Análise formal e Análise semântica
na
descrição gramatical
Linguistas são aqueles que se dedicam ao estudo
científico da linguagem. Parte de
seu trabalho consiste em explicitar a gramática
de uma língua – gramática que constitui, necessariamente, um modelo teórico, isto é, uma
hipótese sobre como essa língua se organiza estruturalmente de modo a permitir
a expressão e a compreensão de sentidos. Assim entendida, a gramática constitui
um modelo descritivo-explicativo da estrutura e do funcionamento de uma dada
língua.
Tendo em vista o exposto,
no trabalho de produção de modelos de gramática, as unidades da língua podem
ser descritas sob dois pontos de vista: o formal
e o semântico. Quando buscamos
descrever as unidades linguísticas do ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar um conjunto de aspectos
do qual está excluída qualquer referência a noções recobertas pelo domínio da
semântica. Analisar uma unidade linguística do ponto de vista formal significa considerar relações
internas ou externas a ela, em cuja base está a interseção entre os planos
sintagmático e paradigmático, sem aludir a qualquer aspecto da dimensão
significativa dessa unidade. Por outro lado, analisar uma unidade linguística
semanticamente é considerar aspectos de sua natureza significativa. Vamos
esclarecer como se opera a análise segundo esses dois pontos de vista,
tomando-se, para tanto, a palavra lealdade.
Convém dizer que a forma, que é sinônimo de estrutura, de um constituinte
linguístico é resultado da combinação de suas unidades na cadeia sintagmática.
Assim, a forma da palavra lealdade
resulta da combinação da base (radical) “leal” com o sufixo “-dade” (cf. leal +
dade = lealdade (forma)). A explicitação da forma de uma unidade linguística
supõe a divisão dessa unidade em unidades menores por meio da análise da
totalidade da construção. Tomando-se, portanto, a palavra lealdade, pode-se considerar, do ponto de vista formal, seus
elementos e características fonológicas (fonemas, sílabas, acento). Dir-se-á,
por exemplo, que lealdade é
uma palavra polissílaba, que sua estrutura silábica é CV-VC-CV-CV (C =
consoante; V = vogal), que seu acento tônico recai sobre a penúltima sílaba e
que, por isso, se trata de uma palavra paroxítona. Note-se que não se faz
qualquer referência ao significado da palavra “lealdade”, mas se especifica
informações que tocam à sua estrutura fônica.
No domínio morfológico,
submeter a palavra lealdade à análise
formal é procurar identificar os elementos que entram a fazer parte de sua
estrutura. Por exemplo, lealdade é
formada da combinação do radical “leal” (que é uma forma livre na língua) com o
sufixo “-dade” (forma presa). Na tradição gramatical, essas duas unidades
mínimas dotadas de significado chamam-se morfemas.
Todavia, o ponto de vista formal proíbe-nos de levar em conta qualquer aspecto
significativo ligado a essas mínimas unidades. Quando limitamos a análise ao
ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar a constituição da
forma de uma dada unidade linguística, seja ela uma palavra, seja um sintagma,
seja uma frase.
No domínio sintático,
pode-se dizer que a palavra lealdade
ocupa a posição de núcleo de um SN (sintagma nominal), que se deixa antepor de
um determinante, como um artigo (cf. a lealdade), um pronome
demonstrativo (cf. essa lealdade), um pronome indefinido (cf. alguma
lealdade), etc. Novamente aqui o ponto de vista formal circunscreve a análise
às relações entre as unidades linguísticas indispensáveis à constituição da
estrutura. Por exemplo, dado o sintagma nominal “a lealdade do cachorro”,
diremos que sua estrutura resulta da combinação de um núcleo “lealdade” com um
determinante externo “a” e com um SP (sintagma preposicional) “de cachorro” que se acha encaixado no SN:
A análise formal
contempla também aspectos de concordância e possíveis correspondências
sintáticas em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e
paradigmático. Por exemplo, do ponto de vista formal, distinguem-se as funções
de “lealdade” nas construções “A lealdade do cachorro nos comove” e “Nós
apreciamos lealdade” pela posição ocupada pela palavra “lealdade” na frase. Na
primeira frase, ela ocupa a posição à esquerda do verbo. É núcleo de um
sintagma nominal que preenche a posição típica do sujeito. Como tal, governa a
relação de concordância, isto é, o núcleo “lealdade”, que é um substantivo que
se apresenta no singular, obriga o verbo a assumir a forma de terceira pessoa
do singular, para, assim, atualizar a relação de concordância. Na segunda
frase, “lealdade” ocupa a posição à esquerda do verbo (apreciar). Não toma
parte na relação de concordância, já que ela é, agora, governada pela unidade
“nós” (sujeito) que se acha na posição à esquerda do verbo. A distinção formal
da função sintática de “lealdade” pode também apelar para a comuta com uma
forma pronominal. Em “A lealdade do cachorro nos comove”, todo o conjunto “a
lealdade do cachorro” pode ser comutado com o pronome “ela” (cf. ela (a
lealdade do cachorro) nos comove). Por outro lado, em “Nós apreciamos
lealdade”, pelo menos em uma das variedades da língua, usamos o clítico “a”:
“Nós a apreciamos”. Nas variedades desprestigiadas, pode-se encontrar
o pronome “ela” na posição pós-verbal em que figura “lealdade” (cf. Nós
apreciamos ela). Nesse caso, a distinção entre as funções sintáticas
desempenhadas por “lealdade” se faz não só pela observação da posição ocupada
por esse vocábulo na estrutura oracional, mas também se apóia na relação de
concordância centrada no verbo. Assim é que o “ela” que se topa depois do verbo
não toma parte da relação de concordância; por outro lado, o “ela” que se acha
à esquerda do verbo (na posição típica do sujeito), governa a relação de
concordância. Vejam-se outros dois exemplos abaixo:
(1) O espetáculo não
agradou a Marcos.
(2) Maria não confia em Marcos.
Do ponto de vista formal,
pode-se fazer ver que os constituintes “a Marcos” e “em Marcos” comportam-se de
modo diferente. É verdade que ambos estão pospostos ao verbo e estão encetados
de preposição, ainda que em (1) figure a preposição “a”, exigida pela valência
do verbo “agradar” e em (2) figure a preposição “em”, exigida pela valência do
verbo “confiar”. Sucede, contudo, que apenas “a Marcos” é passível de comutação
com “lhe”. Trata-se de um fenômeno sistemático em português, apontado em minha
dissertação de mestrado: os complementos encetados por “a” (e também “para”,
preposição que se acha em flutuação com “a” com verbos que denotam
‘transferência de alguma coisa’ ou ‘deslocamento de uma coisa no espaço’)
comutam com “lhe”. Por outro lado, “em Marcos” não admite a comutação com “lhe”
(cf. * Maria lhe confia). Não devemos confundir o uso do verbo “confiar” na
construção “confiar em”, à qual se associa o significado ‘ter confiança’, com o
uso de “confiar” na construção “confiar a”, à qual se associa o significado
‘entregar aos cuidados de’ (cf. Confiei ao advogado meus documentos). A
condição de possibilidade para a comuta com “lhe” é a ocorrência da preposição
“a”. A possibilidade ou não de comuta com “lhe” levou alguns gramáticos, entre
os quais Rocha Lima, a distinguir dois tipos de complemento verbal: o objeto
direto, cujas características formais é ser introduzido pela preposição “a” (ou
para) e ser comutável com “lhe”; e o complemento relativo, que é encetado por
qualquer preposição (inclusive “a”), mas que não é comutável com “lhe”. A
tradição escolar de ensino de língua portuguesa não leva em conta essa
distinção, embora se trate de uma distinção formal (possivelmente também semântica) que, exigindo ou não outra
nomenclatura, deveria ser estudada como um aspecto estrutural e funcional da
gramática do português. A importância de considerá-la reside em que é um
aspecto do conhecimento linguístico intuitivo do falante nativo de língua
portuguesa. Qualquer falante nativo de português reconhece que, dada a
estrutura X DEPENDE DE Y, a variável “Y” é substituída por “dele” ou “disso”
(cf. Você não depende dele/ disso), mas não por “lhe” (cf. * Você não lhe
depende). Por outro lado, o reconhecimento da referida distinção formal aponta
para outro fato, por vezes, ignorado: há casos em que, a despeito da ocorrência
de um complemento introduzido por uma preposição diferente de “a”, o “lhe” pode
figurar na posição do complemento, pelo menos nas variedades desprestigiadas.
Por exemplo, na construção “João bateu no irmão”, é usual, nas variedades
desprestigiadas do português, a ocorrência de “lhe” preenchendo a função de “no
irmão”: “João lhe bateu”.
Na construção “Maria não
confia em Marcos”, o constituinte “em Marcos” é substituído pela forma “nele”.
Novamente, não fazemos qualquer referência a aspectos semânticos quando
limitamos a análise gramatical ao ponto de vista formal. Veja-se também que as
funções desempenhadas pelo constituinte “de Marcos”, nas orações seguintes, se
diferem, do ponto de vista formal, pela posição que ele ocupa na cadeia
sintagmática: (a) Maria gosta de Marcos; (b) O chapéu de Marcos é marrom. Em
(a), “de Marcos” dispõe-se junto ao verbo, à esquerda dele; em (b), integra um
SN, articulando-se a um núcleo nominal (um substantivo). Esse SN dispõe-se à
esquerda do verbo, ocupando a posição típica do sujeito. Em parte, é por isso
que chamamos “de Marcos”, em (a), de “objeto direto” ou “complemento direto”; e
em (b), de “adjunto adnominal”.
Note-se, de passagem, que
a distinção tradicional entre as funções de “complemento nominal” e “adjunto
adnominal”, que, do ponto de vista formal, não parece justificar-se, se esteia
em critérios semânticos. Senão, vejamos. Considerem-se as orações abaixo:
(3) A casa de
Saquarema é muito boa.
(4) A divulgação da
notícia desagradou aos policiais.
(5) A fala do
professor Elias emocionou a todos.
Tanto em (3) quanto em
(4) e em (5) figuram grifados SP encetados da preposição “de”. Esses SP se
prendem a um núcleo nominal. A tradição gramatical distingue entre duas funções
com base em critérios semânticos. Em (3) e (5), o SP ‘de__SN’ cumpre a função
de adjunto adnominal. Em (3), porque se prende a um substantivo concreto para
especificar ou classificar seu referente. Em (5), porque se liga a um
substantivo abstrato que designa ‘ato ou evento’ em relação ao qual o
constituinte ‘de__SN’ representa o AGENTE. Trata-se de uma função semântica.
Entendemos que em “A fala do professor Elias”, “do professor Elias” desempenha
a função de AGENTE, daquele que fala. Por outro lado, em (4), “da notícia”,
prendendo-se a um substantivo abstrato que designa também o evento, cumpre a
função de PACIENTE ou OBJETO. Dessa vez, entendemos que “da notícia” é a coisa
que é divulgada.
A distinção entre adjunto
adnominal e complemento nominal não se limita à referência a esses aspectos
semânticos. Outros mais são levados em conta. O complemento nominal, segundo
reza a tradição, completa o significado de um substantivo abstrato que designa
ação, evento ou mesmo qualidade. Assim, em “A amizade de Bianca é
importante para mim”, o constituinte “de Bianca” é um complemento nominal
simplesmente porque se liga a uma qualidade que encontro em Bianca. Implícita
aqui está a suposição da natureza transitiva de substantivos que designam
‘evento, ‘ação’ e ‘qualidade’. O substantivo “amizade” prevê, em sua semântica,
uma estrutura relacional, formalizável como
“AMIZADE de X por Y”, em que X e Y são complementos nominais.
A distinção entre adjunto
adnominal e complemento nominal, na medida em que se apóia, basicamente, em
aspectos semânticos, traz mais problemas do que os resolve. É claro, poderíamos
dizer, que em “A amizade de Bianca”, “de Bianca” não representa o AGENTE, mas
também não designa o PACIENTE. Poder-se-ia ver em Bianca a FONTE de uma relação
FONTE-PACIENTE. Ora, tanto Bianca quanto “eu” somos EXPERIENCIADORES da relação
de amizade. A experiência de amizade, quando representada na estrutura AMIZADE
de X por Y, encerra uma relação entre uma entidade X que é a FONTE (donde se
origina a amizade) e o PACIENTE (que é, de certo modo, “afetado” pela amizade).
A descrição semântica não é determinante para a distinção entre duas funções
que, formalmente, não se diferenciam.
Não há dúvida de que
alguns substantivos, os chamados abstratos que denotam ‘ato’, ‘processo’ ou
‘atividade’, são do tipo transitivo, como “divulgação”, “apresentação”,
“atualização”, etc. (claramente, por força de sua base verbal). Tais
substantivos preveem uma estrutura relacional, a qual compreende dois termos
que se articulam ao núcleo: APRESENTAÇÃO de X por Y. As posições de X e Y são
ocupadas pelos constituintes ‘de__SN’ e “por__SN”. Ora, esses constituintes são
integrantes da estrutura prevista pela semântica desse nome. Não há razão para
atribuir duas funções distintas com base na observação, de cunho semântico, de
que um representa a coisa que é objeto de apresentação; e o outro, a pessoa que
apresenta. Ambos são complementos do nome, ou melhor, argumentos do nome.
A tradição gramatical
reza que muitos adjetivos e advérbios em “-mente” selecionam complementos
nominais. Todo complemento nominal é encabeçado de uma preposição exigida pela
forma nominal a que ele se articula. Por exemplo, o adjetivo “acessível”
seleciona um complemento encetado da preposição “a” (cf. O espetáculo é
acessível a todos). O advérbio “contrariamente” também seleciona um
complemento introduzido por “a” (cf. Agiu contrariamente à minha sugestão).
Tomando-se novamente a
palavra lealdade, pode-se estudá-la,
finalmente, do ponto de vista semântico.
Nesse caso, consideram-se seu significado denotativo, seus possíveis
significados conotativos, suas restrições
de seleção, etc. Por exemplo, “lealdade” parece selecionar, para a
posição ‘de__SN’ (a lealdade de X), um substantivo que designa animal, como
“cão” (cf. A lealdade do cão). Por outro lado, usamos “fidelidade” para se
referir a seres humanos. Ademais, “lealdade” designa uma qualidade abstraída de
entes, ao passo que “casa” designa um ente concreto, uma substância.
O verbo “voar”, por sua
vez, seleciona para a posição de sujeito um substantivo que comporta a
propriedade [+ voável]. Em outros termos, é parte da análise semântica do verbo
“voar” a informação de que esta forma faz restrição de seleção quanto ao tipo
semântico de substantivo passível de ocupar a função de sujeito. Ora, “voar”
seleciona sujeitos como “avião” e “águia”, que comportam o traço sêmico [+ voável], mas
recusa a ocorrência de formas como “árvore” e “casa”, que não comportam tal
traço.
Quando se define o objeto
direto como “termo que completa o significado de um verbo transitivo direto”,
está-se fazendo referência ao aspecto semântico dessa função sintática. Quando
se define o agente da passiva como o termo que designa o agente de uma
construção na voz passiva, está-se referindo a um aspecto semântico dessa
função sintática.
Pode-se discriminar os planos sintático e semântico na
análise da seguinte oração abaixo:
(6) Maria entregou
a mochila ao seu colega.
Do ponto de vista formal,
temos um sujeito “Maria”, que se define como o termo com o qual o verbo concorda. O sujeito se dispõe á
esquerda do verbo. Ele é representado por um substantivo. Temos um complemento
verbal “a mochila”, que se dispõe à direita do verbo. Esse complemento é
desprovido de preposição e é passível de substituição pelo clítico “a” (cf.
Maria a entregou ao seu colega). Temos também um complemento verbal
introduzido da preposição “a”, exigida pela valência do verbo “entregar”. Esse
complemento é comutável com “lhe”. A comutação com “lhe” é uma propriedade
formal que contribui para distinguir esse complemento do complemento anterior,
desprovido de preposição.
Quando consideramos a
estrutura relacional do verbo ENTREGAR, formalizável como X ENTREGAR Y a Z,
concluímos que a variável X indica a posição que deve ser ocupada pelo sujeito,
termo que governa a relação de concordância centrada no verbo. As variáveis Y e
Z situam-se fora do escopo da concordância; não obstante, indicam que os termos
que as substituem estão também subordinados ao verbo. Formalmente, a
subordinação ao verbo se dá de modo diferente: o constituinte correspondente a
Y se subordina ao verbo sem o intermédio da preposição; Z, por seu turno, prevê
um termo que se liga ao verbo por meio de uma preposição necessária.
Do ponto de vista
semântico, pode-se dizer que X corresponde ao AGENTE da ação de “entregar”; Y,
ao OBJETO da ação; e Z, ao BENEFICIÁRIO da ação. O verbo entregar inclui-se na classe dos verbos que denotam a ideia
de ‘transferência de uma coisa para’.
Os pontos de vista formal
e semântico não se excluem na análise gramatical; mas devem estar articulados
entre si. É preciso, contudo, atentar para a recomendação do linguista Mario
Perini, em sua Gramática Descritiva do
Português (2004),
“Os dois aspectos, o formal e o semântico estão
presentes na palavra reloginhos, mas
precisam ser separados na descrição. Essa separação é fundamental quando se
estuda a gramática, porque a relação que existe entre as formas gramaticais e o
significado que elas veiculam é extremamente complexa e indireta. Na verdade, a
explicitação dessa relação é um dos objetivos primordiais da análise
linguística – e por isso mesmo é essencial descrever os dois aspectos
separadamente, para depois colocá-los em confronto” (p. 38).