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sábado, 3 de março de 2012

"É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável." (Fernando Pessoa)


Horas Murchas


O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento, todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos sonhos (...)
É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter”

(Livro do Desassossego, p. 83)

Pensamentos  vigorosos e grávidos de inquietude tomaram formas robustas em meu espírito; num átimo apenas, parecia-me possível apreendê-los para discipliná-los ao gosto de meu senso crítico-reflexivo. No entanto, se me abateu sobre o espírito um desânimo que me tornou espinhosa a tarefa. Quiçá, agora que começo a escrever estas linhas, o texto que se desnuda ao gesto interpretativo do leitor possa parecer-lhe amputado. As palavras antes vivas de uma energia sanguínea e fervorosas na alma quiçá lhe pareçam esquálidas neste papel virtual.
Se, por ventura, os enunciados subsequentes vierem a animar o leitor, peço-lhe que não desista da leitura. É justamente o desencanto e o desânimo que alicerçam o grito amordaçado, portanto, inaudito, destas palavras. Há, como observa Pessoa, o que é indispensável à nossa vida e o que é desejável, sem que seja necessário. Todavia, somos seres de desejo. É humano desejar aquilo que nos é dispensável, aquilo de que não temos necessidade. A psicanálise ensina-nos, porém, que nós, seres humanos, não sabemos, na verdade, o que desejamos. Estamos sempre insatisfeitos com aquilo que conseguimos ser. O produto de nossos desejos é sempre visto como incompleto, insatisfatório, ineficiente. É o que nos ensina Fábio Herrmann, em O que é psicanálise?:

“(...) nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome  daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa [cultura], acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?
(p. 55)

Logo o leitor será conduzido ao desencanto que me alimenta estas palavras. Vale, por ora, referir outros trechos que nos ajudam a aclarar nossa consciência e assentar nossos pensamentos em terrenos sólidos. Leiam-se os trechos abaixo, colhidos de Preleções Sobre a Essência da Religião, de Ludwig Feuerbach. As citações constituem palavras do tradutor sobre as teses de Feuerbach, ainda na seção introdutória da obra. Leiamos com atenção os trechos, o primeiro dos quais mais longo, pois que referido na íntegra:

“A religião é, pois, a fase infantil da humanidade. Um dia o homem descobrirá que ele adorou sua própria essência, que criou em sua fantasia um ser semelhante a si, mas infinitamente mais perfeito, que está sempre pronto para lhe oferecer consolo no sofrimento e proteção nos momentos mais difíceis e angustiantes da existência. A religião será então substituída pela cultura, pela ética, pelo humanismo, porque só a cultura pode unir os homens, não a religião. A fé, a religião, separa, cria cisões entre os homens devido à rivalidade entre as diversas seitas. Não é ateu no verdadeiro sentido, diz Feuerbach, aquele que nega o sujeito, e sim o que nega os predicados do sujeito. Em outras palavras: o verdadeiro ateu não é aquele que diz “Deus não existe”, e sim o que diz “a bondade não existe, a justiça não existe, a misericórdia não existe”, etc., porque aqui surgiria o problema (...) concernente ao que seria mais importante: Deus ou suas qualidades? Ou ainda: devemos ser bons porque Deus é bom ou já não seria o próprio Deus bom porque é bom ser bom? Se o mais importante é então ser bom, podemos abraçar a bondade independentemente de Deus, mas se o mais importante é seguirmos a Deus, poderemos adorá-lo e cultuá-lo independentemente da bondade, o que a história mostra em todas as suas páginas através das crueldades praticadas pelo fanatismo religioso”.

(p. 10)

Feuerbach nos ensinará que a essência humana foi elevada e representada como Deus, para assim ser adorada. Divinizou-se o sentimento, a afetividade. Deus é mera abstração. Acompanhemos abaixo o raciocínio do autor, nas palavras do editor:

“Feuerbach concluiu então: não foi Deus que se fez carne para salvar o homem, porque antes de Deus se rebaixar ao homem foi necessária a elevação da essência humana até Deus, ou seja, foi necessária a divinização da afetividade, do sentimento. Deus torna-se, assim, um reservatório de todos os valores positivos aos olhos do ser humano, mesmo que sejam em si contraditórios. Por exemplo: Deus é infinitamente bom e justo, mas o homem não cogita que quem é infinitamente bom nem sempre pode ser justo e que, inversamente, quem é justo nem sempre pode ser bom. Deus, conclui então, é um conjunto de infinitos atributos exatamente porque não é nenhum, porque é uma mera abstração. Por isso é dito ser inefável, incognoscível, indefinível, inesgotável.”

(p. 8)

Mais adiante, encontramos outro trecho que vem confirmar uma intuição que tive a oportunidade de expressar em palavras alhures, neste espaço. Trata-se de um argumento poderoso, já que atinge o coração da fé. A conclusão a que chegamos é que, para crermos em Deus, ou para termos fé, precisamos ser egoístas, egocêntricos e soberbos. Este trecho busca desenvolver a origem da religião que, para o filósofo alemão, se encontra no medo. O medo produz no homem a necessidade da religião ou de Deus.

“O homem se sente condicionado, dependente; por isso teme pela sua vida, pela sua saúde, pela sua sorte, pelos seus interesses, sejam eles os mais quotidianos e superficiais. Daí poder a religião ser explicada também como um fruto do egoísmo. O homem chega a implorar aos deuses, antes de uma batalha, pela destruição dos seus inimigos. Muitas vezes não importa o que interessa a outros homens, mas sim o que interessa a quem implora, seja individual ou coletivamente. Assim, o homem rende graças por se sentir salvo ou curado, mas nesse momento não se lembra da justiça, pois não se lembra que outros homens não tiveram o mesmo privilégio e foram massacrados pelos mais estúpidos acidentes. Donde concluir Feuerbach que esta chamada Providência Divina ou Predestinação, que distribui felicidade e desgraça indistintamente para bons e maus, ricos e pobres, não possui uma só característica que a pudesse distinguir de “sua majestade o acaso”.
(p. 9)

Alhures, esta mesma ideia de egoísmo relacionada à fé ocorreu-me. Aquele que roga para que seja curado de câncer terá de ignorar que o vizinho ao lado, ou milhares de pessoas, morreu de câncer. Quem dá graças a Deus por ter saído ileso de um acidente, terá de ignorar que uma família morreu num acidente em outro lugar. Quem agradece a Deus o alimento que tem sobre a mesa, antes de degustá-lo, deverá ignorar que milhões de pessoas no mundo passam fome.
A sensatez de Feuerbach, seu espírito vivo e ácido, merece ser notada nas seguintes palavras que lhe são imputadas:



“Construo minhas ideias a partir das coisas e não procuro, como a maioria, ver as coisas através das ideias preconcebidas e impostas. E aos críticos respondia: Se for o caso, prefiro ser um demônio aliado à verdade do que um anjo aliado à mentira”.
(p. 11)


Se ao leitor pareceu que eu pretendo reunir argumentos em defesa do ateísmo, está enganado. Conquanto eu acredite que poderia eu escrever um livro sobre as vantagens em adotar o ateísmo, que poderia eu reunir nele uma enxurrada de críticas às religiões organizadas, especialmente à judaico-cristã, cuido não ser um empreendimento vantajoso, visto que o público a quem ele deveria atingir, possivelmente, o ignoraria por completo. Mais vale empregar esforços em empreendimentos que possam surtir efeitos desejáveis em curto prazo. Lamento, contudo, que livros como o de Bart D. Ehrman, como Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, O que Jesus disse? O que Jesus não disse?, Os Evangelhos Perdidos, O Problema com Deus sejam completamente ignorados por muitos religiosos e apologistas da religião. Lamento que lhes sejam negados os conhecimentos que se acham nestes livros. Lamento que os dirigentes de suas formas de pensar, agir e compreender o mundo (pastores, padres, missionários...) lhes ocultem as contradições das Escrituras, a história de falsificações e disputas em torno dos Evangelhos. Lamento que ainda insistam em repisar clichês, tais como “religião não se discute”, coisa que aprenderam no interior de suas igrejas, já que posta seriamente em discussão a religião se esfacela, mostra sua nudez absurda. O sagrado só pode ser preservado, se intocável. Só há sagrado onde há proibição e veneração. Mas os objetos não são sagrados em si, mas assumem o valor de sagrado, pela ação simbólica dos homens. Isso me parece tão evidente, tão claro! Por que não o é para a grande maioria das pessoas no mundo?
Escrevo, no dia em que são trazidas à tona informações sobre as 32 pessoas que morreram na passagem de tornados no meio-oeste e sul dos Estados Unidos. Catástrofes que acontecem todo ano e que, surpreendentemente, não abalam a fé dos religiosos. Sequer parecem inquietados com o fato de que um Deus bom não poderia criar uma natureza tão destrutiva, tão nociva à vida dos seres que o adoram. A Natureza dá-nos em todo momento um tapa na cara, para que acordemos de nosso delírio. Mas ele é forte, penetrante, está arraigado na nossa consciência que, contaminada pela ideologia, de que é expressão, por excelência, a religião, inverteu a relação entre o céu e a terra. Se 32 pessoas morrem por causa de tornados, e se tornados são fenômenos naturais (da Natureza, supostamente criada por um Deus que é bom e amor), como eu poderia, ao menos, não desconfiar de que não há Deus nenhum a zelar por nós? As contradições a que se refere Feuerbach, que são engendradas pela ideia de Deus, sempre que a confrontamos com o modo como o mundo é (e não como gostaríamos, desejaríamos que fosse) saltam aos olhos:

1a  proposição: Deus é o criador de tudo que existe (da Natureza);
2a proposição: Deus é bom e justo
3a proposição: Deus é todo-poderoso

Vejamos o que realmente acontece: tornados matam 32 pessoas nos Estados Unidos; epidemias dizimam populações, etc. Se confrontadas com as evidências, as três proposições são falsas. A terceira proposição é facilmente refutada pela observação de que Deus não tem poder nenhum sobre a fúria da natureza. Se ele criou-a, não tem sobre ela qualquer controle. Nem sobre os microorganismos que matam milhares de pessoas.
Não me alongarei nesse tema, já que, como disse, não pretendo deslindar os embaraços feitos pela penetração das ideias religiosas nas formas como milhares de pessoas percebem/ compreendem o mundo.
Falava eu de empreendimentos que parecem merecer de nós algum esforço. Como pesquisador e professor, na minha agenda, figura o combate a outra forma de ignorância coletiva: a que engendra o preconceito linguístico. Outro fenômeno sócio-cultural tão característico de nossa sociedade que é disseminado em quase todos os setores e ignorado por quase todos os agentes sociais. Coloco-o no mesmo nível de gravidade, visto que produz exclusões, reforça as desigualdades.
A mim, lhe confesso, leitor, cansa ouvir coisas do tipo “Fulano não sabe falar português”, “Você só fala errado”, etc. Nesse domínio, também opera uma ideologia. As pessoas acreditam que há formas corretas e erradas em si mesmas de usar a língua. Acreditam que as expressões linguísticas são certas e erradas, como se tais valores independessem de quem as usam. E somente com muitas aulas de linguística, particularmente, de sociolinguística, podem, ao menos, reconhecer que ‘certo’ e ‘errado’ resultam de valorações sociais feitas pelos segmentos dominantes, ou seja, pela comunidade de falantes que gozam de poder econômico, político e cultural. A ideologia do erro em matéria de linguagem tem uma longa tradição, que remonta ao século V a.C.
Gostaria de que as pessoas fossem educadas, instruídas para que deixassem de escarnecer do modo de falar de seus semelhantes. Cumpre ao professor e à escola educar sociolinguísticamente nossos estudantes, para que compreendam que, por detrás da censura, dos comentários jocosos feitos sobre a fala do outro, existe o preconceito linguístico e a ideologia do “erro” a sustentá-lo. Se fosse trazido à consciência da grande maioria das pessoas que os usos considerados “errados” são aqueles feitos pelos membros das classes dominadas, pelos excluídos social, política e economicamente, ao passo que os usos considerados “corretos” são aqueles feitos pelos membros das classes dominantes, mais favorecidas social, política e economicamente, compreenderiam essas pessoas que o que determina a discriminação dos usos em certos e errados (que são tão só diferenças linguísticas!) é o poder e que tal discriminação vem reforçar as desigualdades, a exclusão nos domínios social, político e cultural. Quando usamos a língua, não custa insistir, podemos nos valer dela como um poderoso instrumento de discriminação social. Pelo uso da língua, demarcamos as fronteiras sócio-culturais entre nós e a quem nos dirigimos. Mostramos não pertencermos à mesma classe social do nosso enunciador, classe social que julgamos tão atrasada quanto “errados” são seus comportamentos linguísticos. Marcos Bagno, quiçá o mais inveterado combatente do preconceito linguístico em nosso país, bem escreve sobre o compromisso sócio-político que deve assumir todo professor de português.À página 81, em Nada na Língua é por acaso, escreverá:

“Numa sociedade que quer ser verdadeiramente democrática, é preciso conhecer, descrever, denunciar e combater os componentes do senso comum que funcionam como repressores de discriminação social, de humilhação, de opressão psicológica e até mesmo de violência física”.


Só a morte me apartará dos livros. A busca pelo conhecimento, em qualquer domínio que ele me seja possível, de acordo, contudo, com as minhas inclinações, só será interrompida quando a luz de meus olhos se apagar. Por vezes, recairá sobre mim o mesmo desalento que me faz buscar novos caminhos profissionais, que me faz dar as costas para a cultura do efêmero, do entretenimento, da alienação. Deixo a lua onde ela deve ficar; não aspiro mais do que àquilo que o meu breve tempo de existência me permite alcançar. E em face de uma audiência inaudível, contento-me em ser eu – um inconformado conformado a mim mesmo.