Feuerbach e o mistério de Cristo
Uma
leitura
Ludwig
Feuerbach (1804-1872) elaborou uma filosofia materialista cujo sistema afirma
só existir o homem e a natureza. Sua filosofia mantém que deuses são meros
reflexos dessa realidade. Só há a realidade sensível e a realidade fundamental
é a natureza. O ser sensível é o ser verdadeiro, é o ser real.
Não parece haver
dúvidas de que sua crítica mais radical à religião, especificamente à religião
cristã, foi desenvolvida em sua obra A
Essência do Cristianismo (1841). Nessa obra, Feuerbach expõe ou disseca os
mecanismos ideológicos em que se alicerça a natureza antropomórfica do
cristianismo. Na verdade, Feuerbach se esforçará por demonstrar a natureza
antropomórfica do Deus cristão. Mas o antropomorfismo do cristianismo não é
evidente, porque sob a bruma da ideologia. Somente o exame crítico poderá
desnudá-lo. Feuerbach reduzirá a teologia à antropologia e mostrará que todas
as qualidades atribuídas a Deus são qualidades referentes aos homens.
Lembre-se, de passagem, que, durante este trabalho de desmascaramento de Deus,
ele não hesitará em identificar Deus com o homem:
“Deus é homem, o homem é Deus; não sou eu, é a
própria religião que renega o Deus que não é homem, mas somente um ens rationis” (p. 29).
Feuerbach advogará
que a religião se estriba na diferença fundamental entre os seres humanos e os
animais. A diferença a que ele se refere é a consciência. Observando que os
animais não têm religião, o filósofo alemão argumentará que é somente o homem,
enquanto ser dotado de consciência (superior), que torna, graças a sua
consciência, a sua essência objeto do próprio pensamento. A consciência do
homem é, portanto, responsável por transformar o próprio ser ou essência em
outro objeto. Na religião, esse outro objeto produzido pela consciência humana
e projetado para fora do ser mesmo do homem é Deus. Veremos como Feuerbach
definirá Deus, no capítulo cuja leitura eu desenvolvo e apresento neste texto.
É preciso deixar claro que Feuerbach não dá uma definição de Deus apenas; na
verdade, ao longo de sua obra, Deus será definido ou pensado de modos variados,
sem, contudo, deixar de reduzi-lo à realidade humana. A realidade de Deus é o
homem. Em Feuerbach, não é Deus que cria o homem, mas o homem quem cria a Deus.
Neste texto,
proponho, portanto, uma leitura do capítulo O
mistério do Cristo cristão ou do Deus pessoal – décimo sexto capítulo de A Essência do Cristianismo (2009). Meu
objetivo também é incitar no leitor que não conhece este trabalho de Feuerbach
o interesse por lê-lo; com o leitor familiarizado com a obra, meu objetivo é
instaurar um espaço de diálogo.
A afetividade é o
termo-chave na base do qual o caminho interpretativo deverá ser construído. É
ele, no texto de Feuerbach, um conceito basilar para a sua compreensão do
mistério de Cristo como Deus pessoal. Esse termo reaparecerá, pois, em vários
momentos, neste texto.
Vou começar, então,
referindo dois trechos do texto de Feuerbach, me detendo em cada qual deles, a
fim de analisar o percurso argumentativo iniciado pelo autor.
“Os dogmas fundamentais do cristianismo são os
desejos realizados pelo coração – a
essência do cristianismo é a essência da afetividade. É melhor sofrer do
que agir, é mais agradável ser libertado e redimido por um outro do que
libertar-se a si mesmo, é mais agradável fazer depender a própria salvação de
uma outra pessoa do que da força da própria atividade, é mais agradável amar do
que buscar; melhor saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor
próprio simples, natural e inato a todos os seres; é muito mais cômodo
refletir-se nos olhos fulgurantes do amor do outro ser pessoal do que no
espelho oco do próprio Eu ou do que contemplar a fria profundidade do oceano
tranquilo da natureza; é mais cômodo
deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se fosse um outro ser, mas no
fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela razão” (p. 154, grifo
meu).
Começo tomando para
reflexão o termo afetividade. Nessa obra, alhures, Feuerbach define
a afetividade como o Deus do homem; para ele, a essência da afetividade é Deus
(p. 137). Deus é, então, deslocado de seu lugar de origem para outro lugar: no
princípio não é mais Deus, mas a afetividade do homem. Deus deixa o seu lugar
como Origem para ocupar outro lugar: o da afetividade. Na verdade, Deus e a
afetividade é um só no homem.
“A
afetividade é o Deus do homem; sim, o Deus em si, o ente absoluto. Deus é a
essência da afetividade enquanto objeto para si mesma, a afetividade ilimitada,
pura” (p. 137).
A afetividade, que
compreende os afetos, os sentimentos, as emoções, é o que afeta o homem e o
coloca numa relação de dependência e submissão em face desse outro.
Dependência, submissão e passividade são atitudes que constituem os pilares da
fé religiosa; numa perspectiva discursiva, são conceitos que estruturam a
consciência religiosa. Feuerbach escreve: “É melhor sofrer do que agir, é mais
agradável ser libertado e redimido por um outro do que libertar-se a si mesmo,
é mais agradável fazer depender a própria salvação de uma outra pessoa do que
da força da própria atividade, é mais agradável amar do que buscar; melhor
saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor próprio simples”.
Aqui me parece claro o predomínio da passividade sobre a atividade. A submissão
ou a dependência toma o lugar da autonomia. O sentimento também predomina sobre
a razão: “é mais cômodo deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se
fosse um outro ser, mas no fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela
razão”. Para Feuerbach, parece que só a razão
poderia levar os homens ao exercício da autonomia.
A afetividade do
homem comanda, ela é criadora. É ela que cria um outro ser, pessoal, a fim de
evitar o encontro do homem com seu próprio “Eu” que é oco. O homem teme
defrontar-se com a sua insignificância num universo sem alma. Por isso, ele
cria a Deus para nele se reconhecer (não é o homem imagem e semelhança de
Deus?).
É o sentimento do
homem que se torna, em sua consciência, um outro ser (Deus), muito embora seja
este ser o próprio sentimento do homem. Assim, o homem se deixa determinar por
esse sentimento, que foi alienado de si. A alienação, em Feuerbach, que é
alienação religiosa, é justamente o fato de o homem projetar para fora de si a
sua essência na forma de um Outro ser, que se define numa relação de negação
com o homem. Deus encllipsa a essência do homem. O homem, na alienação
religiosa, não se reconhece como o verdadeiro autor de Deus. Há uma inversão:
diante de Deus, o homem religioso alienado se considera uma criatura,
reservando a Deus o lugar de criador.
Penso que, para
Feuerbach, Deus é o sentimento que o homem tem de si, mas um sentimento que,
alienado, assume a forma de uma alteridade.
Na mesma página 154,
Feurbach prosseguirá:
“A afetividade transforma a voz ativa do homem numa
voz passiva e a passiva numa ativa”.
O homem cuja voz
ativa se torna voz passiva é o homem que perde autonomia. A voz passiva é a voz
da dependência. Por outro lado, o que antes era voz passiva (Deus é criado)
torna-se voz ativa (Deus cria). Voz ativa de Deus é autonomia de Deus; voz
passiva do homem é dependência do homem. É na afetividade que essa inversão se
estabelece. E continuará Feuerbach:
“(...) o que pensa é para a afetividade o que é
pensado e o que é pensado é o que pensa”.
O que pensa ou
aquele que pensa é o homem; todavia, para a afetividade, como matriz
ideológica, o homem se torna objeto (ele é a criatura); e Deus, que é pensado
(porque produto da consciência humana), é aquele que pensa (agente, voz ativa).
Deus é criador (pensa); o homem é criatura (pensado em relação a Deus). Quando
o homem se pergunta “Quem sou eu?”, ele é pensado por Deus, que diz: ‘És uma
criatura por mim criada!.’ Prossigamos com Feuerbach,
“A afetividade é de natureza onírica, por isso não
conhece ela nada mais agradável, mais profundo do que o sonho. Mas o que é o
sonho? É a inversão da consciência em estado de vigília”.
Aqui, Feuerbach diz
ser a afetividade sonho. A consciência religiosa se funda numa inversão
(mundo-homem-Deus aparece à consciência religiosa de modo invertido, de tal
sorte que no princípio está Deus, depois o mundo e o homem). A consciência
religiosa está submersa num sonho profundo. No mundo onírico em que vive a
consciência religiosa, o homem ativo se torna passivo (submetido, dependente,
criado); e Deus, que é passivo (é ele criado, pensado pelo homem), se torna
ativo (ele cria, ele pensa, determina). No sonho (sonho religioso), os homens
concebem as representações de si mesmos como representações exteriores a si. No
sonho religioso, Deus não é mais a essência da afetividade do homem, mas um
outro ser cuja existência independe do próprio homem.
“No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o
ativo; no sonho eu apreendo as minhas autodeterminações como se fossem
determinações vindas de fora, as emoções como acontecimentos, as minhas ideias
e sentimentos como entidades fora de mim, eu sou o passivo do meu próprio
ativo”.
Esse ativo no homem
é sua afetividade, que cria, que produz, que comanda. Feuerbach concluirá:
“O sonho refrata duplamente os raios de luz, daí a
sua indescritível magia. É o mesmo Eu, o mesmo ser tanto no sonho quanto na
vigília; a diferença é apenas que na vigília o Eu se determina a si mesmo e no
sonho é determinado por uma outra coisa. Eu me penso como pensado por Deus – é
afetivo, é religioso”.
O mesmo Eu que
figura tanto no sonho quanto na vigília é o homem: porque Deus é o homem, e não
há nada além do homem. Na vigília, o Eu goza de autonomia; no sonho, não; no
sonho, ele é assujeitado. Quando Feuerbach escreve “eu me penso como pensado
por Deus”, ele quer dizer “eu homem sou a criatura”. É Deus quem pensa no
homem, pensando-o como criatura e o homem assim é definido em relação a Deus
criador.
“A afetividade é o sonho de olhos abertos; a
religião é o sonho da consciência desperta: o sonho é a chave para os mistérios
da religião”.
A afetividade,
agora, é o sonho na vigília. A religião é o sonho da consciência em estado de
vigília. O sonho desfaz o mistério da fé religiosa. O mistério de Deus se
esfacela quando compreendemos que nada mais é do que a consciência humana que
sonha em estado de vigília. O paradoxo é bastante revelador, nesse caso, porque
a consciência de Deus é a consciência do homem desperto imersa em sonho
profundo.
Comecemos,
doravante, a, com Feuerbach, pensar o mistério de Cristo ou do Deus pessoal.
Para tanto, não perderemos de vista o papel fundamental da afetividade,
anunciado no limiar destas reflexões.
Tenho insistido na
ideia de que a afetividade comanda. Entendo que é ela que comanda a consciência
religiosa. Esse caráter de comando parece ser confirmado na concepção que tem
Feuerbach dela. A certa altura, o filósofo a entenderá numa perspectiva
legislativa; a afetividade estabelece uma lei e a lei mais elevada da
afetividade é, segundo ele, “a unidade imediata entre a vontade e a ação” (p.
155). Quem realiza essa lei é o Redentor, que é o Deus-feito-homem, ou seja, a
consciência. Essa lei determinará, portanto:
“Basta que te comportes passivamente, basta que
creias, que gozes. Pretendes atrair Deus para ti, para aplacar a sua cólera,
ter paz com tua consciência. Mas esta paz já existe, esta paz é o Mediador, o
Deus-homem – ele é a tua consciência tranqüilizada, o cumprimento da lei e,
assim, o cumprimento do teu próprio desejo e anseio” (p. 155).
A lei cristã é lei
visível, encarnada em Cristo. Cristo é o mediador, um homem que é ao mesmo
tempo Deus e um Deus que é ao mesmo tempo homem. Para Feuerbach, Deus enquanto
afetividade se objetiva em Cristo e somente em Cristo a afetividade se torna
certa e segura de si mesma. É Cristo que liberta a alma da opressão e torna a
afetividade feliz (p. 157). Em Cristo, a divindade se torna visível.
“Ver a Deus é o
supremo desejo, o supremo triunfo do coração” (p. 157).
Um Deus apenas
pensado é um Deus distante e abstrato; Cristo supera a abstração de Deus na
consciência humana, de modo que Deus se torna carne, conhecido, pessoal em
Cristo.
“A humanidade de Deus é a sua personalidade; Deus é
um ser pessoal significa Deus é um ser humano, Deus é homem”. (p. 158)
Novamente, explicita
está, no trecho acima, afirmação de que Deus é o homem. A realidade de Deus é o
homem, seu fundamento é o homem.
Feuerbach seguirá
argumentando que a afetividade anseia por um Deus pessoal. O anseio é, segundo
ele, a necessidade da afetividade. Isso significa dizer que não está em
questão, para a afetividade, a existência de Deus. Na afetividade ou para ela,
é necessário que Deus exista. O anseio da afetividade por Deus se exprime na
asserção: “Deus existe necessariamente”. Atente-se para a significação antropológica de
Cristo. Vamos procurar compreendê-la:
“Cristo é o Deus conhecido pessoalmente, Cristo é,
portanto, a feliz certeza de que Deus existe e que existe da maneira que a
afetividade quer e necessita que ele exista. Deus enquanto objeto da oração já
é um ser humano por participar da miséria humana, por ouvir desejos humanos,
mas ainda não é objeto para a consciência religiosa como um homem real. Portanto,
somente em Cristo, realiza-se o último desejo da religião, somente nele é
resolvido o mistério da afetividade religiosa (mas resolvido na linguagem
simbólica própria à religião), pois tudo que Deus é em essência torna-se em
Cristo uma manifestação (...)” (p. 158).
Consideremos o valor
de Cristo e da afetividade, tal como entendido nesse excerto. Cristo é a forma
de revelação pessoal de Deus. É também a garantia para a consciência religiosa
de que Deus existe. A afetividade é que deseja a existência de Deus e carece
dela. Deus, enquanto essência do homem, encarna-se em Cristo. Cristo torna Deus
visível ao homem; em outras palavras, Cristo torna a essência do homem visível
ao próprio homem.
É no sofrimento de
Cristo, entenderá Feuerbach, que Deus participa da miséria humana, que Deus se
torna humano e sentimental. É em Cristo que Deus se torna um Deus pessoal.
“A personalidade plástica é somente em Cristo. A
personalidade exige forma; a forma é a realidade da personalidade. Somente
Cristo é o Deus pessoal – ele é o Deus verdadeiro, real dos cristãos, o que não
pode ser repetido frequentemente. Somente nele se encontra a religião cristã, a
essência da religião em geral. Somente ele corresponde ao anseio por um Deus
pessoal; somente ele é uma existência correspondente à essência da afetividade;
somente nele se esgota a afetividade e a fantasia” (p. 160).
Compreende-se, pois,
em que medida Cristo, segundo Feuerbach resolve o mistério da afetividade
religiosa. Lembremos que a afetividade deseja que Deus exista e tem necessidade
de sua existência; mas esse Deus desejado, do qual tem necessidade o coração
humano, não pode ser um Deus distante, abstrato. Tem de ser um Deus pessoal,
dotado, pois, de uma personalidade exclusiva; tem de ser um Deus que se rebaixe
ao humano para participar de seu sofrimento e miséria. De que modo isso poderia
acontecer? Para a afetividade, mantendo que Cristo é o Deus encarnado,
portanto, pessoal, visível, humano. Escreverá Feuerbach nesse tocante o
seguinte:
“A última prova, salientada pelo autor do quarto
evangelho com especial ênfase, de que a pessoa visível de Deus não foi um
fantasma, uma ilusão, mais sim um homem real, é que fluiu sangue do seu corpo
na cruz. Sendo o Deus pessoal uma legítima necessidade do coração, deve ele próprio
sofrer necessidade. Somente em seu sofrimento está a certeza da sua realidade;
somente aí está a ênfase especial na encarnação” (p. 159).
O sangue de Cristo sacia
a sede da afetividade por um Deus pessoal, humano e compassivo. Para Feuerbach,
“Cristo é a unidade de afetividade e fantasia” (p. 160). No cristianismo,
portanto, fantasia e coração são inseparáveis. A fantasia realiza os desejos da
afetividade, satisfaz as necessidades do coração. Para Feuerbach, o poder da
fantasia é o poder do coração; “a fantasia é apenas o coração vitorioso,
triunfante” (p. 161).
Os milagres no
cristianismo são produtos da fantasia, que é inseparável do coração. Eles
exercem uma influência irresistível sobre o “homem afetivo”, ou seja, o homem
que se deixa afetar, que se deixa guiar pela afetividade. O poder mais elevado
da fantasia se expressa quando ela se une ao coração. Para Feuerbach, é Cristo
a união entre a liberdade da fantasia e a necessidade do coração.
“Todas as
coisas são subordinadas a Cristo; ele é o Senhor do mundo que dele faz o que
quiser; mas este poder que impera ilimitadamente sobre a natureza está por sua
vez subjugado ao poder do coração. Cristo ordena que se silencie a natureza
furiosa, mas somente para ouvir os suspiros do sofredor (p. 161).
Ao impor silêncio à
natureza furiosa, Cristo pode compadecer-se do sofrimento humano. O coração do
homem religioso deseja ardentemente que o mundo tenha sido criado para
tornar-se o seu lar, tenha sido criado segundo as suas medidas. No homem
religioso, é o coração que comanda, a ele está submetido o próprio poder de
governo de Cristo sobre a natureza. O coração do homem é a morada onde a
necessidade de Deus se casa perfeitamente com a certeza de sua existência.
A afetividade, a seu
turno, só tem necessidade do anseio. Ela repudia a razão e a natureza, ao mesmo
tempo em que proclama a necessária existência de Deus.