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sábado, 22 de março de 2014

"São filósofos aqueles capazes de atingir o que sempre existe de maneira imutável" (Platão)

                                        
                                             

                                          Platão e as Ideais
                                                     Filósofos em cena

No texto intitulado de O homem medíocre, considerei, inicialmente, sem fazer grandes incursões na temática, o problema da autoria no blog. Neste texto, no qual me ocupo do pensamento de Platão, pareceu-me oportuno encetar meu discurso fazendo ver que à escrita em blog se prende uma vantagem: a liberdade de que goza o agente da escrita em relação às exigências da escrita acadêmica. Em vários de meus textos – é verdade - há citações de trechos de livros em que me apoio, há nomes de autores sobre cujas obras me debruço para encaminhar e fundamentar minhas reflexões; mas não me constrange o dever ou a convenção que me levaria, por exemplo, a referir, ao final do texto, uma pequena bibliografia. Não obstante, o rigor acadêmico com que escrevo muitos de meus textos é uma característica indelével. Esse rigor não se expressa apenas em termos da variedade linguística adotada, mas também no compromisso com a correção na exposição das matérias de que me ocupo e com a correção do curso dos pensamentos que dedico ao desenvolvimento delas. E se ainda esse rigor é perseguido, é porque ele é parte do processo ininterrupto da aprendizagem. Refiro-me à minha aprendizagem, pois que a atividade de escrever, para mim, é indissociável da atividade de aprender. Aprende-se escrevendo também. Uma das formas mais eficazes de aprender é escrever sobre o conteúdo aprendido. A escrita demanda certa disciplinarização do pensamento (permitam-me o neologismo). Quem quer que esteja habituado ao exercício da escrita deve reconhecer isso. De resto, deve reconhecer que escrever demanda certo esforço: precisamos pôr ordem no fluxo de pensamentos, encadeando-os de modo a compor construções semântico-sintáticas adequadas ao sentido visado. Na verdade, os pensamentos, se não verbalizados, são como vozes no interior de nossa mente. Pensados como atividade intelectual através da qual a mente forma conceitos e formula juízos, os pensamentos não podem existir sem a materialidade lingüística. Em certa medida, não há pensamentos sem linguagem (refiro-me ao pensamento conceitual).

Quem escreve dialoga consigo mesmo. Por vezes, experienciamos um atravessamento ou congestionamento de pensamentos. Esse parece-me ser o caso agora, porque percebo que me desvio um pouco do que tinha em vista inicialmente. Mas esses desvios, essas digressões, o próprio reconhecimento de que fugimos ao tópico discursivo traçado no limiar do curso de nossas reflexões são também uma possibilidade da escrita em blogs. São uma forma da expressão da liberdade de que goza o blogueiro.

Deixo ao encargo do leitor o estabelecimento de uma conexão de sentido entre a totalidade precedente e o que a ela se seguirá. Trago, portanto, à cena discursiva a figura de Platão e sua insilenciável contribuição à história do pensamento filosófico. Necessário é dizer, no entanto, que a filosofia não serve para nada (nem para nos ajudar a pregar um prego, já dizia Heidegger) e que ninguém é mais qualificado por ser filósofo.



1. Platão (427 – 347 a.C)

 

O renomado pesquisador em filosofia da ciência Alfred North Whithead observou, certa feita – talvez, com certo exagero -, que toda a filosofia ocidental se resumiria a uma série de notas de roda pé a Platão. Tenha ou não razão Whitead (penso que ele exagera), seu comentário deixa entrever, no entanto, a grande importância que o pensamento platônico tem na história da filosofia.

Tendo sido discípulo de Sócrates e fundador da Academia – a primeira instituição de educação superior de que temos registro, Platão é, certamente, o filósofo que maior influência exerceu na história do desenvolvimento do pensamento filosófico. Sua ampla e rica obra consegue recobrir a totalidade de questões que interessam à filosofia. Não há um só tópico que escape ao seu legado.

Veremos, neste texto, que, conquanto seja vasta e diversificada a obra de Platão, ela se assenta sobre a concepção segundo a qual existem dois mundos: o mundo da experiência sensível, em que habitamos; e o mundo das Essências ou Ideias. Este texto é, portanto, dedicado ao tratamento da chamada Doutrina das Ideias e da Doutrina da Linha Dividida, que são, como se pode supor, interdependentes.

Por ora, limito-me a dizer que a influência daquela concepção no desenvolvimento da teologia cristã é notável. Encontramos eco dela na ideia segundo a qual o homem foi feito à imagem de Deus. Mas Platão – é preciso frisar – influenciou a construção da teologia cristã diretamente de outras várias maneiras. Não caberá, neste texto, ocupar-me deste capítulo da história do pensamento platônico, tarefa esta a que caberia destinar outro texto.

 


2. A Academia de Platão

 

A Academia platônica exerceu um papel fundamental no desenvolvimento da filosofia. O objetivo da Academia, fundada por Platão, não era apenas realizar investigações científicas e filosóficas; era também servir de centro para a preparação da atuação política, calcada sobre a busca da verdade e da justiça.

A filosofia desenvolvida na Academia também não se destinava à defesa e à transmissão de conhecimentos supostamente prontos e definidos. Ao contrário, ela congregava o esforço conjunto de procura da verdade; ela mesma era exercício permanente para conhecer mais e melhor. A filosofia da Academia não era uma doutrina fixada e rígida, mas uma investigação sempre aberta, viva, inquieta e insatisfeita.

Na Academia, a filosofia é o exercício de pensar – incessante ginástica do pensamento. É uma atividade de reflexão que se abre sempre para novas possibilidades. Essa concepção tornou-se um dos mais fortes modelos de filosofia, desenvolvido e retomado ao longo dos séculos, e se fazendo marcante na contemporaneidade.

O desenvolvimento do pensamento de Platão é indissociável, evidentemente, da Academia por ele fundada. Sua filosofia é a primeira grande síntese do pensamento antigo. Nela, confrontam-se e integram-se os pensamentos de todos os grandes filósofos precedentes.

Há, no entanto, duas grandes tendências filosóficas que foram reformuladas e conciliadas por Platão. Trata-se de uma síntese fundamental operada por seu pensamento: o imobilismo eleático de Parmênides de Eléia, e o mobilismo universal de Heráclito de Éfeso. Platão procura conciliar a verdade de Parmênides (o Ser é imóvel e eterno) e a verdade de Heráclito (tudo é movimento, o devir é o próprio movimento do ser).

Platão tomava a matemática como base do conhecimento ou pensamento filosófico. Filosofar era, então, procurar pensar para além da matemática; era fazer metamatemática.

De passagem, cumpre notar – ainda que nesse tema não possa me deter aqui -, que Platão combatia ferrenhamente o relativismo dos sofistas, os quais afirmavam que não há verdade, mas apenas opiniões circunstanciais e relativas.

 


3. A dialética platônica e o método dos geômetras

 

A dialética platônica se pauta por um embate de teses. Num primeiro momento, ela se define como dialética ascendente. A dialética, em Platão, é uma técnica dialógica, por meio da qual se procura saber o que é. Antes de Platão, os filósofos procuravam explicar as coisas num movimento de reflexão que remontava às causas primeiras ou primeiros princípios do universo. Eles buscavam a origem, tanto no sentido de começo quanto no sentido de fundamento, para o Ser. A dialética platônica, ao contrário, visa a explicar a situação atual do universo e dos seres; não se dirige a uma situação anterior, mas a causas intemporais responsáveis pela natureza das coisas, ou seja, por aquilo que as fazem ser o que são.

A serviço de Platão, na busca por saber a natureza das coisas, está o método dos geômetras. Esse método supõe um problema a ser resolvido, uma hipótese com a qual se busca resolvê-lo. Se ela parecer satisfatória, passa-se a verificar se ela se sustenta por si mesma ou se supõe outra hipótese mais geral – e assim sucessivamente. O resultado é uma cadeia de hipóteses interdependentes, pelas quais se busca uma sustentação última – uma não-hipótese -, que basta por si mesma e que, ao cabo do processo, serve de base a todas as hipóteses que lhe estão subordinadas.

Conforme veremos, a Doutrina das Ideias é uma consequência da adoção do método dos geômetras.

 


4. A crítica ao conhecimento sensível

 

Segundo Platão, permanecer no nivel das sensações é tornar impossível a construção de um conhecimento seguro e estável; é ficar fatalmente preso nas malhas do relativismo de sofistas como Protágoras. As sensações fornecem apenas evidências momentâneas e individuais. Um conhecimento baseado somente nas sensações é um conhecimento daquilo que aparece a cada pessoa no momento em que aparece como tal.

Platão defende a tese de que o particular não é um bom objeto para o conhecimento. Sobre o particular, temos crenças, opiniões mas não podemos, a rigor, ter conhecimento. Só podemos ter conhecimento do universal. Desde já, vale dizer que são as Formas, isto é, os modelos eternos das coisas sensíveis que são objeto de conhecimento.

Seguindo a trajetória de Parmênides, Platão mantém que o caminho para o conhecimento supõe a pergunta sobre o que é x, ou seja, sobre a essência mesma de uma coisa ou ente. É com naturalidade, portanto, que Platão supõe a existência das Formas e não se preocupa em justificá-las. Para ele, só há conhecimento do que existe em si, do que é eterno e imutável. Assim, as Formas são únicas, autoexplicáveis e não se identificam com as coisas particulares que delas participam. Destarte, por exemplo, ao falar da Forma da Justiça, Platão quer-se referir à Justiça em si. Forma é o modelo perfeito, imutável e imperecível de tudo quanto no mundo sensível é imperfeito, mutável e perecível.

 


5. A doutrina das Ideias e da Linha Dividida

 

O método do geômetra leva Platão a estabelecer a doutrina das Ideias. Platão propõe que se assuma por hipótese a existência de “Formas”, “Essências”, ou “Ideias”, que seriam os modelos eternos das coisas sensíveis.

Essas Essências ou Formas seriam incorpóreas e imutáveis, e existiriam em si mesmas. Embora Platão as chame também de Ideias, elas não existem na mente humana, como conceitos ou representações mentais; mas, ao contrário, existem em si num mundo à parte, denominado de mundo inteligível. Cada coisa sensível, como, por exemplo, uma cadeira seria o que é, em virtude de participar da essência que lhe serve de modelo (a Forma cadeira ou a Ideia de cadeira). A Forma da cadeira permanece imutável, é sempre a mesma fora do tempo e do espaço.

Não podemos apreender com os sentidos as Formas ou as Ideias. Estas habitam o mundo inteligível, e nossos sentidos só captam o mundo sensível e material. Mas podemos alcançá-las com o intelecto ou pensamento, pois elas são inteligíveis.

As Formas são apreendidas somente pelo intelecto ou pela razão. Elas são o real, o verdadeiro. Não mudam e, por isso, é a razão que as capta. A razão obedece ao que Parmênides asseverou: pelo intelecto, temos o que não muda, o que é. Todas as coisas que qualificamos de belas são captadas pelos sentidos; eles nos dão as percepções, as crenças e as opiniões. Percepções, crenças e opiniões não são, a rigor, conhecimentos; por isso, não estariam ao abrigo da regra parmenidiana.

Formamos opiniões sobre tudo que há no mundo empírico (no mundo da experiência sensível), e nossas opiniões são mutáveis tanto quanto o próprio mundo percebido pelos nossos sentidos. Pela atividade dos nossos sentidos, apreendemos o mundo existente, mas não o mundo real. O mundo real é o mundo inteligível, o mundo das Formas ou das Essências. O mundo existente - o mundo sensível – seria o campo observado por Heráclito. Com essa divisão entre dois mundos, Platão concilia os postulados de Parmênides e de Heráclito.

O que é, pois, a Doutrina da Linha Dividida? Trata-se do processo pedagógico-filosófico de Platão enquanto processo epistemológico – a verdadeira pedagogia de Platão. A Linha Dividida consiste na proposição da existência de dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível, e dos modos correspondentes de cognição a respeito deles.

Urge atentar para o fato de que tanto o mundo inteligível quanto o mundo sensível existem, mas, para Platão, o mundo das coisas sensíveis é menos real do que o mundo das coisas inteligíveis. O conhecimento das coisas inteligíveis, ou seja, das Formas, das Essências ou Ideias, é um conhecimento não só superior a todos os outros, mas também é o conhecimento das coisas reais, ou seja, o conhecimento das coisas como elas são realmente.

O mundo empírico das imagens (mundo heraclitiano), dos simulacros, das coisas sensíveis, que serve de base para as nossas crenças, que engendra ilusões, é o mundo no qual impera o fluxo contínuo, mundo onde tudo é cópia imperfeita do mundo permanente e real (do mundo inteligível). Se o mundo sensível identifica-se ao mundo heraclitiano, o mundo inteligível é o mundo parmenidiano. Este mundo estável: é o lugar das Formas, dos paradigmas para cada objeto do mundo sensível.

Pode-se dizer, portanto, que a Teoria da Linha Dividida é uma espécie de teoria-síntese entre a verdade de Parmênides e a verdade de Heráclito. É a maneira pela qual Platão conciliou as duas teorias pré-socráticas: uma de ordem cosmológica (Heráclito) e a outra de ordem ontológica (Parmênides), em uma nova filosofia – a metafísica.

Em suma, é o domínio do mundo inteligível que Platão entende ser o mundo Real e que, de fato, é o mundo ideal; ele chamou a esse mundo de mundo verdadeiramente real. Eis aí por que se pode dizer que Platão é idealista (mas há quem o veja como realista; donde falar-se em um realismo das ideias). Assim, no plano ontológico ou do ser, o que ocorre é que o mundo sensível, ou seja, o mundo acessível aos nossos sentidos é apenas uma cópia do mundo inteligível.

 


6. A escalada do conhecimento

 

Nesta última seção, tornarei patente o modo como Platão explica o caminho pelo qual atingimos o conhecimento ou reconhecimento das Formas ou Essências.

O conhecimento ou reconhecimento das Formas ou Essências (reconhecimento porque, na verdade, a alma já teria contemplado as Essências antes de prender-se ao corpo), não se dá de modo direto e imediato. Trata-se de um processo que envolve etapas. Para alcançar esse conhecimento, é necessário percorrê-las.

Em A República, Platão descreve essa escalada que conduz, afinal, às Ideias ou Essências, por meio de etapas sucessivas. A cada tipo de objeto corresponde uma forma ou etapa no processo de conhecimento. A escalada parte do mais obscuro e instável até a máxima clareza e segurança.

Cada etapa remete à que lhe é imediatamente superior e nela se sustenta e se aclara. A verdade não é dada de início. Ela só pode ser atingida no final do processo, depois que todo o caminho ascendente for percorrido, depois de vencidas todas as etapas intermediárias. A verdade é conquistada ou alcançada ao cabo deste longo e árduo processo de ascensão do espírito ao conhecimento da verdadeira realidade. Esse processo inicia-se pela ilusão produzida pelas sombras, simulacros; leva à formulação de crenças com base nos objetos sensíveis; daquelas passa à razão discursiva e hipóteses matemáticas e, finalmente, atinge o estado dos raciocínios puros.

 

A famosa Alegoria da Caverna está intrinsecamente ligada à Doutrina da Linha Divisória. Na Alegoria, entrevê-se a distinção entre o mundo inteligível, que, no limite é banhado pelo Sol, que faz o papel do Bem; e o mundo sensível e ilusório, que é o mundo representado pelas sombras. Nós todos habitamos o mundo sensível. Andamos, comemos, bebemos e dormimos no mundo sensível, no mundo do fluxo perpétuo heraclitiano, mas nós mesmos, “sem tirarmos os pés do chão”, sem precisarmos partir para outra vida, podemos ter acesso, pelo conhecimento filosófico, ao mundo inteligível para contemplar as Formas e a Forma do Bem.