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domingo, 25 de agosto de 2013

"A presença irradiante da fé vem da ausência evidente de Deus" (BAR)

                                          


                          O fundo escuro da consciência religiosa


“Divertimento

Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso”.


“Condição do homem.

Inconstância, tédio, inquietação.

(Blaise Pascal)


Mesmo que seja lugar-comum dizer que a história que se torna conhecida da posteridade é a história contada do ponto de vista dos dominadores, não deixa de ser isso uma verdade persistente no desenvolvimento da historiografia. Basta nos debruçarmos sobre a história dos cristianismos primitivos ou lançarmos olhares atentos para a historiografia da filosofia no ocidente liberal. Estudando a historiografia do cristianismo, não será custoso reconhecer que a visão que se saiu vitoriosa foi a dos grupos de cristãos proto-ortodoxos. Outras tantas perspectivas teológicas, como as dos ebionitas e adocionitas, foram, nesse longo processo histórico predatório, sobrepujadas pelas crenças teológicas dos grupos dominantes, de sorte que o que chegou aos leigos cristãos hoje foi um conjunto de crenças e perspectivas teológicas que venceram as disputas para determinar quem tinha a fé correta.
O filósofo Michel Onfray ensina que a historiografia dominante no ocidente e, particularmente, a história da filosofia grega são platônicas. Como o ponto de vista platônico tenha sido até hoje predominante na narrativa da história da filosofia entre nós, ocidentais, fomos convencidos de que são verdadeiras certas visões que uma investigação mais acurada e ampla trataria de provar serem equivocadas. Por exemplo, por força da imagem associada aos sofistas no platonismo, aceitamos como verdadeira a ideia de que eles eram “mercenários da filosofia para os quais a verdade não existe e aos olhos de quem só conta o que tem êxito” (Onfray, 2010, p. 8). Essa distorção histórica serviu ao propósito de não tornar acessível à modernidade o conhecimento de sistemas de pensamento antiplatônicos, tais como o relativismo, o nominalismo e o perspectivismo. No seu livro A potência de existir (2010), Onfray escreve a respeito do sonho platônico para cuja realização, em outros casos, a historiografia oficial desempenhou um papel decisivo:

“De fato, Platão aspirava acender um grande braseiro para nele precipitar todos os livros de Demócrito! A soma considerável de obras, seu sucesso, a presença de seus textos em muitos lugares levaram dois pitagóricos – Amiclas e Clínias – a dissuadir Platão de cometer esse feito. Um filósofo inventor do auto de fé moderno...”.
(p. 9)

Decerto, o modo como os sofistas aparecem em trabalhos de Platão é determinante da concepção segundo a qual eles eram mestres ardilosos do discurso, que cobravam para discursar e que se preocupavam menos com a verdade do que em persuadir seu auditório - concepção que perdurou ao longo da história e que tornou pouco interessante a sofística a muitos que se dedicam a estudar filosofia ainda hoje.
O que sabemos de Sócrates é, basicamente, o que dele nos contou Platão. O Sócrates que endossa a Ideia platônica seria ultrapassado, caso pudéssemos ouvir atentamente o Sócrates de Diógenes de Sinope ou de Aristipo de Cirene. O ponto de vista platônico impediu-nos de reconhecer a importância de um sofista como Antífon – precursor da psicanálise.
Novamente, é forçoso reconhecer que uma distorção dez vezes, cem vezes, mil vezes repetida ganha status de verdade. Se é verdade que a verdade gosta de esconder-se, é igualmente verdade que mentiras se metamorfoseiam facilmente em verdades que, de tão incessantemente reproduzidas por instituições cujo poder se nos apresenta como inquestionável, entram para a história e, na memória coletiva, se enterram como tesouros que mantemos intocáveis. Consoante observa Onfray, em Contra-história da filosofia – as sabedorias antigas (2008),

“Platão reina então como mestre porque o idealismo, fazendo os gatos mitológicos serem tomados por lebres filosóficas, permite justificar o mundo como está, convidar a se desviar do cá embaixo da vida, deste mundo, da matéria do real, para ficções com as quais se compõem as histórias para as crianças a que se reduzem todas as religiões: um céu das ideias puras que escapa ao tempo, à entropia, aos homens, à história, um além-mundo povoado de sonhos aos quais se atribuiu mais realidade do que o real (...)”.
(pp. 15-16)


Seguem-se, abaixo, estampadas as ideias que servem de caminhos os quais trilha meu pendor filosófico. Eu não as desenvolverei neste texto; se as externo aqui, é para que sirvam de âncoras para as minhas reflexões que, doravante, se desnudarão:

a) Toda filosofia se reduz à confissão de um corpo (Nietzsche e Onfray);
b) Todos os filósofos pensam a partir de sua própria existência (Onfray);
c) A prova do filósofo é sua vida (Onfray).

A teologia é a ciência de sujeição da massa, escreverá Onfray (2010, p. 41). E acrescentará:

“Enquanto Deus triunfa, a moral é uma subseção da teologia. Desde o Sinai, o Verdadeiro, o Bom, o Bem, o Justo provêm do decálogo. Não é necessário filosofar, procurar os fundamentos, a genealogia, uma origem, Deus basta e serve de resposta para tudo. Tábua da Lei, Tora, Evangelhos, Epístolas paulinas agem em minutos divinos. Quando Deus se dá ao trabalho de ele próprio expor, ou quando delega essa missão a seus mais fiéis enviados, a matéria imperiosa de todo comportamento entre si e si, si e os outros, si e o mundo, quem pode ter a insolência e a perfídia de discutir e contestar? Que personagem é arrogante o suficiente a ponto de tomar explicações de Deus – a não ser o filósofo -, contanto que faça verdadeiramente jus a esse nome...”.
(grifo meu)


Estas palavras são facilmente perduráveis por séculos como arautos de uma verdade que não se silencia com o barulho insistentemente produzido pelo coro de tenores de Deus. Indelével também é a verdade que se põe permeável à consciência perscrutadora no seguinte passo de Gonzaga de Bem, em Confissões de um filósofo desesperado (2009).

“Ouvir pela enésima vez um texto de Paulo e ignorar a existência de Gregório de Nazianzo; voltar a construir o presépio todos os anos e não saber o que eram as querelas fundadoras do arianismo ou o concílio sobre a iconofilia; assistir à missa de Natal e nada saber da recuperação pela Igreja da data pagã do solstício de inverno em que se festejava o sol invictus, assistir aos batismos, casamentos e enterros familiares diante do altar e nunca ter ouvido falar dos evangelhos apócrifos; expor-se sob crucifixos e ignorar a informação de que pelo motivo considerado contra Jesus em seu processo não se crucificaria mas se apedrejava; e tantos outros impasses culturais por causa da fetichização de ritos e práticas, o que constitui problema para um hipotético exercício esclarecido da religião”.
(p. 94)


Decerto, pretender conjugar esclarecimento com religião ou aproximar essas duas palavras para compor uma unidade sintagmática só parece possível no domínio poroso e etéreo das hipóteses. Religião e esclarecimento são palavras antitéticas, são inimigas mortais. No excerto referido de Gonzaga de Bem, topamos uma série de fatos ignorados por uma maioria esmagadora de fiéis. Tanto esses fatos, de que nos dá testemunho Gonzaga, quanto os que virão à luz ao longo do desenvolvimento deste texto, são ignorados por uma moça que vi caminhar com uma bíblia conduzida junta a um dos seios. A mim, ela aparecia como quem portasse o livro da Verdade que se deve prezar, pregar e preservar para todo o sempre. Quiçá, ela também pertença ao grupo de fiéis que apreciam dar testemunho de que são leitores dedicados da Bíblia, não se preocupando em mensurar a frequência com que destacam trechos para citá-los, dando aos que deparam com eles a impressão de que sabem, de fato, o que é a Bíblia. Veremos que a toda citação de uma passagem bíblica deve preceder, necessariamente, um ato de seleção entre os trechos que depõem a favor do intento do fiel, visto que outros tantos podem ser claramente escandalosos para as sensibilidades modernas; e o fiel, por mais fervoroso que seja na observância de sua fé, provavelmente, não estaria disposto a endossar o conteúdo dos trechos que a seleção forçosamente deixa silenciados. 
A saga dos primeiros hebreus, o desenvolvimento do conceito do Deus judaico (Javé no reino do sul; Elohim, no reino do Norte), a história da confecção dos manuscritos ou livros que viriam a ser reunidos para formar a Bíblia, o surgimento e desenvolvimento dos muitos e variados movimentos de cristianismos primitivos nos primeiros séculos da Igreja abrigam muitos e complexos acontecimentos que escapam à consciência dos religiosos cuja fé tomou forma e se desenvolveu na fornalha de ideologias, crenças, valores, práticas, rituais, aspirações, fervores, guerras, suplícios, injustiça social que era o Antigo Oriente Próximo, há aproximadamente 1.200 a.C.
Este texto é mais uma etapa do trabalho a que venho me dedicando e que visa a recuperar as raízes históricas de Deus. A fé que anima a alma dos cristãos é uma fé cujo desdobramento e impacto talvez não lograssem êxito sem a mobilização de ações, movimentos, disputas que culminaram com o apagamento da memória histórica das gerações que viriam a se tornar seguidoras da nova fé. Somente por esse apagamento é possível aos cristãos de hoje alimentarem a convicção de que Deus é um ser a-histórico, transcendente, sobre-humano, Alfa e Ômega, Criador do Universo e que, por uma razão desconhecida (por um Mistério da Fé) decidiu “revelar-se” a um determinado povo que viveu e floresceu próximo às cabeceiras dos rios Eufrates e Tigre que fazem parte do Golfo Pérsico ou nos desertos próximos.
Volvendo olhares para o trecho de Gonzaga de Bem, gostaria de esclarecer quem foi Gregório de Nazianzo, o que foi o arianismo e o que significa a expressão Sol invictus. Gregório de Nazianzo (ou Nazianzeno) foi um teólogo e escritor cristão e Padre da Igreja. Junto de Basílio Magno e Gregório de Nissa, ele integrou a congregação dos Padres Capadócios. Nasceu em 329 ou 330 d.C, perto de Nazianzo, na Capadócia, Ásia Menor, e faleceu em 390 d.C. Gregório é lembrado como “teólogo trinário”, visto ter desempenhado um papel extremamente importante na instituição da teologia da Trindade. Ele se demonstrou um ardoroso combatente do arianismo, uma antiga doutrina teológica cristã ensinada por Ário, um sacerdote de Alexandria, Egito. Por volta de 318 d.C., Ário e seus seguidores se opuseram à doutrina da Trindade, segundo a qual o Deus único é também três pessoas:  Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ário negava que Jesus fosse inteiramente divino e sustentava que, na verdade, Jesus fora criado por Deus, de tal modo que não poderia ser senão inferior ao Pai.
O Sol invictus, também conhecido pelo nome Deus Sol Invicto, era o nome atribuído a três diferentes divindades cultuadas no Império Romano. O Natal era uma data festiva destinada à celebração do nascimento do Deus Sol no solstício de inverno. No século III d.C, a Igreja Católica, interessada na conversão dos pagãos, apropriou-se da prática e a adaptou à doutrina cristã. Assim, a celebração do nascimento do Deus Sol passou, no cristianismo, a ser uma celebração do nascimento de Jesus Cristo, datada de 25 de dezembro, dia em que, nos países de cultura cristã, se comemora o Natal.

1. O percurso histórico

1.2. Os Evangelhos apócrifos

Do latim apokryphu, apócrifo significa “oculto” ou “secreto”. À medida que o tempo avançava, apócrifos eram fatos ou obras destituídos de autenticidade, ou cuja autenticidade não se aprovou. No mundo antigo, apócrifos eram os livros pertencentes a seitas secretas. Posteriormente, por uma extensão semântica, passou a qualificar também os manuscritos considerados “espúrios” ou produtos de heresia.
A Bíblia mais antiga é a Bíblia judaica. No entanto, a Bíblia judaica só foi finalizada quando do aparecimento dos primeiros cristãos. Assim, a grande maioria dos manuscritos que viriam a constituir essa Bíblia já era usada e considerada escrituras autorizadas pelas comunidades de judeus, havia muito tempo.
Judeus e cristãos adotavam certo número de manuscritos pré-bíblicos que eram traduções de antigos manuscritos do hebraico para o grego. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia cuja estrutura, linguagem e pressupostos ajudam a explicar as diferenças existentes nas Bíblias de hoje.
A tradução para o grego da Bíblia hebraica resultou num conjunto de livros chamado de Septuaginta. Conta uma lenda que Ptolomeu II, conhecido como Filadelfo, que governava o Egito em 285-246 a.C., desejou ter em sua biblioteca uma cópia dos cinco primeiros livros da Bíblia (o Pentateuco). Ele, então, chamou setenta e dois tradutores judeus provenientes da Alexandria para a realização do trabalho, que durou setenta e dois dias. É claro que, na verdade, a tradução durou séculos, mas o termo Septuaginta se consagrou na história para fazer referência aos setenta e dois tradutores e os setenta e dois dias necessários ao empreendimento da tradução. A lenda, na verdade, ganhou lugar na tradição graças a um texto falsificado, conhecido como Carta de Aristeas, um pagão que pertencia à corte do rei egípcio Ptolomeu. O falsificador apoiava o judaísmo. Ehrman, em Quem escreveu a Bíblia? Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são (2013), conta-nos sobre esse acontecimento:

“Como a Carta de Aristeas foi supostamente escrita por um não judeu oferecendo um relato mais ou menos “desinteressado” de como a Bíblia hebraica fora traduzida para o grego, tem toda a aparência de estar descrevendo os fatos”como de fato eram”. Mas, na realidade, a carta é uma falsificação produzida por um judeu de Alexandria no século II a.C. Ela foi escrita, em parte, com o objetivo de mostrar a inspiração divina dos textos sagrados judaicos, mesmo em sua tradução para o grego”.
(p. 35)


Jerônimo, patriarca da Igreja Católica (347-420 d.C.), responsável por traduzir a Bíblia para o latim, entre 305 e 405, qualificou os livros que não entraram a fazer parte do cânone das Escrituras hebraicas de “apócrifos”. Jerônimo tinha a intenção de distingui-los dos livros originais da Bíblia, de modo que ele decidiu incluir os livros para os quais não havia originais em hebraico no final do Antigo Testamento. Mas eles foram incorporados e reconhecidos oficialmente pela Igreja Católica como parte, ainda que secundária (“deuterocanônica”), da Bíblia.

1.3. Como se forjaram os Evangelhos?

Talvez, possa ser surpreendente para muitos fiéis o fato de ter havido, nos primeiros anos da Era cristã, uma profusa tradição oral que, gradativamente, foi assumindo a forma de registros escritos. Mas não é possível identificar um texto original, donde os demais provieram. Na verdade, nunca existiu um texto original. Nunca existiu um proto-Evangelho. Existiam, na verdade, muitos manuscritos em circulação, obras confusas, que se tornaram, ao longo do tempo, mais sofisticadas, não sem sofrerem toda sorte de deformações, alterações para benefício de uma seita ou autoridade.
Quando nos dedicamos a compreender em que se baseavam os Primeiros doutores da Igreja para conferir autenticidade aos evangelhos, fica claro, de início e sem dificuldade, que eles não estabeleciam critérios rigorosos, mas se serviam apenas da sua autoridade ou da autoridade de quem julgava os textos. Os Evangelhos canônicos não deixaram de ser contestados ao longo do tempo e continuam a sê-lo ainda hoje. Embora não seja um conhecimento largamente disseminado em nossa sociedade e, portanto, não surpreendendo que este fato seja ignorado pela maioria dos cristãos, sabe-se que os autores dos quatro Evangelhos que constam da Bíblia não são as pessoas cujos nomes se estampam nas páginas destes livros.
Os milagres e feitos de Jesus eram considerados, na hora de determinar se um manuscrito era autêntico ou não. A Igreja considerava alguns milagres mais aceitáveis que outros; uns mais verdadeiros; outros simplesmente “risíveis”. Os chamados livros canônicos são os livros considerados sagrados pela Igreja Católica. Melhor ainda: são os únicos “inspirados pelo Espírito Santo”, que, por algum motivo escuso, só teria inspirado os quatro Evangelhos - todos escritos anonimamente e só muito depois atribuídos aos discípulos de Jesus - as Epístolas, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse de João.
Para justificar a inclusão apenas dos quatro Evangelhos então conhecidos hoje, Irinieu, assim, se expressou, num estilo literário que se serve de analogias e floreios linguísticos impregnados de metáforas teológicas e num discurso que não se estrutura com argumentos razoáveis, digamos, produzidos após uma pesquisa histórica. O trecho se acha em Apócrifos II – Os proscritos da Bíblia (2005), na seção de introdução:

“O Evangelho é a coluna da Igreja; a Igreja está espalhada por todo mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que haja também quatro Evangelhos... O Evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e pois, como há quatro ventos cardiais, daí a necessidade de quatro Evangelhos... O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos”.


Quem foi Irineu? Irineu compôs o grupo dos autores cristãos proto-ortodoxos dos séculos II e III, do qual faziam parte também Justino Mártir, Tertuliano, Hipólito, Clemente de Alexandria e Orígenes. Todos esses autores foram responsáveis por moldar as visões que vieram a se tornar ortodoxas. O processo de consolidação de suas visões se deu em disputas com pontos de vistas de outras comunidades cristãs, como os ebionitas e os marcionitas.
A história da construção do cânone das Escrituras cristãs demandaria muito mais tempo e trabalho; o leitor, no entanto, poderá conhecer um pouco sobre ela em outros textos divulgados neste blog. Na próxima seção, vou discorrer sobre como a Bíblia veio a tornar-se um livro.

1.4. Como surgiu a Bíblia?

A Bíblia inclui textos produzidos em épocas e lugares diversos. Estima-se que a Bíblia hebraica (o Antigo Testamento cristão) inclua livros que datam de mais de 1.000 anos, dos quais o mais antigo remonta a 1.200 a.C. Suas fontes podem ser situadas na Mesopotâmia, Canaã, Egito, chegando a abranger todo o Crescente Fértil do antigo Oriente Próximo. A Bíblia inclui textos de gêneros diversos (mitos de origem, poesia devocional, biografias, etc.) Em Desvendando a Bíblia (2010), Swenson nota que “durante o período de desenvolvimento da Bíblia hebraica, a maioria das pessoas não sabia ler nem escrever” (p. 64). A produção dos textos competia, portanto, a uma pequena elite, que os destinava a um pequeno grupo de colegas acadêmicos. Os textos também podiam ser produzidos em um estilo oral, que se prestava à recitação, facilitando o uso deles pelas massas.
Determinar a autoria, durante o período em que a Bíblia se desenvolvia, não constitui tarefa fácil. Na verdade, os manuscritos não eram produtos dos esforços de um único autor criativo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Segundo Swenson, quase toda literatura bíblica é atribuída a pessoas que não chegou a escrevê-la. A maioria dos textos bíblicos foi escrita anonimamente (especialmente os da Bíblia hebraica), e seus autores eram pessoas que podiam aprender a ler e a escrever –  em geral, escribas, ensinados no templo.
Os escribas produziam textos com base nas tradições existentes e com base em textos  como,  por exemplo, narrativas orais, poesia, anais, oráculos que foram preservados e que se transmitiam graças aos esforços de discípulos de um profeta. Cabia aos escribas copiar e editar esses textos de acordo com as circunstâncias e a teologia que adotavam.
Se a Bíblia não foi entregue por Deus, tampouco constituía um projeto conscientemente levado a efeito por seus autores. O conjunto de livros ou manuscritos que viriam a ser reunidos para compor a Bíblia circulava em partes independentes, muitas das quais assumiam a forma de rolos de pergaminho, em vez de códices, à semelhança dos nossos livros de hoje. Disso se segue que a sua organização e ordem não eram fixas.
Vamos considerar, agora, a chamada Hipótese Documental e o problema da autoria do Pentateuco.
A crença de que Moisés escreveu os cinco primeiros livros da Bíblia encontra raízes em tradições bastante antigas. Não obstante, um leitor hoje, mesmo não suficientemente instrumentalizado em hermenêutica, não teria dificuldades em aceitar a visão de que a composição do Pentateuco foi resultado de diferentes fontes literárias. Há 150 anos, o estudioso alemão Julius Wellhausen argumentou, com base em suas pesquisas, que os cinco primeiros livros da Bíblia tiveram origem em diferentes épocas e lugares (Swenson, p. 66). Ele propôs haver quatro fontes literárias que se mesclaram ao longo do tempo para constituir o que hoje conhecemos pelo nome de Pentateuco.
Ainda que haja  alguns pontos controversos em sua hipótese, a tese tem mantido o consenso entre os especialistas. Entre os fatos que a corroboram, estão: 1) a referência a diferentes nomes de Deus; 2) um grande aglomerado de vocabulário, perspectivas e estilos literários diferentes.
Assim, por exemplo, em 1 Gênesis, Deus é chamado Elohim e representado como um Outro Magnífico. Nessa narrativa, Deus cria o mundo em seis dias por meio de seu discurso (logos). Os seres humanos são criados simultaneamente à imagem de Deus. Em 2 Gênesis, por outro lado, Deus é referido pelo nome Yhaweh Elohim (Senhor Deus) e é representado como um Deus que caminha e se vale de suas mãos para criar e modelar uma dada região e suas criaturas. Aqui, Deus criou a terra, e primeiro o homem, depois, dando-se conta da solidão do homem e considerando que “não era boa”, fez a partir dele a mulher. Destarte, há, nos dois capítulos primeiros do Gênesis, duas imagens diferentes de Deus e duas narrativas diferentes sobre a criação dos seres humanos. Acrescente-se que os estilos literários também diferem entre si: em 1 Gênesis, o texto apresenta uma construção poética, o que não sucede em 2 Gênesis. Os dois estilos literários se combinam para formar uma narrativa ainda maior.
A Hipótese Documental de Wellhausen permite ver que as fontes literárias do Pentateuco não estão organizadas em blocos, mas figuram mescladas umas com as outras, por vezes, sobrepondo-se em alguns lugares, disso resultando contradições e dispersões (Swenson, p. 67). Chamando-nos a atenção para o problema da autoria do Pentateuco, pondera Swenson:

“Provavelmente, nenhuma das quatro fontes literárias hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro representam as tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não juntas em uma sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi construída sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite edição e alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação intencional de textos recebidos”.
(ib.id.)

Com base na Hipótese Documental, a fonte mais antiga do Pentateuco usa o nome divino Yahweh. Por isso, é chamada de Javista (Javé) e abreviada com a letra J (porque os alemães escrevem Yahweh com J). Essa fonte reflete os interesses do reino do sul e data do século X a.C. Essa é a fonte que deu origem à história de Adão e Eva em 2 Gênesis.
Posteriormente, se desenvolveu a literatura que optou pelo nome Elohim. Por isso, é chamada de eloísta e abreviada pela letra E. Essa fonte sinaliza os interesses do reino do norte e data do século IX a C. É mister esclarecer que reinos do norte e do sul fazem referência às duas monarquias formadas pelos israelitas em 1000. a. C, depois que o sistema tribal se demonstrou pouco eficiente. O reino do norte era Israel, o mais próspero; o do sul era Judá.
Em conjunto, J e E relatam histórias que foram recolhidas antes de outras pessoas começarem a expandi-las, editá-las, reescrevê-las ao longo do tempo. Os editores, possivelmente, reuniram J e E num conjunto JE, ao mesmo tempo em que acrescentaram seus próprios textos. Uma terceira fonte literária, no entanto, se apresenta em bloco. Trata-se do trabalho que deu origem ao livro Deutoronômio (D). Esse livro também, provavelmente, reflete os acontecimentos do período pré-exílico nortista, do século VII a.C, no reino do sul; e pós-exílico. A Hipótese prevê que o grupo que editou J, E e D exerceu suas atividades durante o período de exílio, com vistas a codificar uma base de fé e identidade (Swenson, p. 68).

“Eles são chamados escritores sacerdotais (...), porque acrescentaram material especialmente voltado ao funcionamento das instituições religiosas, refletindo ideias dessas instituições. Os escritores sacerdotais recolheram, organizaram e editaram o material que vemos fixado no Pentateuco. Eles estruturaram a obra, adicionando novo material conforme a necessidade”.
(p. 68)


2. A Bíblia é uma obra humana

Qual não seria a surpresa da moça que caminhava portando sua bíblia se lhe fosse dado saber que, dentre as 13 cartas atribuídas tradicionalmente a Paulo, 6 delas não foram escritas por ele. O tema das falsificações dos livros do Novo Testamento é apresentado e discutido por Bart D. Ehrman, em seu livro Quem escreveu a Bíblia? Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são (2013). 
São cartas que NÃO foram escritas por Paulo: 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito, 2 Tessalonicenses, Efésios, Colosensses. São de autoria de Paulo: Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon. Ehrman observa que, no grupo das cartas que não foram escritas por Paulo, o consenso entre os estudiosos é maior quanto às três primeiras cartas. Swenson (p. 38), a seu turno, nota que Colosensses e Tessalonicenses 2 acarretam dificuldades para a determinação de sua autoria. Alguns estudiosos acreditam que elas foram produzidas por Paulo; outros, no entanto, acreditam que foram escritas não por Paulo, mas por discípulos dele. Ainda segundo Swenso, Timóteo 1 e 2 e Tito são livros produzidos em tempos posteriores à morte de Paulo. Portanto, não são de autoria paulina.
Hebreus, segundo a autora, também não é uma Epístola de Paulo, tampouco de qualquer outra pessoa ligada ao seu círculo. Ela, na realidade, resulta de uma interpretação alegórica da Bíblia hebraica, combinada com a filosofia grega, para sustentar ser Jesus o Sumo Sacerdote e Messias real. Foi produzida por um cristão anônimo (Swenson, p. 39).
Vários livros que constam do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas tradicionalmente consideradas como seus autores. Esses livros tiveram sua autenticidade contestada já nos primórdios do cristianismo. Estudiosos cristãos dos séculos II e IV travavam debates, a fim de determinar quais os livros deveriam ser incluídos nas Escrituras. Um terço dos livros do Novo Testamento foram escritos anonimamente (Ehrman, p. 30). São livros cujos autores nunca se identificaram. Nenhum dos evangelhos traz o nome do autor. Ehrman nos esclarece:

“Apenas mais tarde os cristãos os chamaram de Mateus, Marcos, Lucas e João; e escribas posteriores acrescentaram, então, esses nomes aos títulos dos livros”.
(ib.id.)


Também são anônimos o livro dos Atos e as epístolas 1, 2, 3 atribuídas a João. O autor de Hebreus não se identifica, ainda que pretenda levar seu leitor a supor se tratar de Paulo.
Ehrman destina uma seção para tratar da definição e compreensão dos conceitos de anônimo, pseudônimo, pseudográfico (escrito sob nome falso) e falsificação. O autor entende por falsificação “um texto que alega ser escrito por alguém (uma pessoa conhecida) que, na verdade, não o escreveu” (p. 31).
Embora fossem comuns falsificações no mundo antigo, aqueles que as perpetravam, quando descobertos, eram condenados por mentir e enganar seus leitores. Se a intenção do falsificador era claramente enganar seus leitores, suas motivações para tanto eram várias. Casos havia em que o falsificador visava a obter lucro. Em outros casos, o falsificador desejava endossar certas posições políticas, teológicas ou militares.
Outros textos falsificados que constam do Novo Testamento são as Cartas que ostentam os nomes 1 Pedro e 2 Pedro. Um livro chamado Apocalipse de Pedro quase foi incluído no cânone. Não vou-me deter a apresentar as evidências que sustentam a inautenticidade das cartas atribuídas a Pedro, discípulo de Jesus. No entanto, preciso notar que uma forte razão para que 1 Pedro, por exemplo, não seja de autoria de Pedro é que seu autor alega escrever na cidade de Roma e a chama de Babilônia, palavra que, no fim do século I, tanto cristãos como judeus empregavam para designar a cidade que era inimiga de Deus em sua época.  Por conseguinte, é muito provável que o autor de 1 Pedro tenha escrito a carta em algum momento posterior à destruição do Templo por Roma em 70 d.C. Acontece que, segundo reza a tradição, Pedro teria morrido, em 64 d.C, quando Nero ainda exercia o poder em Roma. No momento da catástrofe, Pedro já estava morto havia seis anos (Ehrman, p. 74).

2.1.  O que é a Bíblia, afinal?

A Bíblia hebraica é produto de acontecimentos sócio-históricos que se desenvolveram ao longo de muito tempo e representa as ideias, crenças e valores do povo protojudaico que falava a língua hebraica e que viveu no Oriente Médio nos primeiros séculos da nossa era. A Bíblia é produto de um esforço por construir uma identidade pela interpretação de acontecimentos históricos à luz de representações de Deus. A fidelidade do povo a Deus fez com que esse povo responsabilizasse única e exclusivamente a si mesmo pelas adversidades que teve de enfrentar.
A Bíblia hebraica é uma coletânea de livros que expressam muitas histórias sobre o povo escolhido de Deus. Tais acontecimentos dizem respeito às formas como esse povo descumpriu a aliança com o seu deus e como ele foi punido por essa falta.
No tangente ao Novo Testamento, ele abriga um conjunto de livros reunidos por pessoas de fé, e não por historiadores preocupados em determinar fatos a respeito da vida de Jesus. Jesus, a personagem principal desses escritos, era um profeta apocalíptico judeu. Na época em que Jesus viveu, havia vários tipos de judaísmo, e os judeus não estavam sempre de acordo quanto às suas crenças e visões teológicas. O cristianismo surge como uma seita judaica que rompe com certos aspectos da tradição e com ideias caras e fundamentais a alguns judeus. Eram poucos os judeus que aceitavam a crença, acalentada entre os seguidores de Jesus, segundo a qual ele era o Messias que cumpria as profecias judaicas (veja-se Isaías 53). Não eram raros os judeus que julgavam heréticas as afirmações sobre a divindade de Jesus. Esses judeus rejeitavam-nas por acreditarem que Deus não podia assumir a forma de um ser mortal. Em outras palavras, para muitos judeus, era um escândalo acreditar que Deus encarnaria num ser humano cujo destino seria o martírio, a crucificação e a morte.

2.2. O uso da Bíblia e o caso de Maria Madalena

Não se acha, em nenhum lugar da Bíblia, qualquer menção ao fato de Maria Madalena ou Magdala (referência à sua cidade de origem que fica em Nazaré), ter sido uma prostituta. Se a Bíblia não endossa essa visão, como ela se sedimentou nas representações coletivas entre nós? Essa visão é apoiada pela Igreja Católica e coube ao papa Gregório I (604 d.C) reanimá-la em um sermão no qual Maria Madalena era comparada a pecadores que lavaram os pés de Jesus. A imagem de Maria Madalena se funde com a imagem da mulher anônima surpreendida em adultério. Segundo Swenson,

“Mais do que qualquer outra, Maria Madalena aparece de forma consistente em todos os quatro evangelhos e ela o faz como testemunha dos momentos cristológicos mais significativos. Os evangelhos estão em notável concordância quanto a sua presença na morte, sepultamento e ressurreição de Jesus. Não apenas isso, mas, segundo o final longo de Marcos e o Evangelho de João, é para esta Maria apenas, de todos os seus seguidores, que o Jesus ressuscitado aparece em primeiro lugar”.
(p. 207)

Alguns estudiosos acreditam que Maria Madalena possa ter desempenhado um papel mais importante nos primeiros anos da igreja cristã. Ela pode ter sido uma líder, exercendo, inclusive, poder sobre os seguidores masculinos de Jesus. Essa suspeita se torna plausível com a descoberta do evangelho gnóstico de Maria, no qual ficamos sabendo sobre a incredulidade de Pedro sobre a ressurreição do Messias, conforme dela deu testemunho Maria Madalena.
A crença de que a Bíblia, como um todo, pode servir de base para nortear nosso comportamento moral só se sustenta pela não percepção de que ela inclui materiais que endossam comportamentos e práticas que são moralmente inaceitáveis para as sensibilidades modernas. Consoante nota Swenson,

“(...) a Bíblia condena e ordena o assassinato, o divórcio, o ritual religioso, e a colocação da família em primeiro lugar. A menos que você compreenda a situação social de onde estes textos vêm, e algo sobre as peculiaridades da antiga literatura do Oriente Próximo, pode parecer que a Bíblia diz tudo e nada. Sem saber alguma coisa sobre o desenvolvimento da Bíblia, o leitor ficaria compreensivelmente confuso tentando descobrir exatamente quantos animais deveriam estar na Arca de Noé, com base na ordem de Deus para pegar, primeiro, um par, e, depois, sete pares de animais puros e um par de impuros, para não falar do tamanho que tal barco deveria ter (...) A Bíblia está ao nosso redor, mas nos é tão estranha quanto qualquer ET”.
( grifo meu, pp. 20-21)


Que fique claro: a Bíblia não se presta a uma leitura linear; ela não relata os acontecimentos numa ordem direta e cronológica. Muitas pessoas leem a Bíblia supondo que cada um de seus livros tem uma origem única. Enganam-se, conforme tenho me esforçado por mostrar. A própria biografia da Bíblia – ela se desenvolveu durante um período de tempo vasto e seu desenvolvimento contou com acréscimos de várias épocas, lugares e de perspectivas variadas – garante que ela diz muitas coisas, por vezes, contraditórias. As pessoas leem a Bíblia supondo também a transparência de seu significado. Mas seus textos revelam ambiguidade e estão entretecidos por contradições. Novamente, devemos ouvir Swenson, que nos ensina:

“Entendendo que a Bíblia foi composta durante um longo período por muitas pessoas diferentes, e tudo isso há muito tempo, podemos avaliar mais facilmente como, hoje em dia, pessoas diferentes extraem diferentes significados dela. Muito do que está na Bíblia não foi escrito com o objetivo de se tornar bíblico. A maior parte de seu conteúdo foi considerada como autorizada e como escritura sagrada apenas muito tempo depois que os textos foram primeiramente desenvolvidos e usados. Esses fatos tornam a interpretação hoje, tanto a secular quanto a religiosa, uma atividade rica em camadas”.
( grifo meu, pp. 23-24)


O leitor deve ter em conta esta ideia: os autores bíblicos não estavam escrevendo a Bíblia. Em outras palavras, a produção dos livros que, reunidos, alterados, editados, expandidos, comporiam a Bíblia não se destinava a trazer à existência a Bíblia.



2.3. Os profetas: Amós e Oséias
  As religiões da intolerância


No culto de Javé, desde o episódio do Sinai, os profetas insistiam na crença de que Deus estava a favor dos pobres e oprimidos. Em Uma história de Deus (2008), Karen Armstrong ensina-nos sobre a relação entre os israelitas e Javé:

“A diferença era que agora os próprios israelitas eram castigados como opressores. Na época da visão profética de Isaías, dois profetas já pregavam uma mensagem semelhante no caótico reino setentrional. O primeiro, Amós, não era aristocrata como Isaías, mas um pastor que vivia originalmente em Técua, no reino meridional”.
(p. 64)


Os profetas eram homens solitários e suas atividades visam a romper com hábitos e deveres de seu passado. Amós foi o primeiro profeta a pregar a importância da justiça social e da compaixão. À semelhança de Buda, ele estava consciente do sofrimento humano. Sua voz se fazia sentir pelo deserto em favor dos oprimidos e dos pobres.
Se, por um lado, a aliança estabelecida por Deus com Israel significava que todos os israelitas receberiam de Deus um tratamento especial; por outro lado, garantia a Deus o direito de intervir na história para impor a justiça social, nem que, para isso, tivesse de punir aqueles que entre os israelitas se comportassem como opressores de seus conterrâneos. Deus poderia, inclusive, lançar mão do exército assírio, a fim de assegurar a justiça na terra.
Não admira que os israelitas relutassem em aceitar o diálogo com Javé. Muitos preferiam continuar observando o ritual no Templo ou a prosseguir com os antigos cultos da fertilidade de Canaã. Nota Armstrong que ainda hoje são poucos que seguem uma religião da compaixão; a maioria das pessoas religiosas se satisfazem com a adoração na sinagoga, na igreja, no templo, na mesquita.
No século XII a.C., havia entre os hebreus os que acreditavam ter Javé uma esposa, como tinham outros deuses. Observa Armstrong que arqueólogos encontraram inscrições referidas a “Javé e sua Asera”. É claro que Oséias se irritava especialmente com esse fato. Para ele, a aliança de Javé com Israel supõe uma “cláusula” inviolável: não era permitido aos israelitas adorar outros deuses, como Baal. Para Oséias, Javé quer amor e não sacrifício. Quer exclusividade na adoração e não concorrentes.
Era bastante comum a adoração pelos israelitas aos deuses dos povos dominadores. Quando os israelitas se instalaram em Canaã, se dedicaram à adoração de Baal, a quem se atribuía o poder sobre a fertilidade da terra. É preciso reconhecer que o conceito de Deus foi-se modificando, ou seja, o Javé dos judeus se transformou. O Deus de Abraão, que exige o sacrifício de Isaac, e o Deus do Êxodo, que liberta os hebreus do cativeiro e os conduz à Terra Prometida fere as sensibilidades modernas, já que sua imagem é a de um Deus cruel, sádico, despótico e caprichoso.
O Deus de Moisés, que, ao ser interpelado sobre sua identidade, responde “Eu sou quem eu sou”, é um Deus que não deseja estabelecer uma relação de intimidade com os homens, um Deus que não se permite manipular por eles, à semelhança dos deuses pagãos. Armstrong ensina que a resposta de Deus a Moisés deve ser compreendida como “Não é da sua conta”. Ou seja, Javé é o Incondicionado e ele será o que quiser ser. Ele apenas promete intervir na história de seu povo, a fim de favorecê-lo. O mito do Êxodo tornou-se decisivo para acalentar a esperança num futuro próspero, em condições bastante hostis e adversas.
Se Amós combatia a injustiça social, Oséias estava mais preocupado com o modo como o povo de Israel se relacionava com Javé. Oséias advogava uma religião calcada sobre um vínculo espiritual ou interior com Deus. Oséias preocupava-se particularmente com o culto da fertilidade, o que sugere que sua esposa, Gomer, tenha sido uma figura importante no culto do deus Baal.
Os profetas contribuíam muito para a construção de uma imagem antropomórfica de Deus. Armstrong  insiste em que sempre que os profetas atribuíam a Javé os sentimentos e experiências deles, estavam produzindo um deus à imagem deles (p. 68).

“Isaías, membro da família real, viu Javé como rei. Amós atribuiu a Javé sua própria empatia com os povos sofredores; Oséias via Javé como marido traído que continuava suspirando pela esposa. Toda religião deve começar com certo antropomorfismo. Uma divindade absolutamente distante da humanidade, como o Motor Imóvel de Aristóteles, não pode inspirar uma busca espiritual”.
(p. 68)


Todos os profetas repudiavam a idolatria, e Oséias não era uma exceção. Ele acreditava ter previsto a vingança divina contra as tribos de Israel devido ao culto a outros deuses. Ele acreditava que os homens manifestavam profunda reverência às suas imagens. No entanto, conforme observa Armstrong, os cananeus e os babilônios nunca concebiam esfinges como realmente divinas; eles não se prostravam em face delas para adorá-las. Elas apenas simbolizavam a divindade. Nem a estátua de Marduc, nem as pedras eretas de Asera em Canaã eram consideradas como deuses, “mas (...) pontes focais que ajudavam os fiéis a se concentrar no elemento transcendente da vida humana” (p. 69).
Oséias entedia que esses deuses eram meros objetos de ouro e prata fabricados por um artesão. Eles, embora tivessem olhos, não podiam ver e, tendo ouvidos, não podiam ouvir.


“(...) não andavam e tinham de ser carregados por seus devotos; não passavam de seres subumanos abrutalhados e estúpidos, semelhantes a espantalhos numa plantação de melão”.
(p. 69)


Para Oséias, Javé era infinitamente superior e os odiava. Armstrong nos faz ver que a intolerância sempre foi uma característica marcante do monoteísmo. E por estarmos  tão habituados a ela, não nos apercebemos de que essa aversão a outros deuses constituía uma nova atitude religiosa. Ao contrário, o paganismo era uma fé tolerante. Admitia que novos deuses pudessem integrar seu panteão, desde que eles não afetassem os cultos tradicionais.
Se as religiões como o budismo e o hinduísmo estimulam seus adeptos a não se apegar aos deuses, tampouco a se revoltarem contra eles, o monoteísmo javista não era tolerante para com a adoração a outras divindades. Os profetas de Israel eram hostis a divindades que consideravam rivais de Javé.


“Nas Escrituras judaicas, o novo pecado da “idolatria”, adoração de “falsos” deuses, inspira algo parecido com nojo – ou, talvez, com a repulsa de alguns Padres da Igreja pela sexualidade. Tal reação não é racional, mas expressa profunda ansiedade e repressão”.
(p. 70)


É muito provável que os profetas não estivessem cientes de que a forma como eles mesmos concebiam Javé era tão antropomórfica quanto o era a idolatria dos pagãos, que tanto horror lhes provocava. É importante salientar que uma crença tácita na existência dos deuses pagãos era acalentada pelos israelitas. O próprio Oséias era extremamente preocupado em demonstrar que Javé era um deus da fertilidade superior a Baal. Mas, por ser concebido como masculino, Javé não conseguia superar deusas como Asera, Ishtar e Anat, que eram veneradas por muitos israelitas, mormente mulheres.

“(...) a vitória de Javé foi difícil. Envolveu tensão, violência e confronto, e sugere que a nova religião do Deus único não se consolidou com tanta facilidade entre os israelitas quanto o budismo e o hinduísmo entre os povos do subcontinente. Javé não parecia capaz de transcender as velhas divindades de maneira natural e pacífica. Teve de expulsá-las à força”.
(p. 71)


3. Para compreender a formação da consciência religiosa


Desde já, emprego a palavra consciência como sinônimo de eu e self (si mesmo), sem pretender, contudo, reduzir a complexidade do fenômeno da consciência às questões suscitadas pela noção de “eu” ou “self”. Como eu não esteja preocupado em explorar a questão da consciência, evidentemente, simplesmente assumo a identificação, comum em psicologia, psicanálise e filosofia, da consciência com o “eu”. A nossa consciência é povoada de signos. A realidade da consciência é o signo (Bakhtin). A consciência é o que nos põe em contato com a realidade exterior e que nos permite o sentimento do “eu” (autoconsciência). Evidentemente, a consciência pressupõe uma autoconsciência. Para eu estar consciente de algo fora de mim, preciso, primeiramente, estar consciente de que estou consciente dessa coisa. A consciência é a sede de nossas percepções, sentimentos, conhecimentos, subjetividade, memória, etc. A expressão consciência religiosa designa, então, uma modalidade da consciência que, com ser um fenômeno estrutural (não só porque suas qualidades se relacionam entre si, mas também porque nela podem-se distinguir níveis), resulta da influência das experiências religiosas, as quais expõem os fiéis a todo um complexo de estruturas de crenças, pensamentos, valores, ideologias e significados que vão dando forma a essa modalidade de consciência.
Nesta última seção, considerarei a validade de quatro conceitos que, se bem compreendidos e articulados entre si, podem contribuir para dilucidar o modo como se vai construindo a consciência religiosa, enquanto domínio de uma dada representação de mundo, da natureza humana e do devir histórico, ideologicamente estruturada.
Neste texto, não poderei avaliar a operacionalidade de tais conceitos, para o que seria necessário coletar material para análise. Vou-me limitar a defini-los e explorar sua relevância para o tratamento da formação da consciência religiosa. Não obstante, proponho que a operacionalidade destes conceitos seja testada analisando-se amostras de gêneros do discurso religioso.
Proponho, pois, que a formação da consciência religiosa seja investigada com base na compreensão de quatro fenômenos que estão intimamente ligados à experiência religiosa: alienação, ideologia, representações coletivas e tradição. É no discurso, entendido como uma etapa da prática social, que essas noções podem ser apreendidas como fenômenos estruturantes da consciência religiosa. O esforço analítico deve consistir na apreensão dos mecanismos discursivos pelos quais esses fenômenos se expressam ou se manifestam. Minha hipótese é que o discurso é a realidade imediata e privilegiada em que se pode avaliar como esses quatro fenômenos concorrem para formar uma consciência religiosa.

a) Alienação

No senso comum, diz-se de um indivíduo que é alienado se ele, pautando sua existência pelos padrões estabelecidos por sua sociedade, não demonstra estar claramente consciente de seu papel como sujeito no processo sócio-histórico. O senso comum o vê como um indivíduo despreocupado com os problemas socialmente relevantes, como um indivíduo que se submete, sem exercitar um pensamente crítico, aos valores e instituições de sua sociedade, não tendo consciência dos problemas que o atingem diretamente.
No entanto, o termo alienação tem também um sentido especializado, tendo sido introduzido na filosofia ocidental pela pena de Hegel. Para o filósofo idealista alemão, a alienação designa a ação pela qual um indivíduo se torna um outro, seja assumindo a qualidade de coisa ou objeto, seja se tornando estranho a si mesmo. Assim, em Hegel, a alienação designa o fato de um ser, a cada etapa do devir, aparecer na forma de um outro que se distingue da forma que tinha num momento anterior.
O conceito de alienação torna-se especialmente importante na crítica desenvolvida por Marx sobre o sistema capitalista. Em Marx, a alienação é entendida como uma situação econômica na qual o proletário se acha numa relação de dependência para com o capitalista. Nessa relação, o operário vende sua força de trabalho como uma mercadoria, em troca de um salário. Como não é uma relação de igualdade, o proletário torna-se um escravo do capitalista. A alienação, então, consiste na perda pelo proletário de sua essência, visto que a propriedade privada e a divisão do trabalho produzem a separação do trabalhador do seu trabalho e o priva do produto do seu trabalho. Marx, embora considerasse a alienação religiosa, via-a como um reflexo da alienação mais fundamental que se verifica na esfera econômica (infra-estrutura).
A alienação também foi um tema de que se ocupou Feuerbach, em sua análise antropológica da religião. Em seu modelo, a alienação religiosa é a situação em que o homem não se reconhece mais como criador dos deuses e da religião, visto que, na alienação religiosa, o homem projeta para fora de si sua essência, transformando-a num ser que se define por aquilo que o homem não é. Deus, assim, revela e esconde a essência do homem. Marx foi influenciado pelo pensamento de Feuerbach, embora tenha denunciado a sua orientação idealista.
Se, em Hegel, a religião é o domínio em que a alienação mais claramente se expressa, visto que nele o homem inventa e mantém o mundo da crença e da autoridade que se torna estranho ou externo a ele mesmo, Feuerbach, por sua vez, entendia que a alienação pela religião se dá no momento em que os seres humanos não se reconhecem como os verdadeiros criadores dos conceitos religiosos de que eles mesmos se servem para se humilharem. Esses conceitos, segundo Feuerbach, não são senão expressões alienadas de seus próprios processos mentais.
Convém retomar a perspectiva de Marx, a fim de que se esclareça o impacto que a noção de alienação exerceu sobre a compreensão moderna do modo como se manifesta a existência social no sistema capitalista. Na perspectiva de Marx, dizer que o trabalho no capitalismo é trabalho alienado significa dizer que no trabalho o proletário é despossuído do produto de seu trabalho. A alienação é, portanto, entendida por Marx como um estado no qual os seres humanos perdem a si mesmos (são privados de sua humanidade) e se tornam despossuídos de seu trabalho e do fruto de seu trabalho no processo de produção capitalista. Marx toma o termo a Hegel e o introduz no pensamento social.
Coube a Marx também estender a crítica de Feuerbach ao domínio da vida política e econômica na sociedade burguesa. Para Marx, o Estado e a propriedade privada capitalista constituem formas de expressão social da alienação iguais ao mundo da crença e das instituições religiosas. Mas a alienação do trabalhador no sistema de produção capitalista –preciso frisaré mais fundamental, de modo que a alienação religiosa não é mais que um reflexo daquela. Marx entendia que as relações de classe são relações de alienação.
No processo de produção capitalista, o trabalhador assalariado é destituído da propriedade dos meios de produção (ou seja, os instrumento de trabalho, a máquina, as ferramentas, as instalações, etc, e também a matéria-prima sobre a qual incide o trabalho humano), de modo que ele não tem outra escolha senão vender sua força de trabalho (capacidade para trabalhar) como uma mercadoria ao empregador capitalista. Este, uma vez instalada a relação de desigualdade, pela destituição do trabalhador dos meios de produção, passa então a ter o controle sobre esses meios de produção e sobre o produto do trabalho do trabalhador. No pagamento de um salário ao trabalhador, o empregador capitalista extrai um valor excedente (mais-valia), que é o tempo de trabalho não-pago. Esse tempo de trabalho não-pago constitui o lucro do capitalista.
Compreendida a forma como se dá essa relação de expropriação, a alienação consiste no fato de o trabalhador, no processe de produção e de troca, ser privado tanto dos meios de produção quanto do produto de seu trabalho, que constituem propriedade privada do capitalista.
A esta altura, cumpre dizer que Marx via o trabalho como a expressão da essência do homem, donde se segue que a alienação, nesse processo de privação ou estranhamento do trabalhador, na própria atividade de trabalho, é a perda de sua própria humanidade. Na alienação estaria a origem da desigualdade crescente, da pobreza da maioria em contraste com a riqueza de poucos, do antagonismo social e da luta de classes. Os próprios capitalistas, no entanto, não estariam, segundo Marx, livres desse estranhamento, sempre que procuram enriquecer-se pela competição e à custa do declínio econômico ou falência uns dos outros.
Marx compreendia a alienação como a perda do self. Por isso, é mister ter em conta que a alienação é vista por ele como um processo de desumanização do homem. Na produção, o homem se torna uma mercadoria tanto quanto o produto de seu trabalho. O trabalhador torna-se mais pobre quanto mais riqueza produz em benefício de um outro que o subjuga. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior é o número de bens que produz.
Vejamos como Marx descreve a situação de alienação do trabalhador, em seu Manuscritos Econômicos Filosóficos (2006):

“(...) quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo, mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si, mais pobre ele fica na sua vida interior, menos pertence a si próprio. O mesmo se passa na religião. Quanto mais o homem atribui a Deus, menos guarda para si mesmo. O trabalhador põe sua vida no objeto, porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. O que se incorporou no objeto de seu trabalho já não é seu. Assim, quanto maior é o produto, mais ele fica diminuído. A alienação [ênfase no original] do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele, que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica”.
(grifo meu, p. 122)


Constituem ideias-chave para compreender adequadamente o conceito marxista de alienação as ideias de reificação, estranhamento e poder autônomo. A alienação do trabalhador implica a transformação tanto do trabalhador quanto do seu trabalho em objetos (reificação). Nesse processo, o trabalho, transformado em objeto, passa a ser visto pelo trabalhador como uma realidade externa a si e independente de si; donde o estranhamento, visto que o trabalhador alienado não se reconhece no produto de seu trabalho. O produto de seu trabalho, portanto, já transformado em objeto, e não sendo senão a expressão de tempo de trabalho e da força de trabalho do trabalhador, passa a exercer sobre este um poder que o constrange, que o domina.
Em tais condições, o trabalhador sente profundo mal-estar e infelicidade. O trabalho torna-se para ele um sacrifício, já que é visto como trabalho forçado. A alienação ocorre, portanto, não só no resultado do trabalho (no estranhamento do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho), mas também no próprio ato de produção. A própria atividade de produção é uma atividade alienada. No trabalho, concluirá Marx, o trabalhador sente-se fora de si. Atentemos para o que nos ensina Marx sobre como se estabelece a relação do trabalhador e do trabalho no processo de produção que assume a forma alienada:

“(...) o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio. O seu caráter estranho resulta visivelmente do fato de se fugir do trabalho, como da peste, logo que não existe nenhuma compulsão física ou qualquer outro tipo”.
(ênfase no original, p. 114)


O trabalho visto como algo exterior ao trabalhador é o trabalho que deixou de ser a realização de sua humanidade, para torna-se propriedade de outro (o capitalista). Em suma, dizer que o trabalho não pertence mais ao trabalhador é dizer que o trabalho é propriedade do capitalista.
Marx via esse processo de estranhamento e exteriorização na experiência religiosa também, desde que nela “a atividade espontânea da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos reage independentemente como uma atividade estranha, divina ou diabólica, sobre o indivíduo” (p. 114). Tanto no domínio da produção capitalista quanto no domínio da experiência religiosa, a alienação se manifesta no sentimento de perda de si que experimenta o homem. Nos dois domínios, o homem sente um estranhamento tanto em relação à atividade que exerce quanto em relação ao produto ou resultado dessa atividade (os sentimentos e experiências que tem são considerados como provindos de outro domínio, um domínio que os transcende). A alienação religiosa se manifesta, tal como sucede na produção capitalista, no sentimento que tem os fiéis de que os objetos de culto, como as divindades, exercem sobre si um poder que os excede.
Cumpre enfatizar que Marx não ignorava o fato de que os agentes sociais podiam sentir-se felizes em seu estado de alienação, como nas situações em que o crescimento econômico favorece ganhos que lhes permitem dar a sua família pequenas regalias. Isso, contudo, não os torna menos alienados quanto o são nas condições normais em que o salário que lhes é pago é o mínimo necessário para que possam subsistir. Eles continuam tão alienados quanto os religiosos absorvidos em êxtase.
A alienação tem correlatos psicológicos, como deve ter ficado claro. Autores posteriores se dedicaram a distinguir dimensões psicológicas da alienação. Robert Blauner, por exemplo, em  Alienation and Freedom (1964), apontou quatro dimensões: impotência, insignificância, isolamento e autoestranhamento.
Quando tomamos a Igreja Católica, por exemplo, como uma instituição sócio-histórica, reconhecemos nela uma organização hierárquica de alienação. Nessa hierarquia, a alienação atinge os estratos superiores do poder, o primeiro dos quais é o Episcopado, em que se encontram o Papa, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos e outras designações; o segundo é o presbiterado, em que se situam os padres; o terceiro é o diaconado, onde se acham os diáconos, auxiliares de padres e bispos. Em estratos mais baixos, encontram-se os consagrados e os leigos – estes formam a comunidade religiosa que participa da missa e, muita vez, tem a missão de testemunhar o Evangelho. Os consagrados podem ser leigos ou clérigos que se organizam em ordens religiosas ou institutos seculares e que decidiram consagrar sua vida a Deus, por meio de celibato, clausura monástica, obediência e pobreza.
Embora todos esses agentes religiosos exerçam atividades alienadas, embora todos eles se encontrem em estado de alienação mais ou menos acentuado, os que gozam dos privilégios do poder aproveitam-se da alienação dos que estão excluídos das esferas de poder para garantir a perpetuação das relações de dominação e do exercício do poder autoritário.
A alienação é produzida e reproduzida pelo discurso religioso em seus diversos gêneros. A alienação e a ideologia se determinam mutuamente. A fim de que compreendamos como a estrutura  da instituição religiosa é determinante da formação de consciências alienadas, vou-me socorrer da contribuição de Bourdieu, em A economia das trocas simbólicas (2011), ao discorrer sobre a gênese e estrutura do campo religioso.
Interessa-me considerar, na abordagem de Bourdieu, o conceito de capital religioso, que se correlaciona com os conceitos de capital social e capital cultural, e a posição e influência do corpo sacerdotal na constituição de uma estrutura de alienação.
Começo, pois, notando que o campo pode ser definido, segundo Bourdieu, como um sistema que, mesmo exibindo certa autonomia, não deixa de ser estrutural e funcionalmente determinado, em virtude da posição que ele ocupa no interior do campo de poder. O campo consiste num sistema de posições, determinadas previamente, no interior do qual se acham classes de agentes beneficiários de propriedades de um determinado tipo, socialmente constituídas.
A autonomia do campo religioso se expressa na tendência de seus especialistas se cingirem num sistema autárquico de saber acumulado (ou seja, num sistema de saber que basta a si mesmo) e numa produção de caráter esotérico que, inicialmente, se destinava aos produtores. Aqueles especialistas compõem o corpo sacerdotal, que está diretamente ligado à racionalização da religião. A legitimidade desse corpo decorre de uma teologia transformada em dogma cuja validade e perpetuação ele garante. Esse corpo de especialistas religiosos monopoliza a gestão dos bens de salvação e é, socialmente, reconhecido como portadores exclusivos da competência específica e necessária à produção e à reprodução de um corpus de conhecimentos secretos deliberadamente instituído (Bourdieu, p. 39).
Segundo Bourdieu, o campo religioso envolve o impedimento daqueles que dele são excluídos da apropriação dos mecanismos de seu funcionamento interno. Os “excluídos” se convertem, por isso mesmo, em “leigos”. Os leigos, aos quais se nega participação na gestão do funcionamento do campo religioso, são, assim, destituídos do capital religioso (“trabalho simbólico acumulado” (Bourdieu, p. 39). Deve-se salientar que os leigos reconhecem a legitimidade dessa desapropriação pelo simples fato de que a ignoram enquanto tal. Bourdieu chama a essa desapropriação de objetiva. O que seria, então, a desapropriação objetiva? Consiste ela na relação objetiva que os grupos ou classes, situados numa posição inferior na estrutura de distribuição de bens religiosos, mantêm tanto com o novo tipo de bens de salvação, que deriva da dissociação entre trabalho material e trabalho simbólico, bem como dos avanços da divisão do trabalho religioso. Se é verdade que a desapropriação objetiva não implica necessariamente um “empobrecimento” religioso, ou seja, um acúmulo e concentração nas mãos de um grupo particular de um capital religioso até então distribuído igualmente entre todos os membros da sociedade, não é menos verdade que esse “empobrecimento” pode ocorrer por força da desvalorização desse capital, quando vinculado a outras formas novas de capital. O conceito de capital tem, evidentemente, uma filiação com a doutrina de Marx, mas não significa a mesma coisa em Bourdieu. Bourdieu distingue entre capital social e capital cultural. Com o primeiro, o autor buscou explicar a razão por que alguns grupos logravam sucesso na transmissão de sua posição socioeconômica privilegiada. Segundo Bourdieu, a razão consiste em que eles mobilizam o capital, ou seja, a totalidade de recursos (propriedades materiais, saberes, influências, etc.) que se liga a um indivíduo ou grupo, por força de sua participação em redes de relações permanentes, que têm certo grau de institucionalização, que se revestem de familiaridade e reconhecimento. O capital cultural serve à avaliação do papel que desempenha o conhecimento e os gostos culturais no processo de formação de classe. Segundo Bourdieu, o capital cultural cumpre um papel cultural na transmissão do poder e de prerrogativas às gerações. O capital cultural compreende as ideias e conhecimentos de que lançam mão as pessoas a fim de participar do mundo social. O capital cultural pode abrigar desde regras de etiqueta até a competência para falar e escrever segundo padrões de linguagem socialmente prestigiados. Esse conceito permitia a Bourdieu teorizar sobre a distribuição desigual dos produtos da atividade cultural em sociedades estratificadas e sobre o modo como essa desigualdade privilegia certas minorias.
Para Bourdieu, as diferentes formações sociais podem ser organizadas  em função do grau em que se encontra o desenvolvimento e a distinção de seu aparelho religioso, entendendo-se por aparelho religioso “as instâncias objetivamente incumbidas de assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão dos bens religiosos” (p. 40). A função exercida pelo aparelho religioso depende da distância que há entre os bens religiosos e os polos extremos do consumo religioso (desses bens pelos religiosos) e da monopolização total da produção religiosa (atividade que envolve saberes, pedagogia, administração de sacramentos, rituais, etc.) pelos especialistas. A esses dois extremos da estrutura de distribuição do capital religioso, correspondem:

1) tipos antagônicos de relações e experiências diretas com os bens religiosos e, mais especificamente, tipos antagônicos de competência religiosa, a saber, “o domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento e de ação objetivamente sistemáticos, adquiridos em estado implícito por simples familiarização” (p. 40) e o domínio erudito de um “corpo de normas e conhecimentos sistematizados pelos especialistas”, que atuam numa instituição socialmente incumbida de reproduzir o capital religioso por meio de uma ação pedagógica explícita. Desnecessário dizer que os membros do grupo religioso põem em prática os esquemas de pensamento adquiridos de modo pré-reflexivo.

2) tipos claramente diferentes de sistemas simbólicos, como sistemas de mitos e rituais e as ideologias religiosas, que assumem a forma de teogonias, cosmogonias e teologias que resultam de um trabalho de interpretação por um corpo de especialistas letrados, levada a efeito para atender aos novos encargos e funções internas, que se correlacionam à existência  dos agentes religiosos, e para atender às funções externas, que decorrem, por exemplo,  da constituição do Estado (instrumento de expressão e garantia do poder da classe dominante) e da divisão de classe, funções estas que favorecem a existência das grandes organizações religiosas com seu projeto de universalização de sistemas de representação de mundo disciplinadores de uma Verdade garantida, em última instância, por um Poder Supremo que se impõe do alto aos que aqui embaixo não podem senão aceitar.
 Portanto, o modo como se estrutura o funcionamento do campo religioso, com seu mecanismo de desapropriação objetiva, com a atuação do aparelho religioso, com sua série de divisões internas que culminam com a exclusão dos membros religiosos das esferas de produção religiosa, com sua distribuição desigual do capital religioso; enfim, com a atuação dos especialistas na sistematização de ideologias numa pedagogia que assume um caráter dogmático explícito, estabelece as condições de que resulta a alienação. A alienação é um fenômeno constitutivo e decorrente da estruturação do campo religioso.
 Assim, por exemplo, no momento em que, em função das condições do funcionamento do campo religioso, se transforma numa “verdade de fé” (uma verdade revelada) a crença de que a Bíblia é uma obra, um produto de um trabalho inspirado ou guiado por Deus e no momento em que essa crença entra a fazer parte, pela tradição, das representações coletivas, por meio das práticas linguísticas, produz-se, nos fiéis, uma consciência alienada, na medida em que, por força da ideologia, eles se tornam incapazes de reconhecer que, na origem do desenvolvimento dos manuscritos que vieram a compor a Bíblia, se acham ações e acontecimentos cujos únicos agentes são os próprios homens. A consciência religiosa alienada atribui a um Outro (Deus) uma força acional (ele age, atua) vendo os seres humanos como meros instrumentos de uma atividade exercida por Deus (Deus atua através do homem). Basta um pequeno passo de raciocínio para elaborar a crença de que a Bíblia é uma obra sobre-humana (A Palavra de Deus).
Não posso deixar de notar que Marx estava ciente do sentido jurídico da palavra alienação e, de certo modo, ele aproveitou traços desse sentido. No domínio jurídico, “alienar” é, grosso modo, o ato de transferir uma propriedade a outro. A ideologia, responsável por apresentar a realidade de “ponta-cabeça”, trata de completar o trabalho ocultando-lhes à consciência as verdadeiras causas do surgimento da Bíblia.
Da mesma forma, quando a religião é entendida como uma realidade transcendente e divina e não uma realidade imanente à história e produzida pelo homem, a consciência religiosa se aliena, já que o que é produto da atividade humana passa a ser visto como estranho à vontade e à ação humanas e, portanto, encarado como uma realidade produzida por um Outro que as transcende. Também quando Deus é concebido como um ser atemporal, a-histórico, transcendente, afirmado como o Absoluto, a Realidade Primeira e Incriada; em suma, quando, por uma operação de abstração, os religiosos pensam Deus como um Ser “descolado”, “desenraizado” das condições sócio-históricas em que ele, enquanto conceito e signo de aspirações, de poder, de um projeto político e identitário, também se deixam absorver num estado de alienação.

b) Ideologia

Ideologia, não custa lembrar, é um termo que congrega várias perspectivas. Sãos muitas as definições de ideologia, dependendo de quem o emprega e da abordagem teórica que adote. Não obstante, não se pode negar que sua importância para as ciências humanas torna-se patente na obra A ideologia Alemã, de Marx e Engels. Nela, o termo ideologia aparece para referir-se, criticamente, à concepção idealista de filósofos como Hegel e Feuerbach, cujas análises filosóficas eram orientadas pelo plano das ideais, sem contemplar o domínio material donde aquelas se originam, ou seja, sem levar em conta as relações sociais e a estrutura econômica da sociedade.
Marx situa a ideologia como um fenômeno pertencente à superestrutura e a define como uma espécie de falsa consciência, como uma forma de pensamento que mascara as causas reais das condições sociais de existência, ou seja, os valores, representações, práticas, instituições, que são de natureza material, a saber, social e econômica. Parafraseando Marx, não é a consciência que determina as relações sociais; ao contrário, são as relações sociais que determinam a consciência. Em outras palavras, a infra-estrutura, o domínio das relações econômicas, é que determina o domínio da produção das ideias (superestrutura). A infra-estrutura é a causa e substrato da superestrutura ideológica (crenças religiosas, morais, estéticas, jurídicas, filosóficas, etc.) A estrutura econômica da sociedade constitui a base real por que se deve explicar a superestrutura das instituições políticas e jurídicas. A superestrutura compreende o domínio da cultura, das instituições, das ideologias de uma sociedade. Os críticos de Marx não deixaram de notar que ele exagerou ao sustentar uma determinação direta do domínio econômico sobre a consciência dos agentes sociais.
A ideologia, para Marx e Engels, serve à reprodução e à legitimação das condições sociais de existência, produzindo a aceitação pelos indivíduos dessas condições. Ela inverte a relação entre as ideias, que representam o real, e o próprio real, que deveria explicá-las. Na ideologia, o mundo aparece para a consciência dos agentes sociais de modo invertido. A ideologia serve à satisfação dos interesses da classe dominante, na medida em que faz parecer que esses interesses são os interesses da sociedade como um todo.
A ideologia, na medida em que serve para legitimar as relações que não expressam senão os interesses de uma classe dirigente, contribui para manter a coesão social, evitar conflitos e conservar as condições de dominação, que não são percebidas como tais (por força mesmo dos mecanismos ideológicos).
Uma das formas de a classe dominante exercer seu domínio é através de suas ideias, conforme notam Marx e Engels, em A Ideologia Alemã (2008):

“As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual”.
(p. 78)


Do excerto acima citado, deve-se concluir:

a) As ideias dominantes expressam, no plano ideal, as relações materiais dominantes;

b) As relações materiais dominantes assumem a forma de ideias;

c) Essas ideias refletem as relações que conferem o poder de dominação a uma classe;

d) As ideias que exercem domínio são as ideias da dominação dessa classe.

A ideologia, em Marx e Engels, é vista como um instrumento de poder de que se serve a classe dominante para exercer sua dominação e legitimá-la, de modo a reproduzi-la. Atentemos para o que acontece quando as ideias dominantes tomam existência independentes, ou são vistas como tais, da classe que as produziu:

“Uma vez que as ideias dominantes estejam separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que surgem de um dado estágio do modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que são sempre as ideias que dominam na história, é muito fácil abstrair dessas ideias “a ideia”, quer dizer, a ideia por excelência, etc., como elemento dominante na história e nessa medida conceber todos esses conceitos e ideias particulares como “autodeterminações” do conceito que se desenvolve ao longo da história. A seguir, também é natural fazer derivar todas as relações humanas do conceito de homem, do homem representado, da essência humana, do homem em si”.
(p. 81)


Este texto é explicitamente referido como uma crítica à filosofia idealista e, particularmente, à filosofia idealista de Hegel. Não obstante, ele nos ajuda a iluminar a compreensão do processo de apagamento das raízes históricas do conceito de Deus, tema que discuti em outro texto.
Como produto de processos socioideológicos, culturais, políticos, que configuram determinadas condições sócio-históricas, o conceito de Deus não deixou de sofrer transformações em seu domínio semântico. No momento em que ele se universaliza, graças aos esforços das forças socioideológicas e políticas encarnadas por seres humanos reais, quase sempre vinculados a determinadas comunidades teológicas, que tomam parte das esferas de poder (político, espiritual, econômico), o conceito de Deus aparece à consciência dos indivíduos das gerações futuras como se tivesse uma existência independente das condições sócio-históricas e ideológicas nas quais foi forjado e se desenvolveu. Tendo sido abstraído das conjunturas históricas, o conceito de Deus pode então representar um Ser sobre-humano, supernatural, atemporal, a-histórico; em uma palavra, transcendente, cuja existência reveste-se de um valor de verdade que deve ser protegido das investidas dos espíritos críticos com os apelos do coração resignado. No trecho abaixo, Marx e Engels enfatizam a relação necessária entre a infra-estrutura e a superestrutura e nos dão a conhecer o modo de operação da ideologia:

“A produção das ideias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, etc., mas os homens reais e atuantes tal como são condicionados por um desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações a eles correspondentes, até chegar às suas mais amplas formações. A consciência nunca pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo vital. E, se, em toda ideologia, a humanidade e suas relações aparecem de ponta-cabeça, como ocorre em uma câmara escura, tal fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma maneira pela qual a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico”.
(grifo meu, p. 51)


Claro deve, pois, parecer ao leitor que a ideologia, em Marx, deve ser compreendida na dinâmica das relações materiais (econômicas). A ideologia envolve duas operações espirituais básicas, inferíveis da descrição que faz Marx do modo como ela opera: a inversão e o ocultamento. A inversão ideológica se dá quando se parte da consciência para explicar a realidade, ou melhor, quando se considera a realidade como reflexo das ideias. O ocultamento operado pela ideologia consiste no processo por meio do qual se mascaram as causas reais de uma dada realidade (social, política, cultural, etc.), com racionalizações que não são outra coisa senão reflexos do parecer social, das formas como a realidade social aparece à consciência imediata dos indivíduos.
Em certo sentido, Marx segue a tradição platônica, ao postular, quando enfoca a noção de ideologia, a distinção entre a esfera das aparências (o mercado) e a esfera das essências (das relações no domínio da produção). A ideologia, assim, impediria que a consciência atingisse o nível da essência das relações sociais, fazendo crer que a totalidade do real se reduz ao parecer social, ao nível do imediatamente experienciado. É assim que a ideologia faz crer ao homem comum que, em seu trabalho, ele se encontra numa relação de igualdade com o seu empregador, pelo simples fato de que, nessa relação, ele recebe um salário que acredita ser justo. O que a ideologia lhe oculta é que ele é despossuído dos meios de produção, do produto de seu trabalho, da força de trabalho, que vende como uma mercadoria, que, ao final de um mês, recebe um salário cujo valor não corresponde à totalidade de tempo que consumiu trabalhando.
Outras abordagens de ideologia se seguiram à de Marx. Destacarei a definição de Durkheim, porquanto nos ajuda a compreender como a religião exerce seu poder ideológico.  Para o sociólogo francês, a ideologia recobre um conjunto de pré-concepções ou ilusões que substituem o real na consciência dos indivíduos, distorcendo-o e gerando um “mundo imaginário”.

O discurso como lugar privilegiado da ideologia

Se quisermos compreender como os processos ideológicos atuam no sentido de produzir hegemonia (Gramsci), a saber, de produzir a adesão e o consentimento das massas, necessário se faz que nos detenhamos a investigar a materialidade linguística dos processos de produção de sentido no discurso. Claro é que a esse intento deve preceder uma concepção de discurso, clara e adequada aos propósitos estabelecidos para a análise. Já me ocupei da materialidade ideológica de todo signo linguístico e do fenômeno discursivo como espaço de manifestação de formações ideológicas, quando trouxe à baila, em outro texto, as ideias de Bakhtin. Por isso, nesta oportunidade, vou tão-só apresentar os modos de operação da ideologia no discurso, à luz da Análise Crítica do Discurso.
Um discurso será considerado ideológico, sempre que suas representações e pressupostos estiverem ligados a relações de dominação e estiverem a serviço de sua reprodução. As relações de poder são, assim, mais eficazmente sustentadas por meio de significados que se veiculam de modo tácito. A não-percepção desses significados pelos indivíduos garante o estabelecimento da hegemonia, ou seja, da universalização de perspectivas de classes particulares. Uma teoria crítica de ideologia mantém que toda ideologia tem caráter hegemônico, desde que ela está a serviço do estabelecimento e da manutenção de relações de dominação.
Com base em Thompson, em Ideologia e Cultura moderna (1995), pode-se distinguir entre cinco modos gerais de operação da ideologia. Elenco esses modos e os defino abaixo:

1) legitimação: a legitimação torna possível que as relações de dominação se estabeleçam e se sustentem por serem representadas como justas e, portanto, como merecedoras de apoio.

2) dissimulação: na dissimulação, as relações de dominação são produzidas e sustentadas por meio da negação ou ocultamento de sua realidade injusta e necessariamente assimétrica.

3) unificação: a unificação permite que as relações de dominação se estabeleçam e se sustentem por meio de construções simbólicas que engendram relações ou comportamentos percebidos como expressão de uma unidade.

4) fragmentação: nesse modo de operação, as relações de dominação podem ser reproduzidas pela separação de indivíduos ou fragmentação de grupos que, quando unidos, podem obstaculizar a manutenção do poder.

5) reificação: através desse modo, a ideologia faz parecer permanente, definitiva e inalterável uma realidade transitória, por meio da ocultação de sua realidade sócio-histórica que é, por definição, o devir (ou seja, o que, embora existindo, está destinado a transformar-se ou desaparecer).

Cada um dos modos de operação da ideologia inclui certo número de estratégias discursivas em que eles se baseiam. Ciente de que me alonguei demais, não discorrei sobre todas elas. No entanto, a título de ilustração, tomo apenas duas das quatro estratégias abrigadas pela reificação, quais sejam, a naturalização e a eternalização. Por meio da estratégia de naturalização, uma realidade social é apresentada como se fosse um dado natural, independente da ação humana. Na estratégia de eternalização, os fenômenos históricos são considerados como realidades permanentes e inalteráveis. Por exemplo, com base na primeira estratégia, já se justificou, no passado, as desigualdades sociais como fatos decorrentes de diferenças ou desigualdades biologicamente determinadas. A segunda estratégia pode servir, por exemplo, para manter relações de dominação com base na ideia de que “as coisas sempre foram assim não há como mudá-las”, produzido o conformismo social.


c) Representações coletivas

Competiu a Durkheim cunhar a expressão representações coletivas, com vistas a designar certos tipos de “fatos sociais” que se situam no domínio psíquico dos indivíduos em coletividade. As representações coletivas compreendem as crenças, as ideias, os valores, os símbolos, os pontos de vista que estruturam modos de pensamento e de sentimento que são gerais e estáveis numa sociedade ou grupo social. As representações coletivas são compartilhadas pelos indivíduos em coletividades e servem para nortear suas práticas e organizar suas vidas. Elas são elementos constitutivos da cultura.
Segundo Durkheim, para agir no mundo, as pessoas precisam representá-lo em sua consciência e prever as consequências de suas ações. Assim, as representações coletivas são arranjos de crenças, ideias, representações, etc. que, sendo partilhados, capacitam os indivíduos para atuar tanto no mundo natural quanto no mundo social.
Uma vez que compreendamos a função que desempenham as representações coletivas para a existência do homem como ser social, seguir-se-á, naturalmente, daí que a realidade é sempre socialmente construída.  Na visão de Durkheim, as representações coletivas se manifestam como uma “consciência coletiva” ou “percepção social”, que é exterior aos indivíduos, ou seja, que preexistem como realidade objetiva e que perdurará mesmo depois da morte deles. Ensina ainda Durkheim que os indivíduos nascem em contextos sociais já constituídos de um grande conjunto de representações coletivas, que são interiorizadas por eles no processo de socialização. Elas são experienciadas como realidades dotadas de um sentido de obrigatoriedade, portanto, como realidades que limitam as ações dos indivíduos e as relações que eles constroem uns com os outros. As representações coletivas são partes constitutivas das instituições sociais. Em outros termos, as instituições sociais se constroem na base de representações coletivas. As instituições sociais sedimentam as relações sociais em padrões diferentes e recorrentes, transformando-os, muitas vezes, em costumes. Toda sociedade supõe, evidentemente, indivíduos que se relacionam mediante representações compartilhadas.
Na perspectiva da psicologia social, pode-se pensar as representações coletivas como formas de organização de atitudes e opiniões em estruturas cognitivas. Trata-se de estruturas mais diversificadas e fluidas quando se consideram as condições das sociedades modernas. Nestas, os meios de comunicação de massa exercem uma influência decisiva na disseminação e transformação dessas representações.


d) Tradição

Por tradição, entende-se um sistema de significados ou ideias, culturalmente produzido, que se transmite de gerações passadas para gerações futuras. As tradições, assumindo a forma de significados sustentados e comunicados pelos membros de uma dada sociedade, vão gerar cadeias de significados que constituem as memórias coletivas, as representações compartilhadas e as formas costumeiras de realizar certas atividades ou tarefas.
As tradições são adquiridas na socialização, processo ao longo do qual elas são percebidas como “coisas” que persistem por um longo período de tempo, sem sofrer grandes mudanças. As tradições são instituições sociais que influenciam o comportamento dos indivíduos, inculcando-lhes hábitos de ação, que se manifestam de modo irrefletido e sem deliberação racional.
Cumpre notar, finalmente, que as tradições tendem a ser herdadas por meio de mecanismos sutis de coerção e são inculcadas na consciência dos indivíduos como assuntos que não são passíveis de questionamentos. As tradições se lhes apresentam à consciência como fatos sociais estabelecidos.

Pondo termo a este texto, gostaria de salientar que estas reflexões devem ser compreendidas no interior de um projeto mais amplo e em contínuo desenvolvimento que se norteia pela proposição segundo a qual um ateísmo esclarecido supõe uma base de conhecimento sobre a História dos cristianismos primitivos, do desenvolvimento da Bíblia e da produção e desenvolvimento do conceito do Deus judaico-cristão.