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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

"Para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso" (Camus).

 




Pensamentos dispersos e outras impertinências

 

Os gregos denominavam Kairós a boa ocasião, o momento oportuno, a circunstância favorável; kairós é o tempo fugaz que deve ser aproveitado no momento certo, porque, senão, a ação pode não lograr êxito ou pode fracassar. Será este o momento oportuno, pois, para escrever? Hesito... O que é certo é que adiei, protelei, posterguei, procrastinei o início da escritura deste texto. Por alguns dias, me deixei arrastar por minhas obsessões, ou por uma delas, a saber, meu apego irrestrito à verbosidade, à pretensão ilusória de dizer “tudo” rompendo com a incompletude da linguagem (o que sei ser impossível!); essa obsessão pelo “cheio”, pelo “excesso”, que pretensiosamente saturaria as possibilidades de dizer (o que é uma ilusão!), me leva a consumir horas e dias a garimpar os livros, a encher folhas de papéis com excertos alheios, com comentários pessoais, a anotar tudo que me parece relevante, a transcrever trechos de livros diversos. Só este trabalho obsessivo-compulsivo é suficiente para tornar o resultado, para o qual aquele trabalho é um simples meio, uma empreitada hercúlea e desestimulante. Minha obsessão com a precisão da forma, com a fecundidade e a profundidade do conteúdo e com o refinamento do estilo é infensa aos sentimentos iniciais que me incitavam a escrever. O presente texto deve ser um sintoma de leveza na expressão e de intensidades anímicas, de tremores e terrores fisiológicos, de inquietações de meu espírito filosófico, de cumplicidade intelectual-afetiva com autores e seus pensamentos. A leveza na expressão significa renúncia ao academicismo estilístico. Basta! São desnecessárias mais justificativas! Apenas acrescento que este texto não versa sobre um assunto definido, não tem sequer uma ideia geral em que se pudessem apoiar seus arranjos sintáticos. Escreverei como um navegante à deriva no mar, que não sabe aonde chegará e ignora os reveses que o espreitam ao longo de um curso onduloso, tortuoso, tormentoso. O perigo do naufrágio é inevitável, inelutável. Não há rotas, não há qualquer sinalização de um começo. Escrevo para apascentar meu desespero congênito, que tem, ultimamente, se tornado mais agressivo, mais fustigante, mais espinhoso, mais insurreto. Aqui é necessário um esclarecimento: não me refiro ao desespero apenas no sentido de “desorientação perturbadora, grande aflição em face da perda de uma rede de referências, afetiva e axiológica, que dava sustentação à existência”; refiro-me, sobretudo, ao desespero como disposição afetiva que nos reconcilia com a crueldade do real. O desespero a que me refiro é renúncia a qualquer fé num sentido metafísico da existência, é também dispor-se para o viver reconciliado com o real, com o caráter trágico, ou absurdo da existência (como prefeririam os filósofos pessimistas, dos quais me sinto mais próximo intelectual e afetivamente). Como escreveu o poeta estadunidense David Thoreau, “a maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”. Esta é a minha primeira citação; e preciso dizer que não será a única; na verdade, por não ser um produto de um plano global de escrita, este texto se constituirá, predominantemente, como um tecido dialógico explícito e repleto de uma série de costuras polifônicas; citando autores e seus pensamentos, pretendo confrontá-los, alinhá-los, para compor minha fala como uma fala constitucionalmente polifônica. Meu discurso não tem em mim a sua origem – anotem isso!

É justamente esse “tranquilo desespero”, do qual está impregnada a existência da maioria dos seres humanos, que só conquisto, talvez, em alguns breves momentos em que me deixo estar fora do alcance do vigilante pensamento para entreter-me com a futilidade do mundo. Mas, na maior parte do tempo inutilizável de minha vida inempregável e ociosa – Baudelaire, aliás, escreveu, em seus Diários Íntimos, “ser um homem útil sempre me pareceu algo muito horrendo” - , tal “tranquilo desespero” me é tão estranho e desconhecido quanto estranhos são os rostos que se apinham e se confundem na multidão de indivíduos que, ignorando-se mutuamente, atravessam, cotidianamente, as  grandes avenidas de nossas metrópoles. O meu desespero é de outra natureza; é congênito, é efeito de um estado de crise permanente e parturejante (em grego, aliás, krisis se diz do momento decisivo, de súbita mudança); é, em suma, efeito de uma implacável indisposição para a existência comum e sua banalidade assombrosa. O romancista russo Vladimir Nabokov expressou aquilo de que o “tranquilo desespero” da maioria a protege: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades”. Como eu entendo esse “tranquilo desespero”? Como uma espécie de mecanismo de defesa narcotizante que foi implantado em nós pela seleção natural como parte de nossa herança filogênica. A natureza trabalha no sentido de garantir a sobrevivência da espécie. Como ensina Schopenhauer, ela é indiferente à sorte dos indivíduos; mas precisa garantir que eles funcionem bem, para que dediquem sua vida à preservação da espécie. Não haveria vantagem evolutiva alguma se fosse grande o número de indivíduos que, existencialmente atormentados, aturdidos com a insignificância radical da existência, vindo a se encontrar, frequentemente, em condições de extrema tensão de seu mundo afetivo, pulsional, pusessem fim aos seus dias suicidando-se. Como observa bem Nietzsche, “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é essencialmente a linhagem e rebanho que somos”. Schopenhauer vem aqui fazer coro a Nietzsche: a maioria dos animais humanos se esforça diariamente em vista senão da “manutenção da existência mesma, manutenção obtida diariamente às custas de fardo incessante e cuidado constante, numa luta contra a necessidade e tendo a morte em perspectiva”. Ou ainda: “a vida individual transcorre numa luta incessante pela existência mesma; porém, a cada passo é esta ameaçada pela queda no abismo”.

 E por falar em suicídio, Nietzsche nos diz, em A Gaia Ciência, que “(...) o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio”. E é também Nietzsche que sentencia: “Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer”. “As religiõesainda é Nietzsche quem ensinasão ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida”. Em geral e comumente, as pessoas se apiedam de um suicida; julgam-no um fracassado, um covarde, ou até mesmo um egoísta. Não o tenho nessa conta; se o suicida é egoísta por querer pôr fim a um sofrimento que se  lhe tornou intolerável e por não se preocupar com a dor que sentirão aqueles que o amam, após sua morte, são igualmente egoístas aqueles que, não querendo sofrer a dor da morte voluntária do amado, insistem em desejá-lo vivo de qualquer jeito. Na verdade, o suicídio é um ato que desperta em mim profunda admiração e respeito. O suicida rompeu, mediante um ato que Schopenhauer deveras não recomenda (mas isso não vem ao caso), a tirania da vontade de vida; isso sobre o qual Cioran, fazendo eco tacitamente ao próprio Schopenhauer, soube bem se interrogar: o apego irracional à vida que nos leva a prolongá-la a despeito da pressão das razões que nos convenceriam a pôr fim a ela. O suicídio é-me tentador; chego a flertar com ele em imaginação; mas sinto-me dilacerado por um congênito esgotamento que me demove de realizá-lo. Preferi, por fraqueza, escrever um livro em coautoria (ainda não publicado), para aproximar-me do ato sob um modo sublimado. Tornando-o tema filosófico, convertendo-o em objeto de reflexão filosófica, libertei-me de sua sedução, resisti às suas falsas promessas. Sem condenar o suicídio, estou convencido de que ele é bastante razoável como meio de nos libertar de um sofrimento intolerável, como um meio de nos aliviar de um sofrimento pesado e pungente que decorra de condições existenciais tão precárias, que tornam o viver irrespirável, insuportável. Por isso, a eutanásia é um ato de amor, de misericórdia, a despeito do que pensa a Igreja e seus prosélitos cagadores de regra. É verdade, no entanto, que “as religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida (Nietzche). Os que se dizem enamorados da vida me parecem ou descaradamente ingênuos, ou são indecentemente hipócritas, mas também podem sofrer de uma imbecilidade crônica e irreversível (Tamanho fastio sinto só de lembrar que, neste país, a cada dia, se multiplicam aos borbotões, por outras razões, esses tipos humanos doentes, idólatras da imbecilidade oficial!). Mas o suicídio não pode ser e não é a salvação. É que não há Salvação. Não a creio possível! Como diz Bataille, “nada de salvação: ela é o mais odioso dos subterfúgios”. O que nos resta então? – perguntar-me-iam aqueles que resistem a dobrar-se diante dos sonoros apelos da experiência. Respondo: resta-nos ou viver como a maioria num tranquilo desespero, ou viver como combatentes de um desespero que se quer lúcido e controlado. Viver um desespero controlado é reconhecer que “a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem resposta(Bataille). De fato, tem razão Bataille: “não somos tudo. Aliás, só temos duas certezas neste mundo: esta e a de morrer”.

Não me apetece muito o curso que tomaram estes desalinhos verbais. Acabei por me desviar assaz do que tinha em vista antes de pôr-me a escrever. Este texto carece de uma densidade lírica; não pretendo com ele elaborar um arrazoado filosófico. Estou de acordo, pelo menos em parte, com Nietzsche, quando diz "não quero converter ninguém à filosofia: é necessário, é talvez também desejável, que o filósofo seja uma planta rara. Nada me é mais repugnante do que a propaganda doutrinal da filosofia, como em Sêneca ou mesmo em Cícero. Filosofia tem pouco a ver com virtude.". Digo, em parte, porque não me repugna a filosofia helenística e seu ideal de sabedoria libertadora. Como sentir aversão às lições preciosas que podemos colher da pena de Sêneca, quando escreve ao amigo Lucílio: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte”? Novamente o tema da morte aparece como se me solicitasse que dele me ocupe. Da morte falarei depois. Estou em consonância com Nietzsche no tocante à crença de que ninguém pode ser convertido à filosofia; ensinar filosofia é tão sem sentido quanto ensinar língua materna. Mas Sêneca, como Epicuro, a quem aquele reconhece como um mestre, se fez tanto apelo à superioridade da vida filosófica, é porque sabia que a maioria dos homens, vivendo apartados da filosofia, vive na condição de escravos, sem o saber. Por isso, Sêneca evocava a injunção de Epicuro: “Consagra-te à filosofia se desejas ser verdadeiramente livres”.

A esta altura, sinto-me como um escritor que fracassou. Não consegui cumprir com o que prometi, se bem que nada prometi. Melhor será dizer que descumpri o intento que tinha de escrever pouco, de tornar o texto mais fluido, de expurgar sentimentos corrosivos, de me liberar dos efeitos nocivos de meus desertos. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, “na vida, o importante é fracassar”. Ou como escreveu Cioran, “apenas uma coisa importa: aprender a ser um perdedor”. Sinto-me, portanto, coagido pela necessidade de ir até as últimas consequências de meu fracasso. Só levarei a termo este texto quando tudo que se assemelha a entulho represado puder ser escoado. Se o texto terminasse aqui, estaria amputado. Prossigo, então... E espero que, antes do término, eu consiga dar a este texto uma nervura mais sentimental, sem sentimentalismo piegas.

Não é nem de liberdade nem da morte que pretendo tratar. Limito-me a evocar, por meio do testemunho de autores, a pertinência desses temas. Camus, por exemplo, escreveu, em seus Cadernos: “a única liberdade possível é uma liberdade em face da morte. O homem verdadeiramente livre é aquele que, aceitando a morte como é, aceita ao mesmo tempo as consequências – isto é, a inversão de todos os valores tradicionais da vida. O “Tudo é permitido” de Ivan Karamozov é a única expressão de uma liberdade coerente. Mas é preciso ir até o fim da fórmula”. Mas uma liberdade total e irrestrita, se fosse possível ao homem, significaria sua autodestruição ou sua loucura derradeira e insuperável. A cultura, que é o lugar onde os hominídeos se fizeram “homens”, nasce de um interdito: a proibição do incesto. Daí em diante, a cultura tratou de colocar o homem sob a mira de um arsenal de interdições, de proibições e de valores falsificadores, a fim de educá-lo, moldá-lo, domesticá-lo, com o pretexto de “civilizá-lo” e protegê-lo, alimentando seu narcisismo ontológico, de algumas verdades aterradoras. E assim se fabricaram as ficções mais danosas, as mentiras que, em vez de libertar o animal humano, o tornou escravo, doentio, iludido; o homem tornou-se um animal fabulador e mentiroso; e em nome de suas mentiras, das mentiras que lhes foram inculcadas, o homem tornou-se o animal “mais periclitante” e cruel. Tem razão Schopenhauer: “Pois o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem dera a experiência não tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel”. E pior: surpreendentemente, o homem se tornou um animal otimista! Não raro seu otimismo beira à completa falta de bom senso, a ponto de ignorar como sonâmbulos que ignoram, quando despertos, que vagueavam repetindo ações rotineiras, o que nos ensina Schopenhauer: “as pessoas comparativamente felizes o são na maioria das vezes apenas aparentemente, ou são, como ocorre no caso das pessoas de vida longa, raras exceções, cuja possibilidade teria de existir – ao modo da isca. A vida apresenta-se como um engodo constante, tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas” Opondo-se veementemente ao otimismo, Schopenhauer notou que ele é “não apenas falso, mas também uma doutrina perniciosa. Pois ele nos apresenta a vida como um estado desejável e a felicidade do ser humano como a meta do mundo”. Mas como poderia ser desejável algo que, como notara Heráclito, aporta o nome de vida, mas sua obra é a morte?” É assim que se comporta a maioria dos seres humanos, diariamente: “a grande maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e acreditar então no valor da existência, mas precisamente porque cada um quer e afirma somente a si mesmo (...). Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de ele se tomar por mais importante no mundo”. (Nietzsche).

Sinto-me, devo confessar, bastante indisposto para entabular qualquer conversa com quem se habitou a viver num autoengano relativamente à morte. Enfada-me o simples fato de ter de lhe chamar a atenção para o caráter banal e absurdo da morte (e da vida!). Para compor este texto, busquei fazer encontros fugidios com livros que li, pela primeira vez, no tempo em que ainda era graduando em Letras. Já se vão quase 20 anos... Dois, em especial, me comoveram por dar voz lírica à precariedade da condição humana e ao absurdo da existência. Trata-se dos livros A Hora da Estrela e A paixão segundo GH., ambos de Clarice Lispector. A Hora da Estrela é um livro sobre o desamparo característico da condição humana. Nele, descobrimos que contamos apenas com o consolo da linguagem para dar a ela algum sentido, frágil, para nutrir esse desamparo de uma dignidade sombria e indefinível. A narradora nos fala da banalidade da morte, depois que a protagonista Macabéa morre: “a morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Noutro lugar, a narradora, como se saísse de um sono letárgico comum à vida diária, dá-se conta de que “só agora me lembrei que a gente morre”. Assim, vive o homem do cotidiano, o homem comum: vive sob o domínio do esquecimento de que pode morrer. Ele, definitivamente, é incapaz de uma experiência filosoficamente decisiva, que se formula nestes termos, para Clarice Lispector, em seu A paixão segundo GH: “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão”. Revisitar, mesmo que de modo apressado e disperso, as páginas desses dois livros de Clarice Lispector trouxe-me lembranças aveludadas de um tempo passado prenhe de promessas de um futuro fértil de grandes colheitas. Mas o passado não é lembrado, não! Jamais! A memória tem por objetivo produzir continuamente novas experiências de pensamentos, emoções, a fim de desenvolver a personalidade e a inteligência como um todo. Engana-se quem pensa que há lembrança de informações contidas na memória. O que há é reconstrução dessas informações, de modo que o trabalho da memória não é reproduzir originalmente as experiências do passado, mas realizar uma reconstrução delas. Em outras palavras, o que é lembrado já foi interpretado pela memória. A memória é o sinal em nós de que estamos continuamente morrendo; de que o tempo vivido é um instante que sucumbe para dar lugar a um outro que, por sua vez, “morre”, para dar lugar a outro, e assim sucessivamente. O que chamamos de “presente” “morre” e se registra (se enterra) na memória – nosso primeiro cemitério, já destinado a nós em vida (daí também ter razão Fernando Pessoa: “somos defuntos adiados”). Aqui também vale a verdade: “tudo que vive tem de perecer”. Morrendo as vivências do presente, abre-se (e não “abrem-se”, como insistem impertinentemente os gramatiqueiros!) espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. Enfim, a memória é sempre repetição da diferença, e nunca reprodução do mesmo! Penso, porém, a despeito do que pensa o senso comum, que é Bergson quem tem razão: tempo como memória, tempo e memória como duração; e o passado se prolonga no presente, jamais “morre”...

Filosoficamente falando, o que me incomoda nas pessoas em geral, nas que vivem uma vida anestesiada pelo jugo da esperança, é a presunção de saber o que é o mundo, o que é a existência e qual “o sentido” de nos encontramos aqui neste mundo. Elas simplesmente não reconhecem que “este mundo é dado ao homem como um enigma a resolver”, como nota Bataille. É extremamente difícil esclarecer as pessoas sobre o papel emancipatório, sobre o caráter desmitificador e libertador do pessimismo filosófico, já que elas se acostumaram, por força de suas experiências culturais que lhes inculcam crenças e representações coletivas que lhes dizem como o mundo “é” ou deve ser, a acreditar que o pessimismo se reduz a um estado de espírito assentado no sentimento e na crença de que tudo caminha para o pior; mas ao encará-lo de modo tão rasteiro, limitado e superficial, ignoram a profundidade de sua Lucidez. Também Einstein se admirava do caráter enigmático da vida: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência”. É bem verdade que Schopenhauer teve a pretensão de decifrar o enigma do mundo, que não é uma obra de um Deus criador, mas a objetividade de uma Vontade cega e eterna: “Desperta da noite da sem-consciência para a vida, a vontade encontra-se como indivíduo num mundo sem fim e sem fronteiras, entre inumeráveis indivíduos, todos se esforçando, sofrendo, vagueando; e, como possuída por um sonho agitador, precipita-se de novo na velha sem-consciência”. Como é possível que se ignore com tamanha impassibilidade e sonolência que “a vida da maioria das pessoas é breve e calamitosa”? Ou ainda que “tudo na vida nos ensina que a felicidade terrena está destinada a desvanecer-se ou ser reconhecida como uma ilusão”? Confesso ser a morte uma dos objetos de minhas obsessões. Quem diz não temer a morte me parece um farsante, um mentiroso, só desculpável se alegar que sofre de uma estupidez crônica. Estupidez que o impede de apreender fisiologicamente, de expor-se afetivamente como um ser orgânico cosmologicamente insignificante à dramaticidade e à tragicidade de sua condição mortal e à finitude de sua condição humana. Como diz Schopenhauer, “a morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida”. Quem vive tendo sempre em seu horizonte de vivências a finitude de sua condição humana encontra na perspectiva da morte, que é um evento constitutivo da dinâmica da vida, ocasião para instruir-se. Como diz Schopenhauer, a morte nos instrui na medida em que nos esclarece sobre aquilo que a vida mesma já buscava elucidar, a saber, que ela “foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo”. Cioran comunga desse sentimento com Schopenhauer: “quanto mais vivemos, menos útil nos parece termos vivido”. Mas, por favor, não se apressem em tirar conclusões que desabonam essa perspectiva sobre as coisas. O pessimismo filosófico não é algo que se deve rejeitar sem alguma detida e paciente ponderação sobre suas lições. É preciso ruminá-las, à noite sobretudo quando os homens adormecem e a escuridão se estende sobre o mundo, silenciando-lhe o burburinho costumeiro, o falatório vazio. É na escuridão da madrugada que melhor contemplamos abismos, que as profundezas abissais da absurdidade do mundo se revelam (ah! Eu bem o sei!). Dizia Cioran que “ninguém alguma vez se persuadiu tanto como eu da futilidade de tudo, tal como ninguém terá tomado como trágicas tantas coisas fúteis”. Preciso, todavia, abandonar este ponto de minhas reflexões. Antes, contudo, vale frisar que as mentes mais lúcidas e sábias da humanidade reconheciam que a vida não vale muito, como reconhecia Sêneca, ao assinalar que “viver não é uma grande coisa (...) pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido – a vida se resume a isso”. Schopenhauer diz, por sua vez, com razão a meu ver, que “a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento”. E acrescenta com a vocação poética que o torna proficiente no trabalho com as imagens que tingem de vivacidade o mundo literário: “ a nossa vida assemelha-se antes de tudo a um pagamento que alguém recebeu centavo por centavo de cobre, pelos quais deve, no entanto, dar uma quitação: os centavos de cobre são os dias; a quitação é a morte”. Embora Schopenhauer afirme que o sofrimento é a destinação da existência humana, ele também acredita que a própria vida é um processo de purificação e que a solução purificante é a dor. Sim, para Schopenhauer que, embora ateu, não deixou de incorporar em seu pensamento elementos da tradição mística cristã (e oriental!), “o sofrimento é de fato o meio de purificação, único através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o caminho errado da Vontade de vida”.

Já que tenho procurado dar a conhecer meus agenciamentos, os autores e pensadores graças aos quais devo minha formação humana e intelectual, pois, como diz Libânio, “somos o que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que ensinamos” – no que estou de acordo -, é, para mim, extremamente difícil não anuir ao que diz Schopenhauer neste excerto que tomo como uma máxima existencial: “num mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema de vida de cada indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais tanto melhor. A convicção de que o mundo é um deserto, em que não se pode contar com companhia, deve se tornar uma sensação habitual”. Nietzsche, por seu turno, pondera que “(...) no conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum e, por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim desespero. Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens, seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício. Mas sentir-se desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo), tal como vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta, e os poetas sempre sabem se consolar”. Mas, como a maioria de nós não é poeta, talvez possamos encontrar algum consolo na sabedoria estoica de Sêneca, que nos ensina: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas”. Anotem: uma vida longa e plena não é mensurável cronologicamente, mas qualitativamente. Viver longa e plenamente é viver uma vida cujo fim é a sabedoria – é o que nos ensinou Sêneca. Reitero aqui o que já escrevi em outro lugar, porque é necessário enfatizá-lo: a brevidade é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu  realizo, eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.

Longe de acreditar que trazer sempre estampados no espírito o entendimento e o sentimento de nossa condição existencial cosmologicamente insignificante e desprovida de propósito seja um caminho descerrado para o desespero total e excruciante e para o perigo implacável do suicídio, cuido que, amparada e conduzida pela educação filosófica, tal atitude pode arrefecer, temperar nosso egoísmo habitual, nos libertar da tirania de nosso narcisismo e, mormente, nos descerrar o horizonte elucidativo à luz do qual nos podemos tornar criadores de hierarquias de valores que potencializem a vida, que nos orientem na determinação do que torna abundante e fecunda a vida, bem como nos instruam sobre como devemos evitar o desperdício do tempo de vida que temos, cujo instante do fim, sempre iminente, desconhecemos . Por isso, é preciso atender séria e demoradamente nas palavras de Hannah Arendnt: em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além – e a vida após a morte, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral -, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. (...) A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida”.

Mesmo não estando completamente satisfeito – e como poderia estar, se o estado de insatisfação permanente é constitutivo de nossa condição humana? -, preciso operar uma digressão definitiva para dizer algumas palavras sobre as atividades de escrever, ler e pensar.

 

 

Escrever constitui uma questão importante para mim em dois sentidos: 1) no sentido de que, como lembra Sponville, “escreve-se sozinho, mas é para ser lido”; e 2) no sentido de que não creio que se possa ensinar a escrever com receitas “prontas”. Aprende-se a escrever escrevendo, o que não significa dizer que sejam vãos os esforços da escola e dos professores nas práticas de letramento. Suspeite sempre quando alguém promete que você conseguirá aprender a escrever bem seguindo certo conjunto de procedimentos que o orientarão na composição de um gênero textual ou de um tipo textual, na maioria das vezes um artigo de opinião ou outro gênero textual em que predominam tipos textuais argumentativos. Mas uma atividade de escrita só se aprende e se aperfeiçoa pela conjugação de duas atividades: ler e escrever. Ler, escrever e rescrever... A leitura é importante não só porque nos permite conhecer mais sobre o mundo e adquirir, como se diz comumente, mais vocabulário, mas também e sobretudo, porque, expondo-nos aos diversos gêneros textuais, permite-nos conhecer os diversos modos como eles se estruturam. Gabriel Perissé diz que “escrever muito e sempre é o único modo de aprender a escrever, de despertar o escritor que cada um é, dentro e a partir de suas circunstâncias e limitações”. Embora não seja tão otimista quanto o autor, pois não acho que exista um escritor em cada um de nós, acolho a sugestão dele de que é escrevendo muito que se aprende a escrever. Ainda segundo Perissé, “escrever é também uma fuga, mas uma fuga para a realidade! Amar as palavras é sinal de vitalidade”.

 Mas o primeiro sentido da questão é para mim o mais grave, o que se põe como motivo de minha constante indisposição e desânimo com a prática da escrita. A questão permanece a mesma ainda hoje, para mim: por que escrever, se não há uma comunidade de leitores que realmente lerá o que escrevo? Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego, confessa que: “para mim, escrever é desprezar-me mas não posso deixar de escrever. Escrever é como uma droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo”. E ainda: “Escrever sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda”. E neste trecho seguinte encontro profunda ressonância de sentimentos: “pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me”. Eu só diria um pouco diferente: pasmo sempre quando acabo de escrever. Pasmo e desolo-me.

Concordo com Perissé, quando afirma que “escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam”. Mas dele me afasto quando mantém que escrever é conhecer-se. Não acho que somos totalmente transparentes a nós mesmos (a julgar pelo que nos dizem os psicanalistas). Talvez, melhor seria dizer que, escrevendo, vamos perturbando o desconhecido, o suposto saber (que é um não saber) sobre o qual vamos formando um sentimento de “eu” ao longo da vida. Estou, no entanto, de acordo com ele em outras afirmações interessantes que faz sobre a atividade da escrita. No entanto, não posso ignorar que escrever não é fácil, como diz Drummond: “escrever hoje para mim é mais difícil do que quando eu tinha 20 anos”. Como Perissé, também penso que escrever é libertar-se. E isso, só, bastaria para justificar a prática da escrita. Também o essencial foi dito por Perissé, quando considera a relação entre ler, pensar e escrever: “O ler conduzirá ao pensar e o pensar conduzirá ao escrever. Ler e pensar. Escrevendo, pensar. Pensar e ler. Pensando, escrever.”. Georges Picard, por sua vez, se pergunta “é preciso ter algo a dizer para escrever?” e responde: “Eu mesmo inverti o sentido da fórmula, começando por notar que é preciso, antes de mais, escrever para ter algo a dizer”.

Não é tanto a atividade da escrita como técnica ou arte que me interessa; mas a escrita como vivência – a vivência da escrita. Nesse sentido, escrever é expor-se, mas também propor-se a ser legível e interrogado. Mario Quintana, em entrevista, disse, certa feita, que “eu nunca escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando o camarada faz uma coisa cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um sentimento absolutamente sincero. Senão sentir nada, não deve escrever. Eu tenho tido períodos de deserto. Não vem nada e eu não escrevo”.

Perissé afirma que “ a leitura cura tudo se for leitura pensante. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de tudo. Exercita-nos a memória recente, a conexão entre fatos e experiências passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de interpretar, a intuição.” Schopenhauer diverge, contudo. Para ele, “a leitura não passa de um substituto do pensamento próprio”.  Para ele, “uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante frequência mesmo entre as melhores cabeças”. Deveria dizer que, por princípio teórico, estou, nessa matéria, em desacordo com Schopenhauer? A leitura não é um substituto do pensamento próprio, porque não há, a rigor, um pensamento próprio. O pensamento reflexivo, que se constitui discursivamente, é sempre dialógico. O meu pensamento é sempre pensamento de um outro, um pensamento de que me aproprio reformulando-o, ressignificando-o na diferença, fazendo falar seus silenciamentos, dando espessura verbal aos seus implícitos.

Schopenhauer considera que existem três tipos de autores: os que escrevem sem pensar; os que pensam enquanto escrevem; e os que pensaram antes de pôr-se a escrever. Os mais numerosos, segundo o autor, são os primeiros: os que escrevem sem ter pensado antes, sem ter ponderado sobre o que escreveriam. Os mais raros são os últimos: os que pensam antes de escrever. Camus, por sua vez, considera que “para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso”.

Mas, afinal, o que é pensar? Não se espante: nem todos são capazes de pensar verdadeiramente! Quando alguém, não habituado ao convívio com a filosofia, me pergunta para que serve o pensamento, eu fico tentado a lhe dizer que a pergunta em si não faz sentido, porque acompanho os gregos, para quem o pensamento tem seu fim em si mesmo. É o que nos ensinava Aristóteles. E como ensina Arendt, “todo pensar é um re-pensar”. Arendt acrescenta que “o pensamento está fora de ordem, interrompendo todas as atividades ordinárias, e sendo por elas interrompido”. E o pensamento está fora de ordem justamente porque “não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim.Mas como ousar dizer que nem todos pensam? É que o pensamento, no significado estritamente filosófico, como “contemplação do invisível, do que está para além das aparências”, “como atividade do intelecto em contraste com os sentidos”, como “visão direta do inteligível” (intuição), é de natureza diferente do pensamento que nos orienta na vida diária. Perissé tem razão quando diz que “pensar é virar a realidade do avesso, é “desrealizá-la”, recriá-la”. Pensamos para nos desabituar de nossas maneiras habituais, rasas, estereotipadas de “ver” o mundo, de significar as ocorrências do mundo. E Arendt, inspirando-se na tradição grega, observará que o pensar começa quando “dessensorializamos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos”. O pensamento tem como condição sine qua non o fato de ter um caráter niilizante, porque corrói aquilo que tomamos como evidências, nadifica as certezas, nadifica aquilo que consideramos como verdades sobre o mundo, subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justificam toda sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Como diz Libânio acertadamente, “a reflexão abala as evidências fáceis e não discutidas”.  O pensamento não se confunde com opinião de comentaristas de futebol,  tampouco com o falatório do impessoal, com os juízos de valor correntes, com a mera produção de atos de fala locucionários (proposicionais). Por isso, nem todas as ocasiões e modos de enunciação são propícias ao pensamento. As redes sociais, por exemplo, tendem a ser espaços onde colidem diversas opiniões, preconceitos, clichês, mas jamais – ou quase nunca – favorecem o exercício do pensamento. Para Arendt, o pensamento é busca do significado: “o pensamento pensa o significado. O pensamento não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe, porque sua existência é tomada como certa, mas o que significa para ela ser”. Pensar, para Arendt, é entrar no significado do acontecimento. E Deleuze diz  que “o modo do acontecimento é problemático. Não se deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições”. “O acontecimento é, por si mesmo, problemático e problematizante”. Portanto, o pensamento pondera, pensa o significado da problematicidade do acontecimento. E acontecimentos, como pensavam os estoicos, não são corpos, mas são os incorporais, são efeitos, e não coisas ou estado-de-coisas.

E uma vez que o pensamento está fora de ordem, deve-se então concluir, com os gregos e com Arendt, “que pensar significa seguir uma sequência de raciocínios que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida”. Num mundo que é caos, como acreditava Nietzsche, ou absurdo, como pensavam Schopenhauer, Camus e Cioran, não podemos  recusar um fato que torna nossa condição humana desconcertante e assombrosa. Como diz Lya Luft, “o mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. Guardarmo-nos de acreditar que o mundo tem, em si mesmo, alguma ordem, alguma finalidade, algum sentido metafísico é já  começar a libertar-se daquele “tranquilo desespero” habitual que acostumou a maioria dos homens a não reconhecer que, como diz Cioran, “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou”. E digo eu: aquele que nada pensou realmente.

 

É chegado o tempo de represar o fluxo verbal, evitando, assim, o esgotamento das forças do espírito e do corpo. Já posso sentir insinuar-se o gosto acre da desolação, da frustração por não ter conseguido externar os meus outros tantos declives e outras tantas nuances de minhas inquietudes, aflições, angústias, que tingem de nervura e coloração rubra os subterrâneos de minha alma. Este texto deveria ter sido destinado para falar de reminiscências, para acordar o poeta adormecido em mim, o poeta que um dia cuidei ser. Era para ser destinado à reflexão sobre a condição dos excluídos – condição esta da qual faço parte há oito anos-, dos que foram forçosamente postos à margem pela tirania do Capital e pela inaptidão da política para controlar a voracidade e os abusos do mercado. Como escreve Viviane Forrester, “um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.” Publicado, originalmente, em francês em 1996, este texto é bastante atual; mas quem se surpreender com sua atualidade é que não entende nada de capitalismo. Onde o capitalismo estendeu suas presas dilacerantes dificilmente nascerá igualdade e justiça. Mas fiquemos aqui com Pessoa, que nos legou esta nota de sabedoria: “Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento”. Ao que podemos acrescentar, citando Clarice Lispector: “viver é luxo”.

 

 

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Escrever é repetição

                                 


                                 A repetição do novo


Definitivamente, o calor não favorece a produção intelectual. Djavan já nos lembrava, cantando: “um dia frio, um bom lugar pra ler um livro”. O frio é convidativo à leitura, ``a escrita e aos estudos. A despeito disso, há pouco, entretinha-me com a leitura (aliás, prática que ocupa a maior parte do tempo do meu cotidiano, prática que substituiu a experiência com os brinquedos, conservando, por isso – e não apesar disso -, a dimensão do lúdico).
Acordei disposto a escrever sobre Marx, sobre seu materialismo; mas renunciei à intenção, escolhendo o conforto dos livros. E durante a leitura de um deles, encontrei um motivo para escrever – despretensiosamente, sem rigidez teorizante e sem o rigor acadêmico. Este texto é um comentário. Apenas isso. Pretendo, então, comentar dois trechos que colhi de dois livros. Os trechos, no entanto, prendem-se um ao outro tematicamente.
Em Nietzsche e Freud – o eterno retorno e compulsão à repetição (2005), se me depara o que se segue:

“(...) escrever é interpretar, reler, reavaliar, redizer e, assim fazendo, apresentar as mesmas coisas sob outra modalidade, outra tonalidade, outra superfície, outra epiderme, outros disfarces, outras máscaras, outros artifícios. Outra perspectiva. Nesse sentido, a escrita se manifesta como a expressão ou o sintoma de uma compulsão à repetição em que os mesmos fenômenos retornam sempre, se atualizam sempre, mas mediante uma nova maneira de dizer, de significar, de denominar, de designar, de nomear. Por isso, aquele que escreve – e que é dotado da arte de escrever – está sempre a conceber e a dar à luz novos nomes e, portanto, novas verdades. Daí também resultar difícil, para não dizer impossível, dissociar escrita e compulsão à repetição (...)” (p.14).


Em que sentido “escrever é interpretar”? Essa afirmação da identidade entre escrever e interpretar é um postulado da Linguística Textual. Escrever é interpretar, porque, ao escrever, fixamos ou codificamos certo modo de interpretação, de leitura. Escrever é uma atividade de estruturação da (re)leitura. Compreendamos esse ponto. A leitura é uma atividade de produção de sentido. Ela envolve interpretação e compreensão. Quando escrevemos, estamos relendo, estabilizando uma releitura. Quando escrevemos, fixamos nossa leitura e, ao fazê-lo, fazemos retornar o mesmo conteúdo, o mesmo sentido (dentre os sentidos possíveis, não construídos), com outras formas (outras combinatórias, outras estruturas significantes). Escrita é repetição, porque fixação do mesmo; não da mesma forma, do mesmo significante, mas do mesmo significado que, por força da escritura, que é atividade criativa sobre o já-dito, o já disponível, se transforma no outro do mesmo
Na escrita (e no discurso, para falar genericamente), não há criação ex nihilo. O que se cria são estruturações de sentido sobre o já-dito, sobre dizeres anteriores. Apesar disso – e nisso reside a magia – fazemos surgir o novo do mesmo, o novo que, entanto, funda-se em regiões do mesmo. E o mesmo não é tão-só o repisadamente dito, o imitado, ou o repetido ad nauseam; é, ao contrário, fonte de potencialidades para a emergência do novo olhar que atualiza o mesmo, que o faz ressignificar num discurso outro – discurso aqui tomado como atividade sociocognitivo-interativa de produção de sentidos. E os sentidos são múltiplos, “selvagens”, escorregadios, dispersos, fugidios. Escrevemos para domesticá-los, para tentar cerceá-los a fim de realizar nosso projeto de dizer. Escrevemos para represar-lhe a fluidez, todavia, incessante.
Escrever não é reprodução (vocábulo que suscita a ideia de imitação mecanizada, cópia pura e simples); mas repetição. Eis, então, que se nos impõe ao reconhecimento, a esta altura, o paradoxo: há repetição que muda, que se renova, que se modifica, que se transforma. Há repetição que está sempre recomeçando. Pela repetição, as coisas voltam, paradoxalmente, como outras, renovadas, diversificadas, reformuladas, re-escritas, re-criadas, re-ditas. Não há reprodução, nem retorno do idêntico.
Longe de sugerir que a doutrina do Eterno Retorno, de Nietzsche, deva ser interpretada em termos de repetição como fenômeno da atividade do discurso, vale apreender, no trecho em que Nietzsche expõe sua doutrina, a ideia do retorno do mesmo renovado, transformado, agora deslocada para o domínio do devir, do real:

“Que sucederia se, um dia ou uma noite, um demônio resvalasse furtivamente pela tua mais erma solidão e te dissesse: ‘Esta vida, que vives agora e que já viveste, deverás viver mais uma vez e inumeráveis vezes ainda; e não haverá nada de novo nela, mas cada dor e cada prazer suspiro, e tudo que existe de indizivelmente pequeno e grande na tua vida deverá retornar a ti, e tudo na mesma ordem e na mesma sequência – como também esta aranha e este luar – por entre as árvores, e igualmente este momento e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência, que não cessa de virar sobre si mesma – e tu com ela, ínfimo grão de pó”. (A Gaia Ciência, p. 205, parágrafo 341)


Nietzsche qualificou essa sua ideia de inquietante, terrificante e abissal. Como filólogo, estudioso dos clássicos e da Bíblia – e levando-se em conta a ideia de que o novo é ele mesmo repetição -, Nietzsche parece ter entrevisto ou pressentido esta doutrina no pensamento de Heráclito, de Empédocles, de Platão e Aristóteles, dos estóicos e dos Eclesiastes, onde se lê, no versículo nono: aquilo que foi é aquilo que será, aquilo que se fez é aquilo que se fará, pois não existe nada de novo debaixo do sol.


domingo, 4 de março de 2012

"Escrevendo, vou-me reconhecendo" (BAR)

                                    

                 Labor

Tamanha em mim é a vontade de escrever, que, mesmo desamparado da inspiração, acordo na alma as palavras preguiçosas. Custa-me escrever mais uma linha, mas, ainda assim, prossigo escrevendo. Escrevo apenas para preencher espaços com palavras descompassadas. Escrevo porque tenho necessidade. Porque preciso pôr o dentro no exterior, de modo que quem me lê possa ler-me por dentro. Só me conhecem essencialmente quem me lê, não como quem lê um jornal para informar-se, mas como quem lê poesia (emocionado) e se detém a cogitar da vida sem ter pensamentos.
Leia-me desapegado de preconceitos. Leia-me esvaziado de si e cheio de mim. Minha escrita exige a plenitude do Ser que nos escapa e nos comprime a alma. Encha-a de uma Angústia que reúne a todos nós num mesmo Mistério. Leia-me cheio de Vida ou de medo da morte.
Escrevo para ser mais, para existir mais. As palavras me absorvem, me devoram, me envolvem, me comovem. Escrevo porque sou enamorado da linguagem. Escrevo porque o silêncio me aborrece, me exclui. Escrevo para encontrar-me nos labirintos de minhas inquietações, que pesam. Escrevo porque a vida é frágil; o amor é frágil; o sofrimento, inefável; e o sentimento de mim que me legou a vida é forte, visceral e cálido.

quinta-feira, 1 de março de 2012

"O meu entusiasmo para a vida provém de minha falta de vontade para me conformar" (BAR)



Na contramão


“(...) há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é mais numerosa. Em primeiro lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. Esses são raros”.

(Schopenhauer, A arte de escrever, p. 57)

Escrever é uma forma de arte? Escrever é como o artesanato: demanda laborioso trabalho espiritual. Se comparada à arte, a escrita é também criação, reconstrução da realidade, também demanda uma técnica e se produz com um estilo. Escrever me é um desafio em que me envolvo habitualmente. E não pensem que eu não submeta meu texto a releituras revisionais. A peneira do intelecto é mais eficiente quando relemos nossos textos. Há sempre um pensamento extraviado da configuração semântica pretendida. Há sempre um enunciado mal arranjado na estrutura da sintaxe. Há sempre uma palavra que não está adequada, que destoa da rede conceitual materializada no texto.
Confesso que eu estaria mais propenso a afirmar-me como pertencente ao terceiro grupo de autores, a que se refere Schopenhauer. Mas o limite entre este grupo e o segundo não me parece ser tão marcado assim. Se há um limite, ele é tênue. Muitos pensamentos dignos de nota trafegam em minha alma, muitas vezes ao dia; mas seus movimentos são difusos e suas manifestações carecem de densidade; não raro, se me afiguram como uma brisa roçando a pele; são leves e fugazes. Quase não os sinto. E para pensar é preciso antes sentir. Pessoa nos ensinara: pensar é sentir. Talvez, não precisemos sentir previamente ao pensar; tem razão Pessoa: pensar é sentir, o que significa dizer que o pensamento talvez seja o sentimento capturado em palavras, corporificado verbalmente. O pensamento é um corpo verbal de sentimento. Isso explica por que os pensamentos que derramo sobre o papel são carregados de emoção, de sentimento. Há neles uma carga afetiva.
Certa vez pareceu a alguns que eu enunciava uma obviedade, ao ter declarado “as palavras são grávidas de sentimento”. Salvo o efeito literário ou poético deste enunciado, houve quem o julgasse lugar-comum. Mas um olhar mais aguçado mostra que tal não é o caso. Claro está que o enunciado aqui reproduzido foi apartado de seu contexto; e sabemos que nada na língua significa sem estar ancorado num contexto. O uso da língua é uso social contextualizado. Na ocasião, a frase figurava num debate cuja questão consistia em querer saber se as palavras valiam mais ou menos que os sentimentos. Embora isso não tenha feito muito sentido para mim, manifestei o que pensava.
Podemos escrever para adestrar os pensamentos. Podemos escrever para conferir-lhes forma, coesão, exatidão, clareza. Na mente, nem sempre eles são límpidos, fortes e coesos. Não raro, estão embaralhados, fragmentados, desencontrados; são magros, pouco encorpados.. Escrever, nesse sentido, é uma atividade que nos permite arranjá-los segundo as coerções de uma modalidade. Quiçá, não devêssemos falar em coerções da escrita, já que isso tornaria o escrever uma atividade castradora da liberdade espiritual. Longe disso: a escrita pode ser livre, subversiva. Pode romper com certos cânones do academicismo. E, de fato, não há limites rigorosos entre fala e escrita, a despeito do que comumente pensamos.
Um assunto puxa o outro, conforme vê o leitor. E este texto é escrito à medida que os pensamentos me fluem. Sinto, e isso me basta!
Nasci para viver na contramão. E haveria outra forma de melhor expressar isso senão pelo exercício do magistério? E não vão na contramão os educadores (professores, pedagogos... alguns pais)? Não cabe a nós resistir, malgrado existirem condições adversas, malgrado a existência de ideologias do desencanto, do pessimismo? Lendo o livro Política para não ser idiota, deparei com uma definição de utopia que me deixou, momentaneamente, com um assombro deleitoso: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. O enunciado é auto-explicativo. Escusa comentá-lo. Mesmo sendo o paraíso do imaginário de idealistas, a utopia nunca poderá deixar o horizonte humano. E tal como o horizonte, que não traça rigorosamente uma divisão entre céu e terra, a utopia não demarca nitidamente a separação entre o irrealizável e o realizável. Dentro de um projeto, há possibilidades de realização que excluem outras. Há sempre, contudo, uma parcela realizável e realizada. A teoria de Marx pode ser considerada como utópica; seu comunismo deveria favorecer a realização plena dos potenciais humanos, a começar pelo trabalho, que deveria ser um exercício de liberdade. A história, contudo, mostrou-nos um lado obscuro e tenebroso do comunismo que Marx não podia vislumbrar. Ele não vivera o suficiente para assistir ao sequestro de sua teoria por ditadores ambiciosos e implacáveis. O fracasso do comunismo não implica acreditar que o capitalismo é ainda o melhor sistema econômico. Talvez, consoante me disse uma vez uma amiga professora de História, o desejável fosse uma combinação do capitalismo com o comunismo. É possível que estejamos aqui diante de uma utopia, mas lembremos que é ela que nos permite caminhar...
Doravante, intentando pôr um ponto final neste texto, sem pretender que ele tenha alcançado o acabamento do sentido (os sentidos estão sempre abertos), tomo para ancoragem de minhas observações posteriores parte do último comentário de minha querida amiga Zélia, fiel leitora e enunciadora perspicaz:

Infelizmente há os aproveitadores que administram a miséria mental e espiritual dos fiéis através da sua angustia existencial. É preciso um longo processo para remover o ser humano de sua opinião cega, e sinceramente eu não acredito que isso um dia aconteça! Pois a maioria não gosta de refletir, são pessoas tão arraigadas em suas crenças, e é tão cômodo viver no conforto do senso-comum sem questionar.”

(grifo meu)

Achei a ideia de “administrar a miséria mental” uma imagem muito pertinente, pois, afinal, é disso mesmo que se trata: quando entramos para uma religião ou quando uma religião entra em nós, delegamos aos agentes da doutrinação (pastores, padres, pais, e correligionários) a administração de nossas formas de perceber o mundo, de pensá-lo e discuti-lo. Entendo “perceber” como interpretar. É na percepção que as sensações se organizam e ganham sentido. A administração se dá pela força penetrante da ideologia religiosa, que se instaura na inversão base de todas as outras formas de pensamento ilusório que configuram a doutrina: Deus criou os homens à sua imagem e semelhança. Não é difícil mostrar que esse enunciado inverte a relação entre a realidade e a ideia. Não é difícil mostrar que o real está de ponta a cabeça. É justamente o contrário. Se desfizéssemos essa inversão feita pela ideologia, as coisas ficariam mais claras ao espírito e poderíamos ver o mundo sem a bruma que nos fez recair sobre a consciência a religião. Quando assumimos que são os homens que produziram seus deuses (incluindo aqui o Deus judaico-cristão), então compreendemos, entre outras coisas, por que o número de deuses é proporcional à quantidade de culturas. Deuses são entidades culturais, portanto, produtos simbólicos; portanto, produtos da imaginação humana. Convém referir um trecho elucidativo, em O que é imaginário? (1997):

“Através do imaginário, o homem, como define H. Bérgson, “é uma máquina de produção de deuses”. A isso acrescentamos que o homem em si mesmo é fantástico, à medida que manifesta a faculdade humana de transcender o humano. Ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza”.

(p. 37)

O Deus de Jesus venceu os deuses pagãos; mas esse Deus tem de conviver com Shiva (terceiro deus da trindade hindu, a quem se atribui um poder destrutivo e fecundante), mas também com  Brahma, Oxalá, Iemanjá, Oxóssi, Oxumaré e tantas outras divindades. Seriam todas estas produto de uma ilusão ou apenas o Deus judaico-cristão é o deus real e verdadeiro? Ou será mais sensato dizermos que só pensamos sê-lo porque a cultura ocidental formou-se a partir dos valores, ideias e visão de mundo da cultura judaico-cristã (não ignorando o outro afluente que é a cultura greco-latina) e por que formados nessa cultura podemos assim pensar? A máxima segundo a qual somos produtos de nossa cultura é aqui evidente. Pensamos o que pensamos porque somos antes de tudo indivíduos que compartilham um mesmo código cultural, um mesmo sistema de interpretação e compreensão de mundo. Esse sistema deve trabalhar a dialética entre homogeneidade e diversidade, convergência e divergência.
Permita-me alongar-me um pouco mais. Sabe-se que mito e religião são indissociáveis. Mito é um ingrediente indispensável à religião, visto que religião se constrói na base de histórias sobre a criação do mundo, a influência de deuses, sua natureza, sua relação com os homens, etc. É interessante descobrir que o mito da Arca de Noé, que retrata um dilúvio provocado pela ira de Deus fundiu-se com outras tradições indígenas. Na Austrália, a oeste, os aborígenes acreditam que o que sobrou da arca pode ser encontrado ao sul do rio Fitzroy. No Peru, os incas acreditavam que o deus Viracocha, não satisfeito ao tentar pela primeira vez criar os homens, lançou sobre eles um dilúvio, transformando-os em pedra. Na Grécia Antiga, acreditava-se que Zeus mandou um dilúvio sobre os homens, para puni-los em virtude da arrogância deles. O Egito antigo também possuía seus deuses: Rá, deus-sol e criador; Chu, deus do ar úmido; Geb, deus da Terra, entre outros. Também os egípcios tinham seu mito da criação e sua visão de mundo era plasmada numa mitologia demasiado complexa, em que a luta entre caos e ordem, criação e destruição constituía tema comum às suas histórias.
Devo dizer a possíveis desavisados – embora a você, amiga, não seja necessária essa advertência – que religiões são temas interessantíssimos e que merecem ser estudados. Mitos contam muito sobre nós, dizem as nossas verdades. Contam a nós como nos relacionamos com o mundo, como compreendemos a existência, que insiste em resvalar no absurdo, a despeito de insistirmos em criar deuses que nos propiciem explicações simples e fáceis para o mistério que nos abraça. Mas estes mesmos deuses são expressão de quem somos. Em alguma medida, eles representam o humano em nós. São nossos espelhos, imagens de nós que projetamos sobre a Angústia. Insisto, para que não sobre qualquer dúvida, na importância do mito como um guia, já que nos orienta em nossas relações com o mundo. No mundo antigo, ele ajudava as pessoas a encontrar sentido para as suas vidas. Ele é um elemento atuante na estrutura de nossas mentes, de sorte que se tornara ponto de partida para a psicologia. Ele esclareceu mecanismos misteriosos da mente humana e Freud e Jung reconheceram nele um fértil caminho para os estudos da mente.
Quando lemos um pouco sobre religiões, sobre suas entidades, sobre seu sistema de ideias e crenças, sobre sua simbologia, então devemos concluir que o Deus pessoal e único em que milhões de pessoas acreditam é apenas a versão de divindade moldada por um imaginário cultural específico. Ou todos os deuses referidos aqui são verdadeiros ou nenhum deles o é. Por que seria o Deus judaico-cristão o verdadeiro? Não temos critérios para estabelecer isso, a menos que recorramos à autoridade. De fato, é o que sucede. O cristianismo ganhou força, desde seu surgimento como religião organizada, pela proficiência de uma autoridade, chamada Constantino. E ainda hoje entre nós sua força e sua legitimidade são garantidas pela autoridade (do Papa, dos arcebispos, dos bispos, dos padres, dos diáconos, dos pastores...). É notável que, em nossa era, gozemos de condições favoráveis à negação de sistemas autoritários. Uma autoridade que vise a legitimar seu poder contrariamente à vontade de uma maioria tenderá a ser sobrepujado.  Temos assistido ao declínio de governos ditatoriais como na Líbia. Se a autoridade não é conferida por um consenso e se quem a assume não a exerce visando ao bem comum criará as condições para que dela destituído. Claro que isso depende de uma tomada de consciência pelas classes oprimidas. Felizmente, é o que temos assistido em países como a Líbia. A democracia não se faz da noite para o dia, é claro, mas a luta vale a pena.
Mas eu falava de religiões e queria encerrar dizendo, amiga, que é necessário que qualquer grupo de oposição ao status quo venha a compreender de que forma o aparato ideológico molda a consciência de indivíduos que aderem a determinados sistemas de crenças. No caso das religiões, vale procurar entender como a ideologia é capaz de legitimar um conjunto de crenças, universalizá-las, tornando-as inquestionáveis. O seguinte excerto colhido da obra O que é ideologia, de Marilena Chauí, dá-nos um ponto de apoio, serve-nos como uma âncora para que desenvolvamos nossas reflexões. Fica aqui um convite a leitores ateus ou simplesmente impregnados do espírito filosófico que venham a ler este texto. Tendo sempre em conta que a ideologia está a serviço do poder e que através dela o real aparece de ponta a cabeça, refletindo-se na consciência dos homens de modo abstrato e invertido, as palavras da filósofa brasileira é como um frescor em nossa ferida ardente:

“(...) segundo Marx, a inversão religiosa não “reflete” coisa alguma – sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito, numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia, e por isso ela anestesia como o ópio”.
(p. 96)
(grifo meu)

Aqui se expôs um pouco do pensamento de Marx sobre ideologia. O essencial está aqui. Autores posteriores também refletiram sobre o conceito. Importa ver o caráter universalizante da ideologia e sua capacidade de mascarar a realidade, fazendo-a aparecer à consciência de tal modo que as reais causas da formação daquela sejam apagadas. Assim é que podemos dizer que sentimos Deus nas pequenas coisas, que ele se manifesta, embora de modo “escuso” ou incompreensível, num pressentimento, numa experiência de interiorização, ou nos acontecimentos que nos deixam pasmados, ainda que a realidade nos dê, em todo momento, um tapa na cara, como quem se esforça por nos acordar de um sonho. Deus é um sonho que a realidade insiste em exorcizar. Mas muitos continuam a sonhar e a ver o mundo, a senti-lo (pensá-lo) pela lente distorcida (ideologia) que a religião cimentou em suas cabeças.
Sigamos na contramão, minha amiga, não aceitando sem examinar ideias que nos são dadas em embrulhos vistosos, atraentes; suspeitemos de seus conteúdos. A suspeita, nesse caso, anda em companhia do bom-senso.