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sexta-feira, 19 de abril de 2013

"A religião é a essência infantil da humanidade." (Feuerbach)


                     

                     
                           Feuerbach e o mistério de Cristo
                                           Uma leitura

 
Ludwig Feuerbach (1804-1872) elaborou uma filosofia materialista cujo sistema afirma só existir o homem e a natureza. Sua filosofia mantém que deuses são meros reflexos dessa realidade. Só há a realidade sensível e a realidade fundamental é a natureza. O ser sensível é o ser verdadeiro, é o ser real.
Não parece haver dúvidas de que sua crítica mais radical à religião, especificamente à religião cristã, foi desenvolvida em sua obra A Essência do Cristianismo (1841). Nessa obra, Feuerbach expõe ou disseca os mecanismos ideológicos em que se alicerça a natureza antropomórfica do cristianismo. Na verdade, Feuerbach se esforçará por demonstrar a natureza antropomórfica do Deus cristão. Mas o antropomorfismo do cristianismo não é evidente, porque sob a bruma da ideologia. Somente o exame crítico poderá desnudá-lo. Feuerbach reduzirá a teologia à antropologia e mostrará que todas as qualidades atribuídas a Deus são qualidades referentes aos homens. Lembre-se, de passagem, que, durante este trabalho de desmascaramento de Deus, ele não hesitará em identificar Deus com o homem:

“Deus é homem, o homem é Deus; não sou eu, é a própria religião que renega o Deus que não é homem, mas somente um ens rationis” (p. 29).


Feuerbach advogará que a religião se estriba na diferença fundamental entre os seres humanos e os animais. A diferença a que ele se refere é a consciência. Observando que os animais não têm religião, o filósofo alemão argumentará que é somente o homem, enquanto ser dotado de consciência (superior), que torna, graças a sua consciência, a sua essência objeto do próprio pensamento. A consciência do homem é, portanto, responsável por transformar o próprio ser ou essência em outro objeto. Na religião, esse outro objeto produzido pela consciência humana e projetado para fora do ser mesmo do homem é Deus. Veremos como Feuerbach definirá Deus, no capítulo cuja leitura eu desenvolvo e apresento neste texto. É preciso deixar claro que Feuerbach não dá uma definição de Deus apenas; na verdade, ao longo de sua obra, Deus será definido ou pensado de modos variados, sem, contudo, deixar de reduzi-lo à realidade humana. A realidade de Deus é o homem. Em Feuerbach, não é Deus que cria o homem, mas o homem quem cria a Deus.
Neste texto, proponho, portanto, uma leitura do capítulo O mistério do Cristo cristão ou do Deus pessoal – décimo sexto capítulo de A Essência do Cristianismo (2009). Meu objetivo também é incitar no leitor que não conhece este trabalho de Feuerbach o interesse por lê-lo; com o leitor familiarizado com a obra, meu objetivo é instaurar um espaço de diálogo.
A afetividade é o termo-chave na base do qual o caminho interpretativo deverá ser construído. É ele, no texto de Feuerbach, um conceito basilar para a sua compreensão do mistério de Cristo como Deus pessoal. Esse termo reaparecerá, pois, em vários momentos, neste texto.
Vou começar, então, referindo dois trechos do texto de Feuerbach, me detendo em cada qual deles, a fim de analisar o percurso argumentativo iniciado pelo autor.

“Os dogmas fundamentais do cristianismo são os desejos realizados pelo coração – a essência do cristianismo é a essência da afetividade. É melhor sofrer do que agir, é mais agradável ser libertado e redimido por um outro do que libertar-se a si mesmo, é mais agradável fazer depender a própria salvação de uma outra pessoa do que da força da própria atividade, é mais agradável amar do que buscar; melhor saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor próprio simples, natural e inato a todos os seres; é muito mais cômodo refletir-se nos olhos fulgurantes do amor do outro ser pessoal do que no espelho oco do próprio Eu ou do que contemplar a fria profundidade do oceano tranquilo da natureza; é mais cômodo deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se fosse um outro ser, mas no fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela razão” (p. 154, grifo meu).


Começo tomando para reflexão o termo afetividade. Nessa obra, alhures, Feuerbach define a afetividade como o Deus do homem; para ele, a essência da afetividade é Deus (p. 137). Deus é, então, deslocado de seu lugar de origem para outro lugar: no princípio não é mais Deus, mas a afetividade do homem. Deus deixa o seu lugar como Origem para ocupar outro lugar: o da afetividade. Na verdade, Deus e a afetividade é um só no homem.

A afetividade é o Deus do homem; sim, o Deus em si, o ente absoluto. Deus é a essência da afetividade enquanto objeto para si mesma, a afetividade ilimitada, pura” (p. 137).


A afetividade, que compreende os afetos, os sentimentos, as emoções, é o que afeta o homem e o coloca numa relação de dependência e submissão em face desse outro. Dependência, submissão e passividade são atitudes que constituem os pilares da fé religiosa; numa perspectiva discursiva, são conceitos que estruturam a consciência religiosa. Feuerbach escreve: “É melhor sofrer do que agir, é mais agradável ser libertado e redimido por um outro do que libertar-se a si mesmo, é mais agradável fazer depender a própria salvação de uma outra pessoa do que da força da própria atividade, é mais agradável amar do que buscar; melhor saber-se amado por Deus do que amar-se a si mesmo com o amor próprio simples”. Aqui me parece claro o predomínio da passividade sobre a atividade. A submissão ou a dependência toma o lugar da autonomia. O sentimento também predomina sobre a razão:  “é mais cômodo deixar-se determinar pelo próprio sentimento como se fosse um outro ser, mas no fundo o mesmo, do que determinar a si mesmo pela razão”. Para Feuerbach, parece que só a razão poderia levar os homens ao exercício da autonomia.
A afetividade do homem comanda, ela é criadora. É ela que cria um outro ser, pessoal, a fim de evitar o encontro do homem com seu próprio “Eu” que é oco. O homem teme defrontar-se com a sua insignificância num universo sem alma. Por isso, ele cria a Deus para nele se reconhecer (não é o homem imagem e semelhança de Deus?).
É o sentimento do homem que se torna, em sua consciência, um outro ser (Deus), muito embora seja este ser o próprio sentimento do homem. Assim, o homem se deixa determinar por esse sentimento, que foi alienado de si. A alienação, em Feuerbach, que é alienação religiosa, é justamente o fato de o homem projetar para fora de si a sua essência na forma de um Outro ser, que se define numa relação de negação com o homem. Deus encllipsa a essência do homem. O homem, na alienação religiosa, não se reconhece como o verdadeiro autor de Deus. Há uma inversão: diante de Deus, o homem religioso alienado se considera uma criatura, reservando a Deus o lugar de criador.
Penso que, para Feuerbach, Deus é o sentimento que o homem tem de si, mas um sentimento que, alienado, assume a forma de uma alteridade.
Na mesma página 154, Feurbach prosseguirá:

“A afetividade transforma a voz ativa do homem numa voz passiva e a passiva numa ativa”.


O homem cuja voz ativa se torna voz passiva é o homem que perde autonomia. A voz passiva é a voz da dependência. Por outro lado, o que antes era voz passiva (Deus é criado) torna-se voz ativa (Deus cria). Voz ativa de Deus é autonomia de Deus; voz passiva do homem é dependência do homem. É na afetividade que essa inversão se estabelece. E continuará Feuerbach:

“(...) o que pensa é para a afetividade o que é pensado e o que é pensado é o que pensa”.


O que pensa ou aquele que pensa é o homem; todavia, para a afetividade, como matriz ideológica, o homem se torna objeto (ele é a criatura); e Deus, que é pensado (porque produto da consciência humana), é aquele que pensa (agente, voz ativa). Deus é criador (pensa); o homem é criatura (pensado em relação a Deus). Quando o homem se pergunta “Quem sou eu?”, ele é pensado por Deus, que diz: ‘És uma criatura por mim criada!.’ Prossigamos com Feuerbach,

“A afetividade é de natureza onírica, por isso não conhece ela nada mais agradável, mais profundo do que o sonho. Mas o que é o sonho? É a inversão da consciência em estado de vigília”.


Aqui, Feuerbach diz ser a afetividade sonho. A consciência religiosa se funda numa inversão (mundo-homem-Deus aparece à consciência religiosa de modo invertido, de tal sorte que no princípio está Deus, depois o mundo e o homem). A consciência religiosa está submersa num sonho profundo. No mundo onírico em que vive a consciência religiosa, o homem ativo se torna passivo (submetido, dependente, criado); e Deus, que é passivo (é ele criado, pensado pelo homem), se torna ativo (ele cria, ele pensa, determina). No sonho (sonho religioso), os homens concebem as representações de si mesmos como representações exteriores a si. No sonho religioso, Deus não é mais a essência da afetividade do homem, mas um outro ser cuja existência independe do próprio homem.

“No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o ativo; no sonho eu apreendo as minhas autodeterminações como se fossem determinações vindas de fora, as emoções como acontecimentos, as minhas ideias e sentimentos como entidades fora de mim, eu sou o passivo do meu próprio ativo”.


Esse ativo no homem é sua afetividade, que cria, que produz, que comanda. Feuerbach concluirá:

“O sonho refrata duplamente os raios de luz, daí a sua indescritível magia. É o mesmo Eu, o mesmo ser tanto no sonho quanto na vigília; a diferença é apenas que na vigília o Eu se determina a si mesmo e no sonho é determinado por uma outra coisa. Eu me penso como pensado por Deus – é afetivo, é religioso”.


O mesmo Eu que figura tanto no sonho quanto na vigília é o homem: porque Deus é o homem, e não há nada além do homem. Na vigília, o Eu goza de autonomia; no sonho, não; no sonho, ele é assujeitado. Quando Feuerbach escreve “eu me penso como pensado por Deus”, ele quer dizer “eu homem sou a criatura”. É Deus quem pensa no homem, pensando-o como criatura e o homem assim é definido em relação a Deus criador.

“A afetividade é o sonho de olhos abertos; a religião é o sonho da consciência desperta: o sonho é a chave para os mistérios da religião”.


A afetividade, agora, é o sonho na vigília. A religião é o sonho da consciência em estado de vigília. O sonho desfaz o mistério da fé religiosa. O mistério de Deus se esfacela quando compreendemos que nada mais é do que a consciência humana que sonha em estado de vigília. O paradoxo é bastante revelador, nesse caso, porque a consciência de Deus é a consciência do homem desperto imersa em sonho profundo.

Comecemos, doravante, a, com Feuerbach, pensar o mistério de Cristo ou do Deus pessoal. Para tanto, não perderemos de vista o papel fundamental da afetividade, anunciado no limiar destas reflexões.
Tenho insistido na ideia de que a afetividade comanda. Entendo que é ela que comanda a consciência religiosa. Esse caráter de comando parece ser confirmado na concepção que tem Feuerbach dela. A certa altura, o filósofo a entenderá numa perspectiva legislativa; a afetividade estabelece uma lei e a lei mais elevada da afetividade é, segundo ele, “a unidade imediata entre a vontade e a ação” (p. 155). Quem realiza essa lei é o Redentor, que é o Deus-feito-homem, ou seja, a consciência. Essa lei determinará, portanto:

“Basta que te comportes passivamente, basta que creias, que gozes. Pretendes atrair Deus para ti, para aplacar a sua cólera, ter paz com tua consciência. Mas esta paz já existe, esta paz é o Mediador, o Deus-homem – ele é a tua consciência tranqüilizada, o cumprimento da lei e, assim, o cumprimento do teu próprio desejo e anseio” (p. 155).


A lei cristã é lei visível, encarnada em Cristo. Cristo é o mediador, um homem que é ao mesmo tempo Deus e um Deus que é ao mesmo tempo homem. Para Feuerbach, Deus enquanto afetividade se objetiva em Cristo e somente em Cristo a afetividade se torna certa e segura de si mesma. É Cristo que liberta a alma da opressão e torna a afetividade feliz (p. 157). Em Cristo, a divindade se torna visível.

“Ver a Deus é o supremo desejo, o supremo triunfo do coração” (p. 157).

Um Deus apenas pensado é um Deus distante e abstrato; Cristo supera a abstração de Deus na consciência humana, de modo que Deus se torna carne, conhecido, pessoal em Cristo.

“A humanidade de Deus é a sua personalidade; Deus é um ser pessoal significa Deus é um ser humano, Deus é homem”. (p. 158)


Novamente, explicita está, no trecho acima, afirmação de que Deus é o homem. A realidade de Deus é o homem, seu fundamento é o homem.
Feuerbach seguirá argumentando que a afetividade anseia por um Deus pessoal. O anseio é, segundo ele, a necessidade da afetividade. Isso significa dizer que não está em questão, para a afetividade, a existência de Deus. Na afetividade ou para ela, é necessário que Deus exista. O anseio da afetividade por Deus se exprime na asserção: “Deus existe necessariamente”.  Atente-se para a significação antropológica de Cristo. Vamos procurar compreendê-la:

“Cristo é o Deus conhecido pessoalmente, Cristo é, portanto, a feliz certeza de que Deus existe e que existe da maneira que a afetividade quer e necessita que ele exista. Deus enquanto objeto da oração já é um ser humano por participar da miséria humana, por ouvir desejos humanos, mas ainda não é objeto para a consciência religiosa como um homem real. Portanto, somente em Cristo, realiza-se o último desejo da religião, somente nele é resolvido o mistério da afetividade religiosa (mas resolvido na linguagem simbólica própria à religião), pois tudo que Deus é em essência torna-se em Cristo uma manifestação (...)” (p. 158).


Consideremos o valor de Cristo e da afetividade, tal como entendido nesse excerto. Cristo é a forma de revelação pessoal de Deus. É também a garantia para a consciência religiosa de que Deus existe. A afetividade é que deseja a existência de Deus e carece dela. Deus, enquanto essência do homem, encarna-se em Cristo. Cristo torna Deus visível ao homem; em outras palavras, Cristo torna a essência do homem visível ao próprio homem.
É no sofrimento de Cristo, entenderá Feuerbach, que Deus participa da miséria humana, que Deus se torna humano e sentimental. É em Cristo que Deus se torna um Deus pessoal.

“A personalidade plástica é somente em Cristo. A personalidade exige forma; a forma é a realidade da personalidade. Somente Cristo é o Deus pessoal – ele é o Deus verdadeiro, real dos cristãos, o que não pode ser repetido frequentemente. Somente nele se encontra a religião cristã, a essência da religião em geral. Somente ele corresponde ao anseio por um Deus pessoal; somente ele é uma existência correspondente à essência da afetividade; somente nele se esgota a afetividade e a fantasia” (p. 160).


Compreende-se, pois, em que medida Cristo, segundo Feuerbach resolve o mistério da afetividade religiosa. Lembremos que a afetividade deseja que Deus exista e tem necessidade de sua existência; mas esse Deus desejado, do qual tem necessidade o coração humano, não pode ser um Deus distante, abstrato. Tem de ser um Deus pessoal, dotado, pois, de uma personalidade exclusiva; tem de ser um Deus que se rebaixe ao humano para participar de seu sofrimento e miséria. De que modo isso poderia acontecer? Para a afetividade, mantendo que Cristo é o Deus encarnado, portanto, pessoal, visível, humano. Escreverá Feuerbach nesse tocante o seguinte:

“A última prova, salientada pelo autor do quarto evangelho com especial ênfase, de que a pessoa visível de Deus não foi um fantasma, uma ilusão, mais sim um homem real, é que fluiu sangue do seu corpo na cruz. Sendo o Deus pessoal uma legítima necessidade do coração, deve ele próprio sofrer necessidade. Somente em seu sofrimento está a certeza da sua realidade; somente aí está a ênfase especial na encarnação” (p. 159).


O sangue de Cristo sacia a sede da afetividade por um Deus pessoal, humano e compassivo. Para Feuerbach, “Cristo é a unidade de afetividade e fantasia” (p. 160). No cristianismo, portanto, fantasia e coração são inseparáveis. A fantasia realiza os desejos da afetividade, satisfaz as necessidades do coração. Para Feuerbach, o poder da fantasia é o poder do coração; “a fantasia é apenas o coração vitorioso, triunfante” (p. 161).
Os milagres no cristianismo são produtos da fantasia, que é inseparável do coração. Eles exercem uma influência irresistível sobre o “homem afetivo”, ou seja, o homem que se deixa afetar, que se deixa guiar pela afetividade. O poder mais elevado da fantasia se expressa quando ela se une ao coração. Para Feuerbach, é Cristo a união entre a liberdade da fantasia e a necessidade do coração.

Todas as coisas são subordinadas a Cristo; ele é o Senhor do mundo que dele faz o que quiser; mas este poder que impera ilimitadamente sobre a natureza está por sua vez subjugado ao poder do coração. Cristo ordena que se silencie a natureza furiosa, mas somente para ouvir os suspiros do sofredor (p. 161).


Ao impor silêncio à natureza furiosa, Cristo pode compadecer-se do sofrimento humano. O coração do homem religioso deseja ardentemente que o mundo tenha sido criado para tornar-se o seu lar, tenha sido criado segundo as suas medidas. No homem religioso, é o coração que comanda, a ele está submetido o próprio poder de governo de Cristo sobre a natureza. O coração do homem é a morada onde a necessidade de Deus se casa perfeitamente com a certeza de sua existência.
A afetividade, a seu turno, só tem necessidade do anseio. Ela repudia a razão e a natureza, ao mesmo tempo em que proclama a necessária existência de Deus.




quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Se 5 bilhões de pessoas acreditam em uma coisa estúpida, essa coisa continua sendo estúpida." (Anatole France)

                 



                                
                                Para além da ignorância: do ser ateu



Feuerbach tem muito a nos ensinar, em A essência do Cristianismo (2009). Os religiosos deveriam permitir-se à leitura deste eminente filósofo alemão, que legou ao mundo um estudo antropológico, lúcido e consistente, da religião, em especial, do cristianismo. Ele vai às raízes, onde Deus é inventado. À página 134, escreve:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio: o homem vem depois. Assim distorce a ordem natural das coisas! O principio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”

Reitero aqui: Deus é a essência objetiva do homem. É somente possível um debate equilibrado e racionalmente orientado se os religiosos estiverem de acordo quanto a esta premissa: foram os homens que inventaram Deus. Inverter essa relação é ideologia. E o leitor que me lê me diria: mas pensar assim desmontaria todo edifício da fé, mostraria que as religiões são fabricações humanas pelas quais os homens contemplam, adoram a sua própria essência, nada além disso. Decerto, é isso que Feuerbach se esforçou por nos fazer ver. Para ele, a religião representa a cisão do homem consigo mesmo. Nas palavras do autor,

“(...) ele [o homem] estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito. Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem é transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador, Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades”.
(p. 63)

Depreendemos daí que Deus é a antítese do homem. Na religião, se dá a cisão entre o homem e sua essência, que é objetivada como Deus.
Certamente, Feuerbach contribuiu significativamente para a consolidação de meu ateísmo. Entretanto, como insisti em recente controvérsia com alguns desconhecidos cristãos, numa rede virtual de relacionamentos sociais, meu ateísmo é fundamentado e, embora eles me tenham admoestado de que eu, como o supõem, não li a Bíblia, ou pelo menos não da forma como eles a leram, eu me tornei ateu, em grande medida, porque alcancei uma compreensão dos fatos, da história que a eles escapa. E insisti em que a religião promove a ignorância – e não só uma ignorância que atenta contra o bom-senso, mas também uma ignorância histórica. Afinal, eles se vangloriam de serem leitores (dedicados?) da Bíblia, mas nada sabem a respeito da História de sua fabricação. Estou quase certo de que livros como Evangelhos Perdidos (2008), de uma das maiores autoridades nos estudos do cristianismo primitivo, Bart D. Ehrman, não chegaram ao conhecimento deles (e provavelmente, não chega ao da maioria dos religiosos, que em igrejas, entoam cantos, se ajoelham e louvam as palavras que constam dos evangelhos canônicos). Entretanto, esses mesmos religiosos ignoram o fato de que existem outros evangelhos, hoje, então conhecidos, que foram considerados heréticos e excluídos do cânone. Ensina-nos Ehrman a este respeito, na referida obra:

“Quase todas as Escrituras “perdidas” dos cristãos primitivos eram falsificações. Com relação a isso concordam acadêmicos de todas as correntes, liberais e conservadores, fundamentalistas e ateus. O livro atualmente conhecido como o Proto-Evangelho de Tiago declara ter sido escrito por ninguém menos que Tiago, irmão de Jesus (ver Mc 6:3; Gl 1:19) (...) Mas quem quer que tenha escrito o livro, não foi Tiago. (...) Isso é verdade também com relação a quase todos os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses que vieram a ser excluídos do cânone e falsificações em nome de apóstolos famosos e seus companheiros”.
(p. 28)

Há, portanto, aí, um testemunho histórico de que a Bíblia que chegou até nós foi produto de uma série de disputas, de falsificações e exclusões, em favor dos que detinham o poder. Nesse tocante, Ehrman levanta as questões seguintes:

“Como falsificações puderam entrar no Novo Testamento? Possivelmente, é melhor reverter a pergunta: por que falsificações não entrariam no Novo Testamento? Quem estava compilando os livros? Quando o fizeram? E como eles poderiam saber se um livro supostamente escrito por Pedro foi de fato escrito por Pedro, ou se um livro supostamente escrito por Paulo era realmente de Paulo? Até onde sabemos nenhuma dessas cartas foi incluída em um cânone de textos sagrados até décadas após terem sido escritas, e o cânone do Novo Testamento como um todo ainda não alcançaria sua forma final pelos dois séculos seguintes. Como alguém podia saber, centenas de anos depois, quem tinha escrito tais livros?”

(p. 30)

A VERDADE é intricada e depende de um esforço intelectual ao qual os religiosos que seguem fielmente as doutrinas que lhes são entulhadas na mente não demonstram qualquer disposição. É mais cômodo acreditar que a Bíblia realmente foi escrita por homens agraciados pela inspiração de Deus e não por muitas mãos que, ao longo de muitos séculos, falsificaram e deturparam textos e travaram lutas de poder em torno dos escritos que iam sendo forjados. É mais cômodo acreditar que a única visão de mundo verdadeira e a única forma de compreender a natureza de Cristo são as que foram institucionalizadas pelo cristianismo “vitorioso” do que saber sobre a existência de uma ampla diversidade de cristianismos, recoberta pela designação Cristianismo primitivo. Nos séculos II e III, havia pessoas que acreditavam em um único Deus, mas também havia quem acreditasse em dois, trinta, ou mesmo em 365 deuses (ver. Ehrman, p. 18).
Também nesses séculos, houve cristãos que creram que a Escritura Judaica (“Antigo Testamento”) fora inspirada por um Deus único e verdadeiro. Outros, por outro lado, acreditavam que, embora inspirada pelo Deus dos judeus, ele não era o Deus único e verdadeiro. Houve ainda aqueles que acreditavam que ela fora inspirada por uma divindade maligna. E, finalmente, havia cristãos que negavam qualquer inspiração.
Naqueles tempos, também houve aqueles que divergiam em crenças a respeito da natureza de Jesus. Houve aqueles que atribuíam a Jesus a dupla natureza: humana e divina. Houve os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano. Outros ainda creram ser Jesus homem que fora adotado por Deus para filho, mas que não era divino por si mesmo. Havia cristãos que acreditavam ter sido Jesus humano; e Cristo, divino - este teria habitado o corpo de Jesus temporariamente e inspirado seus ensinamentos e milagres, abandonando-o antes da morte.
Nos séculos II e III, cristãos houve que acreditavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com salvação; outros, porém, pensavam ao contrário: a morte significou a salvação do mundo. E ainda havia grupos que acreditavam que Jesus nunca morreu.
A religião nunca poderá pretender à verdade; seu pilar é a (confiança sem provas). Com que critério se poderia definir qual das muitas crenças que circulavam naqueles tempos era a verdadeira?
Na seção As Escrituras perdidas (p. 20), Ehrman nos ensina que os Evangelhos encerrados no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; só posteriormente lhes foram atribuída autoria. Nas palavras do autor:

Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.”

(p. 20)

Evidentemente, conforme assinala o autor, alguma pessoa decidiu pela inclusão de quatro desses primitivos Evangelhos no cânone. Donde a pertinência das questões suscitadas por ele:

“Mas como foram tomadas essas decisões? Quando? Como se poderia ter certeza de que estavam corretos? E o que aconteceu com os outros livros?

Vale notar ainda que os estudiosos não estão de acordo se Paulo foi realmente o autor de suas cartas. Há cartas atribuídas a Paulo que não constam do Novo Testamento, como as muitas que ele enviara ao filósofo romano Sêneca.
A única verdade que subsiste, neste terreno de disputas e crenças divergentes, é a verdade dos fatos, da história, que é trazida à cena por estudiosos como Ehrman. A verdade sobre a fabricação das Escrituras Sagradas pode ser resumida nestas linhas:

“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. (...) Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.

(p. 21)
Em face das evidências, em face da verdade a respeito da fabricação da Bíblia, pergunto-me com que direito os religiosos podem me censurar por não acreditar em Deus e não acreditar que Jesus tenha operado milagres e tenha sido, em parte, divino? Para mim, o fato de a Bíblia ter sido resultado de uma série de cópias, falsificações e escolhas politicamente determinadas é uma prova suficiente de que não representa nem a mente de um suposto Deus, tampouco fora inspirada por ele. Como poderia Deus ter silenciado em face dessa fragmentação e deturpação de seus pensamentos? Escusa lembrar que há entre os Evangelhos constantes do cânone contradições, como a que diz respeito ao local onde Jesus nasceu. Isso também aponta para o fato de que a Bíblia é um produto literário de mãos e mente humanas.
Os estudiosos admitem, há muito, que mesmo os textos incluídos no cânone são  falsificações. Alguns preferem chamá-los de escritos “pseudonímicos”.
O que a História nos revela sobre Jesus? Que ele era um profeta judeu, um dentre os muitos pregadores que circulavam na Palestina do século I d.C. Jesus anunciava o Reino de Deus – e Reino de Deus não fora empregado como uma metáfora. Jesus acreditava que Deus viria à Terra para estabelecer o seu Reino, sem injustiças e desigualdades sociais. A intervenção divina seria uma intervenção política, que poria fim às relações de classe.
Jesus, contudo, se destacara dos demais profetas, por três razões: primeiramente, ele rejeitava a luta armada; demonstrava-se impaciente com a observância exagerada dos preceitos judaicos; e aceitava as mulheres entre seus seguidores, o que contrariava os costumes das correntes rabínicas da época.
Paulo de Tarso, que outrora perseguia cristãos, converteu-se, tornando-se, segundo alguns estudiosos, o inventor do Cristianismo. Na realidade, foi ele seu principal propagador. Todavia, se considerarmos o modo como Paulo encarava a condição da mulher, seu pensamento é um verdadeiro retrocesso em relação à posição de Jesus. Na Primeira Epístola a Timóteo (2, 11-15), declara:

“A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois não permito que a mulher ensine nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, na caridade e na santificação, com modéstia”.

Pergunto-me como uma visão de mundo tão machista e sexista pode ainda orientar o pensamento de muita gente no século XXI, em sociedades modernas que vêm rejeitando as condições de assimetria entre os gêneros, em sociedades em que o homem deixou de ser o pai de família e provedor, em sociedades em que, reconhecidamente, as mulheres vêm alcançando maior participação social e política?
No entanto, devemos nos acautelar. Parece que nem todas as cartas são de autoria de Paulo. Em Gl 3: 28, Paulo declara: “em Cristo, não há homem ou mulher”. Paulo consentiu que mulheres falassem em igrejas, mas recomendava que cobrissem a cabeça, quando orassem e profetizassem.
De qualquer forma, é historicamente comprovado que as condições de existência da mulher, naqueles tempos, eram drasticamente limitadas e caracterizadas por submissão à figura patriarca.
O ateísmo nos permite um olhar de fora, do exterior, não-contaminado, não-infectado de dogmas, preceitos, crenças infundadas. O olhar ateísta permite-nos compreender a religião como uma instituição humana que, historicamente, serviu a interesses políticos. Pensá-la como uma realidade que paira sobre o meio sócio-cultural e político, que está além deste mundo e que, portanto, não pode ser colocada em debate, é mascarar o fato de que ela é uma realidade produzida por homens e, como tal, passível de discussão e entendimento.
Se, por um lado, podemos dizer que Jesus, enquanto viveu, teve boas intenções, pregando o amor, a pacificação e a igualdade; por outro lado, também é correto afirmar que seus ensinamentos não foram bem assimilados pelas gerações posteriores. Em 385, bispos pediam a cabeça de hereges. Em O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus,  lê-se a respeito dessa prática nefasta:

“O primeiro a sofrer as consequências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher”.
(p. 50)

Para sentir-se confortado numa religião, como o cristianismo, é preciso ignorar a sua História, é preciso ignorar os sem-número de eventos de violência, de conflitos perpetrados por homens de fé. É preciso ignorar e se ajoelhar, se submeter, crer sem questionar, ter fé sem usar-se da inteligência racional, sem ousar refletir por um instante sequer, limitando-se a reproduzir o que se vem ensinando há séculos de doutrinação. “Cristo nos salvou”, “Deus é amor”, “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”, etc.
As religiões, e já nos ensinara Rubem Alves, são feitas de símbolos. As pessoas religiosas ignoram isso; os católicos creem realmente que no cálice há o sangue de Cristo e que a hóstia é parte do corpo e agradecem por participar desse canibalismo simbólico. A cruz é, no cristianismo, símbolo da salvação, mas o judaísmo a vê como símbolo da maldição. A mim, me custa aceitar a cruz como símbolo de salvação, já que era um local de sofrimento e morte – a pior forma de punição aplicada a criminosos na Antiguidade. Há, aqui, uma violência simbólica.
           Ser ateu significa romper com uma longa tradição de falsificações, de adestramento psicológico, de aviltamento do humano e da inteligência, de assassinatos, guerras, disputas, conflitos. O ateu não é só aquele que afirma não existir divindade alguma, mas também aquele que se recusa a compactuar com uma longa história de absurdos e imposturas, que se recusa a ser um herdeiro de uma tradição que conserva os homens num delírio.
Aqueles que insistem em valer-se da Bíblia como autoridade no modo como vêem o mundo e o interpretam sequer desconfiam de que a leem segundo a leitura que lhes é ensinada na igreja; não leem criticamente; leem como leitores passivos, que se apóiam numa leitura institucionalizada e teologicamente conveniente. Lêem segundo o filtro interpretativo legado por uma tradição de Concílios. Lêem aquilo que deve e pode ser lido.