Humano,
demasiado humano
Interroguemo-nos
sobre quem é o homem.
Começarei trazendo
à cena estes trechos do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, colhidos de seu
livro Contra um mundo melhor. (2010)
Consideremos o primeiro deles:
"A maior impostura moderna não é sua
utopia racionalista, mas sim sua denegação sistemática da infelicidade.
(p. 51)
(p. 51)
Não
se trata – fique bem claro – de negar valor à felicidade, mas de reconhecer que
a infelicidade é uma experiência constitutiva da condição humana. Somente os
homens têm consciência da infelicidade e somente eles podem disfarçá-la ou
mesmo denegá-la, conforme observa Pondé.
Prossigamos
com Pondé, que nos lembra muito apropriadamente sobre a importância de se levar
em conta o fato da infelicidade, quando pensamos sobre a condição humana:
"A ideia de
que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas
as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada,
mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como
o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias para a
felicidade. SOMOS ESCRAVOS DA FELICIDADE, MAS É A INFELICIDADE QUE NOS TORNA
HUMANOS. Não sou dado a acessos de culpa, mas experimento cotidianamente o
tormento de minha humanidade. Sou fraco, submetido ao desejo desorientado, leio
e escrevo como forma de combater o mal que me habita. Minha letra me ajuda a
saber o que sou: um escravo do gosto".
(p. 65)
(p. 65)
(ênfase minha)
O trecho em destaque encapsula a
posição de Pondé. A infelicidade nos humaniza. Não se deve daí concluir que na
vida humana só haja dor, sofrimento e infelicidade, mas não se pode negar que a
dor, o sofrimento e a infelicidade tecem as malhas da existência humana. No
tocante à condição humana, as palavras de Ernest Becker, em A Negação da Morte (2012), iluminam-nos
a consciência:
“O que significa
ser um animal consciente de si mesmo?
A ideia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento
para vermes. Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de
si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela
auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(pp. 115-116)
Este trecho de Becker afina-se com este
outro excerto, de Schiffter, em Filosofia
Sentimental – ensaios de lucidez (2012). Também aqui o absurdo da
existência é estética e singularmente expresso:
“A vida é uma
infecção. Uma contaminação do Nada pelo tempo. Uma vez contraída, salvo se
acabar pelo suicídio ou por um acidente, ela persiste até esgotar o corpo e a
alma”.
(p. 88)
Combinemos as ideias do primeiro trecho
com as do segundo e construamos o seguinte raciocínio. Somos seres
autoconscientes, portanto, não só sabemos quem somos, mas também sabemos que
estamos destinados ao envelhecimento e à morte. Até que a nossa morte chegue,
teremos de lidar com a angústia que decorre do saber que as pessoas que amamos
também morrerão. Embora conscientes da morte, que atinge a todos nós,
indiscriminadamente, vivemos imersos em construções de significados. Viver para
o homem é construir significados. No entanto, todos esses significados que
vamos construindo ao longo da vida se extirparão com a nossa morte, ou serão
abalados com a morte dos que amamos. E não há como escapar a essa ruína. Daí o
amor como uma experiência de alegria que torna suportável a vida. Mas mesmo o
amor, tal como a vida, é frágil. Todavia, para muitos dentre nós, vale
agarrar-se a essa fragilidade do que abandonar-se à angústia do absurdo.
Se, por um lado, somos cônscios da
morte; por outro lado, ignoramos completamente donde proveio o “eu-mesmo” que
nos distingue como indivíduos, como subjetividades encarnadas. Na ignorância
sobre a origem da existência desse ‘eu singular’ (ficcional, imagético,
simbólico, como ensinam os psicanalistas), resta-nos a afirmação de que fomos
lançados à existência, ou de que viemos do Nada. Resta-nos, pelo menos para os que entre nós são céticos, apenas o reconhecimento do absurdo de ser um entre outros num planeta
entre outros, numa galáxia entre bilhões de outras, num universo cuja origem
também ignoramos. Vivemos neste círculo achatado nos polos cujas condições
naturais favoreceram a vida, muito embora não deixem de ser elas mesmas
ameaçadoras à sobrevivência dos viventes.
A ideia de que contraímos a vida como
contraímos uma doença ou uma infecção ilustra duas situações: a primeira diz
respeito ao fato de que, como sucede com as infecções, não a contraímos
voluntariamente (podemos nos expor ao risco de contraí-las, mas não as
contraímos por força da nossa vontade de contraí-las); a segunda diz respeito
ao fato de que, uma vez contraída, uma infecção nos causa sérios danos à saúde.
Também a vida nos causa dores e sofrimentos.
Se a vida nos infeccionou ou nos
contagiou, ela nos permitiu participar do Ser (existência), sem que nos tenha
consultado. E nem poderia, evidentemente, porque a vontade só é possível pelo
contágio da vida. Antes de a vida nos infectar, nós não éramos. Antes da vida,
o não-ser. A negação do não-ser é a vida, é o ser, é a existência. Tomamos
parte da existência quando fomos infectados pela vida.
Está aí representado o drama humano:
somos seres conscientes de que nos tornaremos “alimento para os vermes”, como
nos lembra Becker; seres conscientes de nossa finitude, de nossa
transitoriedade, seres imersos no mistério e conscientes dessa situação que,
uma vez colocada para o pensamento, torna-se fonte de angústia e desespero para
o homem comum. Por isso, este homem comum, o filisteu de Kierkegaard, vive
mantendo a verdade de sua condição recalcada; segue ele se ocupando com seus
afazeres cotidianos, imerso em suas obrigações rotineiras, para não ter de
enfrentar a verdade de sua condição. Sem a filosofia, que lhe oferece meios para
suportá-la, este homem sentiria seu eu interior rachar até estilhaçar-se,
porque absorvido no sentimento do absurdo de sua própria condição tanto como
ser da espécie humana (herdeiro consciente de um destino trágico comum a todos
os viventes) quanto como ser individual dotado de seus próprios significados,
que o tornam desejoso de transcender o mundo.