O valor da filosofia
O voluntarismo de Foucault e a instrumentalidade do homo faber
1.
O Voluntarismo de Foucault
Em
seu livro dedicado ao pensamento e à pessoa de Michel Foucault, Paul Veyne
sentencia “a filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade” (2014, p.
196). Logo, em seguida, o autor acrescenta:
Sabemos
o pathos desdobrado pelo último
Nietzsche, que se tornou profeta, contra o niilismo, esta “recusa de um valor e
de um sentido” (a contrapelo de seu naturalismo elitista), e quanto à verdade
que mata, é preciso dizer que ninguém morreu e que os pensadores céticos, no
momento de votar, não hesitam entre Ségonéle Royal e Nicholas Sarkozy. Quando
exaltava apaixonadamente a vida, a inocência do devir e sua aceitação,
inclusive de atrocidades e tragédias, Nietzsche prescrevia medicação em doses
cavalares para uma doença imaginária; suas investidas contra o niilismo
pertencem mais à ordem oratória do que à da realidade. (ibid.).
Num texto
recentemente publicado neste blog, manifestei
minha anuência à opinião de Veyne; não só disse estar de acordo, também
reforcei a pertinência dessa opinião evocando alguns casos em que a filosofia
não provocou nenhum efeito relevante no modo de viver do homem comum. Essa
incomunicabilidade entre a filosofia e o homem comum, que a impede de deitar
suas raízes no terreno do senso comum, é um fato que acompanhou a filosofia
desde o seu nascimento na Grécia Antiga do século VI a.C. Não há, portanto,
razão para acreditar que se trate de uma espécie de esterilidade da filosofia
na vida contemporânea. A filosofia, em todas as épocas, sempre pretendeu elevar
o homem da condição comum em que ele vive confortavelmente e juntamente com um
mundo que se lhe afigura autoevidente e, em todas as épocas, o homem comum
tendeu a aferrar-se a sua consciência prática - à qual se liga intimamente o
que Giddens chama de “segurança ontológica” (a atitude natural assumida pelo
indivíduo na vida cotidiana, graças à qual ele toma como certos e
inquestionáveis os parâmetros existenciais de sua atividade) – protegendo-a
contra os “assédios” inquietantes da filosofia. Todavia, a mera constatação
desse permanente divórcio entre a filosofia e o homem comum não deve, por si
mesmo, ser motivo de inquietação para o filósofo. Penso que não lhe resta
alternativa senão aceitar que a grande maioria dos seres humanos viverá muito
bem, ou muito mal, sem a filosofia, sem jamais se debruçar sobre as questões
que propõe a filosofia. Para o homem comum, a filosofia é uma disciplina
acadêmica, é uma área do conhecimento humano como qualquer outra, e sua atitude
natural em face dela não difere em nada da atitude que adota em relação a qualquer
outra área do conhecimento do qual ele não é especialista. É claro que, para o
verdadeiro filósofo (que não se confunde com o professor de filosofia), a
filosofia não se reduz a uma disciplina acadêmica; ela não é, de modo algum, um
mero setor do conhecimento humano. Para mim e para quem quer que se considere
filósofo, a filosofia precisa ser experienciada como uma prática de vida, um exercício espiritual que se destina a
cunhar modos de ser. A filosofia, para o verdadeiro filósofo, é um exercício, um
tipo de atividade tão necessária (talvez, até mais necessária) quanto qualquer
outra atividade que realiza em sua vida cotidiana. Os estudantes que deixam as
salas de aula do curso de filosofia sem ter conseguido fazer a experiência
fisiológica de incorporação do hábito filosofante à textura de sua existência
cotidiana não chegarão a ser filósofos; poderão até se tornar professores de
filosofia, mas sem serem verdadeiramente filósofos.
Estando
claro que não deve nos inquietar a insistência com que o homem comum se
demonstra alheio aos apelos da filosofia, passo a considerar outros aspectos,
apontados por Veyne, que concorrem para dificultar qualquer conciliação entre o
homem comum a o modo de vida filosófico. Um desses aspectos é a separação e o
estranhamento evidente entre o mundo da academia e o mundo da vida. Tendo em
vista essa separação e estranhamento, Veyne nos adverte:
Somente
poderiam inquietar-se professores que exagerassem a importância do que diz na
cátedra e ensaístas satíricos que gostassem de assustar. O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive, dizia Gaston
Bachelard. O fim da era em que se acreditava em transcendência é um
acontecimento que se isola nos intelectos e que não tem nada de catástrofe. Ele
o seria se o homem fosse um ser inteiramente intelectual que se governasse de
acordo com razões; se, por exemplo, os súditos ou os cidadãos obedecessem ao
rei ou ao Estado porque uma religião ou uma ideologia os houvesse persuadido a
fazê-lo. (ibid. grifo meu).
Àqueles
que ainda se sentem aborrecidos com o indiferentismo do homem comum perante a
filosofia, vale lembrar a observação de Bachelard: “o mundo em que se pensa não
é o mundo em que se vive”. A filosofia convida-nos a habitar também outro mundo
– o mundo do pensamento ou o mundo pensado, o mundo submetido à rigorosa e à
radical reflexão -, mas o homem comum sente-se satisfeito e confortável com o
mundo limitado, delimitado pelos “óculos sociais” do senso comum. Como nos
lembra Veyne, Hume dizia, com razão, que o ceticismo não deveria nos orientar
na vida cotidiana; e mesmo que quiséssemos permanecer céticos o tempo todo, não
conseguiríamos, pois que, na vida cotidiana, continuamos “a gostar de conversar
e a acreditar que o sol nascerá amanhã, já que a natureza é mais forte”.
(ibid., p. 197). Convém atentar para as seguintes lições de Veyne:
Apenas
um estoico podia imaginar que, de tanto se incutir a ideia de que o amor não
passa de uma esfregação de duas epidermes (como diz Marco Aurélio em termos
mais crus), seria possível tornar-se senhor da própria libido. A natureza
triunfa, imagino, até mesmo na escolha de nossas leituras: paramos de duvidar
para ler os filósofos, que são tão interessantes e inteligentes (...)”.
(ibid.).
Como gostava
de lembrar também Hurssel, não se deixa de ser um animal humano por ser cético;
os instintos fundamentais do homem, que, para ele, são o instinto de
gregariedade, o instinto de conservação, além da curiosidade, prevalecem sobre
outras inclinações no modo de ser do homem na cotidianidade. Veyne nos adverte
que “os homens são mais quotidianos do que metafísicos”. (ibid., p. 198). E
acrescenta que “ser cético é ser dividido na própria cabeça, mas vive-se muito
bem assim, e só é perigoso no papel”. (ibid.). É este o modo de ser próprio do
filósofo: o modo de ser “esquizo”. O
filósofo habita dois mundos que correspondem para ele a dois modos de viver: o
modo de viver filosófico (que supõe o hábito contínuo da dúvida, da suspeita,
do questionamento, da problematização do real, o páthos da admiração) e o modo
de viver comum (moldado pelos hábitos convencionais, pelas rotinas da vida
social). Escusa dizer que a vida, em sociedade, não é possível, sequer
imaginável, sem a rotinização, que Giddens (2009, p. 444), define como “o
caráter habitual e assente da maior parte das atividades da vida social
cotidiana”. É evidente que as formas de conduta habituais, rotineiras sustentam
e são sustentadas por um senso de “segurança ontológica”. E mesmo o filósofo,
como homem comum, precisa viver nesse mundo regulado por rotinas; no entanto,
ele não se deixa absorver inteiramente nesse mundo, não se deixa entreter-se
completamente com ele, sem colocá-lo em suspenso para, evadindo-se dele,
ocupar-se da investigação da complexidade do real, que não se deixa subsumir na
esfera da cotidianidade. A realidade é infinitamente maior, infinitamente mais
complexa, mais misteriosa do que a realidade cotidiana, que não passa de uma
fatia, de uma superfície bem delimitada da realidade. Ao filósofo parece claro,
mesmo que por intuição, o que nos diz Giddens acerca da vida cotidiana: “a vida cotidiana tem uma duração, um
fluxo, mas não leva à parte nenhuma; o próprio adjetivo “cotidiano” e seus
sinônimos indicam que tempo, neste caso, é constituído de repetição”. (ibid.,
p. 41, grifo meu). A noção de cotidiano
recobre, portanto, o caráter rotinizado do qual é dotada a vida social em seu
desenvolvimento no tempo e no espaço.
Giddens chama “caráter recursivo da vida social” a essa natureza
repetitiva dos atos, das atividades realizadas de maneira idêntica dia após dia.
É na atividade cotidiana que os atores sociais reproduzem aspectos estruturais
do sistema social mais amplo. Em outras palavras, a estrutura, isto é, as
regras envolvidas na produção e reprodução do sistema social, bem como os
recursos, ou as relações transformadoras, não existe apenas como realidade
externa aos indivíduos; são, na verdade, traços mnêmicos manifestos em práticas
sociais, que são mais internos do que externos às atividades deles. Se o viver
cotidiano se caracteriza, fundamentalmente, pela repetição de atos realizados
dia após dia, a existência do indivíduo, no entanto, “é não só finita mas
irreversível, “ser para a morte””. (ibid., p. 41). Daí advém não só o enfado
que, com frequência, pode acometer o indivíduo cujo viver é encarcerado nas
celas das rotinas do cotidiano, como também a mais elaborada e profunda
compreensão filosófica da inutilidade do próprio viver como realização de atos
repetitivos de um ser que se sabe destinado à morte.
Não
subestimo tanto quanto Veyne, contudo, o “perigo” desse modo de ser esquizo
próprio do filósofo, que pode ser tanto mais “perigoso” quanto mais fortes são,
na psique individual, as pulsões de ruptura, as pulsões de revolta, as pulsões
de desassossego. Em todo caso, é claro que esse modo de vida esquizo, próprio do filósofo, não chega
a ser patológico (a despeito do que tenha pensado Freud acerca da filosofia).
Veyne sugere que o filósofo é, por definição, um cético, porque vive, na
maioria das vezes, sem ilusões ou ocupado em denunciar como ilusões aquilo que
o homem comum toma como certezas inabaláveis. À parte a questão que consiste em
saber se é possível viver sem qualquer ilusão, importa saber se é possível
agir, assumir um compromisso político, comprometer-se com alguma causa
humanamente nobre sem alguma ilusão. Veyne, considerando o modo de ser de Foucault,
um cético, por excelência, um declarado herdeiro do espírito genealógico de
Nietzsche, diz ser seu herói tanto mais decidido quanto mais desilusionado. Mas,
se foi possível a Foucault, em alguns momentos, militar em nome de um movimento
pretensiosamente revolucionário, é porque, seguindo os passos de Nietzsche,
viveu a filosofia como uma estética da
existência. Segundo Veyne, “a gratuidade primeira das estetizações [é que]
elas não respondem a uma necessidade (antes a criam) e não visam a um fim; o
que elas pretendem perseguir são pretextos: a salvação, a tranquilidade da
alma, o nirvana, etc.” (ibid., p. 199). Foucault não instrumentalizou a
filosofia, pondo-a a serviço de seus compromissos políticos. Foucault, como
Nietzsche, de quem é confessadamente herdeiro, sabia bem que os homens precisam
da mentira, do logro para viver, para engajar-se na luta contra o establishment político e econômico.
Veyne reconhece que a humanidade não vive sem seus mitos tanto quanto não vive
sem religiosidade. Segundo Veyne, em 1968, depois de ter testemunhado uma greve
geral a que se seguiram repressão policial e prisões em massa de estudantes que
protestavam no movimento estudantil, entre os quais foi condenado à prisão um
adolescente de 14 anos, Foucault, bastante impressionado, falava, com emoção,
da necessidade do mito, de uma espiritualidade que desse “o gosto, a capacidade
e a possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que se possa suspeitar nisso a
menor ambição ou o menor desejo de poder e de proveito”. (ibid., p. 200). Tendo
estado na companhia de Foucault, Veyne lembra que ele nos legou duas
importantes lições que não podemos hoje nos esquivar de considerar, quando nos
questionamos sobre o papel que cumpre a filosofia no âmbito da vida pública. Foucault
nos disse, em tom de advertência: “não utilize o pensamento para dar a uma
prática política um valor de verdade” e “não utilize a ação política para
desacreditar um pensamento como se ele não passasse de especulação”. Foucault
sabia que os homens precisam dos logros para justificar o que desejam fazer.
Conforme nota Veyne, “no terreno da prática da ação, o irracionalismo foucaultiano
culmina num decisionismo individual”. (ibid.). O decisionismo de Foucault o
escusava de fundamentar suas ações militantes na verdade, na doutrina. Embora
fosse erudito, Foucault não era um pregador político, não tinha qualquer
doutrina política própria a oferecer a seus ouvintes ou em seus livros.
Suas
próprias escolhas políticas nem sempre estavam em relação com seus livros ou
com seu ensino. Resta que a história genealógica põe a nu a arbitrariedade de
todas as instituições e a gratuidade de todas as certezas, de maneira que os
leitores e ouvintes do erudito podiam encontrar ali motivos para militar em
relação a um ponto qualquer contra a ordem estabelecida. (...). (ibid, p.
200-201).
A
tarefa da filosofia é a da crítica não normativa da atualidade, ou seja, é a
crítica da atualidade que, fornecendo os conhecimentos indispensáveis à ação,
não prescreve aos agentes o que devem fazer. Nas palavras de Veyne,
Segundo
Foucault, o que se entende por filosofia poderia também desde então consistir todo
o tempo não em fazer cientificamente a exegese do passado nem em pensar a
totalidade ou o futuro, mas a atualidade e, na falta de poder fazer melhor, em
caracterizá-la negativamente, “diagnosticar o presente, dizer o que é o
presente, dizer em que sentido nosso presente é diferente e absolutamente
diferente de tudo o que não é ele”. Nosso autor não concebe outra filosofia
possível além dessa crítica histórica: fora dela, não há nada que valha em
nossa época: “o que é então a filosofia hoje – quero dizer atividade filosófica
– se não o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo?”. (ibid., p. 202).
Resta
evidente que a filosofia, para Foucault, não tem pretensão de atingir qualquer
verdade, não tem sequer pretensão de dizer o que é o mundo em si mesmo.
Foucault sabia que pensamos o tempo todo e necessariamente no interior de um
discurso que não pode conhecer a si mesmo. Nossos discursos nos permitem ver
que pensamos diferente da maneira como se pensava antigamente. Foucault propôs
apenas um projeto arqueológico dos saberes, das ciências e dos discursos, que
nos permitisse o recuo necessário para que, à distância de nosso tempo atual,
reencontremos a nós mesmos. A filosofia, tal como a concebe Foucault, é
negativamente uma reflexão sobre nós mesmos e também um empreendimento que nos
incita a agir. Assim, observa Veyne:
(...)
a história arqueológica semeia a dúvida: desde então, uma rachadura, “fratura
virtual”, rajará nosso eu assim como nossas evidências: não toque, elas estão
partidas. Ou, ao contrário, toque, se decidir fazê-lo: a nova filosofia em
questão é “a história indispensável à política”. (ibid., p. 203).
A “nova” filosofia
de Foucault pretende “pensar, reagir, problematizar ativamente nossa posição
tal como o dispositivo a fez”. (ibid., p. 203). Fiel ao empreendimento da
filosofia antiga, Foucault nos propunha “libertar o pensamento do que ele pensa
silenciosamente e permitir que ele pense de outra maneira, em vez de legitimar
o que já se sabe”. Segundo Veyne, “Foucault é ávido por “fazer com que algumas
evidências se escamem”, por mostrar que o que é nem sempre foi, poderia não ser
e é apenas o produto de alguns casos e de uma história precária”. (ibid.). A
filosofia, para Foucault, se torna “uma crítica permanente de nosso ser
histórico”, cujo fim é evidenciar “o trabalho indefinido da liberdade”.
(ibid.). A liberdade, para Foucault, tem uma historicidade que não conduz a
nenhum fim da história.
Antes de
vociferar contra a costumeira e persistente indisposição do homem comum para a
filosofia, o filósofo deve reconhecer, com Veyne, “que o homem é um animal
errático do qual não há nada a saber além de sua história, esta negatividade
sem totalidade”. (ibid., p. 204). E esta é outra das lições que tomamos a
Foucault. Foucault, embora fosse discípulo do Nietzsche de Aurora ou de A Gaia Ciência, “lançou
sobre os erros, as ilusões e os logros uma clareza susceptível de matá-los”.
(ibid.). Foucault fora militante e partidário de Maio de 1968 tanto quanto
estruturalista; “não acreditava em Marx nem em Freud, nem na Revolução nem em
Mao, ria em privado dos bons sentimentos progressistas”. (ibid.). Veyne diz não
ter conhecido qualquer posição dele acerca de problemas sócio-históricos mais
amplos, como sociedade de consumo, capitalismo, imperialismo americano, “pois
aqui também a finitude é devastadora,
separa irremediavelmente o pensador e o partidário”. (ibid., grifo meu).
O intelectual
não é, para Foucault, um diretor de consciência. Não cabe ao intelectual fazer
prescrições, ditar o que as pessoas devem fazer. As descrições genealógicas que
o professor Foucault oferecia aos seus ouvintes careciam de fórmulas deônticas.
Foucault dizia que “o papel de um intelectual é arruinar as evidências,
dissipar as familiaridades admitidas; não é modelar a vontade política dos
outros, dizer-lhes o que devem fazer. Com que direito ele faria isso?”. O
genealogista se recusa a impor sua vontade aos outros. Para Foucault, o
genealogista pode “ensinar às pessoas o que elas não sabem sobre sua própria
situação, sobre suas condições de trabalho, sobre sua exploração”. Nas palavras
deste discípulo de Nietzsche, “jamais me comporto como profeta, meus livros não
dizem às pessoas o que devem fazer”. Nisto consiste o voluntarismo foucaultiano: ele não decide o que é preciso fazer;
ele apenas constata o modo como os homens se comportam. Mas, como questiona
Veyne, por que as pessoas iriam querer mudar a ordem das coisas sem que tenham
uma razão para fazê-lo? Foucault acreditava que as pessoas não precisam ter uma
boa razão, porque, em geral, elas simplesmente inventam uma se quiserem mudar
as coisas, e os que se recusam a mudá-las também não têm razão alguma. Segundo
Veyne, em face de seus ouvintes, Foucault assumia o papel de um conselheiro na
relação com seu príncipe:
O
príncipe disse: “Quero a felicidade de meus povos”; o sábio conselheiro então
lhe disse: “Se é essa sua decisão, eis os meios que você deve adotar para
atingir seus fins”. Nem toda reflexão política é impossível, mas uma vez
escolhidos os fins por livre decisão, ou, talvez, por capricho real, a reflexão
só pode incidir sobre a racionalidade dos meios e não sobre uma impossível
racionalidade dos próprios fins. (...). (ibid., p. 206).
Tendo em
vista o testemunho de Veyne acerca do modo como Foucault viveu sua própria
filosofia, como concebeu o exercício da filosofia e o realizou, convém vivê-lo como
a realização de um modo de ser em que o homem comum não tem, necessariamente,
de se exercitar; é preciso vivê-lo na intimidade com uma prática de vida que se
recusa a instituir-se como norma para o viver dos homens bem ajustados à
cotidianidade mediana. O filósofo, por excelência, não tem convicções firmes e
resolutas. Seguir os passos de Foucault é admitir que a experiência da finitude
proíbe-nos de levar adiante qualquer pretensão de conversão filosófica da
consciência do homem comum:
Consciente
do dilema entre retórica e filosofia, entre propaganda e ceticismo, ele
[Foucault] não argumentava em favor de suas causas: tentava antes suscitar
indagações e esperava que um punhado de indignados viesse a ele. Não fazia das
grandes questões seu cotidiano, mas não cessava de militar por reformas (...).
Ele havia tomado posição contra a pena de morte. Em compensação, não tinha um
programa político mais amplo. Em conformidade com sua filosofia cética, só
tinha convicção puramente pessoais e frequentemente negativas, tais como esta:
não se pode proibir por princípio a revolta, não se pode recusar o futuro
nascente em nome da pretensa racionalidade do presente. (ibid., p. 210).
Parece,
então, que Paul Veyne quer-nos fazer ver que a radicalidade do pensamento
filosófico, sua qualidade corrosiva, e a própria filosofia como prática
reflexiva que nasce com a pretensão de erodir os alicerces das crenças mais
arraigadas, dos valores e representações básicas que o homem adquiriu sobre o
mundo, não têm o alcance destrutivo no modo de ser do homem imerso na vida
cotidiana, como poderiam supor os não filósofos. O homem comum vive sua vida,
em sociedade, segundo hábitos e rotinas sustentados por uma “segurança
ontológica” que o faz habitar uma esfera de realidade na qual não há nenhuma
ameaça de niilismo, na qual a morte de Deus sequer é uma notícia crível, na
qual a Verdade é evidente por si mesma, na qual não há dúvida de que o sol
nascerá amanhã, etc. Segue-se daí que
não devemos mensurar o valor do pensamento filosófico e do modo de vida
filosófico a partir de seu efeito transformador sobre o que quer que seja. O
filósofo não é um missionário que pretende levar a boa nova ou a má notícia,
nada semelhante, como aprendemos com Foucault, a um profeta que anuncia uma
nova era. O exercício da filosofia não tem a pretensão de angariar praticantes,
tampouco simpatizantes, que se sentem atraídos sem se envolver verdadeiramente.
Pensar é uma atividade que vale por si mesma. O exercício do pensamento faz
florescer a beleza do pensamento que deve ser cultivada com o mesmo acuro com
que se cultiva um belo jardim. Não se deve impor limites, medidas de tempo,
restrição de qualquer espécie ao exercício do pensamento. Enfraquece-se,
mata-se o pensamento, quando ele se converte em instrumento para a realização
de um fim exterior a ele mesmo. A pergunta sobre a serventia, o ‘para quê’ da
filosofia é inconveniente. Pergunta de tecnocratas e burocratas. Tanto quanto a
beleza, o pensamento não está a serviço de nada. Ver-se-á, em tempo, que, numa
sociedade capitalista, tudo ou quase tudo pode ser transformado em mercadoria,
em valor de troca; a beleza pode ser monetarizada, pode servir à conquista de
status, de ganho econômico, embora o que é belo continue a ser admirável por si
mesmo. Também o pensamento pode ser moeda de troca, pode transformar-se numa
mercadoria que se vende (quando vendo uma palestra a alguém que me paga...).
Mas caberia questionar se, nesse caso, o pensamento-mercadoria é ainda
pensamento. Se o pensamento se reduz ao conteúdo de um discurso que, por sua
vez, se converte num produto a ser consumido por uma audiência de funcionários
de uma empresa, segundo injunções empresariais pré-estabelecidas, o pensamento
já deixou de ser pensamento filosófico, já deixou de ser pensamento que expõe radicalmente
a significatividade do acontecimento. Pensar inspira, potencializa a vida. O
exercício da filosofia confere à vida de quem a ele se entrega uma espessura de
significação que a torna algo mais do que a vida banal que se vive, quase
sempre com tédio intercalado numa estrutura de rotinas como despertar pela manhã, trabalhar, descansar, dormir, com
algumas horas de lazer... Comentando a essência do pensamento na obra de
Platão, Hannah Arendt observa que “(...) o ato de pensar, embora possa ser a
mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e
sem companhia”. (ibid.). Na obra de Platão, encontramos sempre junto de
Sócrates interlocutores que cooperam com ele na atividade dialógica do
pensamento. Se, a despeito disso, o homem comum não se sente disposto para o
encontro dialógico com a filosofia e se, na ausência de companheiros que, com o
filósofo, realizem conjuntamente o ato de pensar, ele sentir-se pesar sobre si
a solidão do mundo, poderá torná-la suportável na lembrança de que “sempre pode
contar com a companhia dos pensamentos”. (Arendt, 2010, p. 93). Se é difícil para o filósofo encontrar seus
pares, seus companheiros no exercício da atividade filosófica, poderá encontrar
satisfação compensatória no meditar sobre as condições sócio-históricas que
levam o homem comum a viver divorciado da filosofia. É este o problema que me
ocupará nas próximas seções.
Antes
de pôr termo a esta seção, gostaria de levantar aqui uma hipótese que toca à dificuldade
de desenraizamento do homem comum do solo do viver cotidiano, onde todos os
seus atos caem sob o domínio da lógica da produção e da superficialidade dos
divertimentos: quanto mais aguda fosse a consciência de sua finitude tanto mais
premente seria a necessidade da filosofia, e quanto mais imerso estivesse na
atividade filosófica, tanto mais densa, aguda, robusta, afiada seria sua
consciência da finitude. Assim, o exercício da filosofia se torna tão mais
indispensável e necessário quanto mais desenvolvida se torna a capacidade de o
indivíduo experienciar a vida da perspectiva de seu ser-para-a-morte.
Enraizando o viver-se no solo movediço da finitude, o indivíduo se despe dos
consolos metafísicos que nutrem sua existência de significado ilusório e passa
a compreender a si mesmo, na condição de ser vivo, como um sistema
auto-organizado, no qual o elo entre desorganização (entropia) e organização
complexa é consubstancial, de modo que “o elo entre a vida e a morte é muito
mais estreito, profundo do que jamais pôde metafisicamente imaginar”. (Morin,
2015, p. 31). Se, como entendem Maturana & Varela, um ser vivo é uma
organização autopoéitica, a morte nada mais é que a perda dessa organização, a
desintegração do próprio sistema auto-organizador. Consoante ensina Fonseca (2008,
p. 21), para Maturana & Varela, um ser vivo é “uma unidade que se produz a
si mesma, ou seja, uma unidade que se autoproduz de modo contínuo, por um
processo de autorganização designado organização
autopoiética”. (ibid., grifo meu). Para nós, animais humanos, na condição
de meros seres vivos, a vida se nos apresenta evidente, não problemática, e é a
morte que, além de nos aterrorizar, nos é inacreditável.
Mas
se nos situamos do ponto de vista do universo físico, então (...) é a vida que
se torna surpreendente e inacreditável, enquanto a morte não passa do retorno dos nossos átomos e moléculas à sua
existência física normal. Como não podemos nos separar de nossa condição de
seres vivos, mas como somos, também, capazes de nos distanciar disso por meio
do espírito, podemos, então, ao mesmo tempo, surpreender-nos de viver e morrer.
(Morin, 2015a., p. 28, grifo meu).
É justamente
esta capacidade de nos colocar à distância do vivido “comum” por meio do
pensamento, por meio da reflexão, que a filosofia permite-nos desenvolver. É
justamente a experiência do espanto em face do fato de viver e de morrer que
impulsiona o exercício da filosofia, que nos arrasta para ele. Desenraizado do
solo de sua vida como organismo biológico, através da atividade do espírito, o
homem compreende que “vida e morte convertem-se uma na outra, trabalham uma
pela outra”. (Morin, 2015b, p. 49). Compreendendo o significado de sua finitude,
o indivíduo percebe-se como parte integrante, enquanto organismo vivo, de um
ecossistema dotado da propriedade de hiper-regeneração, que “só pode viver nas
condições de sua própria destruição, pois são as condições de sua regeneração”.
(ibid.). Em outras palavras, a entropia, de algum modo, favorece a manutenção
da própria organização que ela tende a arruinar, de sorte que “a ordem
auto-organizada só pode se complexificar a partir da desordem”. (Morin, 2015a,
p. 31). Segundo Morin (2020, p. 50), “como o universo, mas de uma nova maneira,
a vida se constrói se destruindo ou se destrói se construindo”. Situado no
domínio estritamente biológico, viver “é ir em direção à morte combatendo-a”.
(ibid.). A vida é um contínuo esforço de viver em função da morte, de tal sorte
que “a vida trabalha no sentido de viver trabalhando para morrer e a vida
trabalha no sentido de morrer trabalhando para viver”. (ibid.). Morrer e viver
são, ao mesmo tempo, opostos e inseparáveis. Como lembra Morin, “a morte é o preço
a pagar para viver”. (ibid.). Em suma, a vida é um trabalho permanente de
consumo de suas energias e, nesse sentido, é o caminho que conduz à morte, mas,
ao mesmo tempo, é também um trabalho permanente de luta contra a morte. Os
sistemas vivos auto-organizados estão constantemente sujeitos à desintegração:
“sua atividade permanente comporta dispêndio de energia e processos de
degradação conduzindo à morte, daí a necessidade de extrair energia,
organização e informação do meio ambiente”. (ibid.).
Fique claro
que o indiferentismo do homem comum pelo exercício da filosofia não é
simplesmente, ou não é apenas, uma
rejeição ao conhecimento sistemático, uma resistência ao conhecimento em si,
pois que, como ensinam Maturana & Varela, “compreender o conhecimento
depende do ser vivo como um todo, visto que o conhecimento é determinado pelo
próprio modo de ser de tudo o que é vivo, da sua organização autopoiética”.
(Fonseca, 2008, p. 42). Assim, uma das consequências da teoria da autopoiética
é que viver é conhecer, conhecer é viver. Conhecer é o modo de ser de todo
organismo vivo. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e
interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição
são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de
cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema nervoso”. A
consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo
que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. Isso
não significa dizer que todas as pessoas são capazes de elaborar raciocínios
complexos, que todas são capazes de elaborar um pensamento organizado e
sistemático, que todas são capazes de desenvolver uma argumentação logicamente
adequada. Tais habilidades não nos são inatas, mas precisam ser desenvolvidas
nas práticas de ensino de leitura e escrita na escola. O desenvolvimento dessas
habilidades exige treinamento, exige o contato com gêneros textuais organizados
predominantemente com estruturas argumentativas. Creio haver inúmeros fatores
tanto de ordem sociocultural, quanto de ordem cognitiva, que podem ser
aventados para explicar por que o tipo humano comum é tão indisposto para o
modo de vida filosófico. Todavia, um dos fatores que, segundo a hipótese que
venho tentando sustentar, é decisivo para manter o homem comum afastado do
exercício da filosofia é sua tendência a recusar o confronto com seu modo de
ser mais originário, enquanto existente: o “ser-para-a-morte”.
Uma vez que seu
modo de viver é quase inteiramente capturado e estruturado segundo as rotinas
da vida social, o homem comum quase nunca tem avivada, em sua consciência de
mundo, a perspectiva da vida como “um processo que em toda parte consome a
durabilidade, desgasta-a e a faz desaparecer, até que finalmente a matéria
morta, resultando de processos vitais pequenos, singulares e cíclicos, retorna
ao gigantesco círculo global da natureza” (Arendt, 2010, p. 119). Como ensina
Arendt, nesse ciclo global da natureza, não há nem começo nem fim, e todas as
coisas naturais “volteiam em imutável e infindável repetição”. Ao invés de
admitir e articular esse saber a uma existência humana verdadeiramente livre e
conciliada com a ordem natural do mundo, o homem comum prefere fingir que não é
feito de uma mesma matéria de que se compõe todo o Universo, prefere viver no “esquecimento”
de que seu corpo é composto pelos mesmos átomos de que são formadas todas as
demais coisas e seres do universo. Todos os seres vivos estão submetidos ao
movimento cíclico da natureza pelo qual eles nascem e necessariamente morrem.
Em certo nível de compreensão, o nascimento e a morte de seres humanos são tão
banais, tão insignificantes quanto o nascimento e a morte dos demais seres
vivos, já que todos os seres vivos estão submetidos ao movimento cíclico da
natureza. Como bem observa Morin (2020, p. 49), “(...) desde o nascimento, a
vida veio a ser parasitada pela morte”. Quanto mais complexa se tornou a vida,
mais ela se fragilizou e mais se encontrou ameaçada pela morte; mas também,
veio a assumir uma organização mais complexa, “para lhe opor resistência
inclusive se valendo da morte de suas células”. Por outro lado, em outro nível
de compreensão, como lembra Arendt, “o nascimento e a morte de seres humanos
não são simples ocorrências naturais, mas referem-se a um mundo no qual
aparecem e do qual partem indivíduos singulares, entes únicos, impermutáveis e
irrepetíveis”. (ibid.). O caráter essencialmente trágico da condição humana
fica aqui evidente: quando morre um ser humano, desaparece um indivíduo
singular, um ser único e irrepetível, e com ele seu mundo afetivo, sua memória
de vivências, suas possibilidades de ser. Segundo Arendt, “o nascimento e a
morte pressupõem um mundo que está em constante movimento, mas cuja
durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o
desaparecimento (...)”. (ibid.). Este mundo existia antes do aparecimento de
qualquer indivíduo e sobreviverá à morte dele.
Quando
tomamos a “vida” na sua relação intrínseca com o mundo, já não a compreendemos
como um evento físico-químico, como um modo determinado de organização da
matéria. Situada no horizonte da mundanidade, “vida” designa “o intervalo de
tempo entre o nascimento e a morte”. (ibid., p. 120). Quando o homem vive
compreensivamente situado na perspectiva da sua finitude, chega a apreensão
afetiva da limitação de sua vida aos “dois supremos eventos do aparecimento e
do desparecimento no mundo”. (ibid.). Estando limitada por um começo e um fim,
a existência humana “segue uma trajetória estritamente linear, cujo movimento, não
obstante, é transmitido pela força motriz da vida biológica que o homem
compartilha com outras coisas vivas e que conserva para sempre o movimento
cíclico da natureza”. (ibid.).
Alguém
poderia dizer que a vida humana não pode ser reduzida ao mero movimento cíclico
da natureza (embora esteja necessariamente submetida a ele). Evidentemente, não
somos apenas organismos vivos, não pertencemos apenas a uma espécie de animais,
nosso mundo próprio e imediato não é o mundo natural; nosso mundo, o mundo
humano, é o mundo da cultura, é um mundo construído pelo artifício humano,
mundo histórico, mundo das instituições humanas, e, por um mal hábito, tendemos
a reduzir a totalidade do mundo a esse mundo fabricado pela atividade humana.
Desnecessário dizer, conforme venho mostrando, que o mundo é muito mais amplo,
é um Todo infinito, do qual o mundo histórico, construído pela atividade humana,
é uma ínfima parte. Em todo caso, é nesse mundo histórico, nesse mundo que se
identifica com a obra humana, que nasce da transformação da natureza levada a
efeito pela aplicação da técnica (tecknè)
criada pela engenhosidade humana, que a existência do animal humano se investe
de um sentido, de significados humanamente produzidos em práticas sociais
organizadas e mediadas pelo imaginário-simbólico. É nesse mundo histórico que a
vida humana é vivida como uma totalidade “plena de eventos que no fim podem ser
narrados como uma estória [story] e
estabelecer uma biografia”. (ibid.).
Na próxima
seção, meu intento é mostrar que esse mundo histórico é obra do trabalho de
dois modos de ser do homem: o animal laborans e o homo faber. Ao
examinar as características desses dois modos de ser do homem, avanço reflexões
sobre as condições históricas da vida humana que emergiram nos períodos
designados “modernidade” e “pós-modernidade”, com vistas a mostrar que tanto o
divórcio entre o modo de vida do homem comum e a filosofia quanto a questão do
valor da filosofia devem ser remetidos à consideração de tais condições
históricas concretas, muito embora o problema do valor da filosofia remonte,
pelo menos, ao século V-IV a.C, quando vita
activa e vita contemplativa
passaram a ser percebidas como duas esferas de vida separadas entre si. Essa
separação decorre da compreensão grega da teckné
(arte, técnica), consagrada por Platão, como uma atividade menor relativamente
à mais elevada atividade que é a atividade contemplativa, a filosofia como atividade teorética, por excelência,
segundo Aristóteles.
2.
A mundanidade do animal laborans e homo faber
Concebido
como um existencial do ser-aí, na abordagem fenomenológico-ontológica de
Heidegger, o conceito de mundanidade
será entendido aqui como a qualidade do modo de ser do homem como ser vivo e
histórico imerso no mundo, envolvido dinamicamente com o mundo. A mundanidade
do animal laborans se caracteriza por
sua sujeição “aos processos devoradores da vida”. (Arendt, 2010, p. 180). O animal laborans está permanentemente
ocupado com tais processos. Para garantir a estabilidade e a durabilidade de
seu mundo, o animal laborans se utiliza
de instrumentos e ferramentas, as quais “em uma sociedade de trabalhadores,
(...) assumem muito provavelmente um caráter ou função mais que meramente
instrumental”. (ibid.). Consoante Arendt, o animal
laborans vive num mundo de máquinas desde a Revolução Industrial. É o uso da máquina que melhor se ajusta ao
seu fazer, “já que não é o movimento do corpo que determina o movimento do
utensílio, mas sim o movimento da máquina que compele os movimentos do corpo”.
(ibid., p. 182). Arendt acredita no triunfo do animal laborans sobre o homo
faber. Sua vitória representou a sobreposição da condição natural de
vivente a qualquer outra condição da existência humana. Sobrepujando o homo faber, o animal laborans converteu os processos destinados à satisfação das
necessidades em quadro axiológico à luz do qual julga, avalia, mede, considera
todos os demais modos de ser e de viver. Não acompanho Arendt ao defender ter
havido uma vitória do animal laborans
sobre o homo faber. Penso que esses
dois modos de ser do homem no mundo coexistem em nossa época atual. A sociedade
da época em que Arendt escreveu era uma sociedade emergente de consumidores,
donde explica por que Arendt diz que o animal
laborans emprega seu tempo excedente exclusivamente no consumo; mas essa
sociedade de consumidores é também a nossa. Segundo Arendt, como os apetites do
animal laborans são insaciáveis e
cada vez mais sofisticados, o consumo em que ele emprega sua vida “não se restringe
às necessidades da vida, mas, ao contrário, concentra-se principalmente na
superficialidade da vida”. (ibid., p. 165). Arendt demonstrava preocupação com
o fato de que essa forma de consumo levasse à aniquilação todos os recursos
disponíveis no mundo. Essa preocupação continua sendo um dos desafios
principais dos projetos de organização de sociedades sustentáveis em nosso
século. Embora esse comportamento social e ecologicamente inconsequente do animal laborans seja um tema que mereça
acurada atenção, não será objeto de minhas considerações no presente texto. O
que me interessa é assinalar o modo como o animal
laborans se relaciona com as coisas do mundo: ao se envolver com elas, ao
se comportar em relação a elas por meio do ato do mero consumo supérfluo, ele
as trata como coisas supérfluas, descartáveis, degradáveis, inutilizáveis.
Por outro
lado, a mundanidade do homo faber é
caracterizada pela submissão do modo de ser dele a todo utilitarismo sistemático. Como enfatiza Arendt, “é “em razão da” utilidade em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de
“a fim de””. (ibid., 192). Arendt
afirma que, para que o mundo seja um lar para os seres humanos, o mundo
histórico, o mundo construído pelo homem, deve ser um lugar adequado à ação e
ao discurso, adequado, portanto, a atividades não apenas totalmente inúteis,
“mas de uma natureza inteiramente diferente das múltiplas atividades de
fabricação por meio das quais o próprio mundo e todas as coisas nele são
produzidas”. (ibid., p. 217). A mundanidade do homo faber implica a transformação de tudo em objeto de uso, ou
seja, no mundo do homo faber tudo
deve servir de instrumento para a obtenção de outra coisa. Não surpreende que
até mesmos os conhecimentos devem ter, neste mundo, uma utilidade; e resta
evidente que a filosofia deixa de ter qualquer valor e sentido para o homo faber. É importante que se retenha
a ideia de que o homo faber é um
fabricante de coisas e de que ele se comporta e pensa em termos de meios e
fins, os quais decorrem de sua atividade fabricante. Assim, “ele é tão incapaz
de compreender o significado como o animal
laborans de compreender a instrumentalidade”. (ibid., p. 193). Na condição
existencial de homo faber, o homem
instrumentaliza as coisas “e sua instrumentalização implica a degradação de
todas as coisas a meios, a perda de seu valor intrínseco e independente”.
(ibid.). Não só são os objetos da fabricação, como também o planeta inteiro e
todas as forças da natureza, que vêm em auxílio do homem e existem
independentemente dele, que perdem seu valor porque resistem à reificação
resultante da obra. É este modo de ser do homo
faber que levou os gregos, em seu período clássico, a considerar banaústico ou filisteu todo o campo de artes e ofícios, no qual os homens operam
com seus instrumentos visando à realização de algo não pela satisfação de si
mesmos. Filisteu é o campo da vida social onde os homens agem e pensam por
conveniência, em consonância com os padrões vigentes em sua sociedade. Esse
estado-de-coisas não deixou de ser uma característica de nossa época,
caracterizada pela expansão da lógica neoliberal para todas as esferas da vida
social. Mas o problema, para os gregos, com esse modo de ser do homo faber não é a instrumentalidade
como tal, não é o emprego de meios para atingir um fim, o problema é “a
generalização da experiência da fabricação, na qual a serventia e a utilidade
são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos
homens”. (ibid., p. 195-196). Mutatis Mutandis,
também os críticos do neoliberalismo censuram a expansão de sua racionalidade,
de sua lógica num processo de universalização do princípio de concorrência como norma das
relações humanas. Tratarei desse tema mais adiante. Cumpre ainda acrescentar,
antes de trazer à baila o tema da próxima subseção, que a generalização da
experiência de fabricação é inerente à atividade do homo faber, porque a experiência dos meios e dos fins, tal como se
realiza na fabricação, prolonga-se por todas as suas etapas até o destino final
do produto acabado, que é servir como objeto de uso. Em sociedades organizadas
pelo regime do capital, o domínio público do homo faber é o mercado de trocas, “no qual ele pode exibir os
produtos de sua mão e receber a estima que merece”. (ibid., p. 200). Não são,
contudo, os próprios fabricantes de coisas que se encontram no mercado de
trocas; são os indivíduos enquanto donos de mercadorias e valores de troca.
Cabe aqui dar alguns esclarecimentos sobre o que são os valores num mercado de
troca e sobre a relatividade das trocas, dado que a compreensão mínima da
natureza do mercado ajuda-nos a entender como tudo o mais que é socialmente
produzido passa a estar subordinado às determinações do mercado.
Segundo
o economista Paul Singer (2017, p. 22-23), “o valor é, no fundo, o preço
relativo. (...) O valor é o preço de cada produto em relação aos outros”. É a
relatividade das trocas que fixa os valores das mercadorias. De acordo com a
teoria do valor-utilidade, “(...) os preços relativos refletem, em última
análise, as utilidades relativas para os consumidores de grande variedade de
mercadorias que estão à sua disposição”. (ibid., p. 28). Assim, o mercado de
trocas é a esfera própria dos valores. Nenhuma coisa tem valor na esfera
privada, mas só adquire valor quando figura na esfera pública em relação a
outras coisas. Como nota Arendt, os valores fixados na relatividade das trocas
se tornam valores negociáveis. Eles
só podem ser modificados pela alteração da proporção entre uma mercadoria e
outra qualquer. Vale atender no excerto seguinte, colhido de Arendt, no qual
fica claro o caráter sobredeterminante do mercado de trocas, que passa a
funcionar como o campo de práticas sociais a partir do qual todos os bens
culturais passam a ser avaliados, inclusive os bens do espírito:
(...)
é somente no mercado de trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por
outras, que todas elas se tornam “valores”. Pois é somente no mercado de
trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por outras, que todas elas se
tornam valores ou objetos de uso, quer necessários à vida do corpo ou ao
conforto da existência ou à vida do espírito [mind]. Esse valor consiste unicamente na estima do domínio público,
no qual as coisas aparecem como mercadorias; e o que confere esse valor a um
objeto não é o trabalho, a obra, o capital, o lucro, ou o material, mas única e
exclusivamente o domínio público, no qual o objeto aparece para ser estimado,
reclamado ou negligenciado. (ibid., p. 204).
Mais
adiante, quando me detiver na consideração das condições históricas que
caracterizam a modernidade e a chamada pós-modernidade, o período histórico em
que nós vivemos, desenvolverei um pouco mais minhas reflexões sobre o modo de
inserção do homem na mundanidade do mundo, situando-a no domínio da produção
capitalista e do trabalho.
2.1.
O mundo da técnica
Em seu livro Cibercultura: tecnologia e vida social na
cultura contemporânea (2010), André Lemos aborda o desenvolvimento da
técnica desde a sua origem na Grécia Antiga até a era moderna, quando a técnica
se amalgama com a ciência, formando o domínio da tecnociência. Técnica provém do grego tekhné, que se traduz, comumente, como “arte”. A tekhné
“compreende as atitudes práticas, desde a elaboração de leis e a
habilidade para contar e medir, passando pela arte do artesão, do médico ou da
confecção do pão, até as artes plásticas ou belas artes, estas últimas
consideradas a mais alta expressão da tecnicidade humana”. (ibid., p. 26).
Enquanto conceito filosófico, tekhné designa as artes práticas, o saber e o fazer
humanos que estão em oposição à physis,
ou potência original de geração, de crescimento, de organização da vida dos
seres naturais. Tekhné e physis recobrem o processo de vir a ser,
da passagem da ausência à presença, e participam daquilo que os gregos chamavam
poiésis.
O conceito de
tekhné, cunhado numa primeira
filosofia da técnica, faz a distinção entre o fazer humano e o fazer da
natureza, este último caracterizado como autopoiético,
porquanto encerra em si mesmo o princípio de seu próprio movimento, que, em
Aristóteles e para os antigos gregos de um modo geral, não significa apenas
‘deslocamento de um corpo no espaço-tempo’, como nós, modernos o definimos, mas
também mudança qualitativa, mudança quantitativa, geração e corrupção dos
corpos. O fazer da natureza é, portanto,
o da autorreprodução. Por outro lado, como lembra Lemos, “a tékhné é a arte que coloca o homem no
centro do fazer poiético, em
confronto direto com as coisas naturais”. (ibid., p. 27). Para os antigos
gregos, todo ato humano é tekhné e
toda tekhné é o meio pelo qual se faz
nascer uma obra. A nossa compreensão contemporânea de
tecnologia, portanto, tem sua gênese na visão grega clássica, que remonta ao
século V a.C. A crítica contemporânea da tecnologia será marcada pela filosofia
da técnica, tal como desenvolvida no pensamento de Platão e Aristóteles. A
filosofia grega se encarregará de separar a tekhné,
entendida como saber prático, da epistéme, o conhecimento teórico das
coisas, o conhecimento pelo pensamento, que, em Aristóteles, passou a designar
o conhecimento científico. No mundo pré-filosófico, dominado ainda pelo mito,
não havia essa separação, pois que o homem dessa época vivia imerso num mundo
em que não existia a setorização dos saberes em domínios independentes e
estanques.
É com Platão
que a tekhné vai ser contraposta ao
saber teórico, contemplativo, à epistéme.
Quando Platão peleja contra os sofistas, o faz com o fito de elevar a
contemplação filosófica à categoria de atividade mais digna dos homens,
atividade esta superior à tekhné.
Platão julgava os sofistas além de mercenários do saber, já que ensinavam em
troca de ganho econômico, artífices de receitas e manuais de retórica. Por
conseguinte, como ensina Lemos, “a filosofia de Platão induz nossa percepção em
relação às artes práticas, que são ainda hoje consideradas menores em relação à
atividade intelectual-conceitual”. (ibid.). Para Platão, o artista, sendo
aquele que domina a tekhné, é um
demiurgo, um imitador, um produtor de cópias e de simulacros. Os objetos da
técnica são produtos que imitam as coisas naturais, que produz cópias do ser.
Porque produz cópia, imitação ou simulacro, Platão desconfia da tekhné. Aristóteles, por seu turno,
também vê a atividade técnica como inferior, não só por ser um saber prático
que imita e domina a physis, mas
também porque seus produtos não encerram em
si mesmos o princípio de sua produção, como o encerram as coisas
naturais. As coisas artificiais, produtos do artifício humano, frutos,
portanto, da tekhné, são inferiores,
para Aristóteles, porque o princípio de sua produção é externo a eles. As
coisas artificiais carecem da autopoiésis,
ou seja, da capacidade de autorreprodução. Sua causa eficiente são os homens ou
os animais.
A revisita a
esse tempo histórico originário do nascimento e desenvolvimento da técnica no
mundo ocidental é pertinente não só para entendermos, numa espécie de
itinerário genealógico, como se formou o preconceito moderno, sedimentado no
senso comum, sobre os saberes técnicos, mas também para compreendermos que a
evolução da espécie humana é resultado desse movimento perpétuo e infindável de
separação entre os objetos da técnica e a natureza. A técnica foi a responsável
pela criação da segunda natureza do homem, chamada cultura. A cultura se desenvolve por um processo de desnaturalização do homem. O mundo da
cultura, em última instância, o mundo dos símbolos e dos artifícios da obra,
compreende uma espécie de “ecossistema cultural”, “onde a naturalização do
artifício modifica o meio natural, da mesma forma que o meio natural vai
impondo limites à atividade técnica humana”. (ibid., p. 31). A naturalização
dos objetos da técnica impele uma progressiva artificialização do homem e da
natureza, “sendo mesmo impensável, como escreverá Lemos, a existência do homem
e da cultura fora desse processo”. (ibid.). Conforme salienta Lemos, “o modo de
existência dos objetos técnicos, que vai caracterizar a tecnologia contemporânea, corresponde a uma lógica interna, a um
caráter genético do desenvolvimento das técnicas primitivas”. (ibid., p. 30).
O retorno às
origens do nascimento e do desenvolvimento de nossa concepção filosófica da
técnica também ilumina, para as pessoas que, em todas as épocas, mormente em
nossa modernidade líquida, toma a filosofia por um saber sem valor, sem
importância, o valor mesmo que elas se recusam a lhe conferir: ser o caminho pelo qual conhecemos a nossa
condição humana, conhecemos quem somos, como pensamos, como agimos e por que
pensamos e agimos do modo que agimos em nossa época, no mundo histórico em que
vivemos.
2.1.2.
A tecnociência moderna
Donde vem a
possibilidade de julgarmos os saberes em termos instrumentais? Por que as
pessoas hoje tendem a classificar os conhecimentos em úteis e inúteis, em
aplicáveis e em meramente especulativos, teóricos? Não pretendo ir tão longe a
ponto de traçar, num trabalho de arqueologista à moda foucaultiana, o percurso
histórico que nos conduziria à separação entre as chamadas ciências humanas e
ciências exatas, acontecimento este que foi, sem dúvida, decisivo para moldar
uma mentalidade utilitarista em
relação ao conhecimento humano. Minha pesquisa não se pretende tão ambiciosa. O
que me interessa, especialmente, nesta discussão, é descerrar o modo de ser do
mundo da tecnociência como um domínio da mundanidade do homem moderno. Para
tanto, começo por fazer notar que os objetos são, no começo de seu
desenvolvimento técnico, dependentes de uma ação inventiva e primitiva dos
animais humanos. Essa seria a fase zoológica da evolução dos objetos técnicos.
Com o desenvolvimento do córtex no cérebro do homem, os objetos técnicos passam
a ficar submetidos a uma lógica interna, por exemplo, a inovação de uma peça
pode mudar completamente os destinos da evolução de uma máquina. Na era
moderna, o homem deixa de ser um simples inventor e passa a ser um operador de
um conjunto de máquinas que se desenvolve segundo uma lógica interna, que é a
sua tecnicidade. Lemos observa que
“a aparição de objetos técnicos engendra, então, um processo permanente de naturalização
dos objetos e de objetivação da natureza (na construção de uma segunda natureza
artificial, a tecnosfera)”. (ibid.,
p. 30-31). Tecnosfera é a
palavra-chave que descreve este mundo habitado pelo homem, este mundo que é
produto da atividade técnica, criativa do homem, um “mundo outro” constituído
de objetos artificiais e símbolos, coextensivo, em última instância, às redes
simbólicas que são as instituições que estruturam, que conformam e dão sentido
à sua vida, mundo-artifício ao qual ele, homem, facilmente se acomoda (se
adpta) e o qual assume como mundo estranho a si, mundo que existe
independentemente de si, que se impõe a si, que o constrange e pesa sobre si
com a sua objetividade irrecusável. Esse mundo nasce do trabalho do homem sobre
a natureza, trabalho por meio do qual a natureza se modifica, se humaniza, se
transforma para pôr-se a serviço do homo
faber e do animal laborans. No
trabalho de modificação da natureza, o homem se humaniza, humanizando a
natureza; e humanizando a natureza, o homem se desnaturaliza.
A
tecnociência moderna se desenvolve a partir do século XVII com a fundação da
física moderna, de base cartesiana e newtoniana. Segundo Lemos, “a tecnologia
nada mais é que a concretização dos planos dessa Big Science [a física moderna], marcando o surgimento de uma forma
técnica, a tecnologia, de uma forma
cultural, a tecnocultura, e de uma
forma ecológica, a tecnoesfera”.
(ibid., p. 36, grifos meus). Tecnologia, tecnocultura, tecnosfera são todos
temos empregados para designar diferentes aspectos da obra humana. A
tecnologia, que nada mais é do que a tecnociência moderna, que resulta da
junção entre a ciência e a técnica num processo ao longo do qual foi se dando a
cientifização da técnica e a tecnização da ciência. Quando falamos em
tecnologia moderna, quando nos admiramos do mundo novo que ela nos proporciona,
estamos falando da tecnociência que se tornou autônoma e instrumental. Na
maioria das vezes, a tecnologia, que é a autonomização e instrumentalização da
tecnociência, se associou a projetos políticos tecnocráticos, futuristas e
totalitários.
A física
moderna, portanto, assentou o terreno para o surgimento da tecnologia moderna.
Destarte, pela primeira vez na história da evolução humana, se desenvolveu uma
atividade técnica como produto da aplicação de uma ciência que toma a natureza
como campo de exploração e de controle. Como nos ensina Lemos, “na modernidade,
é toda a tecniciadade humana que se vê reduzida à pura instrumentalidade da
tecnociência, autônoma e objetiva”. (ibid., p. 36). Esse é um ponto da presente
discussão que demanda especial atenção do leitor. É preciso aqui enfatizar, com
Lemos, que é toda a atividade da esfera técnica do homem que se autonomiza, se
instrumentaliza, se racionaliza. Por isso, a tecnologia passará a ser vista
como algo artificial, como estranha e oposta a qualquer realização mais nobre e
elevada do espírito humano. Iniciada no século XVII, a fusão da técnica com o
conhecimento científico conhecerá seu apogeu no século XX, com os Centros de Pesquisa
e Desenvolvimento espalhados em várias regiões do mundo cientifica e
tecnologicamente avançadas. Se recordamos, por um instante, o percurso pelo
qual a técnica se desenvolveu, a reencontraremos como um produto de uma
experiência humana imediata com o mundo, de um envolvimento corporal do homem
com o mundo, por meio de instrumentos, ferramentas, máquinas. Esse dispor
humano do mundo mediante a técnica não carecia de explicações científicas. A
técnica é, originalmente, o fazer transformador humano que prepara a natureza,
que a molda para servir à espécie humana e à cultura. Como observa Lemos, “ela
é uma provocação da natureza gerando um processo de naturalização dos objetos
técnicos na construção de uma segunda natureza povoada de matéria orgânica, de
matéria inorgânica e de matéria inorgânica organizada (os objetos técnicos)”.
(ibid., p. 37).
A técnica
moderna, ou o que chamamos de tecnologia,
“é produto da radicalização dessa segunda natureza, da naturalização dos objetos
técnicos e da sua fusão com a ciência”. (ibid.). No mundo da tecnociência, as
atividades da ciência e a técnica se tornaram indiscerníveis; já não mais
conseguimos saber qual atividade é científica e qual atividade é propriamente
técnica. Na modernidade, a natureza e a vida social serão transformadas em
objeto de intervenções tecnocráticas.
2.1.3.
A modernidade e a pós-modernidade
Consoante
observa Lemos, “a modernidade é a expressão da existência de uma mentalidade
técnica, de uma tecnoestrutura e de uma tecnocultura que se enraízam em
instituições, incluindo toda a vida social na burocratização, na secularização
da religião, no individualismo e na diferenciação institucionalizada das
esferas da ciência, da arte e da moral”. (ibid., p. 62). Costuma-se datar o
nascimento da era moderna em 1450, portanto, no fim da primeira metade do século XV. No séculos XV e XVI, a Europa
viveu uma revolução cultural – a Renascença. A era moderna se estenderia até a
segunda metade do século XX, quando, para alguns historiadores, o mundo
ocidental entraria numa pós-modernidade. Não pretendo aqui discorrer longamente
sobre as condições socioculturais e econômicas que caracterizam a modernidade.
Importa-me apenas sublinhar que, no plano econômico, as sociedades modernas são
sociedades industriais, são sociedades de produção de bens e serviços de massa,
de utilização intensiva de energia, são sociedades de trabalhadores
qualificados e especialistas, são sociedades economicamente hierarquizadas
segundo a atividade dos proprietários do capital. Com a Revolução Industrial do século XVIII, o
capitalismo atingiu a segunda fase de seu desenvolvimento – a do capitalismo
industrial. A essa segunda fase de desenvolvimento do capitalismo corresponde a
sociedade de trabalhadores. Mas nós já não habitamos mais um mundo organizado e
submetido ao regime do capitalismo industrial. O Ocidente, hoje, encontra-se na
terceira fase do capitalismo (a do capitalismo financeiro). Manuel Castells, no
entanto, pensa que a nossa era é a do capitalismo informacional, o que sugere
que vivemos numa quarta etapa do desenvolvimento do capital. Embora seja
importante descrever o desenvolvimento do capitalismo em termos de fases, desde
sua origem comercial até os dias de hoje, já que tais metamorfoses do
capitalismo são inerentes à própria capacidade que tem o sistema de se
reproduzir e perpetuar e já que refletem
mudanças importantes no âmbito cultural e ideológico, há um aspecto constante
no modo de produção capitalista, que permanece inalterado, seja qual for a
época histórica em que o estudemos: a
formação de indivíduos que se ajustem às exigências econômicas e às normas pretensamente
universais que ele impõe. Na modernidade, o indivíduo é o consumidor; sua
identidade é definida a partir de sua participação nas esferas de consumo. A
uma sociedade de consumidores corresponde uma sociedade de trabalhadores. Como
nos diz Arendt, “uma sociedade de trabalhadores (...) julga os homens segundo
as funções que eles exercem no processo de trabalho; enquanto a força de
trabalho, ao olhos do homo faber, é
apenas o meio de produzir o fim necessariamente superior, isto é, ou um objeto
de uso ou um objeto para a troca”. (ibid., p. 203). Assim como o capitalismo
sofre metamorfoses, também o trabalho sofre suas metamorfoses. À fase do
capitalismo industrial corresponde à do trabalho fabril, do trabalho submetido
ao regime de produção taylorista-fordista. Ou o trabalhador era submetido à
máquina, ou a máquina era submetido ao trabalhador. Na atual fase do
capitalismo, o homem está submetido à máquina informacional-digital. É oportuna
aqui a lição de André Antunes, em seu O
privilégio da servidão (2020):
(...)
nesse universo caracterizado pela submissão
do trabalho ao mundo maquínico (seja pela vigência da máquina-ferramenta do
século XX, seja pela máquina informacional-digital dos dias atuais), o trabalho estável, herdeiro da fase
taylorista-fordista, relativamente moldado pela contração e pela regulamentação,
vem sendo substituído pelos mais distintos e diversificados modos de
informalidade, de que são exemplo o trabalho
atípico, os trabalhos terceirizados (com sua enorme variedade), o
“cooperativismo”, o “empreendedorismo”, o “trabalho voluntário” e mais
recentemente os trabalhos intermitentes. (Antunes, 2020, p. 71).
No processo
de transformação do trabalho, é cada vez mais patente o crescimento da
precarização do trabalho. Não deixamos de ser uma sociedade de trabalhadores,
mas, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, é cada vez mais
crescente o número de desempregados, de trabalhadores informais, de
trabalhadores terceirizados, de trabalhadores vinculados por contratos
temporários. Castells, por sua vez, observa que, em nossas sociedades atuais do
capitalismo informacional, a economia informal se tornou um traço fundamental
do mercado de trabalho. O autor sublinha a crescente flexibilização da
mão-de-obra, que se caracteriza pela “redução da proporção da força de trabalho
com empregos de longo prazo e carreiras previsíveis à medida que novas
gerações, em sua maioria contratadas por causa de sua flexibilidade, substituem
uma mão de obra mais velha que tem direito à segurança no emprego em empresas
de grande porte”. ( Castells, 2020, p. 16). Conquanto reconheça que
trabalhadores mais escolarizados tenham se tornado ativos mais valiosos de suas
empresas, Castells não deixa de frisar que cresceu, por outro lado, o número de
trabalhadores, entre os quais jovens, mulheres e imigrantes, que estão dispostos
a aceitar “qualquer condição para a obtenção de um emprego”. (ibid., p. 17). Na
atual crise do capitalismo, contudo, nem mesmo os trabalhadores mais
qualificados têm garantido um vínculo empregatício estável; muitos deles ou são
deixados no limbo do desemprego, ou aceitam trabalhos que exigem menos
qualificação. Para Castells, o que
explica as contradições atuais do mercado de trabalho “são as condições
estruturais de uma economia do conhecimento que cresce no contexto de uma
grande economia de serviços de baixa qualificação”. (ibid.). A configuração
dual do mercado de trabalho que, ao menos parcialmente, ainda absorve um número
de trabalhadores mais qualificados enquanto força um amplo número de
trabalhadores jovens, mulheres e imigrantes a aceitar qualquer tipo de
trabalho, “é a origem crescente da desigualdade observada na maioria das
sociedades”. (ibid.).
Castells
afirma que as tecnologias de informação e comunicação são fatores que
influenciam na transformação dos mercados e dos processos de trabalho; mas não
são os únicos. Para ele, não se deve subestimar as estratégias políticas das
empresas e as políticas governamentais, que tornaram possível a transformação
operada pelas tecnologias de informação e comunicação.
Toda essa
conjectura socioeconômica é uma característica atual de nossa era pós-moderna.
A ideia de pós-modernidade aparece na segunda metade do século XX com o advento
da sociedade de consumo e dos meios de comunicação de massa. Assim, segundo
Lemos, “pós-modernidade é a expressão do sentimento de mudança cultural e
social correspondente ao aparecimento de uma ordem econômica chamada pós-industrialismo, nos anos 40-50 nos
EUA, e em 1958 na França, com a 5ª República”. (ibid., p. 63). Já nos anos 60,
os sistemas sociais sofrem o que Giddens (1991, p. 29) chama de desencaixe,
a saber, o “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação
e sua restruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. Contracultura, revolução verde,
informatização da sociedade, pós-colonialismo e pós-industrialismo, ceticismo
epistemológico (nada pode ser conhecido com certeza, desde que os “fundamentos”
da epistemológia caíram em descrédito ), derrocada da crença na verdade como
correspondência entre o pensamento e o real são algumas das características
mais marcantes da pós-modernidade. No âmbito cultural, a pós-modernidade também
se caracteriza pelo fim das grandes ideologias e pela falência do milenarismo,
ou seja, pela falência da crença numa transformação radical da sociedade, bem
como pelo descrédito na ideia de progresso e numa concepção teleológica da
história; pela pluralidade de valores e
identidades de gênero. Na pós-modernidade, os campos da política, da
ciência, da tecnologia, da economia, da moral, da filosofia, da arte, da vida
cotidiana, da comunicação sofreram uma transformação radical. A pós-modernidade
corresponde exatamente à fase pós-industrial do capitalismo, na qual a produção
de bens e serviços (relacionados ao grande consumo de energia) modifica-se em conformidade
com as novas tecnologias digitais. No plano econômico, a pós-modernidade se
caracteriza pela redução do número de trabalhadores no setor secundário (das
indústrias e construção) e aumento deles no setor de serviços (comércio,
transporte, atividades imobiliárias, etc.). A então chamada terceira fase do
capitalismo, a do capitalismo financeiro
ou monopolista, é também a fase
do capitalismo multinacional, onde o
mundo inteiro se torna um grande mercado globalizado. Para Lemos, vivemos na
terceira fase do capital, na terceira fase da máquina, que corresponde à fase
da microeletrônica e da energia nuclear. Portanto, segundo este autor, “a fase
pós-industrial da sociedade não é uma ruptura com a dinâmica monopolista de
capitalismo, mas uma radicalização do desenvolvimento de sua própria lógica”.
(ibid., p. 64).
3.
Capitalismo e neoliberalismo
A
mundanidade do homo faber e do animal
laborans é inseparável do capitalismo e de sua racionalidade, o
neoliberalismo. Ora, numa sociedade de produtores e consumidores, organizada
segundo a lógica neoliberal, o interesse principal não é a formação de
pensadores, de filósofos, de homens das Letras, mas de uma nova subjetividade
adequada ao regime do capital financeiro, a subjetivação contábil e financeira.
É preciso nos desabituar da ideia de que o capitalismo é um mero sistema
econômico de produção. O capitalismo, na verdade, é mais que isso: é um sistema de produção de subjetividades,
de modos de ser, de pensar, de viver. No tocante à subjetivação capitalista,
Dardot & Laval (2016) dão-nos a saber o que se segue:
Trata-se,
na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que
seja homóloga à relação do capital com ele mesmo, ou, mais precisamente, uma
relação do sujeito com ele mesmo, como um “capital humano” que deve crescer
indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais. (ibid.,
p. 31).
Para
alcançar esse fim, o capitalismo se organiza e se justifica segundo uma
racionalidade própria, a saber, o neoliberalismo.
Segundo os autores, “o neoliberalismo é a razão
do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas
referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma
geral de vida”. (ibid., p. 17, grifos meus). O ponto que se deve ter em mente é
este: com o neoliberalismo, o capitalismo se torna uma norma geral de vida. Com
o neoliberalismo, o capitalismo aparece à consciência dos sujeitos sociais como
a única formação econômica viável, legítima. Para Dardot & Laval, “o neoliberalismo pode ser definido como o
conjunto de práticas, de discursos e dispositivos que determinam um novo modo
de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. (ibid.,
grifo meu). Esses autores estão assaz
interessados em compreender como a governamentalidade neoliberal toma forma num
“quadro normativo global (...) que, em nome da liberdade e apoiando-se nas
margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as
condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. (ibid.). Para Dardot
& Laval, não convém mais indagar sobre como as relações capitalistas se
impõem à consciência operária como “leis naturais evidentes”. O que não pode
ser mais ignorado é que esse mundo neoliberal generalizou a concorrência
econômica entre as sociedades e entre todos os setores de uma sociedade. Também
não se pode ignorar que qualquer discussão sobre o valor ou o significado da
filosofia deve considerar a crescente mercadologização do ensino em todos os
níveis. Portanto, o próprio significado existencial da filosofia não pode ser
mensurado, discutido, definido, fora do contexto socioeconômico maior em que o
neoliberalismo estende sua lógica da concorrência e do imperativo do ganho
econômico a todas as esferas da vida social, incluindo as esferas da educação
pública e privada.
3.1.
Capitalismo e trabalho
Como
é possível que uma pessoa pense ser “normal” e legitime a oferta de “trabalhos
voluntários”? Como as pessoas chegam a ter ideias como “pobres não gostam de
trabalhar”, ou se habituem a ditames como “mente vazia oficina do diabo”? Ou
ainda: como é possível que os indivíduos cheguem a acreditar que os ricos são
ricos porque trabalharam muito? Como podem considerar que a vida ativa, ou
melhor, que ser ativo, é estar inserido em alguma atividade de trabalho
produtivo, e que aqueles que ocupam seu tempo com o trabalho intelectual, com
os estudos sejam inativos, desocupados? Para que as pessoas tenham essas e
outras ideias, e tantos outros preconceitos e visão de mundo, é preciso,
evidentemente, que os tenham adquirido, que os tenham internalizado. Nossa
visão de mundo, nossas crenças, valores, ideias, o que pensamos acerca da
realidade do mundo, o que julgamos acerca do comportamento das pessoas, tudo
isso encontra-se sistematizado, organizado nos aparelhos ideológicos da
sociedade e é por eles transmitido, disseminado. O conteúdo dos nossos
pensamentos, as ideias, o que julgamos ser, nossa visão de mundo são incutidos
em nós durante o processo de socialização ao longo de toda a vida – processo
este do qual participam a educação formal e a informal. Mas resta ainda
entender de que modo a ordem social, ou, mais especificamente, a ordem
capitalista se internaliza na consciência dos indivíduos, moldando-a.
Considerando a contribuição de Reich para o estudo do fenômeno da ideologia,
Silvio Gallo, chama-nos a atenção para o seguinte:
(...)
tudo o que o indivíduo “recebe” em seu contato com o mundo, ao mesmo tempo em que é trabalhado
racionalmente pela consciência, é também assimilado no âmbito corporal. A estrutura fisiológica do homem adapta-se
às situações experimentadas no meio”. (Gallo, 2009, p. 81, grifo meu).
Devemos,
pois, atentar para a ideia de que o envolvimento do homem com o mundo não é a
de um Cogito sem corpo, mas a de um organismo dotado de uma estrutura
fisiológica que, para mim, não só se adapta às condições do meio, mas também
reage a ele, modificando-o e sendo modificado por ele. A experiência humana do
mundo é sempre uma experiência corporificada, uma experiência centrada no
corpo, de modo que, em toda e qualquer atividade que realizamos, o corpo e a
sua estrutura fisiológica, instintiva, pulsional, estão envolvidos e são afetados
no momento da própria experiência. As atividades espirituais não são atividades
de uma mente sem corpo, de uma mente separada do cérebro (a mente é o que o cérebro
faz, é uma função do cérebro). A cognição, como vimos, é uma atividade de ordem
fisiológica, orgânica; ela está centrada no corpo. Segue-se daí que o exercício
da filosofia, que, comumente, é concebido como espécie de “ginástica do
pensamento”, pelo qual só se interessariam aqueles intelectualmente mais
robustos, é um exercício cuja realização requer um corpo filosófico, e em cuja
realização se cunha um corpo filosófico. Quem diz ter interesse em filosofia
diz, na verdade, que tem mera curiosidade, que é um curioso do assunto. A
filosofia tende a afastar os interessados nela, os curiosos, porque ela é uma
atividade que demanda corpos fisiologicamente dispostos para o seu exercício e
carecidos dele.
Se
ficou claro, portanto, que não nos envolvemos com o mundo apenas
intelectualmente, mas por meio de todo o nosso corpo, por meio de sua estrutura
fisiológica, não será difícil entender que, na esteira de Reich, a ideologia, como
fenômeno social, como uma prática de massas, modela o pensamento, orienta a
prática dos indivíduos, se encarna em seus atos, em suas atividades, fazendo
com que as reações deles ao mundo sejam estereotipadas, reguladas por padrões.
Consoante afirma Gallo, “(...) a padronização das sensações e das reações
humanas é, ela própria, um fenômeno ideológico”. (ibid., p. 83). Na esteira de
Reich, será necessário reconhecer que estrutura psíquica do homem, que é a sua
estrutura de instintos (pulsões), é expressão da ideologia social. Assim, nas
palavras de Gallo:
(...)
a ideologia materializa-se (e só com essa materialização é que passa a existir
concretamente) quando se encarna no ser
do homem, quando passa a fazer parte de sua própria estrutura consciente.
Podemos dizer que o processo de “nascimento” de uma ideologia é um processo no
qual uma certa estrutura social é inserida no homem, tornando-se a própria
estrutura psíquica deste. (ibid., p. 83).
No trecho
supracitado, se nos dá a saber que a ideologia é de natureza material; ela se
encarna, se materializa no modo de ser dos indivíduos, e graças a essa
materialização da ideologia que ela passa a ter existência concreta. Ademais, a
ideologia, segundo Reich, integra, molda a estrutura consciente dos indivíduos.
É pela materialização da ideologia na estrutura da consciência que a estrutura
social se insere na materialidade do corpo humano e passa a ser reproduzida
pelos indivíduos nas práticas sociais. Assim, a ordem capitalista encarna-se na
estrutura psíquica dos sujeitos sociais, estorvando e mesmo impedindo a
percepção deles das virtualidades emergentes de outras formas de organização
social. É também porque essa ordem socioeconômica e ideológica se encarna nas
estruturas pré-conscientes dos indivíduos que ela garante sua permanência e
reprodução nos atos concretos que eles executam na vida diária. Não surpreende,
portanto, que os indivíduos, imersos na cotidianidade da vida contemporânea, se
recusem a admitir como dotado de algum valor qualquer conhecimento, qualquer
atividade humana que não respondam às necessidades práticas, utilitárias,
empresarias do mundo organizado e gerido pelo modo de produção capitalista e
pela sua racionalidade neoliberal, que posiciona os atores sociais como
concorrentes de um mundo-empresa que é requisitado continuamente como fonte de
lucro, de ganho econômico.
Tome-se, por
fim, a questão do trabalho como uma dimensão fundamental da mundanidade do
homem comum. O homem comum que vive, na maioria das vezes, enredado no complexo
de rotinas, de hábitos, de práticas do cotidiano, sem quase nunca escalar
andares superiores de compreensão do real, elege o trabalho como campo
axiológico a partir do qual ele se compreende a si mesmo e julga o próprio
valor da vida. Por sua estreiteza espiritual, por estar habituado a interpretar
o mundo, a perceber o mundo pelas grades epistêmicas do senso comum, o homem
comum não chega a alcançar uma compreensão radical de sua própria condição como
trabalhador.
Se, como economista, sociólogo, historiador, Marx denunciou as condições de exploração do trabalho assalariado na sociedade
capitalista de seu tempo, como filósofo, ele pensava que o trabalho é a expressão
da vida humana. Marx dizia que o homem humaniza a natureza pelo trabalho, a
transforma adequando-a a si mesmo. Nesse tocante, é pertinente a lição de Erich
Fromm, grande estudioso da obra marxiana:
O
trabalho é o fator que medeia entre o homem e a natureza; é o esforço do homem
para regular seu metabolismo com a natureza. O trabalho é a expressão da vida
humana e através dele se altera a relação do homem com a natureza; por isso,
através do trabalho, o homem transforma a si mesmo. (Fromm, 1962, p. 26).
Inspirando-se
na concepção marxiana de trabalho, Lukács verá o trabalho como resultado de uma
realização teleológica que o ser social, primeiramente, representa em sua
consciência. O trabalho torna possível o salto ontológico das formas
pré-humanas para a realização do homem como ser social. O trabalho, para
Lukács, situa-se no centro do processo de humanização do homem. Mas o trabalho
também não pode ser desumanizante, degradante? Em suas concretizações
históricas, com a crescente divisão do trabalho, ele passou a ser vivenciado como uma atividade que desrealiza, que desumaniza o trabalhador. Nas sociedades capitalistas de outrora e de hoje, as relações entre os trabalhadores e os proprietários do meios de produção são sempre marcadas por
exploração do trabalhador pelo capital, e o ato de trabalho é sempre marcado pelo estranhamento do trabalhador em relação a si mesmo, ao trabalho e ao seu produto; ainda hoje e particularmente nas sociedades capitalistas do tempo
de Marx, pode-se encontrar condições de trabalho degradantes e precárias.
Mesmo que o
trabalhador exerça seu trabalho em condições salubres e regulamentadas pela lei
trabalhista, o fato é que o trabalho assalariado, que é a base do
modo de produção capitalista, é a forma-trabalho como valor de troca, é
mercadoria que se troca por um equivalente universal (o dinheiro-mercadoria, na
maior parte da vezes). Nas sociedades capitalistas, o trabalho é universalmente
produtor de valores de troca. Na produção capitalista, cuja característica
própria é a preponderância da troca sobre todas as relações de produção, os
indivíduos são posicionados em relações multilaterais de dependência recíproca
por meio de uma produção destinada exclusivamente à troca. Tais relações são
produto exclusivo do ato de produção. Elas não se limitam a formas naturais ou
preestabelecidas, mas se baseiam exclusivamente sobre si mesmas enquanto
processo que estabelece suas próprias condições. Destarte, a produção torna-se
central no modo de vida capitalista e passa a determinar as demais relações dos
indivíduos uns com os outros e deles com o mundo. Esse modo de produção
centrado na troca, fixando relações de interdependência entre os indivíduos
produtores, posiciona-os contraditoriamente como indiferentes uns aos outros.
Cada qual passa a se ocupar de seus interesses egoístas, na medida em que cada
um serve ao outro apenas para servir a si mesmo. O trabalho, em tais condições
de produção, deixou de ser imediatamente trabalho social, seu produto não é
mais imediatamente um produto universal. Ao contrário, o trabalho é
imediatamente trabalho singular e autônomo, independente dos demais. Submetido
ao valor de troca, o trabalho, no modo de produção capitalista, torna-se trabalho alienado. Por conseguinte, segundo Vieira:
A
atividade só é efetivada por um ato de perda, de alienação, isto é, de troca;
apenas quando transformada em algo distinto dela própria. Troca esta que se
põe, como veremos, no próprio ato de produção e não apenas na circulação de
mercadorias enquanto tal. (Vieira, 2018, p. 60).
Como nota
Vieira, “a atividade característica da formação social capitalista é
fundamentalmente, portanto, atividade estranhada”. (ibid., p. 61). Isso
significa dizer que suas condições objetivas e os seus próprios produtos
aparecem separados dos indivíduos, numa relação não apenas de exterioridade,
mas sobretudo de oposição. O modo de produção capitalista tem como um de seus
traços fundamentais o fato de os indivíduos não produzirem com vistas à
satisfação de suas necessidades pessoais, mas de produzirem para atender a
necessidades sociais. O que predomina aí é o valor de troca e não se tem em
vista outra coisa senão a realização social, a realização de um objeto
produzido destinado a outro. Não é possível a realização da produção sem a
mediação da troca. Ao contrário do que possa imaginar, o indivíduo é dependente
da relação com o outro, é dependente de relações cada vez mais universais para
alcançar sua satisfação pessoal, tanto em sua produção quanto em seu consumo.
Se, depois
deste longo itinerário de reflexão sobre as condições históricas concretas à
luz das quais se deve sempre recolocar a questão do significado da filosofia, nos
afastamos do texto convencidos de que é extremamente difícil que a filosofia
fique encastelada à margem do processo de instrumentalização dos produtos da
obra, do processo de transformação de tudo em mercadoria em nossas sociedades
organizadas em torno dos interesses dos proprietários do capital, restar-nos-ia
questionar se ela mesma não deve se realizar, se afirmar como uma prática, uma
atividade humana de resistência, de confronto, de revolta contra o ininterrupto
movimento histórico de reificação do homem, dos seres vivos em geral, de toda a
vida no planeta. Se há uma “função” da filosofia, se podemos lhe conferir
alguma serventia que não seja a sua funcionalização pelo utilitarismo
sistemático do homo faber, a sua
reificação pela insensatez e anseio
consumista do animal laborans, que se
relaciona com as coisas sob o modo da descartabilidade, que não seja, enfim, a sua
monetarização pela racionalidade neoliberal que produz subjetividades contábeis
– se há uma função outra que cumpre a filosofia, repito - é a função que
Deleuze, em tão belas e pungentes palavras, nos deu a conhecer:
Quando
alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva,
porque a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao
Estado nem à Igreja, que tem outras preocupações. Não serve qualquer poder
estabelecido. A filosofia serve para afligir. A filosofia que não aflige
ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Serve para atacar o
disparate, faz do disparate qualquer coisa de vergonhoso. Tem apenas um único
uso: denunciar a baixeza do pensamento sob todas a suas formas. Haverá uma
disciplina, fora da filosofia, que se proponha criticar todas as mistificações
quaisquer que sejam a fonte e o objetivo? Denunciar todas as mistificações sem
as quais as forças reativas não poderiam imperar. Denunciar na mistificação
esta mistura de baixeza e disparate, que forma aliás a espantosa cumplicidade
das vítimas e dos autores. Fazer, finalmente, do pensamento qualquer coisa de
agressivo, de ativo e de afirmativo. Fazer homens livres, quer dizer, que não
confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral ou da religião.
Combater o ressentimento, a má consciência que faz as vezes de pensamento.
Vencer o negativo e os seus falsos prestígios. Quem é que tem interesse em tudo
isso senão a filosofia? A filosofia como crítica diz-nos o mais positivo de si
própria: empresa de desmitificação.
(Deleuze, 2001, p. 159-160, grifo meu).
Empreender
uma contínua e incessante desmitificação do animal
humano e de suas maneiras, eivadas de loucura, de insensatez, de sofreguidão,
de delírio metafísico, de interagir com o mundo, de se compor com o mundo, de
constituir sua própria mundanidade como ser-no-mundo, eis a função niilizante
da filosofia.
_________________________________________________________
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