesa do organismo, pode refrear o vírus, liberando um grande número de moléculas inibidoras. Mas há casos de pessoas que apresentam uma mutação no gene HLA B54 que influenciaria o aumento das células assassinas que combatem o HIV. [14]. Outros estudos apontam que a ausência de um receptor chamado CCR-5 nas células de algumas pessoas explicam a razão por que elas podem ficar mais de 20 anos sem desenvolver AIDS. Tudo indica, portanto, que a resposta está no interior do organismo delas e não num suposto “milagre” divino.
Uma criança que morra por causa do vírus da zika, entre cem ou mais que se curam, deve ser suficiente para demonstrar que a justiça e a bondade de Deus, ignorando-se as alegações que insistem em que justiça e bondade são atributos inconsistentes entre si, tornando o conceito de Deus autocontraditório, não podem ser críveis. Pode-se ainda argumentar que uma única criança que morre de zika, num grupo de cem, do qual 99 sobrevivem, deveria ser suficiente para nos convencer de que Deus não existe.
Se as pessoas que creem em Deus se ocupassem, por alguns momentos que sejam, dos acontecimentos do mundo, talvez conseguissem concluir que a sobrevivência de cem crianças a uma epidemia mortal, por exemplo, não pode ser sinal de providência divina, quando uma única criança é vítima fatal dessa mesma epidemia. Na década de 1980, os hemofílicos estavam entre os grupos mais vitimados pela AIDS. É possível estimar que o número de crianças, depois de terem  sido submetidas à transfusão de sangue, e que contraíram HIV, fosse também bastante alto. Mesmo que algumas tenham sobrevivido, uma única que não conseguisse sobreviver seria suficiente para desacreditar da Providência divina. O caso do adolescente Ryan White, que ficou conhecido por ter sido expulso do colégio por ter contraído HIV, durante uma transfusão de sangue, é bastante emblemático para a sustentação da inexistência de Deus. O rapaz era hemofílico e contraíra o vírus HIV em 1986. Ele veio a falecer em 1991. Sua sobrevida ao longo de 5 anos surpreendeu os médicos, que lhe fizeram, à época, um prognóstico de sobrevida que não ultrapassaria seis meses. Ryan morreu com 18 anos, pouco antes de completar a high school (educação secundária). Luciane Aparecida Conceição, a primeira criança a receber o tratamento contra AIDS, na década de 1990, morreu em 2012, em decorrência de complicações causadas pela AIDS.[15] Ela decidira parar com o tratamento, durante cinco anos. A moça, que viria a completar 25 anos poucos dias depois da sua morte, deixou uma filha de 4 anos, que nascera sem o vírus (graças aos antirretrrovirais usados atualmente no combate à AIDS). Esse caso deve também servir como evidência que aponta para a afirmação de que não há nenhum Deus providente intervindo em benefício das pessoas. No caso de Conceição, o que a mantinha viva eram os medicamentos que ela tomava. A suspensão do uso dos medicamentos trouxe-lhe as complicações da AIDS e sua morte. Na África, 90% das crianças convivem com o HIV e 50% das quais morrem antes de completar 5 anos de vida[16] e, a menos que lhes seja dado o acesso ao tratamento de que se beneficiam as demais crianças em todo o mundo, o número de crianças a morrerem continuará a crescer, o que prova que não se pode esperar que, por um milagre, essas crianças consigam sobreviver. Mas esse é um tipo de esperança que estaríamos justificados a acalentar se, de fato, houvesse um Deus cioso de seus filhos.
A segunda contribuição de Ehrman que me interessa é a apresentação que ele faz do conjunto de respostas ao problema do sofrimento, dadas pelos autores bíblicos. Segundo Ehrman (2008, p. 16), a) alguns autores (os profetas) acreditavam que o sofrimento era infligido por Deus como punição pelo pecado; b) outros acreditavam que o sofrimento era causado pelos inimigos cósmicos de Deus como meio de prejudicar aqueles que observavam os preceitos de Deus; c) outro grupo acreditava que o sofrimento era um teste para atestar se as pessoas continuavam fiéis a Deus apesar do sofrimento; d) outros autores afirmavam que o sofrimento é um mistério e que é errado questionar por que Deus o permite. O elenco de respostas não se limita a estas, mas esse elenco é bastante para mostrar que nenhuma delas é consistente com a representação cristã de Deus como fonte irradiadora de todo amor e de suma bondade.
As respostas dadas ao problema do sofrimento variavam segundo o contexto sócio-histórico em que os autores bíblicos escreveram. Assim, no contexto do Exílio e mais especificamente do pós-exílio, encontramos o profeta Isaías a defender uma posição que combina três tipos de teodiceia: a pedagógica, a de comunhão e a do livre-arbítrio. A ideia basilar aí é que o sofrimento do homem justo é uma oferta para libertar o povo do pecado cometido. Na literatura bíblica, existe uma heterogeneidade de teodiceias, que não podem ser neste texto examinadas uma a uma. Não obstante, não escusarei de pontuar que a todas elas subjazem as seguintes ideias: 1) o mal é uma realidade; 2) Deus é justo; 3) há uma relação entre o pecado e o sofrimento; 4) vale a pena ser justo; 5) Deus fará justiça sobre a injustiça.
Nos escritos neotestamentários, encontramos grande parte das respostas apresentadas ao problema do mal que se acham na Bíblia hebraica, fato que não surpreende quando consideramos que o cristianismo constitui, do ponto de vista sociológico, uma derivação da fé judaica. No entanto, as respostas cristãs ao problema do mal incluem algumas peculiaridades que convém sublinhar:

1) Jesus é o Deus-homem que sofre pelos pecados da humanidade;

2) Satanás e os demônios são responsabilizados pelo sofrimento, pelas doenças e pelo pecado que assolam a existência humana;

3) há uma ênfase na escatologia: a expectativa do retorno de Cristo, a esperança na ressurreição, a chegada do Reino de Deus e o Apocalipse favoreceram uma religiosidade ascética e a negação do mundo;

4) O elogio do sofrimento, o qual é pensado como uma oportunidade de se imitar a Cristo e de crescimento espiritual (Romanos, 5: 3-5). Essa visão do sofrimento predomina em São Paulo.

5) Ênfase na graça divina e no pessimismo. O cristianismo neotestamentário, por influência paulina, endossa a ideia de que o homem é irremediavelmente pecador e que sua natureza é tão incorrigível que nada pode fazer para reconciliar-se com Deus. Por isso, o homem necessita da graça divina (que vimos em Agostinho), para poder encontrar o perdão e a absolvição. Sua salvação depende exclusivamente da fé em Cristo.



5. Palavras finais

Ao longo desta exposição, procurei argumentar no sentido de demonstrar a consistência da concepção que o filósofo Clément Rosset tem do real como inerentemente cruel. Os dois sentidos com que a noção de crueldade no sintagma crueldade do real foi pensada por Rosset - a saber, 1) o caráter trágico e doloroso do real e 2) seu caráter inapelável e irremediável - foram discutidos a partir do pressuposto básico de que o filósofo e o religioso são tipos humanos antagônicos.
Sem fazer qualquer concessão à validade desse pressuposto, lancei-me ao exame do modo de ser típico do homem na cotidianidade, a fim de mostrar que ele precisa de ilusões para continuar a viver. Uma dessas ilusões é a crença em Deus e em sua providência, sem a qual o homem comum seria absorvido num desespero profundo. A crença em Deus impede que o homem comum se confronte com a crueldade do real e tire desse confronto suas consequências últimas. Longe de dizer que o homem religioso ignora que, durante alguma parte da vida ele sofre e que há no mundo bastante sofrimento,  o que procurei mostrar é que a crença em Deus ajuda-o a dar sentido ao sofrimento. Assim, o que é intolerável para o homem comum não é existir o sofrimento, mas existir o sofrimento sem sentido. As teodiceias vêm em socorro da necessidade que o homem tem de atribuir sentido ao mundo e a tudo que experiencia. No entanto, conforme mostrei, as teodiceias são todas elas falhas em algum sentido. Nenhuma das teodiceias já propostas explica satisfatoriamente por que sofremos e por que há tanto mal no mundo. Se as teodiceias são explicações insatisfatórias e a crença em Deus é absurda, resta ao indivíduo decidido a renunciar ao suicídio a afirmação desesperada do real. E o verdadeiro filósofo da pós-modernidade deve ser capaz de pensar o mundo e o homem a partir deste “sim” desesperador ao real, gesto esse que deve ser inaugurador de um discurso cuja única razão de ser será demonstrar que esse desespero, que resta, após a demolição de todas as promessas metafísicas, pode ser, no entanto, um desespero alegre. Alegria trágica – é esta a possibilidade que o pensamento filosófico deve tornar efetiva como o único sentido (direção) para uma vida destituída de qualquer horizonte metafísico de sentido.




[1] Sentido, para Heidegger, é aquilo que é articulável na interpretação e, ao mesmo tempo, mais originariamente no discurso. (Ser e Tempo, p. 223).
[2] O conceito de ideologia de Bakhtin não será objeto de mais esclarecimentos do que espero seja enunciado nesta proposição: a ideologia, para Bakhtin, como “o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e que se expressa por meio das palavras (...) ou outras formas sígnicas”.
[3] Bakhtin se refere a duas outras propriedades da palavra: a pureza semiótica e a neutralidade. A pureza semiótica diz respeito ao fato de a palavra poder funcionar e circular como signo ideológico em toda e qualquer esfera da vida social. A neutralidade, por seu turno, diz respeito ao fato de a palavra poder encerrar qualquer função ideológica, dependendo do modo como ela aparece num enunciado concreto. Neutralidade, portanto, não significa que haja palavras que não sejam índices de algum ponto de vista valorativo; ao contrário, significa isto sim que toda palavra pode assumir qualquer função ideológica.
[4]  As ideias são entendidas por Schopenhauer como os graus determinados e fixos de objetivação da vontade. Esses graus aparecem, nos objetos particulares, como as suas formas eternas, como seus protótipos, concepção esta claramente inspirada na Teoria das Ideias de Platão.
[5] Refiro-me aqui não só ao sentido humanamente vinculativo de nossas ações, de nossos valores, de interesses, de nossas metas etc. – sentidos estes que, por serem construídos na imanência da dinâmica dos modos de a vida se configurar, são sentidos humanos e, portanto, frágeis, mas também me refiro ao sentido metafísico em virtude do qual a existência se justifica. A crença em Deus como a instância metafísica vinculadora de sentido à existência humana exemplifica o que entendo por “sentido metafísico”, isto é, um sentido que deve ser buscado na transcendência, no para além do mundo, e não no mundo. Não obstante sua aparência de universalidade, esse sentido metafísico, exemplificado na crença no Deus teísta, é parte da produção dos significados culturais.  Um exame inspirado na desconstrução patentearia que mesmo o sentido metafísico, que se crê doado por uma instância radicalmente absoluta e transcendente ao mundo, é produto do gênio humano. Em outros termos, esse sentido metafísico que tem em Deus sua fonte de irradiação é um constructo sócio-histórico.
[6] Já observei, em algum lugar, que a preocupação legitimamente humana com “o sentido da vida” supõe que o sentido sobre o qual se pergunta é um sentido metafísico. Quem faz a pergunta – isto é, o homem – não pode ser ele, nesse caso, o doador de sentido. Além disso, o sentido a que nos referimos no sintagma “o sentido da vida” não pode encontrar na própria vida seu fundamento, já que, em caso contrário, como explicaríamos que o fundamento pudesse continuar a ser aquilo que fornece à vida sua razão de ser. Por definição, o fundamento deve preceder logicamente aquilo de que é fundamento. Portanto, na expressão ‘o sentido da vida’, o sentido sobre o qual nos perguntamos deve nos remeter ao fundamento do sentido, a uma instância metafísica que justifica o sentido estruturante da vida. A remissão é feita a um em-si... Entendendo que esse sentido é da ordem da transcendência, já que doada por uma instância radicalmente superior à vida (por exemplo, Deus), resta perguntar se o homem não pode ser construtor de sentido enquanto é um existente. A resposta é sim. O homem, parafraseando Sartre, está condenado a produzir sentido, a significar. O homem dota suas ações, as atividades nas quais se envolve de sentido. Uma existência que se lhe revelasse completamente absurda seria um convite ao suicídio. Mas esse sentido construído pelo homem é, naturalmente, um sentido humano, tem rosto humano. Ao produzir cultura, o homem produz sua teia de sentidos onde a vida deles acontece. Não raro, alguns fios dessa teia se rompem e o homem se dá conta da fragilidade de sua condição como construtor de sentido. Assim, uma pessoa pode investir de sentido sua atividade profissional e crer, por exemplo, que o sentido da sua vida está em fazer o que faz. Seja essa pessoa um professor. Ocorre que o absurdo ronda suas tentativas de sustentar-se seguramente nessa estrutura de sentido da qual é o próprio homem o construtor. As incumbências passam a pesar, o salário não dignifica, o desinteresse dos estudantes, aliado à negligência do governo, desestimula, a pergunta ‘faz sentido o que faço?’ faz ecoar o drama de Sísifo. A pergunta descerra o absurdo: que sentido há em fazer o que faço quando ninguém parece se importar? E se uma doença grave chega para acentuar a vanidade de sua faina, o absurdo geme, grita e se escancara. A doença é portadora do absurdo; ela aviva a consciência do homem de que ele mesmo é um ser absurdo. E o sentimento da morte inevitável, que, nessa circunstância, irrompe com pujança desvela o abismo sob toda pretensão de sentido.
[7] Estimativa esta baseada no portal de notícias Gospel  Prime, cujo endereço eletrônico é: https://noticias.gospelprime.com.br/cristianismo-maior-religiao-mundo/ (acessado em junho de 2016).

[8] Trechos colhidos de: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 68-70

[9] A construção da coerência textual envolve muito mais do que essa operação cognitiva. O leitor poderá encontrar neste blog textos nos quais trato dessa questão em profundidade.
[11] Assim, conforme assinala Wetzel (2011, p. 43), “Agostinho nunca idealizará um eu conflitante”. Mesmo na condição de ser decaído, o homem é uma alma que tem o controle sobre as ações.


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