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segunda-feira, 7 de março de 2022

"Estou longe de conhecer o ateísmo na condição de resultado, menos ainda como conhecimento: em mim ele é compreensível na qualidade de instinto". (Friedrich Nietzsche)




Aos adoradores do Insondável

 

  aquela senhora ajoelhada defronte do altar tendo entrelaçado nas mãos um terço? Ela reza a Deus com a voz silenciosa do pensamento suplicante... Quem a fita de longe cogita da representação que ela faz de Deus. Quem é Deus para ela, além de um mero interlocutor suposto na sua imaginação e forjado na caldeirinha de sua afetividade? ...

Interrompo meus estudos sobre a Filosofia Medieval, especificamente sobre as contribuições filosófico-teológicas do Pseudo-Dionísio, para escrever este breve texto, com o fito de dizer aos que insistem em sugerir que devo retornar ao seio do Altíssimo que é por conhecê-lo filosófica e teologicamente melhor do que vocês pensam conhecê-lo, por força dos ensinamentos doutrinários da Igreja, que o nego com todas as forças de meus nervos, que o nego com toda vivacidade do tutano de meus ossos, com todos os axónios de meu cérebro; mas não o nego por revolta ou birra infantil. Nego-o na condição de quem consumiu muitas horas e dias em meditações aturadas sobre o problema filosófico de Deus,  na condição de quem, por isso, sente-se autorizado pelos homens mais sábios da história do pensamento a fazê-lo; nego-o, portanto, como instância ontológica, nego-o como uma espécie de Pessoa transcendente com quem é possível manter um relacionamento humano, nego-o como Criador do mundo, nego-o como fonte da Vida e do Ser, nego-o como a resposta pronta e definitiva para todas as nossas agruras, para todas as questões viscerais da existência; nego-o porque a vida pulsante do dia a dia é um testemunho gritante de sua inexistência - ou, se preferirem, quiçá porque a inexistência de Deus lhes pareça uma verdade insuportável - , é um testemunho estridente de sua ausência e indiferença abissal (que, no entanto, se deixa sentir por todos os cantos do mundo, entre os gemidos dos inocentes que sofrem e morrem sem razão, nas lágrimas cálidas e dolorosas daqueles que pranteiam a morte absurda de um filho); nego-o também porque a vida do dia a dia é uma missiva aberta de denúncia da Insanidade, da futilidade, da insignificância cosmológica de que é tecida a existência humana e a história; nego-o como a figura tirânica, ciumenta, narcísica cunhada pelo imaginário popular que, aliás, afronta toda a seriedade e escrutínio das especulações teológicas e filosóficas que animavam o espírito de grandes pensadores em debates calorosos por séculos a fio.

Quem me quer como ovelha recobrada de Deus deve saber que habitamos dois campos de sentido, isto é, dois “mundos” radicalmente distintos e incomensuráveis. Não frequentei um curso de filosofia durante 6 anos, ao longo do qual mantive contato com a rica e interessante filosofia cristã para deixar-me seduzir e persuadir pelas admoestações dos servos da tradição apologética decantada em missas e em cultos. Deus, para mim, é apenas um conceito, um objeto-de-discurso, uma ficção cultural, ou, como o define Castoriadis, uma significação. Interesso-me pelo problema filosófico de Deus ou do Divino, que é polimórfico. No Ocidente, por contingências históricas, o Divino é representado na forma sígnica “Deus”, que encerra em si significados cunhados no imaginário-simbólico judaico-cristão. O conceito de Deus tem uma materialidade histórica, enfeixa uma materialidade de sentidos derivados de uma memória discursiva que, ao longo de milênios, em disputas políticas, teológicas e ideológicas, foi se formando e dando a este conceito sua espessura semântica e histórica como alguns a conhecem hoje. Por isso, é inútil tanto pretender calar-me quanto pretender converter-me à velha fé já sepultada por mim. E não me cuidem arrogante; afirmo-me apenas como um livre pensador, um pensador refratário a toda forma de dogmatismo. Conviver com as diferenças, com a pluralidade de modos de viver e de opiniões ou crenças não significa curvar-se à tirania das tolices das multidões. E, por fim, erra crassamente quem julga ser o filósofo um sábio ou - nos termos do vulgo - um “sabichão”. O filósofo é, desde a Antiguidade grega, o amante da Sophia, é aquele que mantém com a sabedoria uma relação profundamente erotizada. E como todo amante, que mais ama quanto mais o objeto amado lhe resiste ao desejo de posse, o filósofo ama permanentemente a sabedoria porque jamais a possui. O erotismo filosófico repousa sobre a busca da sabedora e nessa busca permanente e infindável ele se anima, se inflama. A todo pretenso saber de teólogos, sacerdotes e seus acólitas contraponho aquela famigerada máxima socrática, que constitui o marco de toda atitude verdadeiramente filosófica: “só sei que nada sei”. O maior perigo é ignorar que não se sabe nada daquilo que se afirma saber. Deus sabe quantos cemitérios foram abertos como custo alto pago por essa forma de ignorância!

  

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"O homem afirma em Deus o que nega em si mesmo" (Feuerbach)

                                        

        
                                Enquanto bilhões dizem Amém...


                                                     I

No ocidente, o cristianismo se desenvolveu com base na crença na exterioridade de Deus em relação ao homem e ao mundo. Daí para a ideia de Deus como uma projeção, atualmente desacreditada, bastou um passo curto.
Na medida em que fizeram de Jesus o único avatar, os cristãos desenvolveram uma concepção exclusivista da verdade religiosa. Jesus foi considerado a encarnação primeira e definitiva da Palavra de Deus, de tal sorte que outra Revelação futura se tornava desnecessária.
Não foi sem escândalo que os cristãos viram surgir na Arábia do século VII um profeta que preconizava ser portador de uma revelação direta do Deus que os próprios cristãos adoravam. Esse profeta trouxe consigo uma nova Escritura. Essa versão do monoteísmo, que se tornaria conhecida como islamismo, angariou, de modo muito rápido, milhares de adeptos no Oriente Próximo e no Norte da África.
Como, nessas regiões, não se verificava a influência do helenismo, não custou aos adeptos da nova fé abandonar a doutrina grega da Trindade, com a qual o cristianismo ortodoxo expressava o mistério de Deus. O idioma árabe não se prestava à formalização de uma tal concepção trina de Deus, e os adeptos islâmicos puderam adotar uma noção mais semita da divindade.
Se você é cristão, não pode aceitar outra revelação de Deus senão a que se deu por intermédio de Cristo; se é judeu, não poderá aceitar Cristo como o Messias; se é islâmico, deverá assumir que a Revelação definitiva de Deus se deu através da figura do profeta Maomé.
Enquanto nenhuma das partes que julga dispor do privilégio da Revelação de Deus não consegue determinar quem tem razão, Deus permanece sendo um mistério transparente e uma evidência oculta para os que se habituaram a dizer simplesmente Amém.

                                                 
                                                    II

Se você não está disposto a desacostumar-se, muito provavelmente não se entregará à filosofia. Se você vive confortavelmente amparado no sistema de crenças com o qual se habitou, desde tenra idade, a ver o mundo, provavelmente se contentará em dizer aquilo que a maioria gosta de ouvir. Se, além disso, nutre fortes convicções religiosas, muito provavelmente se agradará de dar a conhecer aos que concordam com você em sua cosmovisão o que acredita ser a verdade sobre a identidade de Jesus. Julgará, por força do hábito, que é relativamente simples determinar e revelar o Jesus histórico – afinal, a Bíblia encerra os quatro Evangelhos que nos dão testemunho de quem foi Jesus.
Por estar tão acostumado (ou acostumada) a reproduzir a herança de sua tradição religiosa – e crendo que, ao fazê-lo, satisfaz suas necessidades espirituais, - sequer desconfiará de que é extremamente difícil saber, com segurança, quem realmente foi Jesus e o que ele fez. Uma das razões para essa dificuldade repousa no fato de que os quatro Evangelhos canônicos estão repletos de contradições. Outra razão diz respeito ao fato de eles terem sido escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus – e pasme-se! -, sem que seus autores tenham testemunhado os acontecimentos relatados. É isso mesmo: os autores dos quatro Evangelhos não foram testemunhas oculares; as pessoas às quais se atribuiu a autoria não foram seus verdadeiros autores. Os textos foram escritos entre 35 e 65 anos depois da morte de Jesus por pessoas que não o conheceram; pessoas que sequer falavam o idioma que ele falava, e que viveram em outro país.

A despeito disso, a verdade de Jesus fez carreira, pondo em movimento legiões de mentirosos.

segunda-feira, 11 de março de 2013

"Todo Eu supõe um Outro reciprocamente" (BAR)


                                    


                                    Reencontrando-me
“No cuidado de si, o conhecimento de si torna-se prática, arte de vida.”
(novas vitaminas filosóficas)

Não sei ainda o que farei com estes livros que empilhei sobre esta escrivaninha diante da qual me sento. Eu os apanhei em meu armário, os livrei da clausura e do esquecimento para reanimar suas palavras em minha alma, porque ela esteve por um longo período de tempo de minha vida concentrada em suas páginas. Deverei eu citá-los aqui? São muitos. Saiba o leitor que este texto não está sendo produzido segundo um plano espiritual claro e metódico. Os caminhos que percorrerei com minhas palavras se entrecruzarão e, neste momento, me parecem difusos. Há mais descaminhos com depressões do que estradas aplanadas e bem demarcadas no itinerário de meus pensamentos. Só uma garantia há: serei meticuloso nas escolhas verbais que farei; cuidarei para que a linguagem não me traia as disposições favoráveis do espírito. Ponho-me nua a alma. Vou revasculhar-me. Esse neologismo é provisório; mantenho-o por falta de uma expressão melhor; tão-logo, contudo, se me afigure ao espírito uma palavra mais adequada à expressão do meu intento dela me servirei. Eu deixei marcas gráficas nestes livros que dispus diante de mim. É a elas que me aterei. Vou citá-los então, para satisfazer a curiosidade do leitor. Sonetos de Florbela Espanca, As Flores na janela sem ninguém..., Ecce Homo, Esse ofício do verso, Melhores Poemas de Paulo Leminski, Poemas de Fagundes Varela, Eu e Outras Poesias de Augusto dos Anjos, Melhores Poemas de Fernando Pessoa, A rosa do povo, de Drummond, Poesias de Olavo Bilac, Poesia Erótica, Sonetos de Luís de Camões, As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Nova Antologia Poética, de Vinícius de Moraes, O silêncio dos amantes, de Lya Luft e Palomar, de Ítalo Calvino. A lista não está completa... Sinto que falta um que me foi e ainda me é caro...mas a memória costuma trair-me.
É difícil perscrutar-se. Tenho medo. Já me vi, num passado não tão longínquo para a alma, embaraçado em tramas verbais aterrorizantes e depressivas. A filosofia me salvou; e o ateu que jazia em mim sufocado libertou-me da escravidão de uma fé que não cessava de confrontar-se com os questionamentos. E fé não lida bem com questionamentos. Fé e questionamentos não se avizinham. Ou ela fica e eles saem, ou eles nos ocupam e a expulsam. Eles a expulsaram!
Nas páginas de Espanca, encontro esta estrofe, ao lado da qual escrevi “verdade!”.

Mas não te vejo, Amor, essa indiferença
Que viver neste mundo sem amor
É pior que ser cego de nascença.

Este terceto faz parte do poema intitulado de “Frieza”. Fui apaixonado por Espanca durante um bom tempo, um tempo tão afeiçoado às ilusões primaveris, que dele me recordo como quem se recorda de um sonho erótico, do qual acorda com ereção, não raro, extasiado com uma ejaculação!

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa
A pedra do caminho, rude e forte!

Onde há desejo há falta. Aprendi com Freud, com Sócrates, com Platão... Só desejamos aquilo que nos falta. O desejo existe na falta, na carência, na ausência. E eu desejava e pensava demais. Pensar demais dói. Doía mais do que agora. Por isso o desejar ser como uma pedra, que nada pensa, que nada sente, que nada deseja. Ser um em-si e bastar-se.
Abro o livro de Lia Luft. Encontro estes versos precedendo a Apresentação.

Sem palavras

A vida inteira busquei
explicações e deciframentos:
encontrei silêncio e segredo,
às vezes conforto de um ombro
outras vezes
dor.

No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido
e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombra:
assombro.

Quanto mais nos aproximamos do mundo para auscultá-lo com o pensamento mais silencioso ele fica. E naquele tempo buscava, como agora, compreender o mundo sem, contudo, viver amalgamado com ele. Confundir-me, jamais! Distinguir-me sempre!


Estes versos te dou e se a celebridade
O meu nome levar aos mais longínquos anos,
Pondo à noite a sonhar os cérebros humanos
Como nau favorecida pela tempestade.

Este quarteto é de Baudelaire. Ao lado do qual, escrevi “Sou esta nau, poeta”. Lembrei-me de outro livro de Lia Luft. Mas me custa encontrá-lo agora. Tempos fervilhantes de cismas de um ensimesmado desejoso de amar! E eis que se me deparam estes poemas-pílula de Leminski.

            I

vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte

quem for louco
que volte

         II

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem


III

vazio agudo
   ando meio
cheio de tudo

IV
escurece
cresce tudo
que carece

No livro Esse ofício dos versos, encontro sublinhados por mim os seguintes trechos. Se os refiro abaixo, é porque, evidentemente, eles me significam, me capturam de um modo tão fidedigno e sucinto que eu mesmo não conseguiria fazê-lo aqui. O meu sentimento em relação à linguagem está muito bem derramado nestas linhas verbais.

“Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de exteriorizar queixas de dizer que se estava feliz ou triste, etc. Mas quando escutei aqueles versos (...) soube que a linguagem podia também ser música e paixão. E assim me foi revelado a poesia”.

“Divertiu-me uma ideia – a ideia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si”.

Então, vou-me permitir estar diante de mim. Mas, antes de me despedir, momentaneamente, dos livros, trago à cena estas palavras de Nietzsche. Poderemos nelas:

“(...) eu tenho necessidade de solidão, isto é, de curar-me, de tornar a ser o que eu fui, de ser o que eu fui, de respirar uma atmosfera livre, leve e forte...”
(Ecce Homo, p. 47)

Devo a Rubem Alves o aprender a conviver com a solidão. Este trecho de seu texto “A solidão amiga” foi determinante dessa aprendizagem, ou libertação da ideia de que a solidão é necessariamente nociva à vida.

“A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.”


Solidão é uma palavra tão mal reputada hoje em dia. Os solitários costumam ser mal vistos. Tornam-se pessoas indesejáveis, desinteressantes. Se você diz ser solitário, as pessoas, em geral, não o/a compreendem bem. Fica um silêncio a reivindicar explicações (ou não). Por vezes, o silêncio pode sinalizar um interesse em que se mude o assunto da conversa. Alguém me disse que desconfia das pessoas que têm poucos amigos, após eu ter lhe revelado não contar com muitos amigos a minha volta. Longe de negar a importância da amizade, das relações de afeto entre pessoas sem interesse sexual uma pela outra, mas a razão por que alguém não tenha tantos amigos não necessariamente tem a ver com a possibilidade de não ser uma pessoa confiável. Tem a ver, muita vez, com tipo de personalidade, com interesses ou inclinações. Por falar em solidão, amizades ou carência delas e relacionamentos, certa feita, escrevi o seguinte:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

Este é um trecho destacado de um texto, de cujo título me olvidei (poderia ter escrito “me esqueci”) e que fora escrito numa fase profundamente deprimente de minha vida. As pessoas, em geral, também tendem a rejeitar os depressivos. Mas eles têm muito a nos dizer e a nos ensinar. Geralmente, as pessoas bem-resolvidas, bem arranjadas sob sua própria pele são as que mais se armam contra os tipos depressivos. Não sou mais um depressivo. A terapia me curou; mas não deixei de ser um inconformado, um desencontrado, um deslocado, um desmedido, um desassossegado, um desterrado, um desiludido reincidente; não deixei de estar em desacordo com a existência e com o mundo. Houve, decerto, uma conciliação entre mim e a vida corpórea e mundana em detrimento da aspiração a uma vida etérea e espiritual (além-mundo), que antes conduzia meu espírito a trafegar pelos caminhos da metafísica espiritualista. Sou um materialista desconfiado dos dogmatismos, inclusive dos materialismo dogmático. Aceito as explicações sobre a vida, a matéria, o Universo, a natureza dadas pelos filósofos materialistas, pelos biólogos e pelos demais cientistas da ciência “dura”, mas ainda aceito de bom grado o Mistério, que nos abarca. Eu diria que o humano em mim se reconciliou com o meu Eu, que são muitos e ao mesmo tempo o mesmo. Este eu que sei imagético (porque assume muitas feições, muitas máscaras, sem deixar desaparecer um núcleo duro em que está assentado). Há um “eu” submerso de que não nos ocupamos no dia-a-dia; daí a importância de, pela interiorização, incomodá-lo, perquiri-lo, redescobri-lo, ainda que nos vejamos novamente envolto numa bruma imagética, à iminência de dissipar-se.
Tenho procurado, após um término de um namoro que se prolongou por um ano, ocupar-me nas reflexões sobre relacionamentos. Durante os anos em que a solidão era minha única companheira, os relacionamentos, contemplados a distância pelo espírito, eram avaliados criticamente. Da inquietude nasciam trechos como estes, que dou a saber ao leitor, abaixo:

“Por que me incomodam as relações descartáveis entre homens e mulheres em nossa sociedade “pós-moderna”? Claro está que, sabendo-se eu um ultra-romântico “anacronicamente lançado em época pós-moderna”, sabendo-se, pois, um homem que conta vinte e seis primaveras e que se vê às voltas com uma solidão anímica e escusa àqueles que estampam uma alegria gratuita, em meio a uma profusão de vozes, vivo recolhido numa sinfonia de silêncios que revelam dimensões incompreensíveis a quem acredita ser o corpo o limite da realidade humana. A solidão que me acompanha é uma solidão vital: a solidão decorrente da consciência de estar consciente de que existo. Existir é condição necessária para a solidão. (...)”

“Os embaraços de bocas, os duelos de ancas, brindados com alguns copos de cerveja, são sinais de que a satisfação e o prazer não parecem residir na inter-relação de complexos orgânicos e emocionais; ao contrário, habitam a materialidade de meros produtos de uma sociedade que aplaude a superficialidade, o utilitarismo e o consumismo. “Quem namora comportado está fora do mercado”, disse, certa vez, um Mc. E quem negará que se trata de um mercado? De um mercado das emoções, cujas mercadorias são as próprias pessoas que preferem provar das delícias do banquete, ainda que outros tantos já o tenham feito. E as emoções se diluem a cada nova bocada...”.

E ficam os restos... dos corpos consumidos num prazer imediato, urgente, extasiante e fugaz...

O silêncio é a voz mais significativa do Amor, sempre que, face a face, dois amantes leem emocionalmente um a alma do outro. Gosto de entabular longas conversas com pessoas intelectualmente mais elevadas, especialmente se entre mim e elas há um liame de emoções harmônicas, porque, durante a conversa, leio com a alma a alma delas. Essa leitura anímica é privilégio apenas dos que vivem pela alma e para a alma e não pelo corpo e para o corpo”.


“Nasci conhecendo a solidão. Ela foi a primeira presença que se achegou a mim. A vida é tão débil, que não sei que haja esforço que a justifique. Chegará o tempo em que nossa vitalidade se sustentará com remédios. Não escapamos disso. O fato é que nascemos projetados para o futuro inapreensível; pois hoje é futuro em relação a ontem. O futuro é um mistério que, desejado, nos escapa.
O futuro justifica nossa travessia. Somos transeuntes que se ignoram na azáfama do cotidiano. O centro da cidade está cheio deles – transeuntes sem rostos, sem identidade definível; uma massa homogênea num ir e vir condicionado, irrefletido. Cada um com seus pensamentos atados aos seus encargos, à urgência dos compromissos, ao tempo que se esvai cada vez mais rápido. Levamos conosco o imperativo de dever, mas ignoramos o sofrimento dos inúmeros mendigos que por lá vagam ou dormitam. Por que não nos sensibilizamos com tamanho infortúnio? Porque não há beleza naquele miserável sofrimento. Só nos comove o sofrimento em que há beleza, em que há encanto e que nos ensina. Compadecemo-nos do sofrimento alheio, quando dele podemos colher uma lição; se nada nos ensina, conservamos a indiferença; simplesmente passamos e, enquanto passamos, somos apenas transeuntes indiferentes lutando para sobreviver.
A condição de transeunte nos é estabelecida pela sociedade. Desde que nascemos, nossos pais nos educam para que nos tornemos transeuntes (os bebês costumam maravilhar os pais quando começam a dar seus primeiros passos); afinal, devemos participar da travessia da vida, que se estende da casa para o trabalho e na volta do trabalho para a casa, com algumas paradas para o lazer. Aprendemos ser a vida passageira e o tempo da modernidade líquida cada vez mais escasso; o Amor, um ideal inatingível, um delírio incurável de inveterados inconformados. E assim seguimos nas imensas avenidas dos sonhos, transitando por alguns becos de ilusões; atolando a alma em algumas calçadas de lágrimas. Não nos é possível deixar a vida ilesos.
Seguimos indiferentes uns aos outros, cumprindo encargos quase nunca questionados. E nesse mar de indiferenças recíprocas e insistentes, desejamos repousar nosso coração numa alma acolhedora; desejamos encontrar apenas uma que por instante deixou de nos ignorar, para nos admirar. O absurdo não nos incomoda, porque raramente dele suspeitamos. Existimos para sobreviver. Isso basta. Alguns de nós são transeuntes de calçadas/ outros, de sua própria alma. Alguns estão de passagem, sem tempo para conversas elevadas; outros gostam de dar passeios e admirar a insignificância de nossa pressa e travessia.”


Este último excerto, caro leitor(a), me causa, ainda hoje, espanto, dada a acuidade com que apreende este viver banal, urgente e despropositado em que muitos dentre nós estamos imersos. O cotidiano dos transeuntes é vazio de imersões de alma, é empobrecido de diálogos, de reflexões, de pensamentos, de amor.
Eu ainda não estou satisfeito com o que escrevi até aqui. Acho que não cheguei sequer à termosfera de minha alma. Mas sinto que ainda tenho algumas palavras mais a acrescentar a este discurso revisional-introspectivo. Abro um parêntese para referir um trecho do livro Passeio pela Antiguidade (2012). Este trecho ensina-nos uma lição a que meu espírito aderiu como um piche: pensar diferente modifica a vida. Com a descoberta da filosofia, meus pensamentos se robusteceram e se tornaram conflituosos com os que antes habitavam minha alma; não todos, é claro, mas o meu inverso tornou-se reverso deixando permanecer essa insistência em desapegar-me. Você não me compreendeu aqui, nem mesmo eu me compreendi, mas gostei deste trecho. Não se preocupe em aprofundar-se em mim, sob pena de afogar-se e não conseguir mais assomar à superfície da vida. Sempre necessitamos das superfícies... uns patinam sobre elas durante a vida toda... mas, mesmo os que se aventuram em imersões demoradas na existência, precisam voltar a caminhar sobre elas... Namorar o absurdo por muito tempo pode nos enlouquecer. Afinal, é preciso existir sendo um pouco transeunte:

“A chave da existência reside, pois, no pensamento. Portanto, convém regrar as próprias ideias a fim de regrar o próprio modo de vida. Com efeito, uma ação não cessa de remeter a outra. Modificar a própria vida é modificar o próprio pensamento. Pensar de modo diferente é viver de modo diferente. Resta saber como pensar (...)”.

(p. 68)


A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste espírito estóico que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).
Que nos ensina, por exemplo, um estoico como Epicteto? Que só temos domínio sobre nossa vontade, sobre nossas opiniões. E nos oferece um exercício básico: voltemos para nós mesmos e nos perguntemos se podemos exercer alguma influência sobre a ordem de um dado estado-de-coisas ou situação. Se não podemos, não nos perturbemos. A esse estado de ausência de perturbações, os antigos gregos chamavam “ataraxia”. A quietude absoluta e plena me é impossível. Por isso, nesse sentido, não me sinto um estóico. Fico, entretanto, com a coragem para o enfrentamento dos infortúnios do acaso. Negá-lo é mentir para si mesmo. E não deixei de ter medo. Epicuristas e estoicos unidos a um mesmo ideal: a permanência na serenidade. Ideal sempre me foi uma palavra entranhada na alma. Sua semântica costura o tecido de meu espírito desde que comecei a namorar os ultra-românticos. É verdade que minhas disposições ultra-românticas de outrora, sempre mal compreendidas,  estavam muito embaraçadas com meu temperamento de fé, de modo que, exorcizando este, eliminei daquelas o exagero sugerido no prefixo “ultra-“. Ainda me reconheço como um idealista, mas no sentido muito bem desenvolvido por Ingenieros, em seu O Homem medíocre. Os trechos se dispõem abaixo:


“Os idealistas românticos são exagerados porque são insaciáveis. Sonham o máximo para realizar o mínimo, compreendem que todos os ideias contêm uma partícula de utopia e perdem algo ao se realizar: em raças ou em indivíduos, nunca se integram como pensam. Em poucas coisas, o homem consegue chegar ao ideal que a imaginação assinala: sua glória consiste em avançar em sua direção, sempre inatingível.”

“[os idealistas românticos] são dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos sobre o meio social ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe a seus palpites e sonhos. Constroem seus ideais sem conceder nada à realidade, recusando-se a ser tolhidos pela experiência, agredindo-a se ela os contrariar. São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à ternura; com essa ingenuidade sem falsidade que os homens práticos ignoram. Basta um minuto para se decidirem para toda a vida. Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”.

(p. 26)

Uma característica intrigante do amor romântico é que, uma vez consumado sexualmente, ele perde o seu encanto ou arrefece seu desejo antes inflamado. O amor romântico é amor da impossibilidade de completar a sua falta. Não há páginas felizes na história do amor romântico, disso nos lembrou muito perspicazmente Hegel.  Daí que a morte, a loucura e o suicídio sejam males constitutivos desse gênero de amor. Não obstante, há uma característica do amor romântico que me atrai, a despeito de sua natureza irremediavelmente trágica: o amor romântico alimenta-se da alma e não do corpo. Insisto que a experiência sexual diminui o ardor do amor romântico.
Não me agrada referir trechos sem a partir deles produzir um sentido. Também não gosto de fraturá-los, para me concentrar em apenas um pedaço deles. Mas preciso fazê-lo. Toca-me a alma este enunciado, colhido do último exemplo citado: “Seu ideal cristaliza em firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”. A realidade já me feriu, mas o ideal ainda permanece cristalizado em minha alma. Acho que os docentes precisam ser idealistas, em alguma medida. Sem ideais, não é possível fazer educação.
Epicuro é silenciado no cenário capitalista da modernidade líquida, em que os indivíduos são, em geral, ávidos de prazeres imediatos, extasiantes e constantemente renováveis. O que dura entedia; é bom que nada dure, ou dure o tempo suficiente para que se possa buscar novas formas de prazeres (o que significa dizer que dure muito pouco). Só há prazer em movimento; eles se entendiam com o prazer em repouso. Aliás, não há prazer no repouso, a menos quando estão dormindo ou se sentem demasiado cansados após um longo curso frenético de experiências de prazer, sempre fugazes.
A despeito dos bons momentos em que vivemos juntos, não seria feliz ao lado dela, porquanto ela se demonstrava incapaz de aprofundar-se nos oceanos de minha alma. Limitava-se a denunciar as flutuações superficiais de minha alma. Todavia, meu nascimento legou-me uma profundidade de espírito com a qual terei de me haver até o fim dos meus dias. E é provável que nunca chegue a compreendê-la cabalmente.
Sigo, então, a caminhar com o espírito vagaroso... E nesse reencontro comigo mesmo, sinto que muito de mim se perdeu... Não tenho saudade dos tempos em que vivia inteiramente absorvido em mim, mergulhado neste eu que vivia namorando a ideia de compreender a totalidade do Ser. E acreditava estar ela circunscrita no domínio da fé cristã. Eu, provavelmente, estive entre os melhores cristãos leigos contemporâneos, um cristão para quem a fé e Deus eram um problema para o pensamento. E o afirmo satisfeito e convencido de que a verdadeira salvação eu encontrei na/ pela filosofia. A salvação não pressupôs meu abandono, mas a restituição do meu lugar no devir inerente ao mundo. A escrita, as palavras que lancei sobre os papéis sempre me permitiram estar no controle sobre quem fui e quem sou.
Certamente, eu não escrevi tudo; não confessei tudo, nem poderia. Certos aposentos da alma devem permanecer trancados. Toda palavra que penetra nesses imensos esconderijos onde o ‘Eu’ se refugia comete uma violação, ou mesmo uma violência. Não é fácil lidar com as palavras; é preciso saber domá-las, manejá-las, arranjá-las, de modo que os significados não entrem em conflito, não se desmintam, não se contradigam. Palavras são artefatos belicosos, embora também, se bem empregados, possam produzir estados temporários de paz e harmonia.
E o silêncio convida-me ao retorno à leitura.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

"A crença no milagre conduz ao ateísmo e não à fé." (Spinoza)



                           
                              A corrupção intelectual pela fé


Prejuízos acarretados pelo pensamento religioso:

1. Conformação do pensamento ao sistema de crenças;
2. Dificuldade em elaborar ou acompanhar raciocínios que contrariam as crenças estabelecidas no sistema doutrinário;
3. Dependência emocional;
4. Incapacidade de exercer autonomia intelectual.

A experiência que vivi recentemente parece confirmar esses quatro prejuízos. Quando me esforçava para mostrar a incongruência entre a crença de que existe o diabo e a crença de que Deus existe, meu interlocutor foi incapaz de acompanhar-me o raciocínio, muito simples, por sinal. O diálogo sucedeu mais ou menos assim:

Eu – Deus criou tudo que há, digo, o mundo, o universo. Deus é o princípio e o fim de todas as coisas. Antes do universo, havia apenas Deus. Está de acordo?

A – sim.

Eu – Se Deus criou tudo que há (o mundo e o universo), de onde surgiu o diabo?

A – o diabo é um anjo decaído do céu.

(note que não perguntei sobre a identidade do diabo, quem ele é. Perguntei sobre sua origem)

Eu – Não, isso é parte de uma narrativa que nos foi contada nas vivências de nossa fé. Quero dizer como ele passou a existir, se Deus criou tudo que há?

(meu interlocutor foi incapaz de acompanhar meu raciocínio; precisei, então, prosseguir...)

Eu – Bem, se Deus criou tudo que há, é correto concluir que Deus criou o diabo. Você nem nenhum outro cristão aceitariam essa conclusão, é claro.

(prossegui...)

Eu – Mas se o diabo existia junto a Deus e independente de Deus (por alguma razão inexplicável), por que Deus não foi capaz de destruí-lo? Se Deus é todo-poderoso e bom, não deveria ele ter dado cabo do diabo, cuja existência só se destina a fazer o mal?  - e é claro que Deus não é autor do mal e nem pode ser conivente com ele.
Meu interlocutor ficou a me olhar com certo espanto (não sei o que lhe ocorria dentro da cabeça). Não sei se minha tentativa de esclarecê-lo sobre o absurdo da manutenção de duas crenças conflitantes entre si (a de que Deus existe e a de que o diabo também existe) logrou êxito.
Fico pensando que, embora haja certo distanciamento intelectual entre mim e meu interlocutor, tanto eu quanto ele somos seres humanos capazes de usar nossa razão para operar raciocínios dedutivos simples.
Quem acredita num deus todo-poderoso (ainda que essa ideia acarrete outros sérios problemas de lógica) e, ao mesmo tempo, bom não pode, por coerência, acreditar em possessões demoníacas. Afinal, se possessões demoníacas são possíveis, então o demônio existe e Deus é incapaz de extingui-lo. Logo, Deus não é onipotente. Se é possível ao demônio apossar-se de nossos corpos, a fim de nos prejudicar, e Deus o permite, então Deus não é bom. É forçoso concluir que as crenças no diabo e em Deus são inconciliáveis. Se alguém crer que um Deus tal como é representado pela teologia cristã existe, não pode acreditar na existência do diabo.
Eu defendo que o problema maior da fé é que ela sustenta certo número de crenças que se sedimentaram na mente de uma pessoa e que se conservam ao abrigo da reflexão. Ou seja, esse conjunto de crenças se engessa e não é, em momento algum, submetido ao crivo da crítica (entenda-se “ao exame racional”). Por outro lado, também defendo que a fé se sustenta  não só na ignorância do fiel sobre a História de sua própria fé (ele desconhece, em geral, como o seu livro sagrado veio a se tornar um livro; como sua religião se constituiu através dos séculos, etc.), mas também sobre as formas de funcionamento do mundo. Não pretendo aqui demonstrar de que maneira o conhecimento histórico sobre a religião cristã contribui para a formação de uma consciência crítica. Mas eu acredito que saber coisas do tipo “como se deu a constituição do cânone do Novo Testamento”, “que os quatro evangelhos que entraram para o cânone não foram redigidos pelos supostos apóstolos de Jesus”, “que tais escritos que hoje figuram em nossa Bíblia são produtos de um trabalho incansável de copistas (que produziram cópias de cópias) e que os originais se perderam”, etc, levanta, ao menos, uma suspeita quanto à credibilidade dos registros dos atos de Jesus, e  também quanto ao valor de verdade das lições teológicas que encontraram alicerce nesses textos falsificados. Acrescente-se a isso o saber sobre a existência de milhares de cristianismos primitivos, como as seitas gnósticas, que competiam com a forma de cristianismo ortodoxo que ia se desenvolvendo e que acabou sendo a forma vitoriosa.
O religioso acredita, por exemplo, em milagres, mas ignora que, ainda que ore, uma pessoa cujas pernas foram amputadas não terá seus membros originais restituídos (digo, ele poderá orar e não verá com os próprios olhos as pernas dessa pessoa crescendo novamente com perfeição, como acontece com o rabo da lagartixa, que se regenera, depois de ser cortado). Mas ele também precisa ignorar, por exemplo, que a natureza não é perfeita. Na verdade, ele se alimenta da ilusão de que ela seja perfeita em algum sentido. No entanto, os furacões destroem cidades e matam pessoas inocentes. Um meteorologista lhe daria uma explicação adequada sobre o que são os furacões e sobre suas causas. Se ele perguntasse a um padre como explicar que existam furacões num mundo criado por um Deus bom, o máximo que poderá ouvir é “isso é um mistério”. É claro que não há mistério nenhum. Um mundo com fenômenos naturais tão nocivos e desastrosos, repleto de doenças – um mundo em que as bactérias é que predominam, quantitativamente, sobre todas as outras formas de vida mais complexas, causando-lhes sérios danos – não pode ser um mundo criado por uma divindade boa. Isso é uma evidência inconteste de que não existe deus nenhum. Olhe para o mundo! Leibniz estava errado: não se trata do melhor dos mundos possíveis. Qualquer um de nós, sem muito esforço poderia imaginar um mundo melhor. Por exemplo, um mundo onde as pessoas nascessem sem doenças congênitas seria melhor do que este mundo em que crianças (milhares delas) nascem com doenças congênitas. O sofrimento dessas criaturas inocentes é injustificável. A implicação disso é clara (ou deveria ser). Se Deus é o responsável pela encarnação de cada um de nós (penso que não seria errado assumir, em consonância com o pensamento cristão, a crença de que Deus se encarrega de infundir cada alma num corpo, destinando o conjunto à vida, quando da concepção, por um ato sexual entre um homem e uma mulher), por que razão permite que crianças nasçam com doenças congênitas. Se ele criou tudo que há, por que razão encheu este planeta de bactérias e vírus (como o da AIDS), dos quais nem as crianças pequenas estão livres?  Crenças religiosas não descrevem nenhum estado-de-coisas do mundo.
Eu acredito que, se fossem proporcionadas às pessoas que creem em Deus e participam das cerimônias de sua religião, oportunidades de estudar seriamente seus livros sagrados (a Bíblia, em nosso caso) - não com a supervisão de um sacerdote ou líder religioso, cuja intenção, provavelmente, seria moldar o leitor à leitura devocional (e não crítica), mas com o acesso à leitura de outros livros, escritos por especialistas na história do cristianismo e na Bíblia, e que contribuiriam para iluminar esse estudo -, elas poderiam, ao menos, tirar conclusões por si mesmas e decidir se deveriam permanecer fiéis à crença na existência de um Deus, que, não obstante, veriam, sem muitas dificuldades,  tratar-se de uma construção sócio-histórica e ideológica, ou se deveriam rejeitá-la de algum modo.
Por incrível que pareça, há quem acredite que a amputação de pernas possa ser uma bênção. Não há contra isso raciocínios eficazes. O fato de uma pessoa acreditar que alguma forma de sofrimento, de dano à saúde, ao bem-estar, à vida possa significar algum tipo de benefício para o paciente (no caso, um amputado) é um sinal claro do efeito da contaminação do vírus da fé. O sofrimento passa a ser um valor, ou seja, passa a ser útil. Diz-se comumente que o sofrimento acarreta alguma modificação positiva no modo de ser de uma pessoa. Eu diria que isso não é verdade. Há pessoas que, depois de muito sofrer, se tornam amarguradas, se deprimem, se revoltam; outras ainda tentam suicídio. O sofrimento jamais pode ser pensado como valor, como útil ou benéfico, em algum sentido. Todo esforço vital de uma criatura com algum grau de consciência, dotada de um sistema nervoso, será no sentido de evitar o sofrimento. A menos que você seja um masoquista, não encontrará benefício nenhum em sofrer. Mas, é claro, que não escapamos ao sofrimento em alguma medida. O sofrimento tece as malhas da existência. Todas as religiões o reconhecem como um fato incontestável. O problema é que o cristianismo, que se alicerça na crença de que Cristo sofreu e morreu para a salvação de toda a humanidade, ensina que há valor no martírio, no sofrimento. Aos olhos dos cristãos, o sofrimento que se abate sobre um indivíduo deve ser uma razão para que ele não abandone a fé ou a questione. O sofrimento, segundo essa visão indecente, deve justificá-la. A lógica, subjacente a esse ensinamento é: quanto maior seu sofrimento maior deverá ser a sua fé. Se você está sofrendo é sinal de que sua fé está frágil e precisa ser fortalecida. O sofrimento é um sinal para que você se volte para Deus, se resigne ao seu poder; demonstre a ele que você continua confiante na providência dele, apesar de tão pungente sofrimento que sobre si tenha se abatido . Na lógica com que se busca encerrar a consciência humana nos calabouços da fé, o sofrimento é um valor; o sacrifício é honroso. Ou, o que dá no mesmo, o sofrimento é um artifício pedagógico aplicado por Deus para que você "se apresente a ele e se prostre perante sua majestade". Um claro ensinamento formador de consciências submissas, dependentes, aviltadas. 
Ontem mesmo assisti, no programa Esquenta, uma moça cujos membros inferiores foram amputados. Ela é uma atleta paraolímpica, que foi medalhista e conseguiu dar uma casa para a sua mãe. Ela agradecia a Deus a sua condição, porque acreditava que, graças a essa condição, ela pôde realizar o sonho de presentear a mãe com uma casa. Ora, não lhe passou pela cabeça o fato de que era ela mesma a única responsável pelo seu sucesso. Não se deu conta de que seu talento para arremessar discos independe de sua condição como portadora de uma deficiência. Provavelmente, ela conseguiria o mesmo êxito se tivesse as duas pernas. Seu talento  se atualizou não porque ela se tornou uma cadeirante. Seu sucesso aconteceria sendo ela deficiente ou não. Bastaria treinar, se dedicar como todo atleta. Nenhum sucesso compensa as dificuldades que têm de enfrentar pessoas que vivem na condição em que ela vive. Não pode ser ele razão suficiente para preferir a condição de deficiente físico a uma vida sem as dificuldades decorrentes desta condição. Há muitas pessoas que enfrentam tais dificuldades e são desprovidas de seu talento. Possivelmente, possuam outros e o expressarão a fim de superar suas dificuldades.
O valor não está em sofrer, mas na forma como encaramos o sofrimento e nos meios de que nos valemos para suportá-lo ou superá-lo. O valor está no que faremos com os efeitos do sofrimento em nossa vida. Algumas pessoas, como a medalhista a que me referi, não se resignam a chorar o infortúnio de ter suas duas pernas amputadas. O valor está na força com que levamos adiante a vida, apesar dos sofrimentos, às vezes, incontáveis. A psicologia tem um nome para isso: resiliência.
A alienação religiosa se manifesta também nesta outra maneira de interpretar os fatos da vida. A pessoa crê que não é a única responsável pelos seus feitos e passa a atribuir a responsabilidade a um Outro que a transcende (Deus) e se resigna à crença de que esse Deus lançou mão do recurso ao infortúnio, ao sofrimento para beneficiá-la. Novamente, ao sofrimento se agrega valor. O valor humano é mascarado. A verdade é que essa pessoa, como tantos milhares de pessoas, foi capaz de, apesar das dificuldades que teve de enfrentar, superá-las. É isso que devemos valorizar e admirar. Nada disso tem a ver com um propósito divino. Acho extremamente curioso o fato de os religiosos, ao mesmo tempo em que se julgam sabedores da "verdadeira" natureza de Deus, de suas intenções e desejos, quando não encontram, no corpo de crenças em que seu discurso ganha forma e poder, as razões para justificar certas ocorrências do mundo que perturbam o que pensam saber a respeito de Deus, limitam-se a dizer coisas como “Deus age de modo escuso”, ou “não são  claros os seus propósitos”. É nessas ocasiões que a imaginação mostra sua majestade: qualquer um pode especular sobre quais são as intenções de Deus, os modos como ele se relaciona com o mundo, como ele se revela, etc. A história dos cristianismos é uma prova disso. Havia, nos séculos II e III a.C, grupos cristãos que acreditavam que esse mundo fora criado por uma divindade má ou inferior; que o Deus revelado por Cristo nada tinha a ver com a criação do mundo. Dessa forma, eles buscavam explicar por que havia tanto mal e sofrimento num mundo criado por um Deus todo-poderoso e bom (ainda vou escrever um texto tratando deste assunto). O leitor poderá tomar conhecimento dele no livro Evangelhos Perdidos, de Bart. D. Ehrman. 
Creio muito interessante saber como grupos cristãos gnósticos, a fim de sustentar sua fé, lançavam mão de argumentos fantásticos e bem afinados com os seus pressupostos de fé. Assim é que, ao invés de concluir pela inexistência de Deus (coisa inaceitável, evidentemente), recorriam a outras convicções, como a que mencionei. Certos grupos gnósticos assumiram a crença de que este mundo não fora criado pelo Deus revelado por Cristo, mas por uma divindade inferior ou má. Vejamos este trecho em que Ehrman nos ensina sobre o que os gnósticos pensavam sobre nossa natureza e sobre nossa existência neste mundo:

“(...) não pertencemos a este mundo terrível. Viemos de outro lugar, o reino de Deus. Fomos capturados aqui, aprisionados e quando aprendemos quem realmente somos e como escapar, poderemos então retornar para nosso lar celestial”.
(p. 173)



Pelo menos, os gnósticos reconheciam quão trágica é a vida neste mundo, mas não explicavam (até onde eu sei) por que o Deus verdadeiro, que se encarnou num homem a quem tomou para filho, permitiu que uma divindade ignorante e inferior criasse o mundo e aprisionasse nele os seres humanos (e os outros animais também é claro). Penso que não é custoso concluir que, se Deus quisesse realmente fazer-se conhecido da humanidade, se apresentaria de modo inequívoco, pondo a nu suas intenções, esclarecendo a todos a sua magnitude,  impedindo, assim, que muitas visões sobre sua natureza, sobre seus atos e ensinamentos se proliferassem e tomassem formas até conflitantes, ao longo dos séculos.
Se há beleza no trágico, isso se revela na capacidade de os seres humanos trabalharem no sentido de produzir os recursos que os ajudam a superar seus sofrimentos. Evoluímos para sobreviver mais e melhor a uma existência absurda e muitas vezes hostil. Buscamos sentido num Universo sem sentido. Eis a beleza!




terça-feira, 2 de outubro de 2012

"Deus é tão-somente objeto de discurso"




           
                        Desembaraçando a lógica da fé      

Já tive a oportunidade de comentar este diálogo quando deparei com ele pela primeira vez no facebook. Mas eu não pude dispensar sobre ele um exame detido. Pretendo fazê-lo agora. Uma leitura atenta mostra-nos uma série de inconsistências lógico-semânticas e argumentativas.
Assumo o pressuposto de que todo ato de linguagem é, essencialmente, argumentativo. E este diálogo de autoria anônima, que circula naquela rede social, foi produzido com o propósito de fazer apologia à fé cristã. O seu autor, recorrendo a certas sofisticações argumentativas (como o recurso a analogias e ilustrações), tentará mostrar que Deus existe pelo simples fato de o cristão poder senti-lo. O autor tentará nos convencer de que se pode provar a existência de Deus pelo simples fato de o sentirmos.
Comecemos, pois, a desembaraçar os liames argumentativos, a fim de que notemos as fragilidades do raciocínio.
O ateu é categórico e inicia asseverando a inexistência de Deus (Eu digo [que Deus não existe]), ao que o cristão responde asseverando o contrário (Eu digo [que Deus existe]). Produz-se, então, o conflito.. É interessante notar que a participação do ateu é, no entanto, discreta; ele foi reduzido a mero coadjuvante. A ele é atribuído uma conclusão logicamente inaceitável (“Então, Deus não existe”), tendo em conta a resposta do cristão, após ser instando a provar a existência de Deus. Nas duas últimas contribuições do ateu, ele se limita apenas a responder: à sugestão de uma imagem, através da qual ele é levado a imaginar uma situação comum da experiência humana (a de saborear uma laranja), ele responde “sim” (ou seja, “compreendo, prossiga...”); ao que faria caso o cristão negasse uma evidência, ou seja, a de que a laranja está doce (nesse caso, o ateu diz que sugeriria ao cristão que experimentasse a laranja para certificar-se de que ela está doce).
Vê-se que o ateu não atua argumentativamente. Apenas o cristão ocupa a posição de assenhorear a argumentação. Prossigamos...
O ateu solicita a prova. Duas palavrinhas são, particularmente, importantes para que compreendamos como a tentativa de sobrepujar a descrença do ateu é falha: “prova” e “experimentar” (que evoca sua derivada “experiência”). Vamos refletir um pouco sobre o significado científico-filosófico destas três palavras “prova”, “experimentar” e “experiência”.
O cristão nega que possa provar a existência de Deus. Mas o que significa provar, nesse caso? Ou melhor, o que é prova, num sentido epistemológico? Vamos distinguir dois domínios semânticos nos quais podemos situar o conceito de ‘prova’. O primeiro domínio é o lógico-argumentativo. Aí a prova é a demonstração da validade de uma proposição. Ela demanda o desenvolvimento de uma argumentação que nos leve a reconhecer ou aceitar a verdade de uma proposição. O segundo domínio é o experimental. Aí prova-se quando uma hipótese se demonstra verdadeira pela observação dos fatos. Nesse caso, testamos uma hipótese fazendo experimentos; se os resultados confirmarem a verdade da hipótese, diremos que dispomos de uma prova. Se alguém duvida da verdade da proposição “A água ferve quando atinge 100 graus de temperatura”, pode-se provar medindo-se a temperatura da água (estou ignorando variáveis como estar acima do nível do mar). Creio que tenha ficado claro que, no segundo sentido, prova se prende ao domínio da experiência e da observação (empirismo). Para provar a validade de minhas crenças sobre estados-de-coisas do mundo, faço experimentos, testo hipóteses, vou até a realidade para, na relação com ela, buscar as respostas, as provas.
Abro um parêntese para falar, com brevidade, de outro conceito importante: o da evidência. Temos muitas crenças, em nossa vida cotidiana, que não se apóiam em evidências, ou se sustentam em evidências insuficientes. Uma evidência é a revelação da realidade. A verdade resulta da evidência, ou seja, do desencultamento da realidade. A evidência é o critério para a verdade. Uma coisa será verdadeira se tivermos acesso a evidências que lhes garanta essa qualidade. Enquanto as evidências nos levam à certeza ou à verdade, os indícios só nos levam a inferir uma certeza relativa, porque exprimem apenas possibilidade ou probabilidade.
Que dizer da experiência? O que significa dizer que alguém tem experiência de alguma coisa? Significa que ela tem um conhecimento espontâneo, vivido, em virtude de suas inúmeras relações com o mundo e com os outros. Ter experiência envolve um relacionamento de um sujeito cognoscente com um mundo e com outros sujeitos. No domínio da ciência, a experiência é uma forma de ação, através da qual se observa ou se experimenta a fim de, ou elaborar hipóteses, ou de corroborá-las. Partindo de determinadas condições, busca-se, na experiência, conhecer a natureza de um fenômeno. O fenômeno é aquilo que se mostra, que se dá aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar). Assim, por exemplo, se pretendemos demonstrar a verdade da proposição “o álcool é um líquido inflamável”, basta termos um pedaço de papel e uma caixa de fósforos. Ateando fogo num papel, embebido em álcool, veremos o papel ser consumido em pouco tempo. É claro que é desejável repetir a experiência com outros objetos, para, a partir daí, raciocinando por indução, chegar à certeza. Ou podemos estudar os componentes químicos do álcool, analisando-os, na sua relação com o ambiente externo (p. ex. temperatura ambiente), para verificar seu potencial inflamável. Sabe-se que o álcool compõe-se de hidrogênio, que reage com o oxigênio do ar, formando água. A união dos dois elementos químicos é que alimenta as chamas. A facilidade com que ele faz um objeto pegar fogo se explica pela facilidade com que ele evapora. A evaporação torna a união com o ar mais efetiva.

Voltemos ao diálogo.
Note-se que o ateu tem uma experiência sensorial da doçura da laranja. Ele sabe que a laranja está doce, porque ele a experimenta, a degusta e pode, pelo paladar, sentir sua doçura. A afirmação do cristão de que ela não está doce é facilmente falsificável. Basta que ele ponha à prova esta afirmação, verificando, por si mesmo, a doçura da laranja. O importante é reter que o saber, nesse caso, provém da experiência. Assim, tanto um quanto outro podem saber que a laranja está doce, experimentando-a.
O último turno da fala do cristão é problemático, por várias razões. Deve-se notar, em princípio, o uso do operador argumentativo “então”. Ele não só fecha o raciocínio anterior, como também conduz o interlocutor a assentir na argumentação conclusiva cujo desenvolvimento se inicia. O primeiro grande problema se verifica na construção da frase comparativa, que reproduzo abaixo:

“Assim como você sabe que a laranja é doce, porque [sic.] está sentindo que ela é doce, assim eu sei que Deus existe, pois eu o sinto”.

Creio não ser difícil a um leitor experiente perceber que a proposição “Deus existe” que integra a oração completiva do verbo “saber” (sei que Deus existe) não encerra como pressuposto um fato. Verbos de valor epistêmico como o verbo “saber” tem a função permitir ao falante a pressuposição de que a oração completiva é factual. Em outras palavras, se eu digo “Eu sei que você não foi à escola”, assumo como fato pressuposto o estado-de-coisas “você não foi à escola”. Ora, a proposição “Deus existe” não pode ser provada, não pode ser tomada como fato. Daí a impropriedade no uso de verbo “saber” para exprimir conhecimento sobre a existência de um ser imaterial como Deus. Por outro lado, é, logicamente, aceitável usar o verbo “saber” para expressar o conhecimento sobre a doçura da laranja, que é um ser do mundo material, que se nos impõe à experiência sensível. Se eu digo “Eu sei que essa laranja é doce”, assumo como fato pressuposto o conteúdo “a laranja é doce”.
Notemos como se justifica o conhecimento num e noutro caso. No caso do ateu, ele sabe que a laranja está doce, “porque está sentindo” (está tendo uma experiência sensível da qualidade ‘doçura’). Nesse caso, justifica-se o conhecimento pela experiência sensível (empirismo). Tal não ocorre, quando se justifica do mesmo modo a suposta certeza da existência de Deus, já que não é da mesma natureza a experiência de sentir a doçura da laranja e “sentir” (seja lá qual for o significado do verbo, nesse caso) a Deus. Passamos do plano da experiência sensível para um tipo de experiência psicológica extraordinária, da qual nos fala, com propriedade, Sam Harris (2009). O fato de admitirmos ser ela incomum, em algum sentido, “elevada” não implica haver um objeto transcendente envolvido nela. Em A morte da fé (2009), o filósofo e neurocientista, Sam Harris, dedica um capítulo para tratar da consciência. Lá, ele observa:

“Embora vivamos em geral dentro dos limites impostos pelo nosso uso normal da atenção – nós acordamos, trabalhamos, comemos, assistimos televisão, conversamos com os outros, dormimos, sonhamos – a maioria de nós sabe, mesmo que vagamente, que é possível ter experiências extraordinárias”.
(p. 237)

Mais adiante, reconhece ainda o autor:

“Nenhuma palavra capta a sensatez e a profundidade da possibilidade que devemos considerar agora: que existe uma forma de bem-estar que supera todas as outras que, na verdade, transcende os caprichos da própria experiência”.
(p. 239)

Harris lança mão dos termos “espiritualidade” ou “misticismo” indiferenciadamente, a fim de designar essa forma de experiências extraordinárias da consciência. Se formos buscar compreender a vasta significação do conceito de misticismo ou experiência mística, encontraremos, nessa busca, a ideia de que o místico é aquele que tem uma experiência de pertencimento a um Todo (o Universo, Deus, o Espírito universal, o Vazio absoluto, ou qualquer outra). Não raro, se ouve um místico, dizer que, num instante de êxtase, teve uma experiência de esvaziamento do eu, de desprendimento dos sentidos. Ele se sente como se vivesse fora da temporalidade, para além das quatro dimensões que caracterizam a existência mundana.
Que o cristão de nosso diálogo revele, sinceramente, poder ter uma experimentação de consciência incomum e extasiante e que devemos legitimar essa experiência como uma das inúmeras possibilidades de experiências humanas não redunda que devemos aceitar como incontestável a existência de Deus ou mesmo a possibilidade de experienciar essa existência, como quer o cristão.
É notável como o discurso religioso está impregnado de figuras de linguagem, entre as quais alegorias e metáforas. Notemos o uso que se faz da palavra “presença”, no sintagma “a presença de Deus”. Toda presença envolve uma revelação, envolve a possibilidade de que algo seja encontrado em algum lugar. A presença implica um estar aqui e agora. Os mortos não estão mais presentes entre nós, também a pessoa distante não está presente onde eu me encontro. Se fôssemos tentar analisar os semas da palavra “presença” (semas são os mínimos componentes de significado de uma palavra), certamente não poderíamos deixar de incluir na lista traços semânticos como ‘existência’, ‘concretude’, ‘tempo atual’, ‘animado’. No núcleo de seu sentido, há a referência a seres concretos e animados (pessoas ou animais), imediatamente acessíveis num aqui e agora e, portanto, existentes. Claro é que podemos estender seu uso a fim de que sua semântica abrigue noções abstratas como a de “amor”. Podemos dizer “Sinto a presença do amor nesta casa”.  Concretizamos o amor, conferimos-lhe a qualidade de um ser existente entre outros. Sabemos, contudo, o que queremos dizer com essa frase. Dizemos algo como “as pessoas que vivem nesta casa se amam umas as outras, vivem em harmonia”.
Se é possível falar na presença do amor, da felicidade, da tristeza ou de qualquer que seja a noção abstrata, qual é o problema ao enunciar “a presença de Deus”? O problema é que, ao contrário do que sucede nos casos anteriores, a presença de Deus é tida como uma presença verdadeira de um ser existente no aqui e agora do mundo. Interessante é que Deus “existe” no mundo, embora, ao mesmo tempo, seja transcendente ao mundo (ou seja, é concebido como um ser superior, supranatural e exterior ao próprio universo, cuja existência é inteiramente dependente desse Ser). Mas não basta que se assuma como verdadeira a presença desse ser, é preciso dogmatizá-la e defendê-la como uma verdade incontestável. É preciso cuidar-se detentor de uma “verdade” que deve estar a salvo das suspeitas dos céticos e contestadores.  O problema, a meu ver, é, na verdade, transformar as metáforas em verdades que devem ser impostas ad nauseam.
 Se eu falo na presença de Deus, falo na presença de um ser atravessado pela temporalidade cujo eixo é o presente. Mas, ao mesmo tempo, diz-se que Deus é intemporal, é eterno, vive para além de toda temporalidade. Deus é um ser que existiria fora do tempo, mas, de forma misteriosa, ele consegue se fazer presente, ou seja, existir no tempo. Sempre que nos damos ao trabalho de pensar sobre a linguagem construída para se falar de Deus, somos levados a perceber a construção linguística de um ser que é fantástico (no sentido de “quimérico”, próprio da imaginação). E percebemos mais: percebemos que as formas como se constroem os discursos sobre Deus, as formas como se elaboram os pensamentos sobre Deus entram em conflito lógico-semântico. Como vimos, se Deus é um ser intemporal, ou seja, que escapa ao tempo, que existiria fora do tempo, que é eterno, como poderia fazer-se presente para a existência humana que é, por definição, atravessada pela temporalidade? Não conhecemos outra forma de existir senão no tempo e no espaço. Kant ensinava que tempo e espaço só existem dentro de nós, como condições do conhecimento, como formas puras de nossa sensibilidade (o conceito de sensibilidade em Kant diz respeito à capacidade humana de formarmos representações de objetos, em virtude dos modos como eles nos afetam). Como nós, seres temporais, podemos experienciar um Ser intemporal?
Finalmente, quero acrescentar alguns comentários sobre outro trecho do diálogo, antes de concluir. No último turno de fala do cristão, lê-se:

“... o único modo de você acreditar é se você experimentar e por si mesmo sentir a presença de Deus”.

Já falei do problema envolvido no uso do verbo sentir. Chamo agora a atenção dos meus leitores para o uso do adjetivo “único”.  Quando usamos adjetivos como “único” deixamos ao interlocutor a possibilidade de pressuposição de outro conteúdo, qual seja, ‘não há outro modo de acreditar’.  Veja-se outro exemplo: “A única maneira de você ser feliz é cansando-se com ela”. Admite-se que não há outra maneira de a pessoa ser feliz senão casando-se com a pretendente. Claro está que, para o cristão, não há outro caminho que leve à crença senão o da experiência da presença de Deus. Podemos ou devemos discordar dele? Decerto. Seja lá o que se entende por “experiência de Deus”, creio ser ela, por si só, incapaz de angariar as pessoas para a fé ou a crença em Deus. Se assim pensássemos, seríamos forçados a ignorar a importância de todo o trabalho laborioso de doutrinação empreendido por milênios pela Igreja cristã. Uma pessoa crê em Deus – num Deus do mundo ocidental, que tem raízes na cultura judaico-cristã, num Deus moldado no imaginário hebraico-cristão – porque ela foi exposta a experiências de doutrinação, de catequização que começou, de modo informal, no seio de sua família, formalizando-se em suas experiências como paroquiana na Igreja. É nelas que a consciência religiosa se molda, se engessa. É somente depois de se submeter a longos períodos de ensinamentos da doutrina da Igreja, apoiados, em grande parte, na Bíblia (digo em grande parte, porque, no caso da Igreja Católica, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade não tem respaldo nos ensinamentos dos evangelistas, tendo sido uma criação de Atanásio,  um jovem diácono da igreja de Alexandria, à época, confirmada pelo Concílio de Nicéia em 325 d.C.) que uma pessoa poderá dizer ser possível experimentar a Deus. O  poder experimentar  a Deus é consequência da incessante martelação doutrinária a que se submete, àquela altura, o neófito. Os que se recusam a submeter sua capacidade de autonomia intelectual, sua liberdade de exercício do pensamento crítico às demandas da fé dificilmente creem poder experimentar a presença de Deus, já que colocam a possibilidade da presença de tal ser sob o crivo da razão. Os que se recusam tenderiam a lançar sobre essa suposta presença as luzes intensas dos holofotes racionais, de modo que da presença não restaria senão a consciência da força da imaginação; a presença se dispersaria, deixando para trás apenas a presença do mundo, que, mesmo não sendo o bastante para nos acalentar, é a única presença com que nós temos de nos haver.
Se o leitor chegou até aqui, deve ter-se dado conta de que é necessário esforçar-se por não aceitar de antemão como verdades as manifestações discursivas, não importa a que domínio pertençam. No domínio do discurso religioso, em que prevalece o autoritarismo e o dogmatismo, é norma que as “verdades” sejam impostas, sejam disseminadas, sem que seja permitido contestá-las. Expressões do tipo “Deus é a luz do mundo” são esteticamente apreciáveis, se fossem parte de um gênero literário. O problema é que se pretende que essa proposição encerre uma verdade, um fato, sobre o qual não se pode sequer lançar uma sombra de dúvida.
No início deste texto, sugeri que a conclusão atribuída ao ateu – “Então, Deus não existe” – como resposta à impossibilidade de o cristão provar a existência de Deus era imprópria, porquanto, logicamente, do fato de eu não conseguir provar que algo existe não posso concluir pela sua inexistência. Do fato de que nunca se tenha registrado qualquer sinal de vida inteligente fora da Terra (por exemplo, de seres conscientes e complexos como nós) não implica a impossibilidade de esses seres existirem, já que vasto é o Universo e vasta a nossa ignorância dele (a nossa via láctea tem aproximadamente 300 bilhões de estrelas, a metade, provavelmente, inclui planetas). É certo, porém, que cientistas como Marcelo Gleiser, embora admitam a possibilidade da existência de vida inteligente fora da Terra, acreditam que é muito improvável que tenhamos algum contato com ela, dada a vastidão do universo. (o leitor pode assistir a este vídeo em que Marcelo Gleiser nos fala sobre a possibilidade de existir vida extraterrestre (http://youtu.be/dQj0UtI0M5s).
Está claro que, quando se trata da impossibilidade de provar a existência de Deus ou de qualquer forma de divindade, não devemos concluir da ausência de prova a inexistência. Isso é um erro lógico. Mas podemos falar em probabilidade, já que a experiência que podemos ter das divindades são mediadas pela linguagem. Só temos contato com representações linguísticas de Deus. Deus não fala, não se mostra; são homens que falam a respeito de Deus, que definem Deus, que supõem que, ao falar dele e defini-lo, tornam-no existente. Portanto, nossa experiência de Deus é mera experiência com as palavras a respeito de Deus, com as representações discursivas sobre Deus, que se torna, assim, objeto de discurso. Feuerbach tinha razão ao nos ensinar que a consciência de Deus é autoconsciência humana. Ao tomar consciência de Deus, o homem toma consciência de sua própria essência, ou seja, de sua própria consciência. A linguagem de Deus é a linguagem do homem.
Se admitirmos que tudo que sabemos de Deus nos chega através do que disseram, dizem, escreveram e escrevem seres humanos que viveram e vivem em determinada comunidade cultural, numa determinada época, num dado contexto sócio-histórico, político e ideológico; se, enfim, admitirmos que é pelas boca e mãos humanas que nos é acessível o que sabemos sobre Deus, podemos pôr em confronto tais representações de Deus com as ocorrências do mundo, com o modo como o mundo funciona, com os saberes que temos a respeito do mundo, para, daí, nos assegurar da improbabilidade da existência desse ser. É esse o desafio intelectual a que se esquivam as pessoas religiosas em geral. Elas se negam a pôr em confronto aquilo que sabem a respeito de Deus pelos anos em que se submeteram a alguma forma de doutrinação com aquilo que sabem a respeito de fatos sobre o mundo. O medo de pôr suas crenças à prova é que explica   por que muitas pessoas podem assistir pela televisão a uma cidade devastada por um furacão, com milhares de desabrigados e mortos e, embora assombradas com a tragédia, possam, à noite, orar a Deus pelas vítimas ou para agradecer por mais um dia de vida, pela saúde, ou pelo o que quer que seja. Na oração, elas experimentam a onipresença de seu ego e a necessidade de mascarar sua indiferença ao sofrimento em escala mundial, um sofrimento cuja verdade salta aos seus olhos, desde que acordam e as acompanha até a hora de dormir. Esse sofrimento, que se manifesta de modos vários, neste planeta de (sem) Deus, não é sequer cogitado como evidência para pôr a nu a mentira da qual sua crença é um reflexo. Elas não podem, como seres humanos, evitar a inconsistência entre a observação das ocorrências do sofrimento no mundo e sua crença na existência de um Ser superior, providente, amoroso e bom. Sua razão as ameaça no silêncio de sua negação a abrir os olhos do espírito e, como forma de defesa, elas preferem evitar estar a sós com seus pensamentos. Se confrontada a suposta presença de Deus com a verdadeira presença do sofrimento no mundo e a hostilidade da natureza à vida dos seres que dela provieram e nela vivem, pouco ou nada sobrará daquela presença. Onde o silêncio da reflexão predomina, a presença de Deus vai fazendo seu trabalho, confinando bilhões de seres humanos num sentimento de dependência infantil insuperável.