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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação". (Rosset)

 



Um olhar filosófico sobre o trágico

 

 

 

A cantora Marília Mendonça, aos 26 anos, no auge do sucesso em sua carreira, morre em um acidente aéreo. Há vinte e cinco anos, o grupo Mamonas Assassinas também teve o mesmo destino “trágico”. Jovens rapazes morriam prematuramente infringindo a tal “lei natural da vida”, diziam a mídia e a vox populi. Naquela ocasião como nesta, a mídia aproveitou para ganhar pontos na audiência explorando o gosto sádico-masoquista e as inclinações à tanatofilia do grande público... pululavam também as referências ao “bom” Deus que decidiu “levar para junto de si” os vitimados ( o roteiro é o mesmo, só mudam os atores) ... como é de esperar nessas ocasiões, encontra-se aqui e ali um “desalmado” a lembrar que nos acidentes morreram pessoas que não tiveram a mesma visibilidade na mídia... e não tardarão a aparecer os médiuns, os sensitivos para nos dar notícias do além em algum programa de televisão... ao fim de um ou dois meses, a morte da cantora deixará de ocupar o lugar principal no horário nobre da grande mídia... em seis meses, a vida voltará a sua “normalidade”, porque, afinal, todo dia é dia para morrer... morre-se, e isso é tudo. Para a grande maioria do rebanho humano, o fato da morte não é em si objeto de angústia consciente... a quantos ocorre pensar que uma morte acidental e abrupta escancara a inanidade de ser, a absurdidade da existência? Deus? O apelo ao Altíssimo torna tudo ainda mais inexplicável, mais imponderável e insolúvel. Deus é o signo da tentativa humana de não sucumbir completamente à angústia e à loucura de hospício. O grande público, tão desacustamado de pensar, se contenta com as respostas mais simples, reconfortantes e logicamente insatisfatórias. O “Deus quis assim” é melhor do que admitir que o jogo de dados do acaso nos foi desfavorável desta vez. Trágica não é a morte violenta em um acidente. Trágico é o destino de seres que sabem que vivem para necessariamente morrer. Trágica é a vida que deve ser vivida a cada instante com a consciência vívida de que ela irá acabar, ou poderá acabar a qualquer momento. O pensamento trágico é o pensamento da afirmação por excelência. Mesmo em face da constatação do que há de problemático, obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o pensador trágico afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é, sem apelação. O afeto trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai acabar”. Segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com sabedoria o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p. 40-41).

A intensidade afetiva trágica encontra seu mais claro e vigoroso registro na afirmação: a medida da vida é viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.). O páthos trágico é o ter de jogar-se na vida como quem joga um jogo cujo resultado já está dado e no qual tudo está irremediavelmente perdido e, apesar disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição humana marcada pelo desamparo, em frente ao qual o homem realiza a sua tarefa, assume a responsabilidade de ser livre e de dar um sentido à sua vida. Camus, em O homem revoltado, nos lembra que a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da existência:

“todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”.

Entre a consternação e os apelos de consolação a um Deus abscôndito, o grande público, no entanto, vive a “normalidade” da vida reprimindo o afeto do trágico. O trágico é o modo próprio de constituição da condição humana. Nesse sentido, o trágico é uma categoria filosófico-hermenêutica com a qual a existência humana se converte em objeto para exame de uma filosofia trágica. Todo pensamento trágico quer “fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente” (Rosset). Segundo Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que Nietzsche viu e que Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é alegre. O trágico designa, para esses dois pensadores, a forma estética da alegria, que não sendo nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte todo pesar, toda tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em objeto de afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o caráter originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de causas e de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência: artificial no sentido de que afirma a independência da existência com relação a todo princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a fundamental imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a facticidade de todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a existência é aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou não há aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o trágico é uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação incondicional da existência. Mas essa afirmação incondicional não tem nada que ver com o indiferentismo do homem comum que suporta viver desde que encontre um apoio emocional na fé ou na esperança da vida eterna. A aprovação trágica é implacável e dura: querer incondicionalmente esta vida sem sentido metafísico no jogo irracional do acaso aqui e agora com a certeza de que o jogo está desde o princípio perdido irremediavelmente para os jogadores. O homem comum jamais chegará a endossar  tal sim jubiloso e louco, preferindo o conforto e o auxílio de suas bengalas metafísicas, os consolos de um além-mundo imaginário. Porque viver é demasiado pesado, é resistir a aproximar-se do abismo para evitar sofrer suas vertigens, é fugir para bem distante do desespero paralisante e da loucura de hospício. Somos todos loucos em alguma medida. É preciso alguma dose de loucura para viver e suportar a vida. A filosofia vem em socorro para tornar nossa loucura consciente de si.

 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

"Devemos aprender durante toda a vida, sem imaginar que a sabedoria vem com a velhice". (Platão)

 




                                                                  SOBRE A MATURIDADE

 

 

A filosofia jamais se curva em face da petulância da estupidez, da arrogância dos corpos moldados por uma raiva crônica alimentada pela incapacidade de profunda compreensão. Tais corpos , jactantes, vociferam: “não vês que trago a marca do acúmulo de experiências!”. Pois bem. E também ostenta o estigma de inúmeros preconceitos, a marca crostosa da rigidez espiritual, da dureza da sensibilidade que os impede de ver o mundo com outros óculos, com lentes mais bem ajustadas às diferenças, à tolerância, à pluralidade de modos de ser e viver. O envelhecimento não nos torna, necessariamente, mais sábios, se, durante grande parte da vida, nos habituamos a servir aos mecanismos de fabricação social de indivíduos assujeitados. Se um corpo vital chega à maturidade desconhecendo que toda a sua existência social é fabricada para atender aos interesses da sociedade em que se desenvolveu, se ignora que, enquanto ser humano, ele se engana ao se pensar como sujeito autônomo, se ignora que ser sujeito é sempre existir como efeito de submissão a relações sociais que sistematicamente o produz como sujeito em processos ideológicos de assujeitamento - assujeitamento aos poderes instituídos, assujeitamento às normas sociais, às morais, aos discursos, aos valores; enfim, se ignora que ser sujeito é constituir-se na linguagem, nas relações com o outro, fora das quais não há um “eu” - então o envelhecimento não lhe legou nenhum grande benefício de que deva se orgulhar. A velhice apenas lhe acentua as marcas da decrepitude, da degeneração orgânica e assinala a proximidade do fim de uma vida medíocre e flagelada pela servidão social, pela escravidão aos mecanismos sociopolíticos de dominação. Como ensinou Sêneca, no século I EC., aquele que viveu 100 anos pode ter tido uma vida breve, se a viveu sem exercitar o cuidado de si, se a viveu sob o modo do desperdício. E aquele que se ocupou de si, mesmo tendo morrido aos 30 anos, viveu uma vida longa e plena.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

"Escrevo para mudar a mim mesmo e não pensar mais a mesma coisa que antes". (Foucault)

          

                                                                  



 

O valor da filosofia

O voluntarismo de Foucault e a instrumentalidade do homo faber

 

 

1. O Voluntarismo de Foucault

 

Em seu livro dedicado ao pensamento e à pessoa de Michel Foucault, Paul Veyne sentencia “a filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade” (2014, p. 196). Logo, em seguida, o autor acrescenta:

 

Sabemos o pathos desdobrado pelo último Nietzsche, que se tornou profeta, contra o niilismo, esta “recusa de um valor e de um sentido” (a contrapelo de seu naturalismo elitista), e quanto à verdade que mata, é preciso dizer que ninguém morreu e que os pensadores céticos, no momento de votar, não hesitam entre Ségonéle Royal e Nicholas Sarkozy. Quando exaltava apaixonadamente a vida, a inocência do devir e sua aceitação, inclusive de atrocidades e tragédias, Nietzsche prescrevia medicação em doses cavalares para uma doença imaginária; suas investidas contra o niilismo pertencem mais à ordem oratória do que à da realidade. (ibid.).

 

 

Num texto recentemente publicado neste blog, manifestei minha anuência à opinião de Veyne; não só disse estar de acordo, também reforcei a pertinência dessa opinião evocando alguns casos em que a filosofia não provocou nenhum efeito relevante no modo de viver do homem comum[1]. Essa incomunicabilidade entre a filosofia e o homem comum, que a impede de deitar suas raízes no terreno do senso comum, é um fato que acompanhou a filosofia desde o seu nascimento na Grécia Antiga do século VI a.C. Não há, portanto, razão para acreditar que se trate de uma espécie de esterilidade da filosofia na vida contemporânea. A filosofia, em todas as épocas, sempre pretendeu elevar o homem da condição comum em que ele vive confortavelmente e juntamente com um mundo que se lhe afigura autoevidente e, em todas as épocas, o homem comum tendeu a aferrar-se a sua consciência prática - à qual se liga intimamente o que Giddens chama de “segurança ontológica” (a atitude natural assumida pelo indivíduo na vida cotidiana, graças à qual ele toma como certos e inquestionáveis os parâmetros existenciais de sua atividade) – protegendo-a contra os “assédios” inquietantes da filosofia. Todavia, a mera constatação desse permanente divórcio entre a filosofia e o homem comum não deve, por si mesmo, ser motivo de inquietação para o filósofo. Penso que não lhe resta alternativa senão aceitar que a grande maioria dos seres humanos viverá muito bem, ou muito mal, sem a filosofia, sem jamais se debruçar sobre as questões que propõe a filosofia. Para o homem comum, a filosofia é uma disciplina acadêmica, é uma área do conhecimento humano como qualquer outra, e sua atitude natural em face dela não difere em nada da atitude que adota em relação a qualquer outra área do conhecimento do qual ele não é especialista. É claro que, para o verdadeiro filósofo (que não se confunde com o professor de filosofia), a filosofia não se reduz a uma disciplina acadêmica; ela não é, de modo algum, um mero setor do conhecimento humano. Para mim e para quem quer que se considere filósofo, a filosofia precisa ser experienciada como uma prática de vida, um exercício espiritual que se destina a cunhar modos de ser. A filosofia, para o verdadeiro filósofo, é um exercício, um tipo de atividade tão necessária (talvez, até mais necessária) quanto qualquer outra atividade que realiza em sua vida cotidiana. Os estudantes que deixam as salas de aula do curso de filosofia sem ter conseguido fazer a experiência fisiológica de incorporação do hábito filosofante à textura de sua existência cotidiana não chegarão a ser filósofos; poderão até se tornar professores de filosofia, mas sem serem verdadeiramente filósofos.

Estando claro que não deve nos inquietar a insistência com que o homem comum se demonstra alheio aos apelos da filosofia, passo a considerar outros aspectos, apontados por Veyne, que concorrem para dificultar qualquer conciliação entre o homem comum a o modo de vida filosófico. Um desses aspectos é a separação e o estranhamento evidente entre o mundo da academia e o mundo da vida. Tendo em vista essa separação e estranhamento, Veyne nos adverte:

 

Somente poderiam inquietar-se professores que exagerassem a importância do que diz na cátedra e ensaístas satíricos que gostassem de assustar. O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive, dizia Gaston Bachelard. O fim da era em que se acreditava em transcendência é um acontecimento que se isola nos intelectos e que não tem nada de catástrofe. Ele o seria se o homem fosse um ser inteiramente intelectual que se governasse de acordo com razões; se, por exemplo, os súditos ou os cidadãos obedecessem ao rei ou ao Estado porque uma religião ou uma ideologia os houvesse persuadido a fazê-lo. (ibid. grifo meu).

 

Àqueles que ainda se sentem aborrecidos com o indiferentismo do homem comum perante a filosofia, vale lembrar a observação de Bachelard: “o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive”. A filosofia convida-nos a habitar também outro mundo – o mundo do pensamento ou o mundo pensado, o mundo submetido à rigorosa e à radical reflexão -, mas o homem comum sente-se satisfeito e confortável com o mundo limitado, delimitado pelos “óculos sociais” do senso comum. Como nos lembra Veyne, Hume dizia, com razão, que o ceticismo não deveria nos orientar na vida cotidiana; e mesmo que quiséssemos permanecer céticos o tempo todo, não conseguiríamos, pois que, na vida cotidiana, continuamos “a gostar de conversar e a acreditar que o sol nascerá amanhã, já que a natureza é mais forte”. (ibid., p. 197). Convém atentar para as seguintes lições de Veyne:

 

Apenas um estoico podia imaginar que, de tanto se incutir a ideia de que o amor não passa de uma esfregação de duas epidermes (como diz Marco Aurélio em termos mais crus), seria possível tornar-se senhor da própria libido. A natureza triunfa, imagino, até mesmo na escolha de nossas leituras: paramos de duvidar para ler os filósofos, que são tão interessantes e inteligentes (...)”. (ibid.).

 

Como gostava de lembrar também Hurssel, não se deixa de ser um animal humano por ser cético; os instintos fundamentais do homem, que, para ele, são o instinto de gregariedade, o instinto de conservação, além da curiosidade, prevalecem sobre outras inclinações no modo de ser do homem na cotidianidade. Veyne nos adverte que “os homens são mais quotidianos do que metafísicos”. (ibid., p. 198). E acrescenta que “ser cético é ser dividido na própria cabeça, mas vive-se muito bem assim, e só é perigoso no papel”. (ibid.). É este o modo de ser próprio do filósofo: o modo de ser “esquizo”. O filósofo habita dois mundos que correspondem para ele a dois modos de viver: o modo de viver filosófico (que supõe o hábito contínuo da dúvida, da suspeita, do questionamento, da problematização do real, o páthos da admiração) e o modo de viver comum (moldado pelos hábitos convencionais, pelas rotinas da vida social). Escusa dizer que a vida, em sociedade, não é possível, sequer imaginável, sem a rotinização, que Giddens (2009, p. 444), define como “o caráter habitual e assente da maior parte das atividades da vida social cotidiana”. É evidente que as formas de conduta habituais, rotineiras sustentam e são sustentadas por um senso de “segurança ontológica”. E mesmo o filósofo, como homem comum, precisa viver nesse mundo regulado por rotinas; no entanto, ele não se deixa absorver inteiramente nesse mundo, não se deixa entreter-se completamente com ele, sem colocá-lo em suspenso para, evadindo-se dele, ocupar-se da investigação da complexidade do real, que não se deixa subsumir na esfera da cotidianidade. A realidade é infinitamente maior, infinitamente mais complexa, mais misteriosa do que a realidade cotidiana, que não passa de uma fatia, de uma superfície bem delimitada da realidade. Ao filósofo parece claro, mesmo que por intuição, o que nos diz Giddens acerca da vida cotidiana: “a vida cotidiana tem uma duração, um fluxo, mas não leva à parte nenhuma; o próprio adjetivo “cotidiano” e seus sinônimos indicam que tempo, neste caso, é constituído de repetição”. (ibid., p. 41, grifo meu). A noção de cotidiano recobre, portanto, o caráter rotinizado do qual é dotada a vida social em seu desenvolvimento no tempo e no espaço.  Giddens chama “caráter recursivo da vida social” a essa natureza repetitiva dos atos, das atividades realizadas de maneira idêntica dia após dia. É na atividade cotidiana que os atores sociais reproduzem aspectos estruturais do sistema social mais amplo. Em outras palavras, a estrutura, isto é, as regras envolvidas na produção e reprodução do sistema social, bem como os recursos, ou as relações transformadoras, não existe apenas como realidade externa aos indivíduos; são, na verdade, traços mnêmicos manifestos em práticas sociais, que são mais internos do que externos às atividades deles. Se o viver cotidiano se caracteriza, fundamentalmente, pela repetição de atos realizados dia após dia, a existência do indivíduo, no entanto, “é não só finita mas irreversível, “ser para a morte””. (ibid., p. 41). Daí advém não só o enfado que, com frequência, pode acometer o indivíduo cujo viver é encarcerado nas celas das rotinas do cotidiano, como também a mais elaborada e profunda compreensão filosófica da inutilidade do próprio viver como realização de atos repetitivos de um ser que se sabe destinado à morte.

Não subestimo tanto quanto Veyne, contudo, o “perigo” desse modo de ser esquizo próprio do filósofo, que pode ser tanto mais “perigoso” quanto mais fortes são, na psique individual, as pulsões de ruptura, as pulsões de revolta, as pulsões de desassossego. Em todo caso, é claro que esse modo de vida esquizo, próprio do filósofo, não chega a ser patológico (a despeito do que tenha pensado Freud acerca da filosofia). Veyne sugere que o filósofo é, por definição, um cético, porque vive, na maioria das vezes, sem ilusões ou ocupado em denunciar como ilusões aquilo que o homem comum toma como certezas inabaláveis. À parte a questão que consiste em saber se é possível viver sem qualquer ilusão, importa saber se é possível agir, assumir um compromisso político, comprometer-se com alguma causa humanamente nobre sem alguma ilusão. Veyne, considerando o modo de ser de Foucault, um cético, por excelência, um declarado herdeiro do espírito genealógico de Nietzsche, diz ser seu herói tanto mais decidido quanto mais desilusionado. Mas, se foi possível a Foucault, em alguns momentos, militar em nome de um movimento pretensiosamente revolucionário, é porque, seguindo os passos de Nietzsche, viveu a filosofia como uma estética da existência. Segundo Veyne, “a gratuidade primeira das estetizações [é que] elas não respondem a uma necessidade (antes a criam) e não visam a um fim; o que elas pretendem perseguir são pretextos: a salvação, a tranquilidade da alma, o nirvana, etc.” (ibid., p. 199). Foucault não instrumentalizou a filosofia, pondo-a a serviço de seus compromissos políticos. Foucault, como Nietzsche, de quem é confessadamente herdeiro, sabia bem que os homens precisam da mentira, do logro para viver, para engajar-se na luta contra o establishment político e econômico. Veyne reconhece que a humanidade não vive sem seus mitos tanto quanto não vive sem religiosidade. Segundo Veyne, em 1968, depois de ter testemunhado uma greve geral a que se seguiram repressão policial e prisões em massa de estudantes que protestavam no movimento estudantil, entre os quais foi condenado à prisão um adolescente de 14 anos, Foucault, bastante impressionado, falava, com emoção, da necessidade do mito, de uma espiritualidade que desse “o gosto, a capacidade e a possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que se possa suspeitar nisso a menor ambição ou o menor desejo de poder e de proveito”. (ibid., p. 200). Tendo estado na companhia de Foucault, Veyne lembra que ele nos legou duas importantes lições que não podemos hoje nos esquivar de considerar, quando nos questionamos sobre o papel que cumpre a filosofia no âmbito da vida pública. Foucault nos disse, em tom de advertência: “não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade” e “não utilize a ação política para desacreditar um pensamento como se ele não passasse de especulação”. Foucault sabia que os homens precisam dos logros para justificar o que desejam fazer. Conforme nota Veyne, “no terreno da prática da ação, o irracionalismo foucaultiano culmina num decisionismo individual”. (ibid.). O decisionismo de Foucault o escusava de fundamentar suas ações militantes na verdade, na doutrina. Embora fosse erudito, Foucault não era um pregador político, não tinha qualquer doutrina política própria a oferecer a seus ouvintes ou em seus livros.

 

Suas próprias escolhas políticas nem sempre estavam em relação com seus livros ou com seu ensino. Resta que a história genealógica põe a nu a arbitrariedade de todas as instituições e a gratuidade de todas as certezas, de maneira que os leitores e ouvintes do erudito podiam encontrar ali motivos para militar em relação a um ponto qualquer contra a ordem estabelecida. (...). (ibid, p. 200-201).

 

 

A tarefa da filosofia é a da crítica não normativa da atualidade, ou seja, é a crítica da atualidade que, fornecendo os conhecimentos indispensáveis à ação, não prescreve aos agentes o que devem fazer. Nas palavras de Veyne,

 

Segundo Foucault, o que se entende por filosofia poderia também desde então consistir todo o tempo não em fazer cientificamente a exegese do passado nem em pensar a totalidade ou o futuro, mas a atualidade e, na falta de poder fazer melhor, em caracterizá-la negativamente, “diagnosticar o presente, dizer o que é o presente, dizer em que sentido nosso presente é diferente e absolutamente diferente de tudo o que não é ele”. Nosso autor não concebe outra filosofia possível além dessa crítica histórica: fora dela, não há nada que valha em nossa época: “o que é então a filosofia hoje – quero dizer atividade filosófica – se não o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo?”. (ibid., p. 202).

 

Resta evidente que a filosofia, para Foucault, não tem pretensão de atingir qualquer verdade, não tem sequer pretensão de dizer o que é o mundo em si mesmo. Foucault sabia que pensamos o tempo todo e necessariamente no interior de um discurso que não pode conhecer a si mesmo. Nossos discursos nos permitem ver que pensamos diferente da maneira como se pensava antigamente. Foucault propôs apenas um projeto arqueológico dos saberes, das ciências e dos discursos, que nos permitisse o recuo necessário para que, à distância de nosso tempo atual, reencontremos a nós mesmos. A filosofia, tal como a concebe Foucault, é negativamente uma reflexão sobre nós mesmos e também um empreendimento que nos incita a agir. Assim, observa Veyne:

 

(...) a história arqueológica semeia a dúvida: desde então, uma rachadura, “fratura virtual”, rajará nosso eu assim como nossas evidências: não toque, elas estão partidas. Ou, ao contrário, toque, se decidir fazê-lo: a nova filosofia em questão é “a história indispensável à política”. (ibid., p. 203).

 

A “nova” filosofia de Foucault pretende “pensar, reagir, problematizar ativamente nossa posição tal como o dispositivo a fez”. (ibid., p. 203). Fiel ao empreendimento da filosofia antiga, Foucault nos propunha “libertar o pensamento do que ele pensa silenciosamente e permitir que ele pense de outra maneira, em vez de legitimar o que já se sabe”. Segundo Veyne, “Foucault é ávido por “fazer com que algumas evidências se escamem”, por mostrar que o que é nem sempre foi, poderia não ser e é apenas o produto de alguns casos e de uma história precária”. (ibid.). A filosofia, para Foucault, se torna “uma crítica permanente de nosso ser histórico”, cujo fim é evidenciar “o trabalho indefinido da liberdade”. (ibid.). A liberdade, para Foucault, tem uma historicidade que não conduz a nenhum fim da história.

Antes de vociferar contra a costumeira e persistente indisposição do homem comum para a filosofia, o filósofo deve reconhecer, com Veyne, “que o homem é um animal errático do qual não há nada a saber além de sua história, esta negatividade sem totalidade”. (ibid., p. 204). E esta é outra das lições que tomamos a Foucault. Foucault, embora fosse discípulo do Nietzsche de Aurora ou de A Gaia Ciência, “lançou sobre os erros, as ilusões e os logros uma clareza susceptível de matá-los”. (ibid.). Foucault fora militante e partidário de Maio de 1968 tanto quanto estruturalista; “não acreditava em Marx nem em Freud, nem na Revolução nem em Mao, ria em privado dos bons sentimentos progressistas”. (ibid.). Veyne diz não ter conhecido qualquer posição dele acerca de problemas sócio-históricos mais amplos, como sociedade de consumo, capitalismo, imperialismo americano, “pois aqui também a finitude é devastadora, separa irremediavelmente o pensador e o partidário”. (ibid., grifo meu).

O intelectual não é, para Foucault, um diretor de consciência. Não cabe ao intelectual fazer prescrições, ditar o que as pessoas devem fazer. As descrições genealógicas que o professor Foucault oferecia aos seus ouvintes careciam de fórmulas deônticas. Foucault dizia que “o papel de um intelectual é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades admitidas; não é modelar a vontade política dos outros, dizer-lhes o que devem fazer. Com que direito ele faria isso?”. O genealogista se recusa a impor sua vontade aos outros. Para Foucault, o genealogista pode “ensinar às pessoas o que elas não sabem sobre sua própria situação, sobre suas condições de trabalho, sobre sua exploração”. Nas palavras deste discípulo de Nietzsche, “jamais me comporto como profeta, meus livros não dizem às pessoas o que devem fazer”. Nisto consiste o voluntarismo foucaultiano: ele não decide o que é preciso fazer; ele apenas constata o modo como os homens se comportam. Mas, como questiona Veyne, por que as pessoas iriam querer mudar a ordem das coisas sem que tenham uma razão para fazê-lo? Foucault acreditava que as pessoas não precisam ter uma boa razão, porque, em geral, elas simplesmente inventam uma se quiserem mudar as coisas, e os que se recusam a mudá-las também não têm razão alguma. Segundo Veyne, em face de seus ouvintes, Foucault assumia o papel de um conselheiro na relação com seu príncipe:

 

O príncipe disse: “Quero a felicidade de meus povos”; o sábio conselheiro então lhe disse: “Se é essa sua decisão, eis os meios que você deve adotar para atingir seus fins”. Nem toda reflexão política é impossível, mas uma vez escolhidos os fins por livre decisão, ou, talvez, por capricho real, a reflexão só pode incidir sobre a racionalidade dos meios e não sobre uma impossível racionalidade dos próprios fins. (...). (ibid., p. 206).

 

 

 

Tendo em vista o testemunho de Veyne acerca do modo como Foucault viveu sua própria filosofia, como concebeu o exercício da filosofia e o realizou, convém vivê-lo como a realização de um modo de ser em que o homem comum não tem, necessariamente, de se exercitar; é preciso vivê-lo na intimidade com uma prática de vida que se recusa a instituir-se como norma para o viver dos homens bem ajustados à cotidianidade mediana. O filósofo, por excelência, não tem convicções firmes e resolutas. Seguir os passos de Foucault é admitir que a experiência da finitude proíbe-nos de levar adiante qualquer pretensão de conversão filosófica da consciência do homem comum:

 

Consciente do dilema entre retórica e filosofia, entre propaganda e ceticismo, ele [Foucault] não argumentava em favor de suas causas: tentava antes suscitar indagações e esperava que um punhado de indignados viesse a ele. Não fazia das grandes questões seu cotidiano, mas não cessava de militar por reformas (...). Ele havia tomado posição contra a pena de morte. Em compensação, não tinha um programa político mais amplo. Em conformidade com sua filosofia cética, só tinha convicção puramente pessoais e frequentemente negativas, tais como esta: não se pode proibir por princípio a revolta, não se pode recusar o futuro nascente em nome da pretensa racionalidade do presente. (ibid., p. 210).

 

Parece, então, que Paul Veyne quer-nos fazer ver que a radicalidade do pensamento filosófico, sua qualidade corrosiva, e a própria filosofia como prática reflexiva que nasce com a pretensão de erodir os alicerces das crenças mais arraigadas, dos valores e representações básicas que o homem adquiriu sobre o mundo, não têm o alcance destrutivo no modo de ser do homem imerso na vida cotidiana, como poderiam supor os não filósofos. O homem comum vive sua vida, em sociedade, segundo hábitos e rotinas sustentados por uma “segurança ontológica” que o faz habitar uma esfera de realidade na qual não há nenhuma ameaça de niilismo, na qual a morte de Deus sequer é uma notícia crível, na qual a Verdade é evidente por si mesma, na qual não há dúvida de que o sol nascerá amanhã, etc.  Segue-se daí que não devemos mensurar o valor do pensamento filosófico e do modo de vida filosófico a partir de seu efeito transformador sobre o que quer que seja. O filósofo não é um missionário que pretende levar a boa nova ou a má notícia, nada semelhante, como aprendemos com Foucault, a um profeta que anuncia uma nova era. O exercício da filosofia não tem a pretensão de angariar praticantes, tampouco simpatizantes, que se sentem atraídos sem se envolver verdadeiramente. Pensar é uma atividade que vale por si mesma. O exercício do pensamento faz florescer a beleza do pensamento que deve ser cultivada com o mesmo acuro com que se cultiva um belo jardim. Não se deve impor limites, medidas de tempo, restrição de qualquer espécie ao exercício do pensamento. Enfraquece-se, mata-se o pensamento, quando ele se converte em instrumento para a realização de um fim exterior a ele mesmo. A pergunta sobre a serventia, o ‘para quê’ da filosofia é inconveniente. Pergunta de tecnocratas e burocratas. Tanto quanto a beleza, o pensamento não está a serviço de nada. Ver-se-á, em tempo, que, numa sociedade capitalista, tudo ou quase tudo pode ser transformado em mercadoria, em valor de troca; a beleza pode ser monetarizada, pode servir à conquista de status, de ganho econômico, embora o que é belo continue a ser admirável por si mesmo. Também o pensamento pode ser moeda de troca, pode transformar-se numa mercadoria que se vende (quando vendo uma palestra a alguém que me paga...). Mas caberia questionar se, nesse caso, o pensamento-mercadoria é ainda pensamento. Se o pensamento se reduz ao conteúdo de um discurso que, por sua vez, se converte num produto a ser consumido por uma audiência de funcionários de uma empresa, segundo injunções empresariais pré-estabelecidas, o pensamento já deixou de ser pensamento filosófico, já deixou de ser pensamento que expõe radicalmente a significatividade do acontecimento. Pensar inspira, potencializa a vida. O exercício da filosofia confere à vida de quem a ele se entrega uma espessura de significação que a torna algo mais do que a vida banal que se vive, quase sempre com tédio intercalado numa estrutura de rotinas como despertar pela manhã, trabalhar, descansar, dormir, com algumas horas de lazer... Comentando a essência do pensamento na obra de Platão, Hannah Arendt observa que “(...) o ato de pensar, embora possa ser a mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia”. (ibid.). Na obra de Platão, encontramos sempre junto de Sócrates interlocutores que cooperam com ele na atividade dialógica do pensamento. Se, a despeito disso, o homem comum não se sente disposto para o encontro dialógico com a filosofia e se, na ausência de companheiros que, com o filósofo, realizem conjuntamente o ato de pensar, ele sentir-se pesar sobre si a solidão do mundo, poderá torná-la suportável na lembrança de que “sempre pode contar com a companhia dos pensamentos”. (Arendt, 2010, p. 93).  Se é difícil para o filósofo encontrar seus pares, seus companheiros no exercício da atividade filosófica, poderá encontrar satisfação compensatória no meditar sobre as condições sócio-históricas que levam o homem comum a viver divorciado da filosofia. É este o problema que me ocupará nas próximas seções.

Antes de pôr termo a esta seção, gostaria de levantar aqui uma hipótese que toca à dificuldade de desenraizamento do homem comum do solo do viver cotidiano, onde todos os seus atos caem sob o domínio da lógica da produção e da superficialidade dos divertimentos: quanto mais aguda fosse a consciência de sua finitude tanto mais premente seria a necessidade da filosofia, e quanto mais imerso estivesse na atividade filosófica, tanto mais densa, aguda, robusta, afiada seria sua consciência da finitude. Assim, o exercício da filosofia se torna tão mais indispensável e necessário quanto mais desenvolvida se torna a capacidade de o indivíduo experienciar a vida da perspectiva de seu ser-para-a-morte. Enraizando o viver-se no solo movediço da finitude, o indivíduo se despe dos consolos metafísicos que nutrem sua existência de significado ilusório e passa a compreender a si mesmo, na condição de ser vivo, como um sistema auto-organizado, no qual o elo entre desorganização (entropia) e organização complexa é consubstancial, de modo que “o elo entre a vida e a morte é muito mais estreito, profundo do que jamais pôde metafisicamente imaginar”. (Morin, 2015, p. 31). Se, como entendem Maturana & Varela, um ser vivo é uma organização autopoéitica, a morte nada mais é que a perda dessa organização, a desintegração do próprio sistema auto-organizador. Consoante ensina Fonseca (2008, p. 21), para Maturana & Varela, um ser vivo é “uma unidade que se produz a si mesma, ou seja, uma unidade que se autoproduz de modo contínuo, por um processo de autorganização designado organização autopoiética”. (ibid., grifo meu). Para nós, animais humanos, na condição de meros seres vivos, a vida se nos apresenta evidente, não problemática, e é a morte que, além de nos aterrorizar, nos é inacreditável.

 

Mas se nos situamos do ponto de vista do universo físico, então (...) é a vida que se torna surpreendente e inacreditável, enquanto a morte não passa do retorno dos nossos átomos e moléculas à sua existência física normal. Como não podemos nos separar de nossa condição de seres vivos, mas como somos, também, capazes de nos distanciar disso por meio do espírito, podemos, então, ao mesmo tempo, surpreender-nos de viver e morrer. (Morin, 2015a., p. 28, grifo meu).

 

É justamente esta capacidade de nos colocar à distância do vivido “comum” por meio do pensamento, por meio da reflexão, que a filosofia permite-nos desenvolver. É justamente a experiência do espanto em face do fato de viver e de morrer que impulsiona o exercício da filosofia, que nos arrasta para ele. Desenraizado do solo de sua vida como organismo biológico, através da atividade do espírito, o homem compreende que “vida e morte convertem-se uma na outra, trabalham uma pela outra”. (Morin, 2015b, p. 49). Compreendendo o significado de sua finitude, o indivíduo percebe-se como parte integrante, enquanto organismo vivo, de um ecossistema dotado da propriedade de hiper-regeneração, que “só pode viver nas condições de sua própria destruição, pois são as condições de sua regeneração”. (ibid.). Em outras palavras, a entropia, de algum modo, favorece a manutenção da própria organização que ela tende a arruinar, de sorte que “a ordem auto-organizada só pode se complexificar a partir da desordem”. (Morin, 2015a, p. 31). Segundo Morin (2020, p. 50), “como o universo, mas de uma nova maneira, a vida se constrói se destruindo ou se destrói se construindo”. Situado no domínio estritamente biológico, viver “é ir em direção à morte combatendo-a”. (ibid.). A vida é um contínuo esforço de viver em função da morte, de tal sorte que “a vida trabalha no sentido de viver trabalhando para morrer e a vida trabalha no sentido de morrer trabalhando para viver”. (ibid.). Morrer e viver são, ao mesmo tempo, opostos e inseparáveis. Como lembra Morin, “a morte é o preço a pagar para viver”. (ibid.). Em suma, a vida é um trabalho permanente de consumo de suas energias e, nesse sentido, é o caminho que conduz à morte, mas, ao mesmo tempo, é também um trabalho permanente de luta contra a morte. Os sistemas vivos auto-organizados estão constantemente sujeitos à desintegração: “sua atividade permanente comporta dispêndio de energia e processos de degradação conduzindo à morte, daí a necessidade de extrair energia, organização e informação do meio ambiente”. (ibid.).

Fique claro que o indiferentismo do homem comum pelo exercício da filosofia não é simplesmente,  ou não é apenas, uma rejeição ao conhecimento sistemático, uma resistência ao conhecimento em si, pois que, como ensinam Maturana & Varela, “compreender o conhecimento depende do ser vivo como um todo, visto que o conhecimento é determinado pelo próprio modo de ser de tudo o que é vivo, da sua organização autopoiética”. (Fonseca, 2008, p. 42). Assim, uma das consequências da teoria da autopoiética é que viver é conhecer, conhecer é viver. Conhecer é o modo de ser de todo organismo vivo. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. Isso não significa dizer que todas as pessoas são capazes de elaborar raciocínios complexos, que todas são capazes de elaborar um pensamento organizado e sistemático, que todas são capazes de desenvolver uma argumentação logicamente adequada. Tais habilidades não nos são inatas, mas precisam ser desenvolvidas nas práticas de ensino de leitura e escrita na escola. O desenvolvimento dessas habilidades exige treinamento, exige o contato com gêneros textuais organizados predominantemente com estruturas argumentativas. Creio haver inúmeros fatores tanto de ordem sociocultural, quanto de ordem cognitiva, que podem ser aventados para explicar por que o tipo humano comum é tão indisposto para o modo de vida filosófico. Todavia, um dos fatores que, segundo a hipótese que venho tentando sustentar, é decisivo para manter o homem comum afastado do exercício da filosofia é sua tendência a recusar o confronto com seu modo de ser mais originário, enquanto existente: o “ser-para-a-morte”.

Uma vez que seu modo de viver é quase inteiramente capturado e estruturado segundo as rotinas da vida social, o homem comum quase nunca tem avivada, em sua consciência de mundo, a perspectiva da vida como “um processo que em toda parte consome a durabilidade, desgasta-a e a faz desaparecer, até que finalmente a matéria morta, resultando de processos vitais pequenos, singulares e cíclicos, retorna ao gigantesco círculo global da natureza” (Arendt, 2010, p. 119). Como ensina Arendt, nesse ciclo global da natureza, não há nem começo nem fim, e todas as coisas naturais “volteiam em imutável e infindável repetição”. Ao invés de admitir e articular esse saber a uma existência humana verdadeiramente livre e conciliada com a ordem natural do mundo, o homem comum prefere fingir que não é feito de uma mesma matéria de que se compõe todo o Universo, prefere viver no “esquecimento” de que seu corpo é composto pelos mesmos átomos de que são formadas todas as demais coisas e seres do universo. Todos os seres vivos estão submetidos ao movimento cíclico da natureza pelo qual eles nascem e necessariamente morrem. Em certo nível de compreensão, o nascimento e a morte de seres humanos são tão banais, tão insignificantes quanto o nascimento e a morte dos demais seres vivos, já que todos os seres vivos estão submetidos ao movimento cíclico da natureza. Como bem observa Morin (2020, p. 49), “(...) desde o nascimento, a vida veio a ser parasitada pela morte”. Quanto mais complexa se tornou a vida, mais ela se fragilizou e mais se encontrou ameaçada pela morte; mas também, veio a assumir uma organização mais complexa, “para lhe opor resistência inclusive se valendo da morte de suas células”. Por outro lado, em outro nível de compreensão, como lembra Arendt, “o nascimento e a morte de seres humanos não são simples ocorrências naturais, mas referem-se a um mundo no qual aparecem e do qual partem indivíduos singulares, entes únicos, impermutáveis e irrepetíveis”. (ibid.). O caráter essencialmente trágico da condição humana fica aqui evidente: quando morre um ser humano, desaparece um indivíduo singular, um ser único e irrepetível, e com ele seu mundo afetivo, sua memória de vivências, suas possibilidades de ser. Segundo Arendt, “o nascimento e a morte pressupõem um mundo que está em constante movimento, mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento (...)”. (ibid.). Este mundo existia antes do aparecimento de qualquer indivíduo e sobreviverá à morte dele.

Quando tomamos a “vida” na sua relação intrínseca com o mundo, já não a compreendemos como um evento físico-químico, como um modo determinado de organização da matéria. Situada no horizonte da mundanidade, “vida” designa “o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte”. (ibid., p. 120). Quando o homem vive compreensivamente situado na perspectiva da sua finitude, chega a apreensão afetiva da limitação de sua vida aos “dois supremos eventos do aparecimento e do desparecimento no mundo”. (ibid.). Estando limitada por um começo e um fim, a existência humana “segue uma trajetória estritamente linear, cujo movimento, não obstante, é transmitido pela força motriz da vida biológica que o homem compartilha com outras coisas vivas e que conserva para sempre o movimento cíclico da natureza”. (ibid.).

Alguém poderia dizer que a vida humana não pode ser reduzida ao mero movimento cíclico da natureza (embora esteja necessariamente submetida a ele). Evidentemente, não somos apenas organismos vivos, não pertencemos apenas a uma espécie de animais, nosso mundo próprio e imediato não é o mundo natural; nosso mundo, o mundo humano, é o mundo da cultura, é um mundo construído pelo artifício humano, mundo histórico, mundo das instituições humanas, e, por um mal hábito, tendemos a reduzir a totalidade do mundo a esse mundo fabricado pela atividade humana. Desnecessário dizer, conforme venho mostrando, que o mundo é muito mais amplo, é um Todo infinito, do qual o mundo histórico, construído pela atividade humana, é uma ínfima parte. Em todo caso, é nesse mundo histórico, nesse mundo que se identifica com a obra humana, que nasce da transformação da natureza levada a efeito pela aplicação da técnica (tecknè) criada pela engenhosidade humana, que a existência do animal humano se investe de um sentido, de significados humanamente produzidos em práticas sociais organizadas e mediadas pelo imaginário-simbólico. É nesse mundo histórico que a vida humana é vivida como uma totalidade “plena de eventos que no fim podem ser narrados como uma estória [story] e estabelecer uma biografia”. (ibid.).

Na próxima seção, meu intento é mostrar que esse mundo histórico é obra do trabalho de dois modos de ser do homem: o animal laborans e o homo faber. Ao examinar as características desses dois modos de ser do homem, avanço reflexões sobre as condições históricas da vida humana que emergiram nos períodos designados “modernidade” e “pós-modernidade”, com vistas a mostrar que tanto o divórcio entre o modo de vida do homem comum e a filosofia quanto a questão do valor da filosofia devem ser remetidos à consideração de tais condições históricas concretas, muito embora o problema do valor da filosofia remonte, pelo menos, ao século V-IV a.C, quando vita activa e vita contemplativa passaram a ser percebidas como duas esferas de vida separadas entre si. Essa separação decorre da compreensão grega da teckné (arte, técnica), consagrada por Platão, como uma atividade menor relativamente à mais elevada atividade que é a atividade contemplativa, a filosofia como atividade teorética, por excelência, segundo Aristóteles.

 

 

2. A mundanidade do animal laborans e homo faber

 

Concebido como um existencial do ser-aí, na abordagem fenomenológico-ontológica de Heidegger, o conceito de mundanidade será entendido aqui como a qualidade do modo de ser do homem como ser vivo e histórico imerso no mundo, envolvido dinamicamente com o mundo. A mundanidade do animal laborans se caracteriza por sua sujeição “aos processos devoradores da vida”. (Arendt, 2010, p. 180). O animal laborans está permanentemente ocupado com tais processos. Para garantir a estabilidade e a durabilidade de seu mundo, o animal laborans se utiliza de instrumentos e ferramentas, as quais “em uma sociedade de trabalhadores, (...) assumem muito provavelmente um caráter ou função mais que meramente instrumental”. (ibid.). Consoante Arendt, o animal laborans vive num mundo de máquinas desde a Revolução Industrial.  É o uso da máquina que melhor se ajusta ao seu fazer, “já que não é o movimento do corpo que determina o movimento do utensílio, mas sim o movimento da máquina que compele os movimentos do corpo”. (ibid., p. 182). Arendt acredita no triunfo do animal laborans sobre o homo faber. Sua vitória representou a sobreposição da condição natural de vivente a qualquer outra condição da existência humana. Sobrepujando o homo faber, o animal laborans converteu os processos destinados à satisfação das necessidades em quadro axiológico à luz do qual julga, avalia, mede, considera todos os demais modos de ser e de viver. Não acompanho Arendt ao defender ter havido uma vitória do animal laborans sobre o homo faber. Penso que esses dois modos de ser do homem no mundo coexistem em nossa época atual. A sociedade da época em que Arendt escreveu era uma sociedade emergente de consumidores, donde explica por que Arendt diz que o animal laborans emprega seu tempo excedente exclusivamente no consumo; mas essa sociedade de consumidores é também a nossa. Segundo Arendt, como os apetites do animal laborans são insaciáveis e cada vez mais sofisticados, o consumo em que ele emprega sua vida “não se restringe às necessidades da vida, mas, ao contrário, concentra-se principalmente na superficialidade da vida”. (ibid., p. 165). Arendt demonstrava preocupação com o fato de que essa forma de consumo levasse à aniquilação todos os recursos disponíveis no mundo. Essa preocupação continua sendo um dos desafios principais dos projetos de organização de sociedades sustentáveis em nosso século. Embora esse comportamento social e ecologicamente inconsequente do animal laborans seja um tema que mereça acurada atenção, não será objeto de minhas considerações no presente texto. O que me interessa é assinalar o modo como o animal laborans se relaciona com as coisas do mundo: ao se envolver com elas, ao se comportar em relação a elas por meio do ato do mero consumo supérfluo, ele as trata como coisas supérfluas, descartáveis, degradáveis, inutilizáveis.

Por outro lado, a mundanidade do homo faber é caracterizada pela submissão do modo de ser dele a todo utilitarismo sistemático. Como enfatiza Arendt, “é “em razão da” utilidade em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de “a fim de””. (ibid., 192). Arendt afirma que, para que o mundo seja um lar para os seres humanos, o mundo histórico, o mundo construído pelo homem, deve ser um lugar adequado à ação e ao discurso, adequado, portanto, a atividades não apenas totalmente inúteis, “mas de uma natureza inteiramente diferente das múltiplas atividades de fabricação por meio das quais o próprio mundo e todas as coisas nele são produzidas”. (ibid., p. 217). A mundanidade do homo faber implica a transformação de tudo em objeto de uso, ou seja, no mundo do homo faber tudo deve servir de instrumento para a obtenção de outra coisa. Não surpreende que até mesmos os conhecimentos devem ter, neste mundo, uma utilidade; e resta evidente que a filosofia deixa de ter qualquer valor e sentido para o homo faber. É importante que se retenha a ideia de que o homo faber é um fabricante de coisas e de que ele se comporta e pensa em termos de meios e fins, os quais decorrem de sua atividade fabricante. Assim, “ele é tão incapaz de compreender o significado como o animal laborans de compreender a instrumentalidade”. (ibid., p. 193). Na condição existencial de homo faber, o homem instrumentaliza as coisas “e sua instrumentalização implica a degradação de todas as coisas a meios, a perda de seu valor intrínseco e independente”. (ibid.). Não só são os objetos da fabricação, como também o planeta inteiro e todas as forças da natureza, que vêm em auxílio do homem e existem independentemente dele, que perdem seu valor porque resistem à reificação resultante da obra. É este modo de ser do homo faber que levou os gregos, em seu período clássico, a considerar banaústico ou filisteu todo o campo de artes e ofícios, no qual os homens operam com seus instrumentos visando à realização de algo não pela satisfação de si mesmos. Filisteu é o campo da vida social onde os homens agem e pensam por conveniência, em consonância com os padrões vigentes em sua sociedade. Esse estado-de-coisas não deixou de ser uma característica de nossa época, caracterizada pela expansão da lógica neoliberal para todas as esferas da vida social. Mas o problema, para os gregos, com esse modo de ser do homo faber não é a instrumentalidade como tal, não é o emprego de meios para atingir um fim, o problema é “a generalização da experiência da fabricação, na qual a serventia e a utilidade são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens”. (ibid., p. 195-196). Mutatis Mutandis, também os críticos do neoliberalismo censuram a expansão de sua racionalidade, de sua lógica num processo de universalização  do princípio de concorrência como norma das relações humanas. Tratarei desse tema mais adiante. Cumpre ainda acrescentar, antes de trazer à baila o tema da próxima subseção, que a generalização da experiência de fabricação é inerente à atividade do homo faber, porque a experiência dos meios e dos fins, tal como se realiza na fabricação, prolonga-se por todas as suas etapas até o destino final do produto acabado, que é servir como objeto de uso. Em sociedades organizadas pelo regime do capital, o domínio público do homo faber é o mercado de trocas, “no qual ele pode exibir os produtos de sua mão e receber a estima que merece”. (ibid., p. 200). Não são, contudo, os próprios fabricantes de coisas que se encontram no mercado de trocas; são os indivíduos enquanto donos de mercadorias e valores de troca. Cabe aqui dar alguns esclarecimentos sobre o que são os valores num mercado de troca e sobre a relatividade das trocas, dado que a compreensão mínima da natureza do mercado ajuda-nos a entender como tudo o mais que é socialmente produzido passa a estar subordinado às determinações do mercado.

Segundo o economista Paul Singer (2017, p. 22-23), “o valor é, no fundo, o preço relativo. (...) O valor é o preço de cada produto em relação aos outros”. É a relatividade das trocas que fixa os valores das mercadorias. De acordo com a teoria do valor-utilidade, “(...) os preços relativos refletem, em última análise, as utilidades relativas para os consumidores de grande variedade de mercadorias que estão à sua disposição”. (ibid., p. 28). Assim, o mercado de trocas é a esfera própria dos valores. Nenhuma coisa tem valor na esfera privada, mas só adquire valor quando figura na esfera pública em relação a outras coisas. Como nota Arendt, os valores fixados na relatividade das trocas se tornam valores negociáveis. Eles só podem ser modificados pela alteração da proporção entre uma mercadoria e outra qualquer. Vale atender no excerto seguinte, colhido de Arendt, no qual fica claro o caráter sobredeterminante do mercado de trocas, que passa a funcionar como o campo de práticas sociais a partir do qual todos os bens culturais passam a ser avaliados, inclusive os bens do espírito:

 

(...) é somente no mercado de trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por outras, que todas elas se tornam “valores”. Pois é somente no mercado de trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por outras, que todas elas se tornam valores ou objetos de uso, quer necessários à vida do corpo ou ao conforto da existência ou à vida do espírito [mind]. Esse valor consiste unicamente na estima do domínio público, no qual as coisas aparecem como mercadorias; e o que confere esse valor a um objeto não é o trabalho, a obra, o capital, o lucro, ou o material, mas única e exclusivamente o domínio público, no qual o objeto aparece para ser estimado, reclamado ou negligenciado. (ibid., p. 204).

 

Mais adiante, quando me detiver na consideração das condições históricas que caracterizam a modernidade e a chamada pós-modernidade, o período histórico em que nós vivemos, desenvolverei um pouco mais minhas reflexões sobre o modo de inserção do homem na mundanidade do mundo, situando-a no domínio da produção capitalista e do trabalho.

 

 

2.1. O mundo da técnica

 

Em seu livro Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea (2010), André Lemos aborda o desenvolvimento da técnica desde a sua origem na Grécia Antiga até a era moderna, quando a técnica se amalgama com a ciência, formando o domínio da tecnociência. Técnica provém do grego tekhné, que se traduz, comumente, como “arte”. A tekhné  “compreende as atitudes práticas, desde a elaboração de leis e a habilidade para contar e medir, passando pela arte do artesão, do médico ou da confecção do pão, até as artes plásticas ou belas artes, estas últimas consideradas a mais alta expressão da tecnicidade humana”. (ibid., p. 26). Enquanto conceito filosófico, tekhné  designa as artes práticas, o saber e o fazer humanos que estão em oposição à physis, ou potência original de geração, de crescimento, de organização da vida dos seres naturais. Tekhné e physis recobrem o processo de vir a ser, da passagem da ausência à presença, e participam daquilo que os gregos chamavam poiésis.

O conceito de tekhné, cunhado numa primeira filosofia da técnica, faz a distinção entre o fazer humano e o fazer da natureza, este último caracterizado como autopoiético, porquanto encerra em si mesmo o princípio de seu próprio movimento, que, em Aristóteles e para os antigos gregos de um modo geral, não significa apenas ‘deslocamento de um corpo no espaço-tempo’, como nós, modernos o definimos, mas também mudança qualitativa, mudança quantitativa, geração e corrupção dos corpos.  O fazer da natureza é, portanto, o da autorreprodução. Por outro lado, como lembra Lemos, “a tékhné é a arte que coloca o homem no centro do fazer poiético, em confronto direto com as coisas naturais”. (ibid., p. 27). Para os antigos gregos, todo ato humano é tekhné e toda tekhné é o meio pelo qual se faz nascer uma obra.  A nossa compreensão contemporânea de tecnologia, portanto, tem sua gênese na visão grega clássica, que remonta ao século V a.C. A crítica contemporânea da tecnologia será marcada pela filosofia da técnica, tal como desenvolvida no pensamento de Platão e Aristóteles. A filosofia grega se encarregará de separar a tekhné, entendida como saber prático, da epistéme, o conhecimento teórico das coisas, o conhecimento pelo pensamento, que, em Aristóteles, passou a designar o conhecimento científico. No mundo pré-filosófico, dominado ainda pelo mito, não havia essa separação, pois que o homem dessa época vivia imerso num mundo em que não existia a setorização dos saberes em domínios independentes e estanques.

É com Platão que a tekhné vai ser contraposta ao saber teórico, contemplativo, à epistéme. Quando Platão peleja contra os sofistas, o faz com o fito de elevar a contemplação filosófica à categoria de atividade mais digna dos homens, atividade esta superior à tekhné. Platão julgava os sofistas além de mercenários do saber, já que ensinavam em troca de ganho econômico, artífices de receitas e manuais de retórica. Por conseguinte, como ensina Lemos, “a filosofia de Platão induz nossa percepção em relação às artes práticas, que são ainda hoje consideradas menores em relação à atividade intelectual-conceitual”. (ibid.). Para Platão, o artista, sendo aquele que domina a tekhné, é um demiurgo, um imitador, um produtor de cópias e de simulacros. Os objetos da técnica são produtos que imitam as coisas naturais, que produz cópias do ser. Porque produz cópia, imitação ou simulacro, Platão desconfia da tekhné. Aristóteles, por seu turno, também vê a atividade técnica como inferior, não só por ser um saber prático que imita e domina a physis, mas também porque seus produtos não encerram em  si mesmos o princípio de sua produção, como o encerram as coisas naturais. As coisas artificiais, produtos do artifício humano, frutos, portanto, da tekhné, são inferiores, para Aristóteles, porque o princípio de sua produção é externo a eles. As coisas artificiais carecem da autopoiésis, ou seja, da capacidade de autorreprodução. Sua causa eficiente são os homens ou os animais.

A revisita a esse tempo histórico originário do nascimento e desenvolvimento da técnica no mundo ocidental é pertinente não só para entendermos, numa espécie de itinerário genealógico, como se formou o preconceito moderno, sedimentado no senso comum, sobre os saberes técnicos, mas também para compreendermos que a evolução da espécie humana é resultado desse movimento perpétuo e infindável de separação entre os objetos da técnica e a natureza. A técnica foi a responsável pela criação da segunda natureza do homem, chamada cultura. A cultura se desenvolve por um processo de desnaturalização do homem. O mundo da cultura, em última instância, o mundo dos símbolos e dos artifícios da obra, compreende uma espécie de “ecossistema cultural”, “onde a naturalização do artifício modifica o meio natural, da mesma forma que o meio natural vai impondo limites à atividade técnica humana”. (ibid., p. 31). A naturalização dos objetos da técnica impele uma progressiva artificialização do homem e da natureza, “sendo mesmo impensável, como escreverá Lemos, a existência do homem e da cultura fora desse processo”. (ibid.). Conforme salienta Lemos, “o modo de existência dos objetos técnicos, que vai caracterizar a tecnologia contemporânea, corresponde a uma lógica interna, a um caráter genético do desenvolvimento das técnicas primitivas”. (ibid., p. 30).

O retorno às origens do nascimento e do desenvolvimento de nossa concepção filosófica da técnica também ilumina, para as pessoas que, em todas as épocas, mormente em nossa modernidade líquida, toma a filosofia por um saber sem valor, sem importância, o valor mesmo que elas se recusam a lhe conferir: ser o caminho pelo qual conhecemos a nossa condição humana, conhecemos quem somos, como pensamos, como agimos e por que pensamos e agimos do modo que agimos em nossa época, no mundo histórico em que vivemos.


2.1.2. A tecnociência moderna

 

Donde vem a possibilidade de julgarmos os saberes em termos instrumentais? Por que as pessoas hoje tendem a classificar os conhecimentos em úteis e inúteis, em aplicáveis e em meramente especulativos, teóricos? Não pretendo ir tão longe a ponto de traçar, num trabalho de arqueologista à moda foucaultiana, o percurso histórico que nos conduziria à separação entre as chamadas ciências humanas e ciências exatas, acontecimento este que foi, sem dúvida, decisivo para moldar uma mentalidade utilitarista em relação ao conhecimento humano. Minha pesquisa não se pretende tão ambiciosa. O que me interessa, especialmente, nesta discussão, é descerrar o modo de ser do mundo da tecnociência como um domínio da mundanidade do homem moderno. Para tanto, começo por fazer notar que os objetos são, no começo de seu desenvolvimento técnico, dependentes de uma ação inventiva e primitiva dos animais humanos. Essa seria a fase zoológica da evolução dos objetos técnicos. Com o desenvolvimento do córtex no cérebro do homem, os objetos técnicos passam a ficar submetidos a uma lógica interna, por exemplo, a inovação de uma peça pode mudar completamente os destinos da evolução de uma máquina. Na era moderna, o homem deixa de ser um simples inventor e passa a ser um operador de um conjunto de máquinas que se desenvolve segundo uma lógica interna, que é a sua tecnicidade. Lemos observa que “a aparição de objetos técnicos engendra, então, um processo permanente de naturalização dos objetos e de objetivação da natureza (na construção de uma segunda natureza artificial, a tecnosfera)”. (ibid., p. 30-31). Tecnosfera é a palavra-chave que descreve este mundo habitado pelo homem, este mundo que é produto da atividade técnica, criativa do homem, um “mundo outro” constituído de objetos artificiais e símbolos, coextensivo, em última instância, às redes simbólicas que são as instituições que estruturam, que conformam e dão sentido à sua vida, mundo-artifício ao qual ele, homem, facilmente se acomoda (se adpta) e o qual assume como mundo estranho a si, mundo que existe independentemente de si, que se impõe a si, que o constrange e pesa sobre si com a sua objetividade irrecusável. Esse mundo nasce do trabalho do homem sobre a natureza, trabalho por meio do qual a natureza se modifica, se humaniza, se transforma para pôr-se a serviço do homo faber e do animal laborans. No trabalho de modificação da natureza, o homem se humaniza, humanizando a natureza; e humanizando a natureza, o homem se desnaturaliza.

A tecnociência moderna se desenvolve a partir do século XVII com a fundação da física moderna, de base cartesiana e newtoniana. Segundo Lemos, “a tecnologia nada mais é que a concretização dos planos dessa Big Science [a física moderna], marcando o surgimento de uma forma técnica, a tecnologia, de uma forma cultural, a tecnocultura, e de uma forma ecológica, a tecnoesfera”. (ibid., p. 36, grifos meus). Tecnologia, tecnocultura, tecnosfera são todos temos empregados para designar diferentes aspectos da obra humana. A tecnologia, que nada mais é do que a tecnociência moderna, que resulta da junção entre a ciência e a técnica num processo ao longo do qual foi se dando a cientifização da técnica e a tecnização da ciência. Quando falamos em tecnologia moderna, quando nos admiramos do mundo novo que ela nos proporciona, estamos falando da tecnociência que se tornou autônoma e instrumental. Na maioria das vezes, a tecnologia, que é a autonomização e instrumentalização da tecnociência, se associou a projetos políticos tecnocráticos, futuristas e totalitários.

A física moderna, portanto, assentou o terreno para o surgimento da tecnologia moderna. Destarte, pela primeira vez na história da evolução humana, se desenvolveu uma atividade técnica como produto da aplicação de uma ciência que toma a natureza como campo de exploração e de controle. Como nos ensina Lemos, “na modernidade, é toda a tecniciadade humana que se vê reduzida à pura instrumentalidade da tecnociência, autônoma e objetiva”. (ibid., p. 36). Esse é um ponto da presente discussão que demanda especial atenção do leitor. É preciso aqui enfatizar, com Lemos, que é toda a atividade da esfera técnica do homem que se autonomiza, se instrumentaliza, se racionaliza. Por isso, a tecnologia passará a ser vista como algo artificial, como estranha e oposta a qualquer realização mais nobre e elevada do espírito humano. Iniciada no século XVII, a fusão da técnica com o conhecimento científico conhecerá seu apogeu no século XX, com os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento espalhados em várias regiões do mundo cientifica e tecnologicamente avançadas. Se recordamos, por um instante, o percurso pelo qual a técnica se desenvolveu, a reencontraremos como um produto de uma experiência humana imediata com o mundo, de um envolvimento corporal do homem com o mundo, por meio de instrumentos, ferramentas, máquinas. Esse dispor humano do mundo mediante a técnica não carecia de explicações científicas. A técnica é, originalmente, o fazer transformador humano que prepara a natureza, que a molda para servir à espécie humana e à cultura. Como observa Lemos, “ela é uma provocação da natureza gerando um processo de naturalização dos objetos técnicos na construção de uma segunda natureza povoada de matéria orgânica, de matéria inorgânica e de matéria inorgânica organizada (os objetos técnicos)”. (ibid., p. 37).

A técnica moderna, ou o que chamamos de tecnologia, “é produto da radicalização dessa segunda natureza, da naturalização dos objetos técnicos e da sua fusão com a ciência”. (ibid.). No mundo da tecnociência, as atividades da ciência e a técnica se tornaram indiscerníveis; já não mais conseguimos saber qual atividade é científica e qual atividade é propriamente técnica. Na modernidade, a natureza e a vida social serão transformadas em objeto de intervenções tecnocráticas.

 

  

2.1.3. A modernidade e a pós-modernidade

 

Consoante observa Lemos, “a modernidade é a expressão da existência de uma mentalidade técnica, de uma tecnoestrutura e de uma tecnocultura que se enraízam em instituições, incluindo toda a vida social na burocratização, na secularização da religião, no individualismo e na diferenciação institucionalizada das esferas da ciência, da arte e da moral”. (ibid., p. 62). Costuma-se datar o nascimento da era moderna em 1450, portanto, no fim da primeira metade do século XV. No séculos XV e XVI, a Europa viveu uma revolução cultural – a Renascença. A era moderna se estenderia até a segunda metade do século XX, quando, para alguns historiadores, o mundo ocidental entraria numa pós-modernidade. Não pretendo aqui discorrer longamente sobre as condições socioculturais e econômicas que caracterizam a modernidade. Importa-me apenas sublinhar que, no plano econômico, as sociedades modernas são sociedades industriais, são sociedades de produção de bens e serviços de massa, de utilização intensiva de energia, são sociedades de trabalhadores qualificados e especialistas, são sociedades economicamente hierarquizadas segundo a atividade dos proprietários do capital. Com a  Revolução Industrial do século XVIII, o capitalismo atingiu a segunda fase de seu desenvolvimento – a do capitalismo industrial. A essa segunda fase de desenvolvimento do capitalismo corresponde a sociedade de trabalhadores. Mas nós já não habitamos mais um mundo organizado e submetido ao regime do capitalismo industrial. O Ocidente, hoje, encontra-se na terceira fase do capitalismo (a do capitalismo financeiro). Manuel Castells, no entanto, pensa que a nossa era é a do capitalismo informacional, o que sugere que vivemos numa quarta etapa do desenvolvimento do capital. Embora seja importante descrever o desenvolvimento do capitalismo em termos de fases, desde sua origem comercial até os dias de hoje, já que tais metamorfoses do capitalismo são inerentes à própria capacidade que tem o sistema de se reproduzir e perpetuar e  já que refletem mudanças importantes no âmbito cultural e ideológico, há um aspecto constante no modo de produção capitalista, que permanece inalterado, seja qual for a época histórica em que o estudemos: a formação de indivíduos que se ajustem às exigências econômicas e às normas pretensamente universais que ele impõe. Na modernidade, o indivíduo é o consumidor; sua identidade é definida a partir de sua participação nas esferas de consumo. A uma sociedade de consumidores corresponde uma sociedade de trabalhadores. Como nos diz Arendt, “uma sociedade de trabalhadores (...) julga os homens segundo as funções que eles exercem no processo de trabalho; enquanto a força de trabalho, ao olhos do homo faber, é apenas o meio de produzir o fim necessariamente superior, isto é, ou um objeto de uso ou um objeto para a troca”. (ibid., p. 203). Assim como o capitalismo sofre metamorfoses, também o trabalho sofre suas metamorfoses. À fase do capitalismo industrial corresponde à do trabalho fabril, do trabalho submetido ao regime de produção taylorista-fordista. Ou o trabalhador era submetido à máquina, ou a máquina era submetido ao trabalhador. Na atual fase do capitalismo, o homem está submetido à máquina informacional-digital. É oportuna aqui a lição de André Antunes, em seu O privilégio da servidão (2020):

 

(...) nesse universo caracterizado pela submissão do trabalho ao mundo maquínico (seja pela vigência da máquina-ferramenta do século XX, seja pela máquina informacional-digital dos dias atuais), o trabalho estável, herdeiro da fase taylorista-fordista, relativamente moldado pela contração e pela regulamentação, vem sendo substituído pelos mais distintos e diversificados modos de informalidade, de que são exemplo o trabalho atípico, os trabalhos terceirizados (com sua enorme variedade), o “cooperativismo”, o “empreendedorismo”, o “trabalho voluntário” e mais recentemente os trabalhos intermitentes. (Antunes, 2020, p. 71).

 

 

No processo de transformação do trabalho, é cada vez mais patente o crescimento da precarização do trabalho. Não deixamos de ser uma sociedade de trabalhadores, mas, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, é cada vez mais crescente o número de desempregados, de trabalhadores informais, de trabalhadores terceirizados, de trabalhadores vinculados por contratos temporários. Castells, por sua vez, observa que, em nossas sociedades atuais do capitalismo informacional, a economia informal se tornou um traço fundamental do mercado de trabalho. O autor sublinha a crescente flexibilização da mão-de-obra, que se caracteriza pela “redução da proporção da força de trabalho com empregos de longo prazo e carreiras previsíveis à medida que novas gerações, em sua maioria contratadas por causa de sua flexibilidade, substituem uma mão de obra mais velha que tem direito à segurança no emprego em empresas de grande porte”. ( Castells, 2020, p. 16). Conquanto reconheça que trabalhadores mais escolarizados tenham se tornado ativos mais valiosos de suas empresas, Castells não deixa de frisar que cresceu, por outro lado, o número de trabalhadores, entre os quais jovens, mulheres e imigrantes, que estão dispostos a aceitar “qualquer condição para a obtenção de um emprego”. (ibid., p. 17). Na atual crise do capitalismo, contudo, nem mesmo os trabalhadores mais qualificados têm garantido um vínculo empregatício estável; muitos deles ou são deixados no limbo do desemprego, ou aceitam trabalhos que exigem menos qualificação.  Para Castells, o que explica as contradições atuais do mercado de trabalho “são as condições estruturais de uma economia do conhecimento que cresce no contexto de uma grande economia de serviços de baixa qualificação”. (ibid.). A configuração dual do mercado de trabalho que, ao menos parcialmente, ainda absorve um número de trabalhadores mais qualificados enquanto força um amplo número de trabalhadores jovens, mulheres e imigrantes a aceitar qualquer tipo de trabalho, “é a origem crescente da desigualdade observada na maioria das sociedades”. (ibid.).

Castells afirma que as tecnologias de informação e comunicação são fatores que influenciam na transformação dos mercados e dos processos de trabalho; mas não são os únicos. Para ele, não se deve subestimar as estratégias políticas das empresas e as políticas governamentais, que tornaram possível a transformação operada pelas tecnologias de informação e comunicação.

Toda essa conjectura socioeconômica é uma característica atual de nossa era pós-moderna. A ideia de pós-modernidade aparece na segunda metade do século XX com o advento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação de massa. Assim, segundo Lemos, “pós-modernidade é a expressão do sentimento de mudança cultural e social correspondente ao aparecimento de uma ordem econômica chamada pós-industrialismo, nos anos 40-50 nos EUA, e em 1958 na França, com a 5ª República”. (ibid., p. 63). Já nos anos 60, os sistemas sociais sofrem o que Giddens (1991, p. 29)  chama de desencaixe, a saber, o “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua restruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”.  Contracultura, revolução verde, informatização da sociedade, pós-colonialismo e pós-industrialismo, ceticismo epistemológico (nada pode ser conhecido com certeza, desde que os “fundamentos” da epistemológia caíram em descrédito ), derrocada da crença na verdade como correspondência entre o pensamento e o real são algumas das características mais marcantes da pós-modernidade. No âmbito cultural, a pós-modernidade também se caracteriza pelo fim das grandes ideologias e pela falência do milenarismo, ou seja, pela falência da crença numa transformação radical da sociedade, bem como pelo descrédito na ideia de progresso e numa concepção teleológica da história; pela pluralidade de valores e  identidades de gênero. Na pós-modernidade, os campos da política, da ciência, da tecnologia, da economia, da moral, da filosofia, da arte, da vida cotidiana, da comunicação sofreram uma transformação radical. A pós-modernidade corresponde exatamente à fase pós-industrial do capitalismo, na qual a produção de bens e serviços (relacionados ao grande consumo de energia) modifica-se em conformidade com as novas tecnologias digitais. No plano econômico, a pós-modernidade se caracteriza pela redução do número de trabalhadores no setor secundário (das indústrias e construção) e aumento deles no setor de serviços (comércio, transporte, atividades imobiliárias, etc.). A então chamada terceira fase do capitalismo, a do capitalismo financeiro ou monopolista, é também a fase do capitalismo multinacional, onde o mundo inteiro se torna um grande mercado globalizado. Para Lemos, vivemos na terceira fase do capital, na terceira fase da máquina, que corresponde à fase da microeletrônica e da energia nuclear. Portanto, segundo este autor, “a fase pós-industrial da sociedade não é uma ruptura com a dinâmica monopolista de capitalismo, mas uma radicalização do desenvolvimento de sua própria lógica”. (ibid., p. 64).

 

 

3. Capitalismo e neoliberalismo

 

A mundanidade do homo faber  e do animal laborans é inseparável do capitalismo e de sua racionalidade, o neoliberalismo. Ora, numa sociedade de produtores e consumidores, organizada segundo a lógica neoliberal, o interesse principal não é a formação de pensadores, de filósofos, de homens das Letras, mas de uma nova subjetividade adequada ao regime do capital financeiro, a subjetivação contábil e financeira. É preciso nos desabituar da ideia de que o capitalismo é um mero sistema econômico de produção. O capitalismo, na verdade, é mais que isso: é um sistema de produção de subjetividades, de modos de ser, de pensar, de viver. No tocante à subjetivação capitalista, Dardot & Laval (2016) dão-nos a saber o que se segue:

 

Trata-se, na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à relação do capital com ele mesmo, ou, mais precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo, como um “capital humano” que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais. (ibid., p. 31).

 

Para alcançar esse fim, o capitalismo se organiza e se justifica segundo uma racionalidade própria, a saber, o neoliberalismo. Segundo os autores, “o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida”. (ibid., p. 17, grifos meus). O ponto que se deve ter em mente é este: com o neoliberalismo, o capitalismo se torna uma norma geral de vida. Com o neoliberalismo, o capitalismo aparece à consciência dos sujeitos sociais como a única formação econômica viável, legítima. Para Dardot & Laval, “o neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de práticas, de discursos e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. (ibid., grifo meu).  Esses autores estão assaz interessados em compreender como a governamentalidade neoliberal toma forma num “quadro normativo global (...) que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. (ibid.). Para Dardot & Laval, não convém mais indagar sobre como as relações capitalistas se impõem à consciência operária como “leis naturais evidentes”. O que não pode ser mais ignorado é que esse mundo neoliberal generalizou a concorrência econômica entre as sociedades e entre todos os setores de uma sociedade. Também não se pode ignorar que qualquer discussão sobre o valor ou o significado da filosofia deve considerar a crescente mercadologização do ensino em todos os níveis. Portanto, o próprio significado existencial da filosofia não pode ser mensurado, discutido, definido, fora do contexto socioeconômico maior em que o neoliberalismo estende sua lógica da concorrência e do imperativo do ganho econômico a todas as esferas da vida social, incluindo as esferas da educação pública e privada.

 

3.1. Capitalismo e trabalho

 

Como é possível que uma pessoa pense ser “normal” e legitime a oferta de “trabalhos voluntários”? Como as pessoas chegam a ter ideias como “pobres não gostam de trabalhar”, ou se habituem a ditames como “mente vazia oficina do diabo”? Ou ainda: como é possível que os indivíduos cheguem a acreditar que os ricos são ricos porque trabalharam muito? Como podem considerar que a vida ativa, ou melhor, que ser ativo, é estar inserido em alguma atividade de trabalho produtivo, e que aqueles que ocupam seu tempo com o trabalho intelectual, com os estudos sejam inativos, desocupados? Para que as pessoas tenham essas e outras ideias, e tantos outros preconceitos e visão de mundo, é preciso, evidentemente, que os tenham adquirido, que os tenham internalizado. Nossa visão de mundo, nossas crenças, valores, ideias, o que pensamos acerca da realidade do mundo, o que julgamos acerca do comportamento das pessoas, tudo isso encontra-se sistematizado, organizado nos aparelhos ideológicos da sociedade e é por eles transmitido, disseminado. O conteúdo dos nossos pensamentos, as ideias, o que julgamos ser, nossa visão de mundo são incutidos em nós durante o processo de socialização ao longo de toda a vida – processo este do qual participam a educação formal e a informal. Mas resta ainda entender de que modo a ordem social, ou, mais especificamente, a ordem capitalista se internaliza na consciência dos indivíduos, moldando-a. Considerando a contribuição de Reich para o estudo do fenômeno da ideologia, Silvio Gallo, chama-nos a atenção para o seguinte:

 

(...) tudo o que o indivíduo “recebe” em seu contato com o  mundo, ao mesmo tempo em que é trabalhado racionalmente pela consciência, é também assimilado no âmbito corporal. A estrutura fisiológica do homem adapta-se às situações experimentadas no meio”. (Gallo, 2009, p. 81, grifo meu).

 

 

Devemos, pois, atentar para a ideia de que o envolvimento do homem com o mundo não é a de um Cogito sem corpo, mas a de um organismo dotado de uma estrutura fisiológica que, para mim, não só se adapta às condições do meio, mas também reage a ele, modificando-o e sendo modificado por ele. A experiência humana do mundo é sempre uma experiência corporificada, uma experiência centrada no corpo, de modo que, em toda e qualquer atividade que realizamos, o corpo e a sua estrutura fisiológica, instintiva, pulsional, estão envolvidos e são afetados no momento da própria experiência. As atividades espirituais não são atividades de uma mente sem corpo, de uma mente separada do cérebro (a mente é o que o cérebro faz, é uma função do cérebro). A cognição, como vimos, é uma atividade de ordem fisiológica, orgânica; ela está centrada no corpo. Segue-se daí que o exercício da filosofia, que, comumente, é concebido como espécie de “ginástica do pensamento”, pelo qual só se interessariam aqueles intelectualmente mais robustos, é um exercício cuja realização requer um corpo filosófico, e em cuja realização se cunha um corpo filosófico. Quem diz ter interesse em filosofia diz, na verdade, que tem mera curiosidade, que é um curioso do assunto. A filosofia tende a afastar os interessados nela, os curiosos, porque ela é uma atividade que demanda corpos fisiologicamente dispostos para o seu exercício e carecidos dele.

Se ficou claro, portanto, que não nos envolvemos com o mundo apenas intelectualmente, mas por meio de todo o nosso corpo, por meio de sua estrutura fisiológica, não será difícil entender que, na esteira de Reich, a ideologia, como fenômeno social, como uma prática de massas, modela o pensamento, orienta a prática dos indivíduos, se encarna em seus atos, em suas atividades, fazendo com que as reações deles ao mundo sejam estereotipadas, reguladas por padrões. Consoante afirma Gallo, “(...) a padronização das sensações e das reações humanas é, ela própria, um fenômeno ideológico”. (ibid., p. 83). Na esteira de Reich, será necessário reconhecer que estrutura psíquica do homem, que é a sua estrutura de instintos (pulsões), é expressão da ideologia social. Assim, nas palavras de Gallo:

 

(...) a ideologia materializa-se (e só com essa materialização é que passa a existir concretamente) quando se encarna no ser do homem, quando passa a fazer parte de sua própria estrutura consciente. Podemos dizer que o processo de “nascimento” de uma ideologia é um processo no qual uma certa estrutura social é inserida no homem, tornando-se a própria estrutura psíquica deste. (ibid., p. 83).

 

 

No trecho supracitado, se nos dá a saber que a ideologia é de natureza material; ela se encarna, se materializa no modo de ser dos indivíduos, e graças a essa materialização da ideologia que ela passa a ter existência concreta. Ademais, a ideologia, segundo Reich, integra, molda a estrutura consciente dos indivíduos. É pela materialização da ideologia na estrutura da consciência que a estrutura social se insere na materialidade do corpo humano e passa a ser reproduzida pelos indivíduos nas práticas sociais. Assim, a ordem capitalista encarna-se na estrutura psíquica dos sujeitos sociais, estorvando e mesmo impedindo a percepção deles das virtualidades emergentes de outras formas de organização social. É também porque essa ordem socioeconômica e ideológica se encarna nas estruturas pré-conscientes dos indivíduos que ela garante sua permanência e reprodução nos atos concretos que eles executam na vida diária. Não surpreende, portanto, que os indivíduos, imersos na cotidianidade da vida contemporânea, se recusem a admitir como dotado de algum valor qualquer conhecimento, qualquer atividade humana que não respondam às necessidades práticas, utilitárias, empresarias do mundo organizado e gerido pelo modo de produção capitalista e pela sua racionalidade neoliberal, que posiciona os atores sociais como concorrentes de um mundo-empresa que é requisitado continuamente como fonte de lucro, de ganho econômico.

Tome-se, por fim, a questão do trabalho como uma dimensão fundamental da mundanidade do homem comum. O homem comum que vive, na maioria das vezes, enredado no complexo de rotinas, de hábitos, de práticas do cotidiano, sem quase nunca escalar andares superiores de compreensão do real, elege o trabalho como campo axiológico a partir do qual ele se compreende a si mesmo e julga o próprio valor da vida. Por sua estreiteza espiritual, por estar habituado a interpretar o mundo, a perceber o mundo pelas grades epistêmicas do senso comum, o homem comum não chega a alcançar uma compreensão radical de sua própria condição como trabalhador.

Se, como economista, sociólogo, historiador, Marx denunciou as condições de exploração do trabalho assalariado na sociedade capitalista de seu tempo, como filósofo, ele pensava que o trabalho é a expressão da vida humana. Marx dizia que o homem humaniza a natureza pelo trabalho, a transforma adequando-a a si mesmo. Nesse tocante, é pertinente a lição de Erich Fromm, grande estudioso da obra marxiana:

 

 

O trabalho é o fator que medeia entre o homem e a natureza; é o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza. O trabalho é a expressão da vida humana e através dele se altera a relação do homem com a natureza; por isso, através do trabalho, o homem transforma a si mesmo. (Fromm, 1962, p. 26).

 

 

 

 

Inspirando-se na concepção marxiana de trabalho, Lukács verá o trabalho como resultado de uma realização teleológica que o ser social, primeiramente, representa em sua consciência. O trabalho torna possível o salto ontológico das formas pré-humanas para a realização do homem como ser social. O trabalho, para Lukács, situa-se no centro do processo de humanização do homem. Mas o trabalho também não pode ser desumanizante, degradante? Em suas concretizações históricas, com a crescente divisão do trabalho, ele passou a ser vivenciado como uma atividade que desrealiza, que desumaniza o trabalhador. Nas sociedades capitalistas  de outrora e de hoje, as relações entre os trabalhadores e os proprietários do meios de produção são sempre marcadas por exploração do trabalhador pelo capital, e o ato de trabalho é sempre marcado pelo estranhamento do trabalhador em relação a si mesmo, ao trabalho e ao seu produto; ainda hoje e particularmente nas sociedades capitalistas do tempo de Marx, pode-se encontrar condições de trabalho degradantes e precárias.

Mesmo que o trabalhador exerça seu trabalho em condições salubres e regulamentadas pela lei trabalhista, o fato é que o trabalho assalariado, que é a base do modo de produção capitalista, é a forma-trabalho como valor de troca, é mercadoria que se troca por um equivalente universal (o dinheiro-mercadoria, na maior parte da vezes). Nas sociedades capitalistas, o trabalho é universalmente produtor de valores de troca. Na produção capitalista, cuja característica própria é a preponderância da troca sobre todas as relações de produção, os indivíduos são posicionados em relações multilaterais de dependência recíproca por meio de uma produção destinada exclusivamente à troca. Tais relações são produto exclusivo do ato de produção. Elas não se limitam a formas naturais ou preestabelecidas, mas se baseiam exclusivamente sobre si mesmas enquanto processo que estabelece suas próprias condições. Destarte, a produção torna-se central no modo de vida capitalista e passa a determinar as demais relações dos indivíduos uns com os outros e deles com o mundo. Esse modo de produção centrado na troca, fixando relações de interdependência entre os indivíduos produtores, posiciona-os contraditoriamente como indiferentes uns aos outros. Cada qual passa a se ocupar de seus interesses egoístas, na medida em que cada um serve ao outro apenas para servir a si mesmo. O trabalho, em tais condições de produção, deixou de ser imediatamente trabalho social, seu produto não é mais imediatamente um produto universal. Ao contrário, o trabalho é imediatamente trabalho singular e autônomo, independente dos demais. Submetido ao valor de troca, o trabalho, no modo de produção capitalista, torna-se trabalho alienado.  Por conseguinte, segundo Vieira:

 

 

A atividade só é efetivada por um ato de perda, de alienação, isto é, de troca; apenas quando transformada em algo distinto dela própria. Troca esta que se põe, como veremos, no próprio ato de produção e não apenas na circulação de mercadorias enquanto tal. (Vieira, 2018, p. 60).

 

 

 

Como nota Vieira, “a atividade característica da formação social capitalista é fundamentalmente, portanto, atividade estranhada”. (ibid., p. 61). Isso significa dizer que suas condições objetivas e os seus próprios produtos aparecem separados dos indivíduos, numa relação não apenas de exterioridade, mas sobretudo de oposição. O modo de produção capitalista tem como um de seus traços fundamentais o fato de os indivíduos não produzirem com vistas à satisfação de suas necessidades pessoais, mas de produzirem para atender a necessidades sociais. O que predomina aí é o valor de troca e não se tem em vista outra coisa senão a realização social, a realização de um objeto produzido destinado a outro. Não é possível a realização da produção sem a mediação da troca. Ao contrário do que possa imaginar, o indivíduo é dependente da relação com o outro, é dependente de relações cada vez mais universais para alcançar sua satisfação pessoal, tanto em sua produção quanto em seu consumo.

Se, depois deste longo itinerário de reflexão sobre as condições históricas concretas à luz das quais se deve sempre recolocar a questão do significado da filosofia, nos afastamos do texto convencidos de que é extremamente difícil que a filosofia fique encastelada à margem do processo de instrumentalização dos produtos da obra, do processo de transformação de tudo em mercadoria em nossas sociedades organizadas em torno dos interesses dos proprietários do capital, restar-nos-ia questionar se ela mesma não deve se realizar, se afirmar como uma prática, uma atividade humana de resistência, de confronto, de revolta contra o ininterrupto movimento histórico de reificação do homem, dos seres vivos em geral, de toda a vida no planeta. Se há uma “função” da filosofia, se podemos lhe conferir alguma serventia que não seja a sua funcionalização pelo utilitarismo sistemático do homo faber, a sua reificação pela insensatez e anseio consumista do animal laborans, que se relaciona com as coisas sob o modo da descartabilidade,  que não seja, enfim, a sua monetarização pela racionalidade neoliberal que produz subjetividades contábeis – se há uma função outra que cumpre a filosofia, repito - é a função que Deleuze, em tão belas e pungentes palavras, nos deu a conhecer:

 

Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, porque a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado nem à Igreja, que tem outras preocupações. Não serve qualquer poder estabelecido. A filosofia serve para afligir. A filosofia que não aflige ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Serve para atacar o disparate, faz do disparate qualquer coisa de vergonhoso. Tem apenas um único uso: denunciar a baixeza do pensamento sob todas a suas formas. Haverá uma disciplina, fora da filosofia, que se proponha criticar todas as mistificações quaisquer que sejam a fonte e o objetivo? Denunciar todas as mistificações sem as quais as forças reativas não poderiam imperar. Denunciar na mistificação esta mistura de baixeza e disparate, que forma aliás a espantosa cumplicidade das vítimas e dos autores. Fazer, finalmente, do pensamento qualquer coisa de agressivo, de ativo e de afirmativo. Fazer homens livres, quer dizer, que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral ou da religião. Combater o ressentimento, a má consciência que faz as vezes de pensamento. Vencer o negativo e os seus falsos prestígios. Quem é que tem interesse em tudo isso senão a filosofia? A filosofia como crítica diz-nos o mais positivo de si própria: empresa de desmitificação. (Deleuze, 2001, p. 159-160, grifo meu).

 

 

 

Empreender uma contínua e incessante desmitificação do animal humano e de suas maneiras, eivadas de loucura, de insensatez, de sofreguidão, de delírio metafísico, de interagir com o mundo, de se compor com o mundo, de constituir sua própria mundanidade como ser-no-mundo, eis a função niilizante da filosofia.

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Antonio M. Magalhães. Portugal, Porto: Rés-editora, 2001.

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VIEIRA, Zaira Rodrigues. Trabalho e emancipação humana em Marx: os Grundrisse. Campinas: Papel Social, 2018.

 



[1]  Por homem comum entendo o tipo humano da cotidianidade mediana, o tipo bem ajustado culturalmente, que se comporta e pensa, quase sempre, segundo o complexo de valores, crenças, ideologias, preconceitos, símbolos; em uma palavra, segundo as representações coletivas que são formadoras dos modos de pensar, se comportar e sentir gerais e permanentes numa sociedade ou num grupo social.