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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"O homem é uma criação do desejo, não uma criação da necessidade" (Bachelard)

                       
                           

                               Sobre o meu lugar no mundo


A sala de aula é o lugar onde me encontro. Para lá quero voltar.
Os consultórios de psiquiatria estão repletos de gente como eu – pedintes de socorro de seu sofrimento e de suas neuroses de caráter.
Os consultórios de psiquiatria são como UTIS para onde confluem os pacientes psiquicamente graves e onde eles são conduzidos para o confrontar com a realidade verdadeira do seu eu mesmo, a qual não se desvela sem uma grande dose de dor, inquietação e perplexidade, para alguns, e de recusa, no caso de outros.
A sala de aula é o lugar de encontros com a diversidade, lugar onde raramente estou exclusivamente ocupado de mim.
O eu, em nossa vida cotidiana, veste muitas máscaras, atua de modos vários e compulsivos; articula estratégias de autodefesa, adota comportamentos que repetem experiências traumáticas de um passado do qual ele é uma manifestação presente; comportamentos em cujo cerne se encontram impulsos inconscientes. Tamanho é o encargo do ser eu que, para uma grande maioria, é melhor evitar o confronto na intimidade de seu domínio constantemente usurpado por forças sobre as quais ele, o eu, não exerce controle.
Os consultórios de psiquiatria estão, portanto, repletos de pessoas que não conseguiram mais resistir às exigências da normalidade que se supõe haver de modo definitivo e a qual é tomada, sem o devido questionamento, como critério para o ajustamento cultural de cada indivíduo.
O eu é, essencialmente, conflito e angústia. A psicanálise é uma área do saber humano que, com a filosofia, exerce sobre mim grande fascínio. E estudá-la possibilita-me um autoconhecimento indispensável à sustentação do eu-existo. No entanto, o debruçarmo-nos sobre a literatura psicanalítica só não basta para que logremos sobreviver a nós mesmos. A ajuda de um especialista me parece indispensável.
No entanto, é na sala de aula e não no consultório de tratamento da alma que encontro meu lugar no mundo. Naquele, na verdade, sou levado continuamente a questionar esse meu lugar no mundo, sou levado a suspeitar de que tenho mesmo algum lugar previamente fixado neste mundo; sou levado a ver que esse lugar deve ser construído, deve ser produto de uma tarefa –a tarefa que consiste, com Kierkegaard, em existir. É na sala de aula onde minha vida se faz dotada de algum propósito, ainda que esse estado de crença num propósito para a existência seja definitivamente ilusório. É verdade que me vejo à volta com a idealização ao tomar a sala de aula como esse lugar de encontro. As salas de aula são também espaços onde se reproduzem os conflitos e as contradições que impregnam tanto o domínio social quanto o domínio individual. Não obstante, é lá que reconheço uma espécie de hábitat. É lá onde não estou interessado apenas em mim mesmo e alargo meu interesse para o outro tendo em vista seu benefício. É lá onde flerto, costumeiramente, com um ideal, sem o qual a vida seria intoleravelmente dolorosa.
Quero, agora, gestar esta última ideia – na verdade, uma convicção cuja validade deixo ao leitor mensurar segundo os seus filtros de interpretação constituídos de todo um repertório de saberes, pressupostos, crenças, valores e afetos previamente formado em suas experiências em sociedade.
Trata-se esta ideia de ver a poesia também como um lugar onde me encontro e onde dou a conhecer ao olhar/sentir especializado o desconhecido de mim. Estou convencido – se bem que não consiga demonstrá-lo claramente – de que alguém treinado em algumas das disciplinas da alma (particularmente, em psicanálise) não teria dificuldade para reconhecer a dimensão de processos inconscientes que determinam a minha escrita poética e a atravessam em sua materialidade linguística, e que dão coloração afetiva à minha personalidade. É como se os meus poemas dissessem algo muito mais profundo, algo escuso, inacessível a uma leitura linear, sobre a dimensão de meu caráter que o eu-lírico parcialmente encoberta; é como se eles permitissem o acesso, se bem que nunca direto, ao inconsciente que determina a totalidade da vida consciente. Em parte, esse potencial que tem a poesia para permitir o acesso ao inconsciente parece dever-se ao fato de ela não se fazer com uma lógica racional, estruturalmente argumentativa; a sua estrutura é a do afeto.
A poesia é composta à proporção que sentimentos, desejos, pulsões vão tomando a forma de representações na alma. No entanto, dessas representações o eu-lírico não está de todo consciente; melhor seria, não está de todo consciente da profundidade simbólica dessas representações. Elas são portadoras de impulsos inconscientes.
Cabe, finalmente, a questão de saber quem é esse sujeito da poesia, quem é esse eu-lírico. Se não é o autor de carne e osso, dotado de uma identidade pessoal, é ele então uma entidade do discurso? Sim, responderemos respaldados nos estudos da Análise do Discurso. É ele uma persona discursivamente cnstituída. É ele um lugar atravessado pela ideologia e pelo inconsciente;  é uma imagem. Mas esta entidade discursivamente construída não seria também uma manifestação de uma região da subjetividade do produtor do texto? A questão é complexa e demanda reflexões cuidadosas que convocam a contribuição interdisciplinar entre psicanálise, sociologia, história, linguística e linguísticas do discurso. Mas ela aponta para a complexidade desse sentimento de eueu que não é uma substância, que não é uma coisa que existe sem um corpo; eu que é uma imagem, uma ficção em torno da qual a vida psíquica busca equilibrar-se em meio ao turbilhão de conflitos que de suas profundezas emergem.
Não estou a supor que a leitura e a escrita sejam formas de me salvar do fardo do ser eu. Essa foi uma suposição que acalentei durante vários anos e que submeti a um processo de desmitificação durante o período em que decidi buscar ajuda psiquiátrica. Da minha relação com a escrita e com a leitura, sobra-me, no entanto, um esforço por me tolerar, por me fazer mais fortalecido em face das armadilhas de minhas neuroses. No entanto, também resisto à ideia de que escrever e ler sejam minhas atividades de fuga ao confronto comigo mesmo e com as frustrações e decepções pelas quais sou, em grande parte, responsável. Quem assim pensa esquece o fato de que o texto é um espaço, necessariamente, interacional-dialógico. Por anos, a escrita serviu-me como um lugar de confronto incessante com meus medos, com minhas angústias, com minhas inquietações viscerais.


A palavra é o único meio de contato entre a consciência, constituída de palavras, e o mundo exterior, onde circulam palavras. A palavra é o espaço dialógico onde a interioridade da consciência se relaciona dialeticamente com a exterioridade do mundo sensível. E nenhuma concatenação de palavras, de signos consegue suprimir o silêncio, e o sentido que todo silêncio comporta e faz dizer. 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Quem sou eu?" Essa pergunta só faz quem se sabe ignorante de sua resposta" (BAR)


                                   Solidão dos pensamentos

                                           A memória do Eu


Nesta nova oportunidade em que me encontro com as palavras, em que ponho em movimento este comboio verbal (pois este texto nada mais é do que um comboio de palavras), escreverei sobre mim. Nada mais trivial, decerto. Nada mais ordinário. Que interesse terá o tema para o leitor desconheço, por ora. Mas esteja certo, leitor (melhor seria, “leitora”), de que não me ocuparei de mim reunindo neste papel virtual um bando de banalidades subjetivas. A proposta é sempre alguma forma de reflexão. Preciso reler-me e compartilhar com você essa releitura; e quem sabe, assim, provocar-lhe o instinto de releitura de si. Ao termo deste texto, tendo já elaborado um gesto de interpretação, quiçá, estará motivado a desenvolver uma leitura de si mesmo na sua intimidade intrapsíquica.

Durante essa proposta de releitura de mim mesmo, convidarei o leitor a pensar sobre alguns fenômenos fundamentais à história existencial de cada um de nós, enquanto indivíduos. Portanto, não passará despercebida ao leitor uma base teórica subjacente a guiar-me as reflexões – ou melhor, o movimento espiritual de instrospecção. O rigor conceitual é um mau hábito que adquiri ao longo de minha formação acadêmica, sobretudo, ao longo de minhas experiências de leitura de filosofia. Por instrospecção, em psicologia, devemos entender um método através do qual uma consciência individual examina seu próprio conteúdo, a saber, seus sentimentos e ideias. A instrospecção é uma etapa da psicoterapia e conta, portanto, com a participação do terapeuta, cuja função é induzir o paciente a avaliar seus próprios sentimentos, levando-o a se dar conta das causas que lhes são subjacentes. Uma vez identificadas essas causas, o paciente poderá modificar seus padrões de comportamento pessoal e social. Na ausência de um terapeuta, imponho-me a dupla tarefa de agente indutor (ou condutor) e agente realizador.

A memória é, sem dúvida, um fenômeno fundamental na construção da história existencial de todos nós. Esse sentimento de continuidade do ‘eu’ – que somos hoje e que fomos no passado – só é possível graças à memória. Dela depende a construção de nossa identidade pessoal. A problemática da identidade é, decerto, um tema muito interessante, mas não me ocuparei dele aqui. Ater-me-ei ao conceito de memória.

Todos nós sabemos mais ou menos o que é a memória. Em geral, tendemos a pensar nela como uma espécie de unidade de processamento de arquivos. Claro, não é bem assim que, ordinariamente, a pensamos. Na verdade, muitos de nós pensam-na como uma espécie de recipiente mental em que se inserem nossas experiências de mundo. O Dicionário Técnico de Psicologia (2006), dá-nos a saber a seguinte definição, que refiro na íntegra abaixo:



“MEMÓRIA – Retenção de aptidões e informações recebidas através de processos de aprendizagem, abrangendo quatro operações fundamentais: decorar, reter, recordar e reconhecer explicitamente”.

                                                            

                                                          (p. 203)





O mesmo dicionário elenca vários tipos de memória. No entanto, apenas dois tipos me interessam para efeito de discussão e esses dois tipos não se topam na referida obra, mas no livro Inteligência Multifocal – Análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores – do psiquiatra Augusto Jorge Cury. (Está aí um aspecto de minha personalidade que vim a desenvolver com a maturidade intelectual: não consigo escrever sobre temas intrigantes, sem algum embasamento teórico; por isso, desenvolvi o hábito de me cercar dos livros, a fim de que o que eu afirme não seja nem equivocado, nem superficial). É claro que o equívoco está sempre presente no próprio processo de se fazer da linguagem. Todo dizer traz o equívoco em potência. De qualquer modo, o superficial, quando não é previsto por um código tácito de comportamento ou convivência, me incomoda.

Há, portanto, dois tipos de memória, consoante ensina Cury: a memória existencial e a memória de uso contínuo. O conceito é de fácil compreensão, conforme veremos (e bastante elucidativo, porque confirma nossas intuições sobre como experienciamos no presente o que vivemos no passado, quando resgatamos nossas experiências na memória). A memória existencial diz respeito às experiências vividas e que são registradas; a memória de uso contínuo inclui as informações disponíveis para uso e que são continuamente rearquivadas, tais como endereços, número de telefones, senhas, fórmulas de matemática, trechos de poemas, etc. O acesso a essas informações é mais fácil e imediato porque elas estão sempre disponíveis para uso contínuo. Claro é que, uma vez não sejam frequentemente usadas, tais informações tenderão a se situar em zonas na memória cujo acesso se tornará mais difícil.

Há uma passagem interessante, em que Cury compara a natureza da memória humana à forma de funcionamento da memória de um computador, com vistas a tornar patente no que diferem uma da outra. Cuido oportuno citá-la:



“O processo de arquivamento da memória humana não é segmentado como nos computadores. Nestes, os arquivos são segmentados e as informações são arquivadas em sistemas de códigos ou endereços. Nos computadores procuramos as informações através de rígidos e engessados sistemas de códigos, da mesma forma como procuramos um livro numa biblioteca. Na memória humana não ocorre assim, sua leitura não é unidrecional mas multifocal. Nela, ao contrário, dos computadores, os arquivos têm canais de comunicação entre si. (...)”.



(p. 81)





Não me alongarei nos pormenores da teoria multifocal da mente, proposta pelo autor. É preciso reter o essencial, nessa passagem: as experiências arquivadas estão inter-relacionadas e o acesso a elas na memória é operado por um processo de leitura (interpretação). Por isso, um pequeno gesto de uma pessoa pode desencadear reações de alegria, de ansiedade, já que são ativados em nossa mente, pela memória, conteúdos de experiências importantes de nossa história pessoal. O cheiro de um perfume pode nos provocar sensações de bem-estar e alegria ou de raiva, porque pode nos remeter a experiências agradáveis ou não.

O mais interessante ainda está por vir. E nos assoma à consciência na leitura do subtítulo “O Passado não é lembrado, mas reconstruído”, que se acha na página 82 do trabalho do autor. Não há uma recordação das experiências do passado, mas uma interpretação mediante a qual elas são reconstruídas em nossas mentes.



Não nos lembramos das experiências originais  do passado; sempre reconstruímos interpretativamente essas experiências a partir da leitura multifocal da história intrapsíquica e dos sistemas de variáveis intrapisíquicas do presente que atuam psicodinamicamente nessas experiências”.



(p. 82)



Que a ignorância sobre o que é leitura multifocal e o que são essas variáveis intrapsíquicas não nos perturbe a compreensão. Não tenho a intenção de esclarecê-las, porque me estenderia demais. O fato é que o acesso às experiências vividas passa por um filtro interpretativo e é passível de toda sorte de distorções. O essencial das experiências se perdeu. Ou, como escreve Cury, “(...) a história existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na memória” (ibid.id.). A realidade essencial das experiências vividas sofreu “o caos psicodinâmico”. Assim é que



“O primeiro beijo, o primeiro diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda “recordação” tem um débito emocional em relação à experiência original (...)”.



                                                                (ibid.id.)



É por isso que o mais atroz dos sofrimentos não causará o mesmo impacto doloroso que experimentamos, quando sua “lembrança” (não há lembrança, a rigor) ainda é recente, depois de alguns anos do evento que o desencadeou ter ocorrido. Também é por isso que a emoção de alegria em experiências de amor, quando resgatadas, não exercerão sobre nós a mesma intensidade emocional. A formação de nossa personalidade depende do trabalho de leitura de nossas experiências subjetivas e sociais na memória.

Por que as experiências do passado não podem ser recuperadas essencialmente? Por que não são elas experienciadas na memória da mesma forma que as experienciamos realmente? Porque a memória visa à produção contínua de novas experiências, ideias, pensamentos e emoções. O apagamento do essencial das experiências do passado, ou seu anuviamento, é necessário para que não só a personalidade se desenvolva, mas também para que a inteligência se construa. Cury daí extrai um questionamento:



“Já pensou se pudéssemos resgatar o passado exatamente como ele é e se tivéssemos, ainda, a capacidade plena de lembrar de todas as experiências contidas na memória? Isso poderia paralisar a produção de novas experiências, o que engessaria o desenvolvimento da inteligência”.

                                                   

                                                          (p. 83)



A “morte” das experiências (pensamentos, emoções), ou seja, seu arquivamento na memória, viabiliza novas oportunidades de releituras da memória, engendrando novos pensamentos e emoções. A memória, ao ler o passado, permite a produção de novas experiências e informações. E o “eu”? Que influência sofre nesse processo? Vou-me ocupar do conceito de eu, mais adiante. Vale, porém, notar que, no processo de leitura da memória, o “eu sou” (que compreende as experiências do presente) se desorganiza e entra a fazer parte da memória, tornando-se o “eu fui histórico”. Esse “eu fui” é a história intrapsíquica de cada um de nós. Ele influencia o “eu sou”. Ao longo de nossas experiências de vida, o “eu sou” torna-se continuamente o “eu fui histórico”, mas é também reorganizado continuamente, tornando-se um “novo eu sou”. Há um contínuo reestruturar-se do “eu sou”. Finalmente, atentemos nas palavras seguintes de Cury:



“A cada momento em que resgatamos e reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira diferente, com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas recordações da interpretação reproduzem de maneira diferente as experiências do passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento, podemos recordar [ entenda-se “reconstruir] uma experiência de angústia existencial vivenciada no passado, ligada a uma perda, a uma frustração psicossocial ou a uma dificuldade socioprofissional, etc., e ficarmos comovidos com ela e, em outro momento podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe pode recordar a perda de um filho com grande sofrimento num determinado momento e, em outro momento, recordá-la sem grandes dores emocionais.”



                                                                (p. 85)





É lugar-comum o afirmar que nossa personalidade é construída nas nossas relações com o meio. Os outros significativos (pais, avós, professores, etc.) são co-responsáveis pela constituição de nossa personalidade. Mas é sempre bom lembrar que o indivíduo não é inteiramente condicionado, que sua história intrapsíquica não é completamente plasmada nas relações com esses outros significativos. Ensina Cury que há “múltiplas variáveis intrapsíquicas” em ação no processo de construção da histórica intrapsíquica de um indivíduo.



Agora, posso já pavimentar novos caminhos verbais, fazendo recair as expressões de meu espírito sobre o “eu”. Para considerar o que significa o “eu”, tomarei a mim mesmo como referência. Dizer que mudamos é clichê. Mudamos sim; é fato incontestável. As fotografias o provam, o espelho não mente. Ou será que mente? Lembro que, quando  sentimos o corpo, forjamos dele uma imagem. A experiência nossa do próprio corpo é uma experiência imagética. Ensina J. D Nasio,



“(...) sempre que sentimos nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos o nosso corpo tal como é, mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do Outro interiorizado e percebido através da imagem familiar que já temos dele”.



                                                          (p. 63)



Isso explica por que muitas mulheres se sentem gordas, quando não o são; ou, em casos patológicos, como na anorexia, uma mulher possa ver-se como gorda, quando, na verdade, suas coxas e quadris são puros pele e osso.

Ah sim! A imagem! A interpretação e as distorções daí resultantes! Inevitáveis! E o Outro, que interiorizamos e que se torna o juiz de nossos comportamentos. Forjamos uma imagem exagerada do corpo; fazemos dele uma ideia falsa.  Parece que o espelho mente. Mas é claro que mudamos...

Nós mudamos – é fato -, mas quase sempre não apreendemos essa mudança. Refiro-me à mudança psico-emocional. Nos últimos oito anos, eu atravessei períodos intensos de mudança, não sem grande dose de sofrimento. Mas não é do sofrimento que me ocuparei. Não é possível compartilhar sofrimento; podemos comunicá-lo enquanto experiência, mas seu conteúdo não é partilhável, porque não pode ser sentido. Cada qual tem sua dor e sabe qual é sua medida, porque a sentiu. Um sofrimento comunicável nunca é um sofrimento sentido.  É da mudança que se trata. E essa mudança envolve minha avidez de conhecimento, minha relação visceral com os livros (o deleite com a leitura), minha visão sobre o amor, a assunção e anunciação do ateísmo, a produção poética, a escrita, a convivência, as amizades ou ausência significativa delas. A mudança compreende todo esse conjunto de experiências. Não pretendo me deter em cada uma delas. Talvez, não consiga dar conta de todas. Por isso, escreverei sem reuni-las numa ordem que me permite submetê-las rigorosamente à avaliação.

Divago... Uma pergunta arranha-me a alma: O que é o Eu? Ou o ego, de Freud. A designação pouco importa. Fiquemos com o Eu. Está aí uma questão com a qual deveríamos nos deparar a todo momento, porque o Outro se impõe à nossa presença quase sempre. E esse Outro é também um Eu. Se para muitas pessoas custa apreender seu próprio Eu (digo, muitos não são dados ao autoconhecimento, à introspecção), é forçoso que elas não só reconheçam uma outra mente, mas também um outro Eu diante do qual constroem sua identidade. Como essa é uma das questões com que me debato, decidi comprar um dicionário de psicologia. E lá encontro, no verbete Eu uma série de perspectivas teóricas sobre esse constructo. Duas definições são apontadas como fundamentais: a) o Eu como o sujeito, o agente, a pessoa individual ou uma região específica do ser; b) o Eu como indivíduo que se revela a si mesmo, de uma dada maneira. Ele é o gestor da psique, mas não é sempre o responsável por todos os pensamentos conscientes; alguns pensamentos que assomam à consciência, lhe escapam ao controle. Ou não é verdade que nos ocorrem pensamentos negativos que não queríamos? E nos culpamos! Mas o Eu não é culpado da presença deles. Não é difícil ver que o Eu é responsável pelas nossas relações com o mundo; mas esse Eu é corporificado, encarnado; não existe sem um corpo. Também ele não é produto de uma mente abstrata, mas é efeito de um cérebro. A mente é um processo; na verdade, a mente é o que o cérebro faz. O cérebro produz a mente, ele é um processador de informações. A mente é uma espécie de órgão. Chomsky fala em “órgão mental”. A mente é constituída de um conjunto de órgãos mentais ou módulos mentais, não diretamente acessíveis a olho nu, mas cada qual organizado segundo um designe que o especializa para interagir com o mundo.

Esse Eu é um sentimento, um sentimento de si mesmo. Qual é a substância desse Eu? O psiquiatra - já citado – J. D. Nasio escreve ser ela a própria imagem do corpo. E explica:



“Não somos nosso corpo em carne e osso, somos o que sentimos e vemos de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o corpo que vejo. Nosso eu é a ideia íntima que forjamos de nosso corpo, isto é, a representação mental de nossas sensações corporais, representação mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho”.



(p. 54)



As citações se acham no livro Meu corpo e suas imagens (2009). Mais adiante, ficamos sabendo que o Eu é uma entidade essencialmente imaginária. É claro que ele é um sentimento de existir (e chegarei a esse ponto logo). Mas o eu é indissociável do corpo, ou melhor, da imagem do corpo. Nasio nos ensina que o Eu se compõe de duas imagens corporais diferentes, embora indissociáveis: “a imagem mental de nossas sensações corporais e a imagem especular da aparência do nosso corpo” (p. 55). A sensação de ser Eu decorre do sentir/ viver o meu corpo e vê-lo movimentar-se através de um espelho.

O interessante é que, uma vez sendo um produto imagético, a apreensão do Eu se torna quase impossível ao próprio indivíduo, pelo menos o é integralmente. Corrobora essa ideia o seguinte trecho de Nasio:



“Sentir viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão do meu corpo, sei que existo mas não sei que sou”.



(p. 55)





O Eu é o “lugar de desconhecimento”, segundo Lacan. O autor, mais adiante, definirá imagem, arrolando vários tipos. Para efeito de compreensão da natureza do Eu, segundo o autor, devemos entender por imagem uma representação mental que se imprime na superfície de nossa consciência ou do nosso inconsciente. A imagem é, basicamente, sempre um duplo,



“ (...) pode existir seja em nós, em nossa cabeça, à maneira de uma representação mental consciente ou inconsciente, seja fora de nós, visível sobe uma superfície, ou ainda posta em movimento num comportamento significativo”.



(p. 66)





Não escapamos à interpretação. Isso é notável, mesmo quando consideramos a natureza dessa entidade psíquica a que se chama Eu. Não atingimos a sua essência, quer porque ela está velada pela imagem construída de si por ele mesmo, seja porque a essência não é senão a própria imagem construída. Avulta-me no espírito uma dúvida! O autor entende a imagem do corpo como a própria substância do nosso eu (p. 54). Que será substância para o autor? Terá ele tomado esta palavra no seu sentido estritamente filosófico ou ordinário. Uma consulta ao Dicionário Básico de Filosofia, de Danilo Marcondes, não me ajudou muito. Por substância, devemos entender aquilo que é em si, aquilo cuja realidade não depende de mais nada e que serve de suporte para atributos. Spinoza postulava que a única substância era Deus, porque ela não dependia de mais nada para ser. A essência é “o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é, ou que faz dela aquilo que ela é” (p.93). O exemplo oferecido a respeito de Aristóteles lança alguma luz. Assim é que uma cor branca só existe se houver uma coisa que tenha essa cor. A cor em si não existe fora da substância. A substância é a realidade imediata, é a coisa mesma que tem a cor branca. Felizmente, sem mais delongas, encontrei em outro dicionário a resposta que procurava. Em Dicionário Oxford de filosofia, há no verbete substância a identificação desta com o conceito de essência, pelo menos é esta uma das formas de concebê-la (mas não a única – vimos que pode ser aquilo que existe por si mesmo, sem de nada mais depender).

Parece-me, então, correto admitir que a essência (ou substância) do Eu é a imagem. Imagem do corpo, diga-se bem. Porque o corpo é a primeira substância. Escreve ele, à página 63, “não vamos nos iludir, a coisa mais importante para nós é o corpo” (p. 63). A imagem do corpo é a base para a construção da imagem do Eu. Todavia, é imperioso lembrar que o Eu se constitui de “um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias” (p. 55).

Então, esse Eu que sinto mudou significativamente ao longo desses últimos oito anos. (a palavra significativamente é importante aí, porque sinaliza para uma mudança cujo efeito assemelha-se a uma espécie de libertação, sem qualquer conotação mística ou transcendente). A mais profundamente perturbadora libertação foi a ruptura total com a crença em Deus. Trata-se de uma experiência que já externei alhures, mas cujo conteúdo emocional jamais poderá ser experimentado por quem dela toma conhecimento em meus textos. O sentir não é acessível. O que senti e o que sinto ainda hoje não pode ser verbalizado; e mesmo que pudesse, jamais poderia ser sentido reciprocamente. O sentir é singular e está intrinsecamente relacionado à minha história intrapsíquica, enfim, pessoal. Tem a ver com a aurora de minha vida (que não me herdou revolta, mas uma lucidez inacessível a muito poucos). Liberto das ilusões da religião, da tirania de Deus (que não é senão um estratagema psicológico para cingir o rebanho a esperanças vãs – o leitor que o comprove por si mesmo lendo o livro “Onde a religião termina?, de Marcelo da Luz, ex-sacerdote católico, conscienciólogo - 

http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2011/05/24/marcelo-da-luz-fala-sobre-seu-polemico-livro-5291.php), 
pude reconciliar-me com esta existência e, sobretudo, me solidarizar com o sofrimento alheio em escala mundial, sem fingir ignorá-lo. Pelo menos, o egoísmo religioso foi abandonado em mim. A leitura de Feuerbach (Preleções sobre religião) ajuda-nos a compreender a natureza desse egoísmo. (Deus faz isso ou aquilo por mim – estranhamente nada faz pelos milhões de miseráveis deste planeta, nada faz para evitar que uma criança inocente morra vítima da dengue ou de qualquer outra moléstia!).

A quebra do encanto (seja religioso, seja do amor) acompanhou-se de um profundo espanto diante da existência, de seu absurdo. Esse Eu se defronta incessantemente com o Mistério. Cientistas anunciaram a descoberta (embora o resultado ainda não seja concluso) de uma partícula chamada bóson de Higgs (em homenagem a Peter Higgs, cientista que postulou a existência dessa partícula, pelo menos teoricamente, há décadas). Teria ela dado origem ao Universo. Não mais a água, de Tales; nem o ar de Anaxímenes; tampouco o aiperon (um princípio abstrato ilimitado e indefinido que subjaz à natureza) de Anaximandro. Não mais o Tao, de Lao Tse, nem o Brâman, dos hiduístas. Não mais Deus, dos judeus, cristãos e mulçumanos (embora os cientistas tenham-na batizado de “partícula de Deus” (provavelmente, por causar mais visibilidade na mídia e mais interesse popular do que o nome “bóson de Higgs”, cuja compreensão depende de que saibamos que Bóson refere-se à estatística formulada por Satyendranath Bose, físico indiano e Albert Einstein. Essa estatística aplicava-se a fótons e mésons, especialmente). É claro que precisei pesquisar isso, porque ignorava completamente quem era Higgs, quem foi Satyendranath Bose; e continuo ignorando como opera a estatística de Bose-Einstein, que se situa no nível da física quântica (obscura em si).

A partícula de Higgs é uma das partículas fundamentais que permitem a existência do Universo ou de tudo que existe. Mas sempre podemos nos indagar sobre a causa primeira, retrocedendo ad infinitum. Mas Deus certamente não é a solução adequada, além de todos os problemas que essa hipótese acarreta (escusa mencioná-los), persistiria ainda a pergunta: quem criou Deus? E se nos apressássemos em admitir que Deus é incriado, vale perguntar “por que não podemos dizer disso da partícula de Higgs?” Por que não podemos dizer isso do próprio Universo? Por que não um Universo eterno? Estamos fadados, pela própria estrutura de nossa cognição, a pensar em termos de causa-efeito. O Universo tem uma causa? Se sim (“para tudo que existe há uma causa”), que causa é esta? Se Deus se demonstrou claramente uma hipótese insustentável, então devemos investigar a validade de outra hipótese. Não temos evidência da existência de Deus, então buscaremos evidências de outra causa. A ciência nos oferece algumas. Talvez, Hegel estivesse errado (e ele parece ter errado sob muitos aspectos), ao postular que o real é racional. Talvez, não seja sempre racional. Talvez, nossa razão nos impõe limites, esquemas de raciocínio que não parecem eficazes para pensar sobre a Origem de Tudo. A fórmula “para todo efeito tem de haver uma causa” ( ou, nos termos da razão suficiente de Leibniz, “para todo fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato ocorre”, e ocorre de uma determinada maneira e não de outra) pode ser inadequada quando queremos buscar entender como o Universo começou a existir.

Um pensamento explosivo sacudiu minha alma agora! Talvez, a vida não seja senão uma fração da eternidade do Universo. O certo é que cada Eu passará. Nós passaremos, mas o mundo continuará, a vida continuará, a despeito dos barulhos apocalípticos de certos segmentos evangélicos aqui e em outros cantos do mundo. Se a previsão da ciência estiver correta, o planeta sucumbirá daqui a bilhões de anos (se não me equivoco quanto à estimativa feita pelos cientistas). De qualquer modo, nem eu nem o leitor estaremos aqui. O Eu passa; o mundo fica.

Sobra-nos o sentimento de Eu em face do Mistério. Estamos condenados a construir sentidos, sempre muito frágeis. Desiludi-me do amor, porque não careço mais dele. Não carece sobrecarregá-lo com ideais. Quando o fazemos, ele se esfacela, porque é frágil. Sim, o amor é frágil, porque a vida é frágil. E descobrimos que tudo que é frágil carece de cuidado, assim devemos proceder com os bebês. Dispensamos-lhes cuidados, dada a sua fragilidade. Fragilidade e fraqueza são o mesmo. No final das contas, inclinamo-nos às coisas frágeis e às que exibem fraquezas e descobrimos que elas são mais valiosas do que o diamante. Quanto ao diamante, é interessante saber que a Natureza tem sua poesia: os átomos de carbono produzem tanto cristais de diamante, famosos por sua dureza, quanto cristais de grafite, caracteristicamente macio. Isso dependerá da forma que assumam; para cada formação de átomos de carbonos, uma substância: dura, como o diamante, ou macia, como o grafite.

Tanto o conhecimento como o amor são valores que nos instam a partilhar. Viver é doar-se, ainda que um pouco; os que não se doam vivem profundamente infelizes. O Eu precisa dar testemunho de si; que seja verdadeiro e significativo é o que desejamos. Precisamos deixar pegadas, deixar rastros nessa existência fugidia, fugaz e absurda. A profundidade das pegadas e a extensão de nossos rastos dependerão do grau de nossa imersão nesse existir que não é senão um devir. Porque o “tempo não para”, o mundo não cessa de girar a roda da vida...  E precisamos seguir em direção à morte inevitável... na contramão ou no fluxo sempiterno...

terça-feira, 27 de março de 2012

"Pensamentos ilhados flutuam" (BAR)


                                            

                                                         Ilha



Sinto-me intelectualmente só. Meu espírito está exilado. Vejo tudo com mais nitidez, com mais clareza! Por que tantas pessoas são incapazes de acompanhar meus raciocínios, meus pensamentos, minhas reflexões? Por que tantos evitam os livros? Por que se negam a pensar o mundo com mais profundidade e senso crítico? Por que se mantêm à superfície de opiniões amparadas em preconceitos, em estereótipos, em ideologias cristalizadas? Por que conservam práticas de pensar empedernidas? Por que se limitam a ventilar lugares-comuns, a reproduzir o senso-comum? Por que não o superam?

E os amigos que são capazes de acompanhar-me, porque dedicados à cultura das letras, estes amigos distam de mim a quilômetros! Desculpem-me estas linhas aleijadas; é que estou me sentido asfixiado intelectualmente. Sou uma ilha de palavras mudas. Pensamentos subversivos são bens preciosos e só devemos compartilhá-los com aqueles que são capazes de, ao menos, refutá-los. Refutação exige destreza de espírito. Argumentar é uma competência que desenvolvemos, com a leitura. A argumentação é uma atividade que se realiza por meio de encadeamentos de justificativas, de declarações-justificativas num movimento contínuo, de teses, antíteses e sínteses. Ela requer elaboração racional e consistente do discurso.

Imponho-me o silêncio agora, porque pretendia escrever sobre outra coisa... Mas fugiu-me à alma o alento. É melhor assim...

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é". (J. D. Nasio)

                           O escondido

Hoje, ocupei-me com a leitura, concentrado nas páginas de vários livros e abstraído de tudo ao meu redor. Assim permaneci por um tempo cuja passagem escapou-me à consciência. Apenas me deixei estar, acomodado na cama, rodeado de livros. A certa altura, um trecho me acalentou alguns pensamentos, que os exponho abaixo na forma de poesia:

Você quer uma palavra
Que justifique sua vida
Esta palavra mesma
Que escorre de sua boca
Engasgada em sua goela
Você está faminta de palavras
Tem-nas em abundância
Mas não se cansa de procurá-las
De devorá-las
De experimentá-las
Você está desejoso de palavras
Que lhe acarinhem
A alma
Expulsa-as da sua boca
Em vão
E delas colhe a eternidade impenetrável
Você tem sede de palavras
E as tem em abundância
Mas vive na secura
Na estiagem
Do vocabulário
Como elas lhe escapam!
Na carência da sua existência
Tão empobrecida
De palavras

(BAR)


Não encontrei um título para este poema (aceito sugestões). Noutro momento, lendo sobre a contribuição filosófica de Aristóteles para a compreensão da linguagem, formaram-se-me os seguintes pensamentos:

Desembrulhe uma palavra
Digamos:
Casa
E o que encontrará?
Um conceito
E
Uma estrutura fônica
Mas esse conceito
Só é apreendido
Traduzível
Com palavras
Conclusão:
A palavra desembrulhada
É ainda palavras

Continuarei a escrever, sem esperar que o leitor se esforce por construir uma coerência para o que está lendo. De passagem, deparou-se-me este excerto do livro Meu corpo e suas imagens, do psicanalista francês Juan David Nasio. À página 55, escreve:

“(...) o que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos. Logo, Lacan qualificava o eu como “lugar do desconhecimento”. Sentir e viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão de meu corpo, sei que existo mas não sei que sou. Decididamente, as imagens mentais que forjamos de nosso corpo, substrato de nossa identidade, são imagens subjetivas e deformadas que falseiam a percepção de nós mesmos”
(...) Na verdade, nosso eu é um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias”.
(...)

Esse trecho aturdiu-me. Por isso, precisei estampá-lo aqui para nele me deter um pouco. Para tanto, elenco abaixo as ideias que me chamaram atenção:

1ª o eu é um sentimento; sentimento de existir;

2ª uma entidade imaginária, produzida por nossa própria ignorância em relação ao que somos;

3ª o eu é contraditório e conflituoso, já que é formado (na base de imagens de si) pela certeza de ser o que é e, ao mesmo tempo, pela ignorância do que se é;

4ª finalmente, o eu é produto do falseamento das percepções que fazemos de nós mesmos.

Para mim, isso é bastante claro. Essas quatro ideias explicam de modo satisfatório a sensação de que nós nunca (ou quase nunca) conseguimos alcançar as profundezas de nosso ser mesmo. O eu é o escondido para nós; ele nos escapa, porque não resulta senão de interpretações distorcidas que fazemos de nós mesmos.
O texto destaca o caráter subjetivo da produção imaginária do eu. O sentimento do eu é subjetivo. Mas não se considera o papel do outro na construção desse eu. O outro também constrói, na base de imagens, o eu do outro. Existem imagens recíprocas, que se constroem na interação pela linguagem. A imagem que o outro faz de mim (imagem no sentido de julgamentos a respeito de meu modo de ser, de me comportar, atribuição de valores a minha pessoa) é também parte dessa construção imaginária do eu.
Também as quatro ideias sustentam a tese da eterna contradição humana, que Machado já havia anunciado em um de seus contos. Pergunto-me qual o caminho para alcançarmos (no sentido de apreender) alguma parcela desse iceberg que é o eu. Talvez, nunca cheguemos a conhecer verdadeiramente esse eu que nos escapa, que nos está oculto, porque o que sentimos dele, o que apreendemos dele não é senão sua sombra, suas imagens. Para além das imagens, há o ser (eu) inacessível. O eu é o lugar da ignorância de si, do desconhecido.
Isso explica o conflito, as crises emocionais, a ruína da alma, o desespero, o sentimento de vazio do ser, de abandono, o medo da solidão, o medo de não ser amado, de ser discriminado, de ser sobrepujado. O eu que se esconde em mim vem-me à tona, ainda que sob a penumbra, sempre que busco nas palavras algumas luzes. Experienciar-me verbalmente é um caminho que encontro para não me perder por completo. Entendam: quando me experiencio verbalmente, consigo situar-me no mundo, consigo confrontar-me com um outro (ainda que imaginário) que assumo como interlocutor. O sentimento do eu não é possível sem o sentimento do outro. Parece-me que a construção imaginária do eu é, na verdade, uma construção intersubjetiva, da qual participam dois eus que interagem.
A palavra faz-me saltar este eu que muitos só conseguem alcançar a superfície. O meu espanto diante da vida é reconhecer-me tão claramente no espelho das palavras, que nada têm de transparentes, já que são opacas. Este eu impenetrável é um núcleo duro em torno do qual giramos continuamente, até ficarmos tontos e dormir, para no dia seguinte continuar nosso giro incansável à procura de nós mesmos e de nossa situação no mundo.
O eu, que não existe em si mesmo, que é dependente, porque sua existência é social, precisa buscar aproximações com outros eus que girem em torno de si sem se desviarem desse centro; a estes, que se desviam, chamamos de desvairados, atormentados, melancólicos, ou deprimidos, dependendo da natureza e gravidade desse desvio.
A loucura parece consistir na ruptura dessa procura incessante pelo o eu que nos escapa; desse eu que participa de um mesmo quadro social, convencional, consensual do real; giremos em torno desse eu, a fim de nunca nos perder no emaranhado das imagens que fazemos de nós mesmos.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

“Poeta é aquele que leva o infinito dentro de si” (BAR)

 
         Quando chamado à vida eu fui...


“Quando chamado à vida eu fui, o Mistério me disse: “tu serás amante das coisas delicadas, amante das doçuras, das fragilidades; serás amante das sutilezas do espírito; do colorido dos pensamentos e da densidade do sentir; serás amante das escuridões, e das sensações noturnas, do frio, da chuva que são lágrimas caídas do céu; serás amante da poesia que mesmo cantando a morte dá vida a tua alma; serás amante de mulheres que só te alcançaram a superfície; serás amante do amor que se esvazia de si para o outro poder existir; e ainda assim serás amante da doçura, do intangível, do inefável, das sensações que escapam às palavras; serás amante do vazio do ser, do abandono; serás amante daqueles que te inspiram, que te admiram; no entanto, serás profundo conhecedor das asperezas, das rudezas de tudo a que eriges teus versos, teus pensamentos; conhecedor do efêmero, da impermanência e reconhecerá em si a finitude e se encherá do finito; mas permanecerás sempre amante da eternidade, da eternidade que reside no vazio de Ser; serás finito na carne, no sangue, mas infinito na alma: serás, enfim, um poeta.””

(BAR)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Fiel a mim mesmo


Fiel a mim mesmo

Não escrevo para ser lido, mas para ser recitado, declamado, entoado. Quem supuser que é suficiente debruçar-se sobre meus textos, lançando olhares dispersos e superficiais sobre suas linhas, para chegar à compreensão ou, ao menos, a uma interpretação razoável, será forçado a interromper a leitura, em certo momento. Escrever é um ato de doação de mim mesmo; sou eu mesmo que me derramo; é minha alma que se despe, que exibe a sua nudez virginal. O leitor que me lê deverá também doar-se, pois só assim conseguirá atingir o substrato de algum sentido, entre os muitos sentidos possíveis.
Os mais religiosos deverão lê-los com as dedicação e concentração de quem se abandona a orações; deverão deter-se num estado de contemplação; deverão manter-se absortos. Meus textos requerem um silêncio imperturbável, quase sacro, porque convocam o espírito do leitor a partilhar de minha agonia verbal. O leitor fiel aos meus textos sofre comigo o meu sofrimento, que é belo e intenso, porque bebe da fidelidade de minhas palavras.
Não escrevo para entreter-me; não faço deste espaço um picadeiro para o meu espírito; há um peso sobre minhas palavras, uma vida que pesa ofegante. Escrevo para solucionar um problema; é a um problema que se deve a urgência da escrita. Escrevo para resistir-me, resistir à vida, superá-la na complexidade da sintaxe, inundá-la na profundidade da semântica.
Escrever e viver são meus sacrifícios; não há divórcio entre eles; vida e palavra se imiscuem, se enredam, compondo o oceano do meu ser. Ler-me é insuficiente; é necessário deitar seu coração sobre esta página; abandonar os pré-conceitos, os pré-juízos, as pré-concepções e lugares-comuns. Sinta-me com a nudez de sua alma; deixa que meus sacrifícios a absorva completamente. Os leitores que me são fiéis tornam-se meus cúmplices, as testemunhas de minha paixão.
Minhas palavras não oferecem fuga, não oferecem conforto, porque nos defrontam com o incognoscível, com o absurdo, com a angústia; andam de mãos dadas com a contingência; interpelam a Vida, ao passo que exalam o AMOR. Tornam-no o seu deus e o veneram; e não se cansam, mesmo quando contrariadas, ignoradas, incompreendidas.
Sou o que escrevo e escrevendo vou-me sendo, permanecendo, eternizando-me, doando-me, reinterpretando-me, para tornar-me fiel a mim mesmo. Em mim, o feminino sobrepõe-se ao masculino; a feminilidade está em minha alma; minha alma é feminina, porque doce, porque gera, porque doa, porque na fragilidade se fortifica, se regenera, se revigora. Minha alma é feminina porque é como um ventre, que dá à luz, que anima a vida. É feminina porque é forte, porque ama, clama, canta e suporta a dor. É feminina porque tornou a sensibilidade o seu altar, onde haverá de erigir seu AMOR e com ele viver, num dia, toda a eternidade.