Reencontrando-me
“No
cuidado de si, o conhecimento de si torna-se prática, arte de vida.”
(novas
vitaminas filosóficas)
Não sei ainda o que farei com estes livros que empilhei
sobre esta escrivaninha diante da qual me sento. Eu os apanhei em meu armário,
os livrei da clausura e do esquecimento para reanimar suas palavras em minha
alma, porque ela esteve por um longo período de tempo de minha vida concentrada
em suas páginas. Deverei eu citá-los aqui? São muitos. Saiba o leitor que este
texto não está sendo produzido segundo um plano espiritual claro e metódico. Os
caminhos que percorrerei com minhas palavras se entrecruzarão e, neste momento,
me parecem difusos. Há mais descaminhos com depressões do que estradas
aplanadas e bem demarcadas no itinerário de meus pensamentos. Só uma garantia
há: serei meticuloso nas escolhas verbais que farei; cuidarei para que a
linguagem não me traia as disposições favoráveis do espírito. Ponho-me nua a
alma. Vou revasculhar-me. Esse neologismo é provisório; mantenho-o por falta de
uma expressão melhor; tão-logo, contudo, se me afigure ao espírito uma palavra
mais adequada à expressão do meu intento dela me servirei. Eu deixei marcas
gráficas nestes livros que dispus diante de mim. É a elas que me aterei. Vou
citá-los então, para satisfazer a curiosidade do leitor. Sonetos de Florbela Espanca, As
Flores na janela sem ninguém..., Ecce Homo, Esse ofício do verso, Melhores
Poemas de Paulo Leminski, Poemas de Fagundes Varela, Eu e Outras Poesias de Augusto
dos Anjos, Melhores Poemas de Fernando Pessoa, A rosa do povo, de Drummond,
Poesias de Olavo Bilac, Poesia Erótica, Sonetos de Luís de Camões, As Flores do
Mal, de Charles Baudelaire, Nova Antologia Poética, de Vinícius de Moraes, O
silêncio dos amantes, de Lya Luft e Palomar, de Ítalo Calvino. A lista não
está completa... Sinto que falta um que me foi e ainda me é caro...mas a
memória costuma trair-me.
É
difícil perscrutar-se. Tenho medo. Já me vi, num passado não tão longínquo para
a alma, embaraçado em tramas verbais aterrorizantes e depressivas. A filosofia
me salvou; e o ateu que jazia em mim sufocado libertou-me da escravidão de uma
fé que não cessava de confrontar-se com os questionamentos. E fé não lida bem
com questionamentos. Fé e questionamentos não se avizinham. Ou ela fica e eles
saem, ou eles nos ocupam e a expulsam. Eles a expulsaram!
Nas
páginas de Espanca, encontro esta estrofe, ao lado da qual escrevi “verdade!”.
Mas não te vejo, Amor, essa indiferença
Que viver neste mundo sem amor
É pior que ser cego de nascença.
Este
terceto faz parte do poema intitulado de “Frieza”. Fui apaixonado por Espanca
durante um bom tempo, um tempo tão afeiçoado às ilusões primaveris, que dele me
recordo como quem se recorda de um sonho erótico, do qual acorda com ereção,
não raro, extasiado com uma ejaculação!
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa
A pedra do caminho, rude e forte!
Onde há
desejo há falta. Aprendi com Freud, com Sócrates, com Platão... Só desejamos
aquilo que nos falta. O desejo existe na falta, na carência, na ausência. E eu
desejava e pensava demais. Pensar demais dói. Doía mais do que agora. Por isso
o desejar ser como uma pedra, que nada pensa, que nada sente, que nada deseja. Ser
um em-si e bastar-se.
Abro o
livro de Lia Luft. Encontro estes versos precedendo a Apresentação.
Sem palavras
A vida inteira busquei
explicações e deciframentos:
encontrei silêncio e segredo,
às vezes conforto de um ombro
outras vezes
dor.
No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido
e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombra:
assombro.
Quanto
mais nos aproximamos do mundo para auscultá-lo com o pensamento mais silencioso
ele fica. E naquele tempo buscava, como agora, compreender o mundo sem, contudo,
viver amalgamado com ele. Confundir-me, jamais! Distinguir-me sempre!
Estes versos te dou e se a celebridade
O meu nome levar aos mais longínquos anos,
Pondo à noite a sonhar os cérebros humanos
Como nau favorecida pela tempestade.
Este
quarteto é de Baudelaire. Ao lado do qual, escrevi “Sou esta nau, poeta”. Lembrei-me de outro livro de Lia Luft. Mas me
custa encontrá-lo agora. Tempos
fervilhantes de cismas de um ensimesmado desejoso de amar! E eis que se me
deparam estes poemas-pílula de Leminski.
I
vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte
quem for louco
que volte
II
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
III
vazio agudo
ando meio
cheio de tudo
IV
escurece
cresce tudo
que carece
No
livro Esse ofício dos versos, encontro
sublinhados por mim os seguintes trechos. Se os refiro abaixo, é porque,
evidentemente, eles me significam, me capturam de um modo tão fidedigno e
sucinto que eu mesmo não conseguiria fazê-lo aqui. O meu sentimento em relação
à linguagem está muito bem derramado nestas linhas verbais.
“Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de
exteriorizar queixas de dizer que se estava feliz ou triste, etc. Mas quando
escutei aqueles versos (...) soube que a linguagem podia também ser música e
paixão. E assim me foi revelado a poesia”.
“Divertiu-me uma ideia – a ideia de que, embora a vida de uma pessoa
seja composta de milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses
muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem
é, quando se vê diante de si”.
Então,
vou-me permitir estar diante de mim. Mas, antes de me despedir,
momentaneamente, dos livros, trago à cena estas palavras de Nietzsche.
Poderemos nelas:
“(...) eu tenho necessidade de solidão, isto é, de curar-me, de tornar a
ser o que eu fui, de ser o que eu fui, de respirar uma atmosfera livre, leve e
forte...”
(Ecce Homo, p. 47)
Devo a
Rubem Alves o aprender a conviver com a solidão. Este trecho de seu texto “A solidão amiga” foi determinante dessa
aprendizagem, ou libertação da ideia de que a solidão é necessariamente nociva
à vida.
“A sua infelicidade com a solidão: não se
deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa
vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos...
Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão
porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a
dor da comparação. Ela não é verdadeira.”
Solidão
é uma palavra tão mal reputada hoje em dia. Os solitários costumam ser mal
vistos. Tornam-se pessoas indesejáveis, desinteressantes. Se você diz ser
solitário, as pessoas, em geral, não o/a compreendem bem. Fica um silêncio a
reivindicar explicações (ou não). Por vezes, o silêncio pode sinalizar um
interesse em que se mude o assunto da conversa. Alguém me disse que desconfia das
pessoas que têm poucos amigos, após eu ter lhe revelado não contar com muitos
amigos a minha volta. Longe de negar a importância da amizade, das relações de
afeto entre pessoas sem interesse sexual uma pela outra, mas a razão por que
alguém não tenha tantos amigos não necessariamente tem a ver com a
possibilidade de não ser uma pessoa confiável. Tem a ver, muita vez, com tipo
de personalidade, com interesses ou inclinações. Por falar em solidão, amizades
ou carência delas e relacionamentos, certa feita, escrevi o seguinte:
“Existir
é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que
uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem
esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde
ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida,
deu-se conta do absurdo da existência”.
Este é
um trecho destacado de um texto, de cujo título me olvidei (poderia ter escrito
“me esqueci”) e que fora escrito numa fase profundamente deprimente de minha
vida. As pessoas, em geral, também tendem a rejeitar os depressivos. Mas eles
têm muito a nos dizer e a nos ensinar. Geralmente, as pessoas bem-resolvidas,
bem arranjadas sob sua própria pele são as que mais se armam contra os tipos
depressivos. Não sou mais um depressivo. A terapia me curou; mas não deixei de
ser um inconformado, um desencontrado, um deslocado, um desmedido, um
desassossegado, um desterrado, um desiludido reincidente; não deixei de estar
em desacordo com a existência e com o mundo. Houve, decerto, uma conciliação
entre mim e a vida corpórea e mundana em detrimento da aspiração a uma vida
etérea e espiritual (além-mundo), que antes conduzia meu espírito a trafegar
pelos caminhos da metafísica espiritualista. Sou um materialista desconfiado
dos dogmatismos, inclusive dos materialismo dogmático. Aceito as explicações
sobre a vida, a matéria, o Universo, a natureza dadas pelos filósofos
materialistas, pelos biólogos e pelos demais cientistas da ciência “dura”, mas
ainda aceito de bom grado o Mistério, que nos abarca. Eu diria que o humano em
mim se reconciliou com o meu Eu, que são muitos e ao mesmo tempo o mesmo. Este
eu que sei imagético (porque assume muitas feições, muitas máscaras, sem deixar
desaparecer um núcleo duro em que está assentado). Há um “eu” submerso de que
não nos ocupamos no dia-a-dia; daí a importância de, pela interiorização,
incomodá-lo, perquiri-lo, redescobri-lo, ainda que nos vejamos novamente
envolto numa bruma imagética, à iminência de dissipar-se.
Tenho
procurado, após um término de um namoro que se prolongou por um ano, ocupar-me
nas reflexões sobre relacionamentos. Durante os anos em que a solidão era minha
única companheira, os relacionamentos, contemplados a distância pelo espírito, eram
avaliados criticamente. Da inquietude nasciam trechos como estes, que dou a
saber ao leitor, abaixo:
“Por que me incomodam as relações descartáveis entre homens e mulheres
em nossa sociedade “pós-moderna”? Claro está que, sabendo-se eu um ultra-romântico
“anacronicamente lançado em época pós-moderna”, sabendo-se, pois, um homem que
conta vinte e seis primaveras e que se vê às voltas com uma solidão anímica e
escusa àqueles que estampam uma alegria gratuita, em meio a uma profusão de
vozes, vivo recolhido numa sinfonia de silêncios que revelam dimensões
incompreensíveis a quem acredita ser o corpo o limite da realidade humana. A
solidão que me acompanha é uma solidão vital: a solidão decorrente da
consciência de estar consciente de que existo. Existir é condição necessária
para a solidão. (...)”
“Os embaraços de bocas, os duelos de ancas, brindados com alguns copos
de cerveja, são sinais de que a satisfação e o prazer não parecem residir na
inter-relação de complexos orgânicos e emocionais; ao contrário, habitam a
materialidade de meros produtos de uma sociedade que aplaude a
superficialidade, o utilitarismo e o consumismo. “Quem namora comportado está
fora do mercado”, disse, certa vez, um Mc. E quem negará que se trata de um
mercado? De um mercado das emoções, cujas mercadorias são as próprias pessoas
que preferem provar das delícias do banquete, ainda que outros tantos já o
tenham feito. E as emoções se diluem a cada nova bocada...”.
E ficam os restos... dos corpos
consumidos num prazer imediato, urgente, extasiante e fugaz...
“O
silêncio é a voz mais significativa do Amor, sempre que, face a face, dois
amantes leem emocionalmente um a alma do outro. Gosto de entabular longas
conversas com pessoas intelectualmente mais elevadas, especialmente se entre
mim e elas há um liame de emoções harmônicas, porque, durante a conversa, leio
com a alma a alma delas. Essa leitura anímica é privilégio apenas dos que vivem
pela alma e para a alma e não pelo corpo e para o corpo”.
“Nasci conhecendo a solidão. Ela foi a primeira presença que se achegou
a mim. A vida é tão débil, que não sei que haja esforço que a justifique.
Chegará o tempo em que nossa vitalidade se sustentará com remédios. Não
escapamos disso. O fato é que nascemos projetados para o futuro inapreensível;
pois hoje é futuro em relação a ontem. O futuro é um mistério que, desejado,
nos escapa.
O futuro justifica nossa travessia. Somos transeuntes que se ignoram na
azáfama do cotidiano. O centro da cidade está cheio deles – transeuntes sem
rostos, sem identidade definível; uma massa homogênea num ir e vir
condicionado, irrefletido. Cada um com seus pensamentos atados aos seus
encargos, à urgência dos compromissos, ao tempo que se esvai cada vez mais
rápido. Levamos conosco o imperativo de dever, mas ignoramos o sofrimento dos
inúmeros mendigos que por lá vagam ou dormitam. Por que não nos sensibilizamos
com tamanho infortúnio? Porque não há beleza naquele miserável sofrimento. Só
nos comove o sofrimento em que há beleza, em que há encanto e que nos ensina.
Compadecemo-nos do sofrimento alheio, quando dele podemos colher uma lição; se
nada nos ensina, conservamos a indiferença; simplesmente passamos e, enquanto
passamos, somos apenas transeuntes indiferentes lutando para sobreviver.
A condição de transeunte nos é estabelecida pela sociedade. Desde que
nascemos, nossos pais nos educam para que nos tornemos transeuntes (os bebês
costumam maravilhar os pais quando começam a dar seus primeiros passos); afinal,
devemos participar da travessia da vida, que se estende da casa para o trabalho
e na volta do trabalho para a casa, com algumas paradas para o lazer.
Aprendemos ser a vida passageira e o tempo da modernidade líquida cada vez mais
escasso; o Amor, um ideal inatingível, um delírio incurável de inveterados inconformados.
E assim seguimos nas imensas avenidas dos sonhos, transitando por alguns becos
de ilusões; atolando a alma em algumas calçadas de lágrimas. Não nos é possível
deixar a vida ilesos.
Seguimos indiferentes uns aos outros, cumprindo encargos quase nunca
questionados. E nesse mar de indiferenças recíprocas e insistentes, desejamos
repousar nosso coração numa alma acolhedora; desejamos encontrar apenas uma que
por instante deixou de nos ignorar, para nos admirar. O absurdo não nos
incomoda, porque raramente dele suspeitamos. Existimos para sobreviver. Isso
basta. Alguns de nós são transeuntes de calçadas/ outros, de sua própria alma.
Alguns estão de passagem, sem tempo para conversas elevadas; outros gostam de
dar passeios e admirar a insignificância de nossa pressa e travessia.”
Este
último excerto, caro leitor(a), me causa, ainda hoje, espanto, dada a acuidade
com que apreende este viver banal, urgente e despropositado em que muitos
dentre nós estamos imersos. O cotidiano dos transeuntes é vazio de imersões de
alma, é empobrecido de diálogos, de reflexões, de pensamentos, de amor.
Eu
ainda não estou satisfeito com o que escrevi até aqui. Acho que não cheguei
sequer à termosfera de minha alma. Mas sinto que ainda tenho algumas palavras
mais a acrescentar a este discurso revisional-introspectivo. Abro um parêntese
para referir um trecho do livro Passeio
pela Antiguidade (2012). Este trecho ensina-nos uma lição a que meu
espírito aderiu como um piche: pensar
diferente modifica a vida. Com a descoberta da filosofia, meus pensamentos
se robusteceram e se tornaram conflituosos com os que antes habitavam minha
alma; não todos, é claro, mas o meu inverso tornou-se reverso deixando
permanecer essa insistência em desapegar-me. Você não me compreendeu aqui, nem mesmo
eu me compreendi, mas gostei deste trecho. Não se preocupe em aprofundar-se em
mim, sob pena de afogar-se e não conseguir mais assomar à superfície da vida.
Sempre necessitamos das superfícies... uns patinam sobre elas durante a vida
toda... mas, mesmo os que se aventuram em imersões demoradas na existência,
precisam voltar a caminhar sobre elas... Namorar o absurdo por muito tempo pode
nos enlouquecer. Afinal, é preciso existir sendo um pouco transeunte:
“A chave da existência reside, pois,
no pensamento. Portanto, convém regrar as próprias ideias a fim de regrar o
próprio modo de vida. Com efeito, uma ação não cessa de remeter a outra.
Modificar a própria vida é modificar o próprio pensamento. Pensar de modo
diferente é viver de modo diferente. Resta saber como pensar (...)”.
(p. 68)
A
filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o
poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à
vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como
não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os
pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a
morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei,
porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela
se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me
visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a
poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do
enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais
natural para um idealista. A par deste espírito estóico que me sabe à
existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A
vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte
prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte
(descanso desejado pelos falidos).
Que nos
ensina, por exemplo, um estoico como Epicteto? Que só temos domínio sobre nossa
vontade, sobre nossas opiniões. E nos oferece um exercício básico: voltemos
para nós mesmos e nos perguntemos se podemos exercer alguma influência sobre a
ordem de um dado estado-de-coisas ou situação. Se não podemos, não nos perturbemos.
A esse estado de ausência de perturbações, os antigos gregos chamavam
“ataraxia”. A quietude absoluta e plena me é impossível. Por isso, nesse
sentido, não me sinto um estóico. Fico, entretanto, com a coragem para o
enfrentamento dos infortúnios do acaso. Negá-lo é mentir para si mesmo. E não
deixei de ter medo. Epicuristas e estoicos unidos a um mesmo ideal: a
permanência na serenidade. Ideal sempre me foi uma palavra entranhada na alma.
Sua semântica costura o tecido de meu espírito desde que comecei a namorar os
ultra-românticos. É verdade que minhas disposições ultra-românticas de outrora,
sempre mal compreendidas, estavam muito
embaraçadas com meu temperamento de fé, de modo que, exorcizando este, eliminei
daquelas o exagero sugerido no prefixo “ultra-“. Ainda me reconheço como um
idealista, mas no sentido muito bem desenvolvido por Ingenieros, em seu O Homem medíocre. Os trechos se dispõem
abaixo:
“Os idealistas
românticos são exagerados porque são insaciáveis. Sonham o máximo para realizar
o mínimo, compreendem que todos os ideias contêm uma partícula de utopia e
perdem algo ao se realizar: em raças ou em indivíduos, nunca se integram como
pensam. Em poucas coisas, o homem consegue chegar ao ideal que a imaginação
assinala: sua glória consiste em avançar em sua direção, sempre inatingível.”
“[os idealistas
românticos] são dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos
sobre o meio social ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe a seus
palpites e sonhos. Constroem seus ideais sem conceder nada à realidade,
recusando-se a ser tolhidos pela experiência, agredindo-a se ela os contrariar.
São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à
ternura; com essa ingenuidade sem falsidade que os homens práticos ignoram.
Basta um minuto para se decidirem para toda a vida. Seu ideal cristaliza em
firmeza inequívoca quando a realidade os fere duramente”.
(p. 26)
Uma
característica intrigante do amor romântico é que, uma vez consumado
sexualmente, ele perde o seu encanto ou arrefece seu desejo antes inflamado. O
amor romântico é amor da impossibilidade de completar a sua falta. Não há
páginas felizes na história do amor romântico, disso nos lembrou muito
perspicazmente Hegel. Daí que a morte, a
loucura e o suicídio sejam males constitutivos desse gênero de amor. Não
obstante, há uma característica do amor romântico que me atrai, a despeito de
sua natureza irremediavelmente trágica: o amor romântico alimenta-se da alma e
não do corpo. Insisto que a experiência sexual diminui o ardor do amor
romântico.
Não me agrada referir trechos sem a partir deles produzir um
sentido. Também não gosto de fraturá-los, para me concentrar em apenas um
pedaço deles. Mas preciso fazê-lo. Toca-me a alma este enunciado, colhido do último
exemplo citado: “Seu ideal cristaliza em firmeza
inequívoca quando a realidade os fere duramente”. A realidade já me feriu, mas
o ideal ainda permanece cristalizado em minha alma. Acho que os docentes
precisam ser idealistas, em alguma medida. Sem ideais, não é possível fazer
educação.
Epicuro é silenciado no cenário capitalista da
modernidade líquida, em que os indivíduos são, em geral, ávidos de prazeres
imediatos, extasiantes e constantemente renováveis. O que dura entedia; é bom
que nada dure, ou dure o tempo suficiente para que se possa buscar novas formas
de prazeres (o que significa dizer que dure muito pouco). Só há prazer em
movimento; eles se entendiam com o prazer em repouso. Aliás, não há prazer no
repouso, a menos quando estão dormindo ou se sentem demasiado cansados após um
longo curso frenético de experiências de prazer, sempre fugazes.
A despeito dos bons momentos em que vivemos
juntos, não seria feliz ao lado dela, porquanto ela se demonstrava incapaz de
aprofundar-se nos oceanos de minha alma. Limitava-se a denunciar as flutuações
superficiais de minha alma. Todavia, meu nascimento legou-me uma profundidade
de espírito com a qual terei de me haver até o fim dos meus dias. E é provável
que nunca chegue a compreendê-la cabalmente.
Sigo, então, a caminhar com o espírito
vagaroso... E nesse reencontro comigo mesmo, sinto que muito de mim se
perdeu... Não tenho saudade dos tempos em que vivia inteiramente absorvido em
mim, mergulhado neste eu que vivia namorando a ideia de compreender a totalidade
do Ser. E acreditava estar ela circunscrita no domínio da fé cristã. Eu,
provavelmente, estive entre os melhores cristãos leigos contemporâneos, um
cristão para quem a fé e Deus eram um problema para o pensamento. E o afirmo
satisfeito e convencido de que a verdadeira salvação eu encontrei na/ pela
filosofia. A salvação não pressupôs meu abandono, mas a restituição do meu
lugar no devir inerente ao mundo. A escrita, as palavras que lancei sobre os
papéis sempre me permitiram estar no controle sobre quem fui e quem sou.
Certamente, eu não escrevi tudo; não confessei
tudo, nem poderia. Certos aposentos da alma devem permanecer trancados. Toda
palavra que penetra nesses imensos esconderijos onde o ‘Eu’ se refugia comete uma violação, ou mesmo uma violência. Não é fácil lidar com as palavras; é
preciso saber domá-las, manejá-las, arranjá-las, de modo que os significados
não entrem em conflito, não se desmintam, não se contradigam. Palavras são
artefatos belicosos, embora também, se bem empregados, possam produzir estados
temporários de paz e harmonia.
E o silêncio convida-me ao retorno à leitura.