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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"Na língua, só existem diferenças" (Saussure)


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O valor do signo linguístico
Revisitando Saussure


Este texto vem preencher uma lacuna quando da consideração que eu fiz, em outro momento, acerca da contribuição de Saussure para o estabelecimento da Linguística como a ciência que se ocupa da língua. Com vistas a preencher essa lacuna, impõe-se-me a necessidade de tratar do conceito de valor do signo linguístico no contexto de seu trabalho enquanto pensador que lançou os fundamentos da Linguística moderna.
Antes de me debruçar sobre a discussão sobre o conceito de valor na abordagem saussuriana da língua, procederei a uma contextualização teórica dessa abordagem. Nessa contextualização, delinearei o escopo epistemológico do estruturalismo em Linguística e esclarecerei a noção de relações sintagmáticas e relações paradigmáticas, cuja compreensão é indispensável para que a noção de valor linguístico seja compreendida em toda a sua importância epistêmica.


1. Estruturalismo: breves apontamentos

Gostaria de começar, pois, enfatizando que não devemos falar de um único conceito para o termo estruturalismo. Em diversas áreas do saber humano, tais como em antropologia, em sociologia, em psicologia, alguma teoria estruturalista orientou a abordagem dos problemas submetidos à investigação.
O uso do termo estruturalismo para caracterizar a abordagem saussuriana da língua esteia-se no pressuposto de que, a despeito de as diversas escolas linguísticas que podem ser reunidas sob o rótulo estruturalistas apresentarem diferenças em termos de método e conceitos, todas elas se orientaram pela tese de que a língua é uma estrutura, é um sistema. A tarefa do linguista, nesse sentido, consiste, pois, em analisar a organização e o funcionamento dos elementos constituintes desse sistema.
O desenvolvimento da linguística estruturalista representa, deveras, um acontecimento bastante significativo no pensamento científico do século XX. A própria compreensão dos incontáveis avanços no quadro das ciências humanas nesse século seria impossível, se não compreendêssemos a elaboração do conceito de estrutura desenvolvido a partir das investigações do fenômeno da linguagem. Toda uma geração de pensadores, entre os quais se acham Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes evidenciam, em suas obras, a contribuição pioneira de Ferdinand de Saussure, relacionada à organização estrutural da língua.
É no Curso de Linguística Geral, obra póstuma que, na verdade, resultou de uma reconstrução do pensamento de Saussure a partir de notas redigidas por alunos de três cursos que ele ministrou entre 1907 e 1911, na Universidade de Genebra, que se topam os fundamentos que tornariam possível o desenvolvimento de um modelo teórico-metodológico estruturalista. À luz desse modelo de análise linguística, a língua é considerada um sistema articulado de signos, uma estrutura, na qual, à semelhança do que sucede no jogo de xadrez (imagem abundantemente utilizada por Saussure), o valor de cada peça não é determinado por sua materialidade, não existe em si mesmo, mas é fixado no interior do jogo. Veremos ainda o que Saussure entende por valor de um signo linguístico, na seção destinada exclusivamente para o tratamento desse tema.
Ainda no que toca ao estruturalismo, é preciso notar que ele teve um impacto enorme nos estudos da linguagem, no Brasil, durante os anos de 1960. Nesse período, o estruturalismo já era a escola dominante. Foi nessa época que a Linguística foi reconhecida, em nosso país, como disciplina autônoma. Por volta de 1970, o estruturalismo já havia se estabelecido, no Brasil, como a orientação teórica mais importante no âmbito dos estudos da linguagem. O estruturalismo contribuiu bastante para criar um novo tipo de estudioso – o linguista. Não é que o linguista inexistisse antes da consolidação do estruturalismo no Brasil, mas sua existência até então tinha de ser afirmada em contraste com duas figuras mais antigas: a do gramático, cujo interesse repousa na sistematização dos conhecimentos que resultam do uso considerado socialmente “correto” da língua; e a do filólogo, cuja preocupação reside no estudo das fases antigas da língua e na análise dos textos representativos dessas fases. O linguista, por sua vez, é um cientista da linguagem, cuja preocupação reside em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua, sem fazer qualquer juízo de valor acerca do uso de suas variedades.
É certo que, atualmente, passados mais de 50 anos desde o impacto que exerceu estruturalismo nos estudos linguísticos desenvolvidos no Brasil, o linguista não precisa mais justificar sua própria existência em face de outros estudiosos da linguagem. A Linguística atual se caracteriza por uma grande diversidade de escolas, no entanto, malgrado o fato de haver orientações teóricas ainda muito prestigiadas (como o gerativismo, o “funcionalismo” e a análise do discurso), não existe uma orientação teórica hegemônica que coligaria os mais diferentes interesses dos linguistas.
O conhecimento intuitivo que o falante nativo tem de sua língua materna recobre não só o saber a respeito das peças (signos) disponíveis, mas também das suas possibilidades de organização, de articulação, de distribuição na cadeia sintagmática. O que regula o funcionamento das unidades que compõem o sistema linguístico são as regras e os princípios que internalizamos muito cedo na fase da aquisição da linguagem e que compõem uma gramática internalizada, cujo domínio intuitivo nos permite produzir e compreender um conjunto praticamente infinito de enunciados em nossa língua materna.
A abordagem estruturalista assume que a língua é forma, isto é, estrutura, e não substância (a matéria a partir da qual ela se manifesta). É claro que há o reconhecimento da necessidade da análise da substância para que seja possível formular hipóteses sobre o sistema; afinal, um sistema que não apresenta qualquer manifestação material, que não seja expresso por algum tipo de substância, não desperta qualquer interesse científico, porque não pode sequer ser investigado.
Uma vez que, para o estruturalismo, o que importa é investigar a estrutura da língua, esta deve ser estudada em si mesma e por si mesma. O estruturalismo renuncia a toda preocupação com fatores extralinguísticos, tais como as relações entre língua e sociedade, língua e cultura, língua e distribuição geográfica, entre outros. O linguista estruturalista está unicamente interessado na descrição das relações internas entre os signos do sistema linguístico. Portanto, o recorte teórico do estruturalismo cria um único objeto de estudo: a langue, um sistema de signos homogêneo e abstrato.


2. Relações sintagmáticas e relações paradigmáticas[1]

Entre as dicotomias que nos legou Saussure como partes de seu projeto de fundamentação da nova ciência – a Linguística -, se topam as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas. Saussure sustentou que toda sincronia se relaciona a dois eixos em torno dos quais se realiza a língua: o eixo paradigmático ou das associações e o eixo sintagmático ou das relações entre termos coexistentes.
Urge esclarecer que por sintagma Saussure entende uma unidade maior que se compõe de duas ou mais unidades consecutivas.[2] Mattoso Câmara Jr., inspirado na definição saussuriana, definirá o sintagma como uma construção resultante da combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior. Assim, em consonância com Saussure, uma forma como reler, é um tipo de sintagma, pois que resulta da combinação dos elementos “re-“ (prefixo) e “ler” (radical). Portanto, para Saussure, tanto como para Mattoso Câmara, o sintagma pode identificar-se com o nível do vocábulo.
Tendo esclarecido a noção de sintagma, passo a considerar o que são as relações sintagmáticas. O eixo sintagmático baseia-se no caráter linear do signo linguístico, ou seja, no fato de ser impossível pronunciar dois signos ao mesmo tempo. É na cadeia sintagmática que um elemento linguístico passa a ter valor, em virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, ou com ambos. O eixo sintagmático recobre o domínio das relações entre unidades linguísticas coexistentes; nesse eixo, os signos articulam-se entre si na cadeia linear de fala. Por outro lado, as relações paradigmáticas recobre o domínio das relações associativas e suas unidades estão numa relação de exclusividade: se uma unidade se realiza sintagmaticamente, a outra está, necessariamente, ausente. O paradigma, portanto, constitui uma espécie de “banco de reservas” da língua. O paradigma recobre o conjunto de unidades suscetíveis de aparecer num mesmo ambiente estrutural. Graficamente, os eixos sintagmático e paradigmático se cruzam e funcionam numa inter-relação necessária. Em outras palavras, a língua funciona mediante a inter-relação necessária entre os dois eixos.





Veja-se que as formas foi, era e ficou são passíveis de ocupar a posição da forma  “é” no eixo das relações sintagmáticas, e o mesmo vale para as formas sincero, dedicado e pobre, suscetíveis de preencher o lugar de “honesto”. A presença de “honesto” na oração “Pedro é honesto” resulta de uma seleção operada entre as unidades virtualmente disponíveis no eixo paradigmático. Portanto, as relações paradigmáticas supõem relações entre unidades alternativas.









As relações paradigmáticas supõem uma oposição entre elementos que formam “uma série mnemônica virtual”. De fato, as unidades linguísticas estão organizadas em classes de acordo com suas propriedades semântica, sintática e morfológica como partes do léxico mental dos falantes. Esse conjunto de unidades linguísticas virtualmente existentes e passíveis de ser comutadas com outras num mesmo ambiente sintático recobre o eixo das relações paradigmáticas; em uma palavra, constitui o paradigma.




3. A noção de valor linguístico

Ainda que possamos apreender o alcance da noção de valor também no eixo das relações paradigmáticas, é no eixo das relações sintagmáticas que essa noção se esclarece de modo mais consistente com a concepção saussuriana de língua como sistema de signos. O termo sistema é sinônimo de estrutura, muito embora Saussure tenha preferido o uso do vocábulo sistema em vez de estrutura. Estrutura é o conjunto de relações que se estabelecem entre as partes de um todo, qualquer que seja esse todo.  Da mesma forma que da relação sistemática entre os ossos do corpo humano resulta o esqueleto, da relação sistemática entre os signos linguísticos resulta a estrutura.  Quando Saussure diz que a língua é forma e não substância, ele quer dizer que a língua é sistema, é estrutura; ele quer dizer que a linguística deve-se ocupar com a descrição das relações recíprocas e sistemáticas entre os signos linguísticos. A fim de que a língua sirva à interação social, é necessário que os enunciados que produzimos sejam dotados de uma estrutura (forma), de uma ordem. O significado das construções linguísticas depende da organização interna de suas unidades, de seus signos. Quando comparamos (1) com (2), a seguir, percebemos que (1) é uma frase em português, ao passo que (2) é uma reunião aleatória de palavras.

(1) Hoje, eu não vou sair.
(2) *chocolate gosto  eu de sorvete.

O exemplo (1) constitui uma construção bem formada em português, porque suas unidades constitutivas se dispõem numa ordem prevista pela gramática dessa língua. Por outro lado, (2) não é sequer uma construção em português, já que carece de ordem (estrutura). Trata-se de uma sequência de signos aleatória. Portanto, no exemplo (1), temos uma frase em português, temos uma construção linguística dotada de uma estrutura, de uma organização interna estabelecida segundo um dos padrões de estruturação sintática previstos pelo sistema de regras que constitui a gramática da língua portuguesa. Para que uma construção seja dotada de significado e sirva à função de comunicação, ela deve apresentar uma estrutura, ou seja, suas unidades constitutivas devem-se organizar segundo um padrão gramaticalmente adequado. Veja-se que o exemplo (1) encerra a estrutura SN-SV. O SV se constitui de uma locução verbal formada pela combinação do auxiliar “vou” com o infinitivo “sair” Outras muitas formas são passíveis de ocupar a posição de “vou”, conforme ilustra o gráfico abaixo:
 

   



Embora possamos combinar preciso, posso e quero com o infinitivo “sair”, uma combinação com “estar” é gramaticalmente inaceitável[3]. Portanto, uma sequência como “eu estou sair” não obedece a nenhum padrão estrutural previsto em português. Qualquer falante nativo de português sabe (ainda que esse saber não seja do tipo declarativo) que o verbo “estar” combina-se com verbos terminados em –ndo para formar o que tradicionalmente conhecemos como locução verbal (cf. está chovendo, estou cantando). Uma construção como “Eu estou saindo” é gramaticalmente aceitável. Isso significa dizer que ela segue um padrão estrutural previsto pela gramática do português.
Por gramática, portanto, deve-se entender aqui o sistema de regras e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. A gramática disponibiliza as regras e os princípios que nos permitem organizar as unidades linguísticas para a construção de enunciados em nossa língua materna.  Quando Saussure propõe que a língua seja estudada enquanto sistema de signos que se articulam reciprocamente, é sobre a gramática, tal como definida acima, que ele quer que recaia o interesse analítico do linguista. O linguista deve se preocupar em descrever como a língua se organiza estruturalmente a fim de tornar possível a produção do sentido.
A fim de que possamos adentrar na discussão sobre o que significa o conceito de valor linguístico em Saussure, necessário é insistir em que, para o mestre genebrino, a langue é um sistema de signos. Um sistema é um conjunto organizado de elementos, no qual um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um elemento se define em relação com os demais.  No antigo regime monárquico, o que faz um rei ser rei é o fato de ele não ser um de seus súditos. Analogamente, em língua, o singular só existe em função do plural.  Portanto, o valor das unidades do sistema linguístico se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que o signo casa está no singular, porque existe a contraparte com a marca –s indicadora de plural – casas. Só podemos falar em morfema-zero - a ausência de marca em casa -, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s no signo casas. Em outros termos, o singular é expresso justamente pela ausência de marca, de modo que a forma singular é a forma não marcada. Em língua, a ausência de marca significa, mas só significa em oposição a uma forma que correlativamente apresenta uma marca. Nos substantivos, o masculino é a forma não marcada, mas só o é porque o feminino, em português, é a forma marcada (cf. menino x menina, garoto x garota, doutor x doutora, professor x professora).
Para Saussure, portanto, considerar a língua como sistema significa dizer que tudo na língua são oposições. São justamente as oposições ou diferenças que nos permitem construir uma gama diversa de conteúdos análogos de pensamento. A língua é um sistema de signos e a gramática é o mecanismo através do qual esse sistema funciona, opera. Vejamos mais um exemplo disso. Considerem-se as frases abaixo:



(3) Reprovar o aluno não agrada ao professor.
(4) A reprovação do aluno não agrada ao professor.



Destacou-se, em negrito, em cada uma das frases, o seu respectivo sujeito. Em (3), o sujeito é preenchido por uma oração de infinitivo – reprovar o aluno. Em (4), o sujeito é preenchido por um SN cujo núcleo é a forma nominalizada do verbo “reprovar” – “reprovação”. Note-se que, ao derivar reprovação de reprovar, ou seja, ao anexar o sufixo nominalizador “-ção” à base do verbo “reprovar”, a estrutura do sujeito se altera. Em (3), o sujeito oracional encerra um complemento desprovido de preposição – “o aluno”. Em (4), o que era complemento direto – o aluno – torna-se complemento nominal introduzido da preposição “de” – “a reprovação do aluno”. Em outras palavras, se a valência de “reprovar” prevê um actante 2 (à direita) sem preposição - X reprova Y -, a valência de “reprovação”, por outro lado, prevê um actante marcado formalmente com a preposição “de”: “a reprovação de Y”. Trata-se de um mecanismo bastante regular em português. Assim, dado um verbo ao qual se pode articular o sufixo “-ção”, a forma nominalizada resultante poderá combinar-se com um complemento introduzido pela preposição “de” (cf. a manutenção de, a atualização de, a informação de, a acusação de, etc.).  Assim, no sistema, a peça ‘N-ção’ (nome + -ção) se combina com um termo introduzido da preposição “de”. Qualquer que seja a alteração nessa forma de estruturação produzirá um resultado agramatical.


(4a) *A reprovação o aluno não agrada ao professor.


Uma vez que se verifique a desobediência das regras de organização das peças do sistema linguístico, haverá prejuízo no plano do conteúdo, tornando difícil a inteligibilidade do enunciado. Naturalmente, nenhum falante nativo de português produz (4a). É parte do conhecimento intuitivo do falante nativo de português saber construir enunciados com formas nominzalizadas terminadas em “-ção”.
Considerem-se, ainda, os exemplos abaixo:



(5) O menino é estudioso.
(5a) A menina é estudiosa.
(6) Os meninos são estudiosos.
(6a) As meninas são estudiosas.



No par (5)-(5a), ao comutar o substantivo de gênero masculino com a sua contraparte no gênero feminino, o adjetivo sofre modificação em sua forma para acomodar-se ao gênero do substantivo. No par (6)-(6a), ao comutar o substantivo masculino no plural com a sua forma feminina no plural correspondente, o adjetivo flexiona-se no feminino plural. Portanto, esse processo, que chamamos de concordância nominal, dá testemunho do funcionamento do sistema linguístico. As peças do sistema sofrem alterações em sua forma, isto é, suprimem ou recebem elementos para combinar-se com outras peças.  Há casos, conforme vimos com a nominalização em “-ção”, em que, para uma peça combinar-se com outra, é preciso que uma delas, a que governa o processo, selecione outra peça que será responsável pela combinação. É o que ocorre em (7) a seguir:


(7) Eu gosto de sorvete de chocolate.



O verbo gostar, para combinar-se com o seu complemento – “sorvete de chocolate”, seleciona necessariamente a preposição “de”, cuja função é justamente permitir a relação entre a forma “gostar” e seu complemento. Sem esse conectivo, o resultado é agramatical: * Eu gosto sorvete de chocolate.
O que Saussure entende por valor linguístico é justamente o conjunto de diferenças que constituem o sistema da língua. Um signo é o que os outros não são. O valor de um signo provém da situação recíproca dos signos na língua. Na língua, só existe a produção e a interpretação das diferenças. Por exemplo, se quisermos determinar o valor do fonema /b/, teremos de levar em conta as relações de oposição que ele estabelece com outros fonemas. Assim, se tomamos o par mínimo[4] ‘pote/ bote’, verificamos que os fonemas /b/ e /p/ se opõem com base nos traços [+ sonoridade] e [- sonoridade]. O som /b/ comporta o traço [+ sonoridade], enquanto o som /p/ é [- sonoro] (ou [+ surdo]).  Os fonemas /p/ e /b/ constituem um par mínimo, pois que há um contraste fenomênico entre eles, que é relevante para a distinção de significado entre palavras: presença x ausência de [sonoridade].
É, portanto, da relação que se estabelece entre dois signos que resulta o valor de cada um deles, bem como seu significado individual. Os elementos da língua só adquirem valor enquanto se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros. Não é, portanto, sua qualidade positiva e própria que os caracteriza, mas sua qualidade negativa, opositiva, diferencial.
Falar em valor linguístico é, antes de mais nada, ressaltar a natureza opositiva do signo. O que fundamenta a especificidade de cada signo linguístico é a maneira como a língua põe esse signo em contraste com todos os demais. O valor linguístico, portanto, calca-se sobre a ideia de contraste entre um signo com outros signos na cadeia sintagmática. A noção de valor para Saussure caracteriza a língua como uma rede de pares opositivos. Segundo Saussure, “na língua, só existem diferenças”. (2003, p. 139). Quando atentamos para o paradigma flexional dos verbos e dos nomes, compreendemos bem essa afirmação saussuriana. A primeira conjugação e a segunda conjugação derivam seu valor pela oposição das marcas “-ar” (da primeira conjugação) e “-er” (da segunda conjugação): vendar x vender. O futuro do presente se opõe ao futuro do pretério através da diferença entre as desinências modo-temporais “-rá (-re)” e “-ria” (cf. Ele vende, eu venderei x ele/eu venderia). Já o presente se opõe ao pretérito imperfeito porque, no presente, a desinência modo-temporal está ausente (morfema-zero); mas, no pretérito imperfeito, essa desinência é –va: estudaØ x estudava. No substantivo, o masculino se opõe ao feminino pela ausência de marca de gênero masculino e presença de marca no gênero feminino: meninoØ x menina. Quando a oposição se expressa pela presença vs. ausência de marca, dizemos que a oposição é privativa ou binária. Quando a oposição se expressa através de marcas equivalentes, como em “saberei” e “saberemos” (caso em que “-i”, que expressa a primeira pessoa do singular, se opõe a “-mos”, que expressa a primeira pessoa do plural), dizemos que a oposição é equipolente ou polar. Há também a oposição gradual, caso em que uma forma se opõe a outra em função da gradação de um dado traço, como em “pode x pôde”.
O princípio das oposições funcionais constitui a própria base do axioma estruturalista, segundo o qual cada unidade linguística só adquire valor a partir da oposição (substituição) e contraste (combinação) com outras unidades pertencentes ao mesmo nível gramatical.  A noção de valor linguístico caracteriza o fato de que a língua é um sistema cujos termos são todos solidários entre si. O valor de um signo resulta tão somente da presença simultânea de outros. Quer na esfera do significado, quer na esfera do significante, o valor de um signo é constituído unicamente de relações e diferenças com outros signos da língua. Por isso, segundo Saussure,


A língua (...) é comparável a uma folha de papel: o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro, assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento; ou o pensamento do som (...). (ibid., p. 15).



Apêndice


O estruturalismo norte-americano, cujo expoente foi Leonard Bloomfield, muito embora tenha se desenvolvido de maneira independente no momento em que o pensamento de Saussure começava a ser conhecido na Europa, encerra pontos em comum, malgrado as diferenças, com a proposta formulada por Saussure. O estruturalismo de Bloomfield, dominante, nos Estados Unidos, até aproximadamente  1950, se desenvolveu sob o rótulo de distribucionalismo ou Línguística distribucional.
Bloomfield estava interessado na elaboração de um sistema de conceitos destinados à descrição sincrônica de qualquer língua. Para tanto, ele assumiu os seguintes pressupostos teóricos:

a) cada língua apresenta uma estrutura específica;

b) essa estrutura se evidencia em três níveis – o fonológico, o morfológico e o sintático -, os quais se organizam hierarquicamente, com o fonológico na base e o sintático no topo;

c) cada nível é constituído de unidades de nível imediatamente inferior: a oração se constitui de sintagmas; os sintagmas, de palavras; as palavras, de morfemas; os morfemas, de fonemas;

d) a descrição de uma língua deve começar pela consideração das unidades mais simples, prosseguindo gradativamente à descrição das unidades mais complexas;

e) cada unidade linguística é definida em função de sua posição estrutural, de acordo com os elementos que a precedem  e que a seguem;
f) na descrição, é necessária absoluta objetividade, o que exclui o estudo da semântica do escopo da linguística;

Vou ilustrar como se deve proceder à descrição da língua, segundo os itens d) e e). Tomemos para exemplo o vocábulo casamento. Segundo o que propõe o estruturalismo em d), devemos começar por descrever as unidades mais simples da palavra “casamento”. Isso significa dizer que devemos decompor a palavra em seus fonemas constitutivos. O resultado é o seguinte: /k/ /a/ / z/ /a/ /m/ /e/ /n/ /t/ /o/. Em seguida, passamos à discriminação das unidades significativas que a constituem: cas-radical; -a vogal temática; -mento sufixo de nominalização. Prosseguimos observando a posição estrutural em que ela ocorre, é o que se postula em e). A palavra “casamento” pode ocorrer nas seguintes posições estruturais:



(8a) [O casamento do meu tio] foi um sucesso
(8b) Havia muitos convidados [no casamento do meu tio]
(8c) Foram muitas pessoas [ao casamento do meu tio]
(8d) Já começaram os preparativos [do casamento do meu tio]



Em todos os casos, o vocábulo “casamento” preenche o núcleo de um SN, do qual faz parte o artigo como pré-determinante. É justamente por admitir a combinação com artigo que o vocábulo “casamento” pertence à classe do substantivo. Assim, todo substantivo se caracteriza por admitir a combinação com um artigo (ou outro determinante equivalente). Essa é uma propriedade estrutural do substantivo. A classificação de uma palavra como “substantivo” depende, portanto, do ambiente sintático em que ela sistematicamente figura. O aspecto semântico, tão privilegiado na gramática tradicional, não entra a fazer parte da definição do substantivo (ou de qualquer outra classe gramatical), segundo a perspectiva distribucional. O que importa é considerar seu comportamento sintático, o entorno estrutural em que a palavra se encontra.  O distribucionalismo visa a determinar como as unidades linguísticas se distribuem, se organizam, se estruturam na cadeia sintagmática. Há, evidentemente, diferença na distribuição do substantivo “casamento” nos casos acima mencionados, quando consideramos o sintagma de que ele é o núcleo. Em (8a), o vocábulo “casamento” é o núcleo de um SN que preenche a posição de sujeito da oração. Já em (8b), “casamento” é o núcleo de um SN encaixado num SP (em__SN), na função de adjunto adverbial. Em (8c), o mesmo vocábulo constitui o núcleo de um SN encaixado no SP, o qual, por sua vez, preenche a posição de complemento circunstancial de “ir” (cf. foram ao casamento...). Finalmente, em (8d), “casamento” é núcleo de um SN encaixado no SP que funciona como modificador do substantivo “preparativos”.  Em suma, “casamento” é distribucionalmente um substantivo, porque pode ocupar a posição de núcleo de um SN; e esse sintagma nominal pode ou não ser parte de um SP.  O SN cujo núcleo é preenchido sempre por uma palavra funcionalmente correspondente a um substantivo pode exercer as seguintes funções sintáticas, ou seja, pode ocupar as seguintes posições na estrutura oracional: 1) a de sujeito, caso em que, via de regra, precede o verbo; 2) a de complemento direto, caso em que se pospõe ao verbo; 3) a de predicativo do sujeito ou do objeto direto (cf. Pedro é um grande amigo / Eu considero Pedro um grande amigo).
Para Bloomfield, o processo de combinação das unidades da língua para formar construções de nível imediatamente superior é governado por regras e princípios próprios de cada sistema linguístico. Assim, algumas construções serão autorizadas pelo sistema de regras da língua (a gramática), enquanto outras construções serão totalmente desautorizadas.
É inegável a contribuição do estruturalismo para a consolidação da Linguística enquanto ciência autônoma, em consonância com os postulados saussurianos. Essa contribuição é patente quando reconhecemos que a linguística distribucional propõe que o estudo da língua seja levado a efeito com base na:

a) constituição de um corpus representativo de enunciados efetivamente realizados por usuários de uma determinada língua, numa dada época;

b) a elaboração de um inventário, a partir desse corpus, que permita determinar as unidades elementares em cada nível de análise, assim como as classes a que essas unidades pertencem;

c) a verificação das regras de combinação de elementos de diferentes classes.

Talvez a maior contribuição do estruturalismo de Bloomfield para a Linguística é seu método de análise em constituintes imediatos. Os proponentes do estruturalismo advogam que as peças de uma língua não se organizam arbitrariamente, mas, ao contrário, distribuem-se em certas posições particulares fixadas pelo sistema de regras da língua. A análise em constituintes imediatos evidencia o fato de que as frases de uma língua são formadas pela combinação de construções – os seus sintagmas – e não de uma simples sequência de elementos discretos. De acordo com esse método, uma frase resulta de diversas camadas de constituintes.  Assim, a frase “o casamento do meu tio agradou aos convidados” é analisada como produto da combinação de dois constituintes imediatos: um SN “o casamento do meu tio” e um SV “agradou aos convidados”. Cada um desses constituintes imediatos é formado por outras unidades constitutivas. Por exemplo, o SN “o casamento do meu tio”, encerra o SP “do meu tio”, que, por sua vez, inclui o SN “o meu tio”. O SN “o meu tio” resulta da combinação do núcleo “tio” com os determinantes “o” (pré-determinante) e o “meu”. Graficamente, podemos analisar o SN “o casamento do meu irmão”, isolando entre colchetes os termos marginais em cada etapa de análise:



                 [o] casamento do meu tio
                                        [do meu tio]
                                        [de] meu tio
                                       [o]  meu tio
                                       [meu] tio


Veja-se que o substantivo núcleo “casamento” do SN nunca é isolado entre colchetes. Todos as unidades do sintagma são partes constitutivas dessa teia urdida a partir de um centro, de um núcleo.

É particularmente importante pontuar que essa análise por meio de colchetes permite resolver casos de ambiguidade, como em (9):

(9) Pedro viu Maria com um binóculo.

Essa frase é ambígua: tanto pode significar ‘Pedro utilizou um binóculo para ver Maria’ quanto ‘Pedro viu Maria enquanto ela portava um binóculo’. A ambiguidade de sentido resulta de duas possibilidades de apreensão da estruturação da frase. Para o primeiro significado, temos a estrutura:

(9a) Pedro viu Maria [com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte menos aderente, que preenche a função adverbial, qual seja, a de instrumento pelo qual Pedro vê Maria.

(9b) Pedro viu [Maria com um binóculo]

Nesse caso, isola-se o constituinte que corresponde a um SN, a cujo núcleo “Maria” se prende o modificador “com um binóculo”. Agora, a leitura é: Pedro viu Maria enquanto ela trazia um binóculo.

Abaixo, segue a análise exaustiva da frase “o casamento do meu irmão agradou aos convidados” em seus constituintes, os quais estão organizados em níveis gramaticais hierárquicos diferentes: a frase constitui o nível hierárquico mais alto, enquanto o fonema é o nível mais básico.  Entre os níveis intermediários, o morfema é hierarquicamente inferior ao nível da palavra, o qual, por sua vez, é inferior ao nível do sintagma:


FRASE  ______________ o casamento do meu tio agradou aos convidados
SINTAGMAS __________  o casamento do meu tio  / agradou os convidados
PALAVRAS  _____________ /o / casamento/ /de/ /o/ /meu/ /tio/ /agradou/ /os/ /convidados/.
MORFEMAS ___________ /o/ /cas-/ /a/ /-mento/ /de/ /o/ meu/ tio/ / agrad-/ /ou/ /o/ /s/ /convid-/ /-ado/ /s/

FONEMAS __________
/o/ /k/ /a/ /z/ /a/ /m/ /e/ /N/ /t/ /o/ /d/ /o/ /m/ /e/ /u/  / t/ /i/ /o/ / a/ /g/ /r/ /a/ /d/ /o/ /u/ /a/ /o/ /s/ /c/ /o/ /n/ /v/  /i/ /d/ /a/ /d/ /o/ /s/.


Consoante se vê, a análise distribucional, cunhada no modelo estruturalista, apresenta uma perspectiva demasiadamente formal acerca do fenômeno da linguagem, de modo que a tarefa do linguista é tão só, na descrição da língua, decompor suas unidades constitutivas, identificar as regras por meio das quais elas podem se combinar em unidades de nível cada vez mais alto e classificá-las com base num corpus representativo de enunciados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2003.












[1]  Vale dizer que Saussure não usa o termo “relações paradigmáticas”, preferindo o termo “relações associativas” (CLG, 2003, p. 142).
[2]  Essa concepção alargada de “sintagma” autoriza-nos a chamar de sintagma até mesmo as sílabas, muito embora a concepção mais restrita de sintagma suponha a combinação, a articulação de unidades menores, dotadas de significado, numa unidade hierarquicamente superior. Assim, o que entendemos hoje por sintagma impede que se considerem sintagmas as sílabas, já que estas são desprovidas de significado.

[3] Para que possamos combinar “estar” com infinitivo, é necessária a presença da preposição “a”. A construção resultante é semanticamente equivalente à construção de ‘estar + gerúndio”: ‘estou a cantar’. No entanto, a construção ‘estar a + infinitivo’ não é usada no português brasileiro.
[4] O par mínimo é um procedimento fonológico que permite determinar que sons pertencem à mesma classe. O par mínimo recobre duas palavras que diferem em significado quando apenas um dos fonemas é alterado. Por exemplo, “lata e “mata” formam um par mínimo, já que, comutando /l/ com /m/, temos duas palavras com significado diverso. Outros exemplos de pares mínimos são: ‘mar x par’, ‘luva x lava’, ‘dedo x cedo’. Note-se que, no par mínimo, a estrutura fonológica permanece praticamente a mesma, exceto pelo fato de um único fonema mudar: dedo x cedo. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, é o ponto de vista que cria o objeto" (Saussure)

                  
                                    
                                    
      Ferdinand de Saussure
                          O homem dos fundamentos


Convencionou-se datar o nascimento da Linguística moderna a partir da publicação do Cours de linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, em 1916. As ideias de Saussure influenciaram toda uma geração de especialistas, em diversos domínios do saber humano e delas encontramos eco, ainda hoje, nos centros acadêmicos de nosso país, nas conferências em que se divulgam estudos sobre a linguagem.
Da publicação do Cours dependeu a afirmação do estruturalismo linguístico na Europa. Mesmo a Escola Linguística de Praga, que se desenvolveu entre as duas guerras mundiais, sustentando Teses que enfatizavam o componente funcional da linguagem e que forte influência exerceram sobre a mudança de paradigma na Linguística, ocorrida a partir dos anos de 1970, bebeu da fonte saussuriana. Escusa aqui traçar um panorama histórico da influência das ideias de Saussure, empreendimento este que o leitor encontrará em manuais devotados à história do desenvolvimento do pensamento linguístico. Necessário, contudo, é assinalar que a) embora Saussure nunca tenha empregado o termo estrutura em seu Cours, sua contribuição ao desenvolvimento do pensamento linguístico fez surgir uma abordagem revolucionária da língua, a qual ficou conhecida como estruturalismo; b) dois autores se destacam por ter contribuído decisivamente para consagrar as ideias saussurrianas: nos Estados Unidos, Leonard Bloomfield (1933); na Europa, Louis Hjelmslev (1935). O estruturalismo, a partir de Saussure, viria a se tornar um método que grande influência exerceu na análise da língua, da cultura, da sociedade, etc. na segunda metade do século XX.


1. A língua como sistema de signos

Saussure é considerado o pai da linguística moderna. Coube a ele lançar os fundamentos do edifício de uma nova ciência: a Linguística. É bem verdade que, no século XIX, com os trabalhos dos gramáticos comparativistas, já se buscava abordar o fenômeno linguístico com base num modelo científico calcado sobre hipóteses e orientado por um método que visava a explicar a mudança das línguas e a estabelecer relações genealógicas entre elas. No entanto, a visão sistêmica da língua, segundo a qual os elementos constitutivos do sistema devem ser estudados em suas relações de interdependência recíproca, estava ausente das preocupações desses estudiosos. Pelo menos da perspectiva de Saussure, ainda não havia uma ciência linguística estabelecida, porque faltava àqueles estudos um objeto, do qual toda a variação deveria estar excluída,  e um método próprios e bem delimitados.
Para Saussure, esse objeto é a langue (língua), tomada em si e por si mesma. A langue é um sistema. Para definir a língua como sistema, Saussure lançou mão de uma primeira dicotomia: langue/parole (língua/fala). Para o mestre genebrino, língua opõe-se a fala, na medida em que a língua é coletiva, isto é, um produto social; a fala, a seu turno, é individual, uma realidade particular “de que o indivíduo é o senhor”. Ademais, a língua é sistemática (nela só há oposições recíprocas); a fala, assistemática. A fala é heterogênea, multifacetada; a língua, homogênea. Interessado em estabelecer uma ciência, que ele chamou de Linguística, Saussure precisava, como se vê, determinar a natureza desse objeto. Saussure assumiu o pressuposto segundo o qual não há ciência sem um objeto bem definido, sem um objeto que seja homogêneo. Pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se, porque, apesar de utilizar configurações linguísticas específicas (as quais caracterizam a sua fala particular), fazem uso de um mesmo sistema de signos (e de regras gramaticais). Em última análise, a língua é uma realidade de natureza sui generis, de modo que uma pessoa privada da fala não deixa de dominar a língua, desde que seja capaz de reconhecer os sinais dessa língua.
Não obstante a distinção rigorosa, estabelecida por Saussure, entre língua e fala, ele não deixa de reconhecer a inter-relação entre os dois domínios, já que, nas palavras de Roland Barthes, “não há língua sem fala e não há fala fora da língua”: a fala é a realização da língua, no sentido de que a toma como um dado real, manifesto (devemos lembrar que a língua é virtualidade; está depositada na mente de cada falante); e, por outro lado, a ideia de fala pressupõe a existência de uma língua. A língua é, pois, produto e instrumento da fala.
Os fatos de fala, a seu turno, não são recorrentes e referem-se ao uso do sistema. Por exemplo, em certas regiões do país ou mesmo entre falantes de estratos sociais estigmatizados, algumas palavras com /lh/ não são palatizadas. Pronuncia-se “mulé” em vez de “mulher” (no sudeste, na modalidade oral, ocorre a apócope do /r/, do que resulta a pronúncia normal “mulhé”). Observe-se, a despeito da variação fonética, o som /lh/ não desaparece do sistema da língua portuguesa. As mudanças no sistema são oriundas da fala. Para Saussure, quando essas mudanças deixam o âmbito individual para figurar no domínio social – ou seja, quando passa da fala para a língua – elas são estudadas sincronicamente nos limites da língua.
Essa dicotomia entre língua e fala, tal como fora desenvolvida por Saussure, sofreu inúmeras críticas no desenvolvimento posterior da Linguística. Mas, afinal, o que se quer dizer com “a língua é um sistema”. Primeiramente, é preciso definir o que é um sistema. Sistema é um conjunto organizado de elementos em que um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um se define em relação aos demais. Trata-se de conceber o sistema de um ponto de vista dualista: fala-se em singular porque existe o plural. O valor das unidades linguísticas se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que casa está no singular, porque existe a contraparte pluralizada casas. Só podemos falar em morfema-zero (ausência de marca) em casa, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s na forma casas.
A langue saussuriana é um sistema de signos abstrato. É abstrato porque pensado isoladamente, em si e por si mesmo, do contexto social, em que é usado. Do domínio da langue devem-se excluir todos os fatores que lhe são externos e que dizem respeito às condições sócio-históricas e culturais do uso da língua. Falta, no entanto, explicar o signo.
O signo, no sentido estritamente linguístico, é qualquer unidade formada pela união de um significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica (que Saussure chamará, posteriormente, no texto do Cours, de significante). Para ilustrar o signo, Saussure toma a palavra; a palavra lobo, por exemplo, é um signo, porque reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto, que o significante não é o som em si, fenômeno material e físico, mas “a impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado são ambos faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante não é a sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no falante.
Disse que a palavra foi tomada por Saussure como exemplo de signo; mas o signo não deve ser limitado ao estrato da palavra. Em língua, o signo é qualquer unidade constituída de significante e significado. Portanto, morfemas, mínimas unidades sonoras dotadas de significado nas quais se dividem as palavras, são também signos. Frases e textos, tomados como unidades sintático-semânticas maiores, também são signos. Uma unidade linguística só pode ser considerada signo, quando apresentar as duas faces articuladas: significante e significado. Assim, por exemplo, o –va, de cantava, é um signo. Trata-se da desinência modo-temporal correspondente ao pretérito imperfeito do indicativo. Trata-se, portanto, de um morfema. Enquanto signo, “-va” encerra um significado gramatical: faz distinção quanto ao modo e ao tempo em que está empregado o verbo “cantar”. A forma “cantava” opõem-se, por força da presença de “-va”, a formas como “cantou”, “canto”, “cantarei”, etc. Nas formas “cantou” e “canto”, a desinência modo-temporal é representada por um morfema-zero; na forma “cantarei”, pelo morfema “-re”.
Por outro lado, o /r/ de “rato” é um fonema no radical rat- e, portanto, não é um signo. Os fonemas são unidades linguísticas desprovidas de significado; falta-lhes, portanto, a contraparte significativa que caracteriza todo signo.
Não se pode esquecer-se de que “signo”, em semiologia, designa também “gestos”, “imagens”, “sons que não são linguísticos”, tais como o apito de um trem, o tilintar de uma campainha, as cores, etc. Assim, pode-se afirmar que “o signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo aspecto e de algum modo representa alguma coisa para alguém” (Pierce,1975:94 apud. Castelar, 2003: 30).
Sumariando o que se expôs, cumpre notar o seguinte:

1. A langue (língua) constitui um objeto homogêneo: um sistema abstrato de signos que se relacionam reciprocamente. A língua é forma, não substância. Ela deve ser estudada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o contexto de uso social. Ela apresenta as seguintes características:

a) é social;
b) é homogênea;
c) é sistemática;
d) é abstrata;
e) é supra-individual;
f) é psíquica;
g) é forma;
h) é unidade;
i) é instituição;
j) é potencialidade ativa de produzir a fala;
l) é essencial.


2. A parole (fala) é a realização individual da língua. Compreende atos linguísticos individuais. É múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Ela apresenta as seguintes características:

a) é individual;
b) é heterogênea;
c) assistemática;
d) concreta;
e) variável;
f) momentânea;
g) inovadora;
h) substância;
i) o indivíduo é o “senhor”;
j) práxis (ação).
l) é acidental.


3. “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica”.

4. Conceito = significado. / imagem acústica = significante. Tanto o significado quanto o significante são de natureza mental. A imagem acústica não é o som material; não se identifica com a materialidade sonora, mas é “a impressão psíquica do som”.



Será forçoso protelar para outra oportunidade a exposição sobre a noção de valor linguístico, que cumpre um papel fundamental na concepção sistêmica saussuriana de língua. A compreensão dessa concepção é extremamente dependente da compreensão daquela noção. Por ora, basta dizer que a noção de valor é sempre relacional: o valor de uma unidade linguística se define na relação que essa unidade estabelece com outra unidade na cadeia sintagmática. Assim, o fonema /l/ só tem valor dentro do sistema quando posto em relação com  /p/, cujo valor só se apreende em oposição a /l/, uma vez considerados o par mínimo /lata/ e /pata/.
A fim de que o leitor perceba a influência de Saussure no desenvolvimento do pensamento de  pensadores posteriores e a fim de que se esclareça um fundamento básico em que se esteia a prática de análise linguística, na próxima e última seção deste texto, dou a saber o princípio da Dupla Articulação da Linguagem.


  
2. A dupla articulação da linguagem

O francês André Martinet, expoente da Lingüística Funcionalista da Escola Lingüística de Praga1, interessou-se pelos estudos da fonologia descritiva, da fonologia diacrônica e da Lingüística Geral. Uma de suas mais importantes contribuições é, decerto, a teoria da Dupla Articulação da Linguagem.
Baseando-se na proposição de Saussure, segundo a qual a língua é constituída pela interdependência entre dois planos (o dos sons e das idéias), o lingüista francês propôs que todo enunciado articula-se em dois planos: o do conteúdo, o qual corresponde à 1ª articulação; e o da expressão, que se refere à 2ª articulação.
O plano do conteúdo compreende as unidades lingüísticas significativas. A menor dentre essas unidades é o monema2. Por outro lado, o plano da expressão encerra as unidades lingüísticas destituídas de significado. A menor unidade desse plano é o fonema; este é definido como a mínima unidade sonora distintiva. O fonema é destituído de significado; mas estabelece distinção significativa entre palavras.
Destarte, se ocorresse ao falante a idéia de ‘refeição noturna com a família’, ele poderia expressar (plano da expressão) seu pensamento (plano do conteúdo) mediante os monemas: “jant-“, “-a”, “-r”, de cuja concatenação resultará o lexema jantar.
Tradicionalmente, entende-se que o plano da expressão refere-se à fonologia, já que nesse plano figuram os fonemas; e o plano do conteúdo reúne as unidades morfológicas (monemas e lexemas) e sintáticas (sintagma e oração). Destarte, o enunciado nós jantamos cedo, pode ser articulado como: nós – jantamos-cedo, caso em que se verificam três vocábulos. A forma “jantamos” pode ser dividida em: “jant-“, “-a”, “-mos”. Essas unidades (vocábulos e monemas) compõem o plano da 1ª articulação. O mesmo enunciado pode ser articulado como: /n/, /ó/, /S/, /j/, /a/, /N/, /t/, /a/, /m/, /o/, /S/, /s/, /ê/, /d/, /o/. Nesse caso, explicitam-se seus fonemas. Essa divisão corresponde à 2ª articulação. Veja-se o quadro na próxima página:

        
                       


Martinet ensinou que o recorte analítico pode explicitar as unidades lingüísticas significativas, dentre as quais a menor é o monema (unidade mínima significativa de análise); e as unidades lingüísticas destituídas de significado (os fonemas). O componente semântico é depreendido das unidades pertencentes à 1ª articulação. Assim como Martinet, que se baseou na dicotomia ‘significado/ significante’, de Ferdinand de Saussure, para desenvolver sua teoria da Dupla Articulação da Linguagem, Hjelmslev, estruturalista dinamarquês que radicalizou as idéias de Saussure, em seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1943), propôs uma subdivisão entre os planos do conteúdo e da expressão, em cada um dos quais inclui as noções de ‘forma’ e ‘substância’ (conceitos saussurianos). Destarte, no plano do conteúdo, há uma forma, que consiste numa relação sêmica e refere-se à própria estruturação das idéias. Em coelha, há a relação entre o significado ‘coelho’ e o ‘gênero feminino (“ela”)’. Outrossim, nesse plano, há uma substância, que se refere ao pensamento amorfo, desestruturado. Corresponde, pois, à idéia que os falantes tem desse animal: “coelha” é a fêmea da espécie “coelho”.
Também, no plano da expressão, verificam-se a forma e a substância. Esta corresponde aos sons desestruturados: representa a massa fônica sem valor funcional. Isso nos lembra a Fonética, estudo que se ocupa dos “fones” (ou seja, de todas as realizações sonoras da fala). Assim, em gato, distinguem-se os fones: [g], [a], [t], [u]. A forma refere-se à estruturação dos sons na cadeia da fala. Os sons são considerados sob o ponto de vista funcional (fonemas). Do binômio forma/ substância, pode-se depreender, portanto, a distinção entre fonologia (estudo da forma dos sons) e fonética (estudo da substância dos sons).
Finalmente, cabe observar que, consoante a proposição de Hjelmslev, a língua é responsável por relacionar os dois níveis. No entanto, como se verá no esquema a seguir, a língua restringe-se à forma, já que, em consonância com Saussure, Hjelmslev também relaciona “substância” a “fala”; afinal, na proposição de Saussure, a fala é uma realidade não-sistemática.

Note-se ainda como o substantivo coelha pode ser segmentado, consoante o ponto de vista de Hjelmslev:





Está claro o refinamento com que o princípio da dupla articulação da linguagem aparece em Hjelmslev. Ao invés de propor um recorte dicotômico apenas, de acordo com o qual o plano das idéias se articularia ao plano material, sem qualquer subdivisão interna, o lingüista entende que, no âmbito das unidades significativas, deve-se distinguir entre o significado “bruto” (substância) e o significado estruturado (forma); e, no âmbito das unidades da expressão, deve-se distinguir entre a natureza físico-articulatória (substância) e a natureza sistêmico-funcional dos sons, atribuindo à língua a função de relacionar a forma do conteúdo à forma da expressão. Segundo a proposição de Hjelmslev, há, pois, um princípio estrutural (formal) quer no plano das idéias, quer no plano da expressão. Hjelmslev, assumindo a articulação da “forma do conteúdo” com a “forma da substância”, reafirma radicalmente a idéia saussurriana de que a língua é forma, e não substância.
Por fim, cumpre mencionar que a dupla articulação da linguagem consiste num princípio assaz relevante aos estudos lingüísticos3.


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NOTAS

          1.  A designação Escola Lingüística de Praga aplica-se a um grupo de estudiosos que participaram do Círculo Lingüístico de Praga (1929). Nessa abordagem, a língua é considerada um sistema funcional, em que o componente estrutural coexiste com o componente funcional. “Funcional”, na perspectiva desses estudiosos, diz respeito à propriedade de a língua servir fundamentalmente à comunicação; a língua é, pois, um sistema de comunicação.

2. O termo monema recobre a noção de morfema do estruturalismo. Martinet denomina de monemas as unidades da primeira articulação, mas distingue, entre estas, os lexemas, monemas que se situam no léxico, dos morfemas, monemas que se situam na gramática.

3. A teoria de André Martinet apresenta uma conclusão fundamental acerca da natureza da linguagem humana: o princípio da economia lingüística. Esse princípio pode ser definido como o fato de que o sistema lingüístico permite ao falante a produção de um número infinito de enunciados mediante um número limitado de unidades. Veja-se que o português, com apenas 28 fonemas (19 consoantes, 7 vogais e 2 semivogais), permite-nos produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados. Por exemplo, produzimos novas palavras na língua, basicamente, mediante processos derivacionais, os quais consistem na junção de elementos mínimos recorrentes a bases morfológicas; logo, não memorizamos todas as palavras de nossa língua. O princípio de economia lingüística evita, portanto, que nossa memória fique sobrecarregada e assegura a dinamicidade e eficiência do sistema. Note-se, destarte, que, para adquirir uma nova palavra, utilizamos o material já existente no léxico: dispondo de “computar”, formamos “computação”, mediante a junção de “-ção” à base “computa(r)” (já disponível).