Mostrando postagens com marcador Formalismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Formalismo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Os pontos de vista formal e semântico em Linguística

                 
                           

             Análise formal e Análise semântica
                          na descrição gramatical


Linguistas são aqueles que se dedicam ao estudo científico da linguagem. Parte de seu trabalho consiste em explicitar a gramática de uma língua – gramática que constitui, necessariamente, um modelo teórico, isto é, uma hipótese sobre como essa língua se organiza estruturalmente de modo a permitir a expressão e a compreensão de sentidos. Assim entendida, a gramática constitui um modelo descritivo-explicativo da estrutura e do funcionamento de uma dada língua.
Tendo em vista o exposto, no trabalho de produção de modelos de gramática, as unidades da língua podem ser descritas sob dois pontos de vista: o formal e o semântico. Quando buscamos descrever as unidades linguísticas do ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar um conjunto de aspectos do qual está excluída qualquer referência a noções recobertas pelo domínio da semântica. Analisar uma unidade linguística do ponto de vista formal significa considerar relações internas ou externas a ela, em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático, sem aludir a qualquer aspecto da dimensão significativa dessa unidade. Por outro lado, analisar uma unidade linguística semanticamente é considerar aspectos de sua natureza significativa. Vamos esclarecer como se opera a análise segundo esses dois pontos de vista, tomando-se, para tanto, a palavra lealdade.
Convém dizer que a forma, que é sinônimo de estrutura, de um constituinte linguístico é resultado da combinação de suas unidades na cadeia sintagmática. Assim, a forma da palavra lealdade resulta da combinação da base (radical) “leal” com o sufixo “-dade” (cf. leal + dade = lealdade (forma)). A explicitação da forma de uma unidade linguística supõe a divisão dessa unidade em unidades menores por meio da análise da totalidade da construção. Tomando-se, portanto, a palavra lealdade, pode-se considerar, do ponto de vista formal, seus elementos e características fonológicas (fonemas, sílabas, acento). Dir-se-á, por exemplo, que lealdade é uma palavra polissílaba, que sua estrutura silábica é CV-VC-CV-CV (C = consoante; V = vogal), que seu acento tônico recai sobre a penúltima sílaba e que, por isso, se trata de uma palavra paroxítona. Note-se que não se faz qualquer referência ao significado da palavra “lealdade”, mas se especifica informações que tocam à sua estrutura fônica.
No domínio morfológico, submeter a palavra lealdade à análise formal é procurar identificar os elementos que entram a fazer parte de sua estrutura. Por exemplo, lealdade é formada da combinação do radical “leal” (que é uma forma livre na língua) com o sufixo “-dade” (forma presa). Na tradição gramatical, essas duas unidades mínimas dotadas de significado chamam-se morfemas. Todavia, o ponto de vista formal proíbe-nos de levar em conta qualquer aspecto significativo ligado a essas mínimas unidades. Quando limitamos a análise ao ponto de vista formal, estamos interessados em explicitar a constituição da forma de uma dada unidade linguística, seja ela uma palavra, seja um sintagma, seja uma frase.
No domínio sintático, pode-se dizer que a palavra lealdade ocupa a posição de núcleo de um SN (sintagma nominal), que se deixa antepor de um determinante, como um artigo (cf. a lealdade), um pronome demonstrativo (cf. essa lealdade), um pronome indefinido (cf. alguma lealdade), etc. Novamente aqui o ponto de vista formal circunscreve a análise às relações entre as unidades linguísticas indispensáveis à constituição da estrutura. Por exemplo, dado o sintagma nominal “a lealdade do cachorro”, diremos que sua estrutura resulta da combinação de um núcleo “lealdade” com um determinante externo “a” e com um SP (sintagma preposicional) “de cachorro”  que se acha encaixado no SN:

                       

A análise formal contempla também aspectos de concordância e possíveis correspondências sintáticas em cuja base está a interseção entre os planos sintagmático e paradigmático. Por exemplo, do ponto de vista formal, distinguem-se as funções de “lealdade” nas construções “A lealdade do cachorro nos comove” e “Nós apreciamos lealdade” pela posição ocupada pela palavra “lealdade” na frase. Na primeira frase, ela ocupa a posição à esquerda do verbo. É núcleo de um sintagma nominal que preenche a posição típica do sujeito. Como tal, governa a relação de concordância, isto é, o núcleo “lealdade”, que é um substantivo que se apresenta no singular, obriga o verbo a assumir a forma de terceira pessoa do singular, para, assim, atualizar a relação de concordância. Na segunda frase, “lealdade” ocupa a posição à esquerda do verbo (apreciar). Não toma parte na relação de concordância, já que ela é, agora, governada pela unidade “nós” (sujeito) que se acha na posição à esquerda do verbo. A distinção formal da função sintática de “lealdade” pode também apelar para a comuta com uma forma pronominal. Em “A lealdade do cachorro nos comove”, todo o conjunto “a lealdade do cachorro” pode ser comutado com o pronome “ela” (cf. ela (a lealdade do cachorro) nos comove). Por outro lado, em “Nós apreciamos lealdade”, pelo menos em uma das variedades da língua, usamos o clítico “a”: “Nós a apreciamos”. Nas variedades desprestigiadas, pode-se encontrar o pronome “ela” na posição pós-verbal em que figura “lealdade” (cf. Nós apreciamos ela). Nesse caso, a distinção entre as funções sintáticas desempenhadas por “lealdade” se faz não só pela observação da posição ocupada por esse vocábulo na estrutura oracional, mas também se apóia na relação de concordância centrada no verbo. Assim é que o “ela” que se topa depois do verbo não toma parte da relação de concordância; por outro lado, o “ela” que se acha à esquerda do verbo (na posição típica do sujeito), governa a relação de concordância. Vejam-se outros dois exemplos abaixo:

(1) O espetáculo não agradou a Marcos.
(2) Maria não confia em Marcos.

Do ponto de vista formal, pode-se fazer ver que os constituintes “a Marcos” e “em Marcos” comportam-se de modo diferente. É verdade que ambos estão pospostos ao verbo e estão encetados de preposição, ainda que em (1) figure a preposição “a”, exigida pela valência do verbo “agradar” e em (2) figure a preposição “em”, exigida pela valência do verbo “confiar”. Sucede, contudo, que apenas “a Marcos” é passível de comutação com “lhe”. Trata-se de um fenômeno sistemático em português, apontado em minha dissertação de mestrado: os complementos encetados por “a” (e também “para”, preposição que se acha em flutuação com “a” com verbos que denotam ‘transferência de alguma coisa’ ou ‘deslocamento de uma coisa no espaço’) comutam com “lhe”. Por outro lado, “em Marcos” não admite a comutação com “lhe” (cf. * Maria lhe confia). Não devemos confundir o uso do verbo “confiar” na construção “confiar em”, à qual se associa o significado ‘ter confiança’, com o uso de “confiar” na construção “confiar a”, à qual se associa o significado ‘entregar aos cuidados de’ (cf. Confiei ao advogado meus documentos). A condição de possibilidade para a comuta com “lhe” é a ocorrência da preposição “a”. A possibilidade ou não de comuta com “lhe” levou alguns gramáticos, entre os quais Rocha Lima, a distinguir dois tipos de complemento verbal: o objeto direto, cujas características formais é ser introduzido pela preposição “a” (ou para) e ser comutável com “lhe”; e o complemento relativo, que é encetado por qualquer preposição (inclusive “a”), mas que não é comutável com “lhe”. A tradição escolar de ensino de língua portuguesa não leva em conta essa distinção, embora se trate de uma distinção formal (possivelmente  também semântica) que, exigindo ou não outra nomenclatura, deveria ser estudada como um aspecto estrutural e funcional da gramática do português. A importância de considerá-la reside em que é um aspecto do conhecimento linguístico intuitivo do falante nativo de língua portuguesa. Qualquer falante nativo de português reconhece que, dada a estrutura X DEPENDE DE Y, a variável “Y” é substituída por “dele” ou “disso” (cf. Você não depende dele/ disso), mas não por “lhe” (cf. * Você não lhe depende). Por outro lado, o reconhecimento da referida distinção formal aponta para outro fato, por vezes, ignorado: há casos em que, a despeito da ocorrência de um complemento introduzido por uma preposição diferente de “a”, o “lhe” pode figurar na posição do complemento, pelo menos nas variedades desprestigiadas. Por exemplo, na construção “João bateu no irmão”, é usual, nas variedades desprestigiadas do português, a ocorrência de “lhe” preenchendo a função de “no irmão”: “João lhe bateu”.
Na construção “Maria não confia em Marcos”, o constituinte “em Marcos” é substituído pela forma “nele”. Novamente, não fazemos qualquer referência a aspectos semânticos quando limitamos a análise gramatical ao ponto de vista formal. Veja-se também que as funções desempenhadas pelo constituinte “de Marcos”, nas orações seguintes, se diferem, do ponto de vista formal, pela posição que ele ocupa na cadeia sintagmática: (a) Maria gosta de Marcos; (b) O chapéu de Marcos é marrom. Em (a), “de Marcos” dispõe-se junto ao verbo, à esquerda dele; em (b), integra um SN, articulando-se a um núcleo nominal (um substantivo). Esse SN dispõe-se à esquerda do verbo, ocupando a posição típica do sujeito. Em parte, é por isso que chamamos “de Marcos”, em (a), de “objeto direto” ou “complemento direto”; e em (b), de “adjunto adnominal”.
Note-se, de passagem, que a distinção tradicional entre as funções de “complemento nominal” e “adjunto adnominal”, que, do ponto de vista formal, não parece justificar-se, se esteia em critérios semânticos. Senão, vejamos. Considerem-se as orações abaixo:

(3) A casa de Saquarema é muito boa.
(4) A divulgação da notícia desagradou aos policiais.
(5) A fala do professor Elias emocionou a todos.


Tanto em (3) quanto em (4) e em (5) figuram grifados SP encetados da preposição “de”. Esses SP se prendem a um núcleo nominal. A tradição gramatical distingue entre duas funções com base em critérios semânticos. Em (3) e (5), o SP ‘de__SN’ cumpre a função de adjunto adnominal. Em (3), porque se prende a um substantivo concreto para especificar ou classificar seu referente. Em (5), porque se liga a um substantivo abstrato que designa ‘ato ou evento’ em relação ao qual o constituinte ‘de__SN’ representa o AGENTE. Trata-se de uma função semântica. Entendemos que em “A fala do professor Elias”, “do professor Elias” desempenha a função de AGENTE, daquele que fala. Por outro lado, em (4), “da notícia”, prendendo-se a um substantivo abstrato que designa também o evento, cumpre a função de PACIENTE ou OBJETO. Dessa vez, entendemos que “da notícia” é a coisa que é divulgada.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal não se limita à referência a esses aspectos semânticos. Outros mais são levados em conta. O complemento nominal, segundo reza a tradição, completa o significado de um substantivo abstrato que designa ação, evento ou mesmo qualidade. Assim, em “A amizade de Bianca é importante para mim”, o constituinte “de Bianca” é um complemento nominal simplesmente porque se liga a uma qualidade que encontro em Bianca. Implícita aqui está a suposição da natureza transitiva de substantivos que designam ‘evento, ‘ação’ e ‘qualidade’. O substantivo “amizade” prevê, em sua semântica, uma estrutura relacional, formalizável como  “AMIZADE de X por Y”, em que X e Y são complementos nominais.
A distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal, na medida em que se apóia, basicamente, em aspectos semânticos, traz mais problemas do que os resolve. É claro, poderíamos dizer, que em “A amizade de Bianca”, “de Bianca” não representa o AGENTE, mas também não designa o PACIENTE. Poder-se-ia ver em Bianca a FONTE de uma relação FONTE-PACIENTE. Ora, tanto Bianca quanto “eu” somos EXPERIENCIADORES da relação de amizade. A experiência de amizade, quando representada na estrutura AMIZADE de X por Y, encerra uma relação entre uma entidade X que é a FONTE (donde se origina a amizade) e o PACIENTE (que é, de certo modo, “afetado” pela amizade). A descrição semântica não é determinante para a distinção entre duas funções que, formalmente, não se diferenciam.
Não há dúvida de que alguns substantivos, os chamados abstratos que denotam ‘ato’, ‘processo’ ou ‘atividade’, são do tipo transitivo, como “divulgação”, “apresentação”, “atualização”, etc. (claramente, por força de sua base verbal). Tais substantivos preveem uma estrutura relacional, a qual compreende dois termos que se articulam ao núcleo: APRESENTAÇÃO de X por Y. As posições de X e Y são ocupadas pelos constituintes ‘de__SN’ e “por__SN”. Ora, esses constituintes são integrantes da estrutura prevista pela semântica desse nome. Não há razão para atribuir duas funções distintas com base na observação, de cunho semântico, de que um representa a coisa que é objeto de apresentação; e o outro, a pessoa que apresenta. Ambos são complementos do nome, ou melhor,  argumentos do nome.
A tradição gramatical reza que muitos adjetivos e advérbios em “-mente” selecionam complementos nominais. Todo complemento nominal é encabeçado de uma preposição exigida pela forma nominal a que ele se articula. Por exemplo, o adjetivo “acessível” seleciona um complemento encetado da preposição “a” (cf. O espetáculo é acessível a todos). O advérbio “contrariamente” também seleciona um complemento introduzido por “a” (cf. Agiu contrariamente à minha sugestão).
Tomando-se novamente a palavra lealdade, pode-se estudá-la, finalmente, do ponto de vista semântico. Nesse caso, consideram-se seu significado denotativo, seus possíveis significados conotativos, suas restrições de seleção, etc. Por exemplo, “lealdade” parece selecionar, para a posição ‘de__SN’ (a lealdade de X), um substantivo que designa animal, como “cão” (cf. A lealdade do cão). Por outro lado, usamos “fidelidade” para se referir a seres humanos. Ademais, “lealdade” designa uma qualidade abstraída de entes, ao passo que “casa” designa um ente concreto, uma substância.
O verbo “voar”, por sua vez, seleciona para a posição de sujeito um substantivo que comporta a propriedade [+ voável]. Em outros termos, é parte da análise semântica do verbo “voar” a informação de que esta forma faz restrição de seleção quanto ao tipo semântico de substantivo passível de ocupar a função de sujeito. Ora, “voar” seleciona sujeitos como “avião” e “águia”,  que comportam o traço sêmico [+ voável], mas recusa a ocorrência de formas como “árvore” e “casa”, que não comportam tal traço.
Quando se define o objeto direto como “termo que completa o significado de um verbo transitivo direto”, está-se fazendo referência ao aspecto semântico dessa função sintática. Quando se define o agente da passiva como o termo que designa o agente de uma construção na voz passiva, está-se referindo a um aspecto semântico dessa função sintática.
Pode-se  discriminar os planos sintático e semântico na análise da seguinte oração abaixo:

 (6) Maria   entregou    a mochila    ao seu colega.

Do ponto de vista formal, temos um sujeito “Maria”, que se define como o termo com o qual o verbo concorda. O sujeito se dispõe á esquerda do verbo. Ele é representado por um substantivo. Temos um complemento verbal “a mochila”, que se dispõe à direita do verbo. Esse complemento é desprovido de preposição e é passível de substituição pelo clítico “a” (cf. Maria a entregou ao seu colega). Temos também um complemento verbal introduzido da preposição “a”, exigida pela valência do verbo “entregar”. Esse complemento é comutável com “lhe”. A comutação com “lhe” é uma propriedade formal que contribui para distinguir esse complemento do complemento anterior, desprovido de preposição.
Quando consideramos a estrutura relacional do verbo ENTREGAR, formalizável como X ENTREGAR Y a Z, concluímos que a variável X indica a posição que deve ser ocupada pelo sujeito, termo que governa a relação de concordância centrada no verbo. As variáveis Y e Z situam-se fora do escopo da concordância; não obstante, indicam que os termos que as substituem estão também subordinados ao verbo. Formalmente, a subordinação ao verbo se dá de modo diferente: o constituinte correspondente a Y se subordina ao verbo sem o intermédio da preposição; Z, por seu turno, prevê um termo que se liga ao verbo por meio de uma preposição necessária.
Do ponto de vista semântico, pode-se dizer que X corresponde ao AGENTE da ação de “entregar”; Y, ao OBJETO da ação; e Z, ao BENEFICIÁRIO da ação. O verbo entregar inclui-se na classe dos verbos que denotam a ideia de ‘transferência de uma coisa para’.
Os pontos de vista formal e semântico não se excluem na análise gramatical; mas devem estar articulados entre si. É preciso, contudo, atentar para a recomendação do linguista Mario Perini, em sua Gramática Descritiva do Português (2004),



“Os dois aspectos, o formal e o semântico estão presentes na palavra reloginhos, mas precisam ser separados na descrição. Essa separação é fundamental quando se estuda a gramática, porque a relação que existe entre as formas gramaticais e o significado que elas veiculam é extremamente complexa e indireta. Na verdade, a explicitação dessa relação é um dos objetivos primordiais da análise linguística – e por isso mesmo é essencial descrever os dois aspectos separadamente, para depois colocá-los em confronto” (p. 38).