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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Fotografia


Fotografia

Ao cabo de um dia inexpressivo, a noite, madrasta traiçoeira, visita-me sombria. Ao romper desta noite, ocorreu-me que jamais tive sobre a prateleira do quarto um porta-retrato com uma fotografia em que se estampasse uma imagem de mim junto a uma imagem de amor encarnado. Nunca experimentei a sensação – provavelmente, aprazível - de deter-se a olhar um encontro prazenteiro e congelado naquele pedaço de papel fotográfico, que aprisiona os bons momentos de nossas vidas, para que eles não se esvaiam na memória e também para que eles sejam sinais à posteridade de que houve vida em nossos corpos. A fotografia, à semelhança de um museu, eterniza a nossa existência, embora nem nosso corpo nem nossa alma permaneçam; somos apenas impressões de vida; resquícios de um estado de existência; imagens fixadas e inanimadas, abandonadas a um tempo que não voltará... Na fotografia, nosso corpo está amalgamado com o tempo; nesse pedaço de papel, finalmente, tornamo-nos capazes de nos unir ao tempo de tal modo, que compomos com ele uma só unidade, morta, mas inseparável e eternamente feliz, desde que a natureza não se encarregue de pulverizar o papel, reduzindo-o a migalhas de impressões de vida... Sucedendo isso, reunir-se-ia a fotografia – impressão de felicidade congelada – a todas as outras matérias do mundo, num laço de comunhão fraterna, porquanto "tudo quanto é matéria torna-se pó"...
Só não se tornam pó a indiferença, o desamor, a frigidez, a leviandade humanas; a intolerância, o racismo, o sexismo, a ignorância crassa. Todos esses sentimentos ou atitudes, irmanados, alocam-se no corpo de algumas pessoas, ao longo da vida; e deles se tornam hospedeiras... Não me é possível dizer que, após transpassar os portões da morte, um ser humano hospedeiro possa expurgá-los; cuido que assim deve ser; afinal, não haveria razão para crer em que, casando-se com a morte (casamento inevitável e, de fato, legítimo, pois o padre é Deus), o infeliz tivesse de experimentar o dissabor de suas relações afetivas novamente... Espera-se, penso eu, que, no enlace com a morte, viva-se, finalmente, a comunhão pura e perfeita do amor; pura, porque não estaria eivada de egoísmo (não haveria mais o “ego”), de indiferença, de mágoa, de lubricidade, etc. ; perfeita, porque traria o selo de Deus, que não discrimina os homens rotulando-os de teístas e ateus, de fiéis e hereges.
O álbum de fotografia! Ah! É um baú de ilusões... Sim, mas de ilusões verdadeiras... Afinal, os acontecimentos que povoam cada pedaço de papel que ali se acha foram factuais, muito embora, ao deter-nos na observação das imagens, se nos afigure que podemos revivê-los, submergindo naqueles “mundos” congelados e tornando-nos mais uma personagem das “cenas” de nossas vidas, das quais fomos, muita vez, os protagonistas. Algumas outras vezes, delegamos esse papel a uma tia esclerosada, a cujos desejos não nos poderíamos obstar, sob pena de viver sob murmúrios de reprovação ou de imprecação; outras vezes, tivemos de ceder aos caprichos de um tio beberrão e mal-amado que, após ter enviuvado, já não distingue mais os espécimes de pessoas que revisitam sua cama. É... Felizmente, o leitor nunca teve um tio assim, não é? Mas ele existe; vive quiçá na mais politizada e decorosa família brasileira, ostentando um sorriso brejeiro, enquanto, com uma das mãos, segura uma caneca de cerveja, obtida em Beer Feast, a custo de alguns arranhões e hematomas, ao lado de uma dessas “turbinadas” que pousam em qualquer aeroporto, ainda que “o controlador de vôo” seja tão incompetente quanto arcaico. Talvez, ele conserve uma foto assim, relegada ao acervo de suas fanfarrices. Não se deve, jamais, aceitar uma foto dessas, sob pena de macular a morada cândida dos acontecimentos perfectizados, que, com inestimável esmero, se conservou...
Ah! Como é bom ostentar na estante de casa uma foto de um encontro amoroso, de um beijo selado perante um bando de desconfiados e de agourentos, que, às ocultas, maldiziam a união... Ah! Como é bom, ante o retrato, desatar a chorar, de sorte que as lágrimas que nos caem dos olhos deitem sobre o papel como pequenos flocos cristalinos de dor, em cuja composição entra uma grande dose de saudade diluída numa densa dose de mágoa... Quando se abandona a um pranto convulso, sente-se o diafragma comprimir, ao que se seguem espasmos dolorosos da alma, que, debalde, conquanto com notável perseverança, procura se libertar da prisão corporal e alçar vôo catártico aos Céus das virtudes divinas. Nessas horas, o ar – ópio dos pulmões – nos escapa; a escuridão que nos assalta os olhos faz-nos entregar-nos ao travesseiro, já embebido em lágrimas.
Ah! Não tenho uma fotografia assim... Estou imune a essa experiência desgostosa, por isso me lancina impiedosa tristeza fotografada em minha alma.