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domingo, 3 de maio de 2020

"A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está sempre dirigida para o futuro" (Epicuro)


007 – Filosofia como modo de vida, com Eduardo Ferraz Franco ...



A morte não é nada para nós
Meditações sobre a morte a partir de Epicuro



1. Primeiras palavras

“A morte – escreveu Schopenhauer – é o gênio inspirador, a musa da filosofia...  Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado”[1]. Mas Schopenhauer não faz senão ecoar uma máxima enunciada pela voz de Sócrates há cerca de 2.500 anos, ao ensinar que a filosofia é um exercício de preparação para a morte. Para os gregos, portanto, aprender a morrer é aprender a viver. Ao contrário de seu discípulo Platão, Sócrates, no âmbito da razão, não dispunha dos meios necessários para demonstrar a imortalidade da alma, porque carecia das categorias metafísicas indispensáveis para tanto. Mas, mesmo em face da morte, mesmo estando o homem na ignorância acerca de sua sorte depois da morte, Sócrates ensinou ser possível a ele a felicidade e a total autonomia da vida virtuosa. Ao homem virtuoso mal algum pode lhe suceder, uma vez que a virtude –que, para Sócrates, é ciência, conhecimento – é a radical defesa contra todo mal. Assumindo que a psykhé (lat. anima), a alma, é a essência do homem, Sócrates advogou que o bem viver consiste no domínio de si nos estados de prazer e dor. A isso Sócrates chamou enkráteia. Caberia a alma (psykhé) tornar-se senhora dos instintos, das necessidades da animalidade em nós. Enkráteia é, assim, liberdade (eleuthería), ou seja, domínio da razão sobre os instintos animais em nós. Juntamente com a enkráteia, a vida virtuosa depende do exercício da autarquia, a saber, a independência das necessidades animais, instintivas. A autarquia é a autonomia da virtude e do homem virtuoso, a autossuficiência do lógos (a razão) humano. Em suma, virtude, para Sócrates, é ciência: não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não só é condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Portanto, para Sócrates, na impossibilidade de determinar racionalmente o que é a morte, deve a filosofia ser “a arte de viver”, ou seja, uma sabedoria prática destinada a tornar o homem virtuoso e feliz, a despeito do fato de ser a morte seu destino último inevitável.
Pretendo, neste texto, discutir a tentativa epicurista de liberar o homem do terror da morte, partindo do seguinte alvitre que Reale faz acerca do problema da morte como problema eminentemente filosófico. Pondera Reale o seguinte:

“(...) é justo reconhecer que nenhuma filosofia, e não só a epicurista, jamais soube responder, no nível do puro lógos, aos problemas da morte e do mal, porque morte e mal são o irracional, que a razão – sozinha – pode, no máximo, esconder, calar ou negar, mas não penetrar e explicar”. (Reale, 2011, p. 255).

Assumindo, com Reale, que nenhuma filosofia conseguiu responder de modo satisfatório ao problema da morte, isto é, nenhuma filosofia conseguiu libertar totalmente o homem dos terrores da morte, procurarei examinar a resposta epicurista, dando a conhecer os pontos que restam insolúveis.



2. Helenismo: contexto sócio-histórico


A helenização cultural de Roma ocorreu entre 167 e 146 a.C., período em que Roma destrói Catargo e domina a Grécia, com a tomada de Corinto. O domínio de Roma durou 23 séculos. O helenismo recobre o período que se estende do império helenístico de Alexandre a Roma republicana e imperial, contra a qual se formaram continuamente ligas de cidades gregas fiéis à Macedônia que lutavam sem cessar. Desde o início da dominação, em 167 a.C., até a derrota final, entre 90 e 82 a.C., vicejaram as escolas do epicurismo, ceticismo e estoicismo.
Consoante ensina Reale (2011, p. 11), “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético, são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Pode-se, assim, discriminar os seguintes temas recorrentes no pensamento grego a partir de Sócrates até o helenismo greco-romano:
1) a ideia de que a felicidade se encontra na alma; portanto, no exercício do pensamento;
2) a relação entre corpo e alma;
3) a noção de que do conhecimento e da sabedoria deriva a virtude;
4) a ideia de que a felicidade nasce da virtude, entendida como moderação das paixões;
5) a afirmação do caráter cívico da felicidade, pois ela é inseparável da noção de justiça, que, por sua vez, é produto da virtude e da sabedoria.



2.1 Epicurismo


A primeira das grandes escolas helenísticas surgiu em Atenas nos fins do século IV a.C. O epicurismo recebe esse nome de seu fundador Epicuro. Muito embora a primeira escola já existisse, em sua forma embrionária, há alguns anos antes, visto que Epicuro ensinou em Colofônia, em Mitilene e em Lâmpsaco, a transferência da escola para Atenas (que ainda era a capital da cultura Hélade) marcou o seu ingresso efetivo na vida espiritual da grecidade.
Nascido em Samos ou em Atenas, durante a primeira Olimpíada 109, ou seja, em 341 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) já se aproximara da filosofia antes de vir a Atenas, quando contava 18 anos. Foi graças ao seu encontro com Nausífanes, um filósofo atomista, que Epicuro tomou contato com o pensamento do também atomista Demócrito. Epicuro era um homem culto, conhecia os desdobramentos históricos do pensamento grego. Sua filosofia estribou-se sobre o atomismo de Leucipo e Demócrito; mas só chegou a desenvolver o materialismo atomista, depois que este tinha sido alvo das críticas dos idealistas clássicos. Epicuro se viu, por isso, obrigado a revisar as posições dos atomistas que o precederam à luz de tais críticas e em consonância com as mudanças que aconteceram na vida grega durante a sua carreira.
A concepção da phýsis proposta por Epicuro coincide com um materialismo baseado na negação clara e explícita do suprassensível, do incorpóreo e do imaterial. Epicuro é, de certo modo, o primeiro materialista da história do pensamento ocidental a formular de modo teoricamente consciente o próprio materialismo. O materialismo, para ser considerado como tal, deve negar abertamente a existência de outra realidade além da matéria.
Antes de dar a saber os elementos fundamentais do materialismo epicurista, convém salientar que a filosofia ética de Epicuro inspira-se na ética socrática. Na verdade, uma das características da filosofia da era helenística é o retorno a Sócrates e ao socratismo (Reale, 2011.). Em Epicuro, isso é bastante evidente não só na primazia dada por ele aos problemas éticos em geral, mas também na própria concepção da filosofia como uma terapêutica da alma. É certo que a ética epicurista é uma terapêutica, já que se baseia no cálculo dos prazeres mediante o raciocínio vigilante, que visa a afastar os impulsos instintivos e determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista esteia-se no uso regrado dos prazeres, o qual visa a colocar a natureza humana em harmonia com a Natureza, ou seja, com a totalidade ordenada do Cosmos (a Razão Universal). A concepção de filosofia como “arte de viver”, ou seja, como sabedoria prática (phrónesis), é uma herança socrática no pensamento de Epicuro. Epicuro inspirou-se, todavia, mais na letra do que no espírito de Sócrates, ao definir a filosofia como uma ‘terapêutica espiritual’ que cura os males da alma e ao declarar todo o mais como verborragia inútil. Há, de fato, uma diferença clara e fundamental entre a ética epicurista e a ética socrática. A fim de esclarecê-la, devemos começar por reconhecer que a filosofia ética, a partir de Sócrates, fixou definitivamente o objetivo da ética. A ética tem de estabelecer a essência do homem, a sua areté específica e deve exercitá-lo em seu modo de viver para que alcance esse bem que o torna feliz. De Sócrates a Aristóteles, passando por Platão, há pleno acordo quanto a qual é o bem moral do homem, a saber, a atualização da sua essência, a realização plena do que ele é. Sócrates, Platão e Aristóteles concordam em que a felicidade se alcança sempre e somente por meio da completa realização da essência do homem, qual seja, a alma ou psykhé. Epicuro comungava formalmente dessa concepção ética, mas distanciava-se desses seus predecessores no tocante à determinação da essência do homem, ou seja, na determinação do próprio fundamento da ética. Sócrates, Platão e Aristóteles identificaram a essência do homem com a alma. A alma, do latim “anima” – sopro vital -, por oposição ao corpo, é um dos dois princípios do composto humano. A alma é o princípio da sensibilidade e do pensamento, é o que faz o corpo vivo uma coisa distinta da matéria inerte. Ela é o princípio da vida que anima todo o corpo e move cada uma das partes dele. Aristóteles considerava-a o “ato primeiro de um corpo natural”. Socrátes, por seu turno,  identificava a alma com a razão, com a consciência pensante, com o eu pensante, com a personalidade intelectual e moral; em suma, para Sócrates, o homem é essencialmente a sua alma, que o distingue de todos os demais seres; a alma é a marca do divino em nós. Platão discriminava três partes ou funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais. Finalmente, a parte racional (noûs, o intelecto) da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. É esta parte da alma que é imortal e que faz o homem habitar na proximidade com o divino.
Identificando a essência do homem com a alma, Sócrates, Platão e Aristóteles advogaram ser o bem supremo do homem os bens da alma racional ou do espírito. Todos três rejeitaram o prazer do corpo como um bem. Para Epicuro, ao contrário, o prazer é o valor, o bem e o fim. Diz Epicuro “o prazer é princípio e o fim da vida feliz” ( Epicuro, 1988, p. 17). Ora, a assunção do prazer, um bem material, como início e fim da vida feliz é coerente com a visão epicurista da alma ou da essência humana como algo material.
Epicuro também se afasta de Sócrates, Platão e Aristóteles no modo como eles hierarquizaram as partes da filosofia. Sócrates e os socráticos, na verdade, rejeitaram a ontologia e a cosmologia e reduziram a filosofia unicamente à ética, à doutrina da sabedoria. Já Platão e Aristóteles elegeram a ontologia (que se torna metafísica) como um domínio teórico essencial da filosofia, sobre o qual a ética deve ser fundada. Platão mantém a superioridade da ontologia ou da doutrina das primeiras causas ou princípios da realidade sobre a ética. Em Aristóteles, essa superioridade se faz em nível temático. Epicuro, por sua vez, afirmando a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte a hierarquia platônico-aristotélica  e afirma ser a ética superior à física (ontologia). Em Epicuro, a phrónesis, ou sabedoria prática, tem primazia sobre a ciência e a sophia.  
O helenismo descobre o indivíduo. Epicuro propõe uma virtude do homem privado. O novo éthos, contrariamente ao tradicional enraizado na pólis, esteia-se sobre o indivíduo; é o éthos do indivíduo. Sócrates, Platão e Aristóteles ensinavam, contrariamente a Epicuro, a virtude política: o homem coincide com o cidadão. Sócrates ensinou nas praças públicas e nos ginásios; Epicuro, por sua vez, escolheu um edifício com um Jardim. No Jardim, gozava-se do contato com a natureza e vivia-se longe do tumulto da vida política, que, para Epicuro, é “inútil afã”.
Em suma, é inegável que o epicurismo propõe, antes de tudo, uma terapêutica (a filosofia se apresenta como uma terapêutica), de modo que o fim da filosofia é curar a doença da alma e ensinar o homem a viver o prazer. O filósofo não é quem sabe apenas pensar e constituir sistemas; é, sobretudo, quem sabe viver e morrer de acordo com seu pensamento. Epicuro é, nesse tocante, bastante socrático. No epicurismo, tanto quanto no estoicismo, a física, a ética e a lógica estão intimamente ligadas e afinadas com o interesse de determinar a vida boa ou a maneira de viver mais elevada, a melhor. Tanto para os epicuristas quanto para os estoicos, a física é estudada em função da ética, muito embora as soluções físicas adotadas pelos estoicos são, na maioria dos casos, exatamente opostas às dos epicuristas.



2.2. O materialismo epicurista

Partindo da aceitação das posições fundamentais do materialismo, Epicuro as codifica em doze princípios elementares:

1) a matéria não é criada, mas eterna;
2) a matéria é indestrutível;
3) O universo ou o a totalidade cósmica consiste de corpos sólidos e vazio;
4) Os corpos sólidos são simples ou compostos;
5) O número de átomos é infinito;
6) A extensão do vazio é infinita;
7) Os átomos estão sempre em movimento;
8) A velocidade do movimento dos átomos é uniforme;
9) O movimento é linear no espaço, vibratório nos compostos;
10) Os átomos são capazes de se desviar levemente em qualquer ponto do tempo e do espaço;
11) Três qualidades caracterizam os átomos: o peso, a forma e o tamanho;
12) A quantidade de formas distintas não é infinita, mas apenas inumerável.



2.2.2. Os corpos e o vazio

O Todo, ou a totalidade da realidade, é constituído apenas dos corpos e o vazio. A existência dos corpos é garantida pelos sentidos, ao passo que a existência do vazio se infere da existência do movimento, porque, para que haja movimento, é necessário que exista o espaço vazio ao longo do qual os corpos possam deslocar-se. O vazio não é o absoluto não-ser; mas sim um “espaço”, uma “natureza impalpável” (ibid., p. 15). A realidade, tal como a concebe Epicuro, é infinita. É infinita como totalidade, mas também é infinita a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio. Eis a tese fulcral do ontologia epicurista:

“(...) nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa mudar-se. Com efeito, mais além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação”. (ibid.).

Segundo Epicuro, todo o universo é corpo e vazio (espaço). Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, simples e absolutamente indivisíveis. Esses corpos absolutamente simples e indivisíveis são os átomos. Somente os átomos são os elementos originais. A fim de explicar como os átomos podem encontrar-se e se juntar para a constituição dos corpos compostos, Epicuro cunha o conceito de clínamen ou declinação. O clínamen é o desvio da direção dos átomos. Os átomos podem, desviando uma distância mínima da linha reta (já que Epicuro entendia o movimento dos átomos como o de uma queda no espaço infinito devido ao peso deles), em algum ponto do tempo e do espaço, chocar-se uns com os outros.
 A admissão da existência dos corpos indivisíveis ou átomos torna-se necessária, porquanto, assim, evita-se a admissão de uma divisibilidade ao infinito dos corpos, o que levaria à dissolução das coisas no “não-ser, o que, para Epicuro, é absurdo. Portanto, como bem ratifica o epicurista Lucrécio (sobre quem direi algumas palavras mais adiante), “a matéria é eterna”. (ibid., p. 34). É também Lucrécio quem retoma a tese central da ontologia epicurista: “Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”. (Ibid.).
O fundamento da admissão da existência dos átomos é, pois, o princípio eleático (e precisamente, zenoniano) da impossibilidade da divisão ao infinito, o que dissolveria o ser no nada. Mas – deve-se frisar – claro é que o princípio segundo o qual nada nasce e nada perece só vale para os átomos (bem como para o cosmos como um todo). A geração e a corrupção atingem os corpos compostos, mas sob o modo como entendiam os filósofos eleatas: a geração é a união das coisas que são; e a corrupção é a dissolução ou separação nas coisas que são. Em outras palavras, não há gênese (criação ex nihilo) nem destruição total do que é.
Consoante Epicuro, “a alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal” (ibid., p. 16). A alma, portanto, para Epicuro, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Esse agregado é formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e sutis, os quais constituem a parte irracional e alógica da alma. Epicuro também divide a alma em partes: uma irracional e a outra racional. A parte racional da alma é constituída de átomos “diferentes” dos outros. Tais átomos não são nomeados por Epicuro. A alma, portanto, não é eterna, mas mortal. Conclusão esta que se segue necessariamente de sua natureza material, bem como da premissa básica do materialismo epicurista, segundo a qual tudo que existe são corpos e o vazio. Ora, o conceito de imortalidade só faz sentido se supusermos existir uma instância suprassensível, imaterial, incorpórea. Mas Epicuro, que não é nem platônico nem aristotélico, sequer pode compreender o que significa o conceito de “incorpóreo”. No entanto, na medida em que o filósofo do Jardim distingue entre uma parte irracional e uma parte racional na alma, termina por permitir que penetre de modo sub-repitício o esquema da psicologia de Platão e Aristóteles. De qualquer forma, para Epicuro, a alma é um corpo sutil, de modo que, morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se, e a sensibilidade, o sentimento, o pensamento e a consciência desaparecem. Por isso, a morte é definida por Epicuro como “privação da sensibilidade”. (Ibid., p. 13).
Tendo em vista a definição de aporia como ‘dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja numa doutrina’, a psicologia epicurista encerra uma dificuldade lógica intransponível. Senão, vejamos. Por um lado, apesar de afirmar que só existem corpos e de assumir que a alma é material, Epicuro diz que os átomos que constituem a alma diferem daqueles que constituem o corpo: os átomos da alma são mais sutis e aeroformes. Por outro lado, Epicuro não consegue explicar como é possível a unidade da alma, que é a unidade de consciência, ou o “eu”, “a pessoa”, já que essa unidade não resulta da agregação e da soma das partes da alma, porque é original e não composta. Com a fisicidade e o mecanicismo, Epicuro não dá conta da espiritualidade, da individualidade real, porque a imaterialidade do seu ser, do seu agir não se deixa reduzir à simples manifestação mecânica da matéria.



3. A ética epicurista

Acerca da filosofia, escreve Epicuro a seu interlocutor: “Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade”. (Ibid.,). Qual é a verdadeira liberdade para Epicuro? A resposta salta evidente: a autárkeia, ou autossuficiência, domínio de si. É livre quem encontra em si mesmo o princípio (arkhé) de sua existência e de sua ação, e possui por si mesmo o poder para agir e julgar. A virtude é conformidade com a Natureza (a totalidade ordenada do Cosmos ou Razão Universal), é autárkeia, ataraxia ou tranquilidade. A virtude é a técnica de viver prazerosamente. A ética epicurista é, pois, uma terapêutica. Como terapêutica, a ética de Epicuro baseia-se no cálculo dos prazeres por meio do raciocínio vigilante, que visa a dominar os impulsos instintivos e a determinar o que é preciso evitar, rejeitando as falsas opiniões. A ética epicurista é um hedonismo ético, que elege a temperança (sobriedade, virtude da moderação, do comedimento) como critério de limite dos prazeres para que possamos viver em conformidade com a Natureza (a ordem do Cosmos, a Razão Universal).
O prazer é um bem; a dor, um mal. O princípio e o fim da vida feliz é o prazer, mas o sumo bem é o prazer da ataraxia, ou seja, da ausência de dor e perturbação da alma e do corpo. Phrónesis é a sabedoria prática, a prudência ética, inteligência razoável. É a qualidade ética mais alta própria do sábio. É a phrónesis que servirá de critério, do grego Kriterion, ou seja, de padrão que permite efetuar o cálculo dos prazeres. Com base na phrónesis (virtude suprema), deve-se distinguir entre tipos de desejos e prazeres:

a) prazeres naturais e necessários:

Ex: comer quando se tem fome; beber quando se tem sede (tais prazeres visam à conservação da vida).

b) prazeres naturais, mas não necessários:

Ex: prazer ou desejo do amor/ desejo sexual; beber bebida refinada, vestir-se de modo elegante; comer comidas refinadas.

c) prazeres não naturais e não necessários:

Ex: prazeres ligados às opiniões dos homens, prazeres vãos como desejo de riqueza, de poder, honra, fama, etc.

O sábio, portanto, contentando-se com os prazeres reunidos em a), escolhe sempre os prazeres catastemáticos ou estáveis, que levam à ausência de dor e perturbação da alma e do corpo (ataraxia). Nas palavras de Epicuro, “os filósofos afirmam que nada é tão necessário quanto o saber reconhecer bem o que não é necessário, e considero que a maior riqueza entre todas as riquezas é a autarquia, e que nada é tão nobre quanto o não ter necessidade de nada”.
Não obstante, Epicuro reconhece que há três coisas que ameaçam o prazer como bem supremo: 1) o fluxo do tempo que devora o prazer; 2) a ameaça da dor que pode sempre chegar; 3) a emboscada da morte.



4. A morte não é nada para nós


“A morte é a privação da sensibilidade”, afirma Epicuro.
Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C, conheceu a doutrina de Epicuro e sentiu-se maravilhado com seus ensinamentos, os quais lhe pareciam fornecer a chave para desvelar os segredos do universo e para descerrar o acesso para o homem à vida feliz. Acolhendo o ensinamento de Epicuro, Lucrécio dedicou-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia com mais força do que outrora oprimia os gregos.
Seu poema Da natureza das coisas tem uma inestimável importância literária. Com ele, Lucrécio se notabilizou como um dos maiores poetas da língua latina. Se o filósofo usa a linguagem do lógos, o poeta acresce ao lógos as tonalidades persuasivas dos afetos, do sentimento, tingindo o lógos de imagens e intuição fantástica. É a magia da arte que transfigura a filosofia, fazendo-a aninhada no coração. Através da poesia, Lucrécio possibilita ao leitor a experiência da espessura dramática da mentira heroica, quando canta o inesquecível desejo humano de eternidade. O canto poético de Lucrécio é uma espécie de confissão de que não há modo de dar sentido a uma vida que seja apenas uma breve estação feita para o nada. Nesse sentido, Lucrécio torna a mensagem epicurista mais emocionante e mais verdadeira.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, confeccionado nos intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado para publicação por um irmão de Cícero, chamado Quinto, segundo testemunham certas fontes. Outras fontes, no entanto, asseguram que aquela tarefa coube ao próprio Cícero, que nutria profunda admiração ao poeta do materialismo. Lucrécio, seguindo as pegadas de Epicuro, também oferecerá sua resposta ao problema da inexorabilidade da morte. Todavia, considerar-se-á, em primeiro lugar, a lição de Epicuro. Atente-se para o que ensina Epicuro, num trecho famoso de Carta a Meneceu:

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui”. (Epicuro,  2002, p. 27-29).



A primeira parte do argumento baseia-se na asserção do experiencialismo, segundo a qual todo mal e todo bem residem na sensação, ou seja, na experiência de prazer (o bem) e na de sofrimento (o mal). Como a morte é a privação das sensações, ela não pode ser nem um bem nem um mal, porque bem e mal residem na sensação. Prossegue o filósofo assegurando-nos de que, se aceitarmos o fato de que não podemos experienciar a própria morte, de que, por isso mesmo, não há nada de terrível nela, poderemos fruir serenamente a vida efêmera, sem desejar que ela se estenda indefinidamente e sem desejar a imortalidade. Epicuro também nega que o tempo em que nos angustiamos com a possibilidade de nossa morte futura possa nos afligir, porque se a morte no momento em que nos chega não pode ser um mal, tampouco poderia nos atormentar enquanto a esperamos. Por fim, a etapa fundamental do argumento consiste em estabelecer uma relação disjuntiva (ou...ou) entre o indivíduo e a morte, ou seja, enquanto o indivíduo está vivo, a morte está ausente; quando a morte o atingir, é ele que estará ausente.
Portanto, a morte é um mal somente para aquele que nutre opiniões falsas sobre ela. Dado que o homem é um composto de alma e um composto de corpo, a morte não é mais que a dissolução desses compostos. E, nessa dissolução, os átomos dissipam-se por toda parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente, e assim, sobram do homem apenas os restos que se dissolvem. Para Epicuro, a morte, em si, não deve nos amedrontar porque, quando ela nos chega não sentimos nada, já que, no “depois” da morte, nada resta de nós, visto que nosso corpo e nossa alma dissolvem-se totalmente.
Epicuro, adotando o mesmo esquema eleático de raciocínio, nega que possa haver algo de intermediário entre o viver e o morrer, entre o ter consciência e o não ter consciência, e pensa, portanto, a morte não como processo, duração, mas como o estado de morte, o instante no qual a vida cessa para dar lugar à morte. Mas não seria justamente a passagem (o intermediário) que Epicuro nega que aterroriza o homem?
Volverei a considerar a resposta de Epicuro, a fim de lhe desnudar problemas mais  sérios. Antes, porém, é oportuno ponderar sobre a resposta oferecida por Lucrécio:

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por que choras  e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se perdeu em vão e a vida te pesa, porque busca aumentá-la mais, para que tudo de novo tenha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento? Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo”. (Lucrécio, 1988, p. 75).


Para Lucrécio, quem soube viver bem e não tem o que lamentar pode, quando chegar a hora da morte, partir como o hóspede que se saciou no banquete. Por outro lado, quem não soube viver bem, é inútil que continue a viver, porque continuaria a viver mal. Em ambos os casos, a morte não é um mal. Evidentemente, poderíamos perguntar por que o conviva deve, inexoravelmente, ausentar-se do banquete, sem qualquer apelo, quando lhe é imposto, e considerar-se hóspede saciado, mesmo quando o banquete está apenas no início, ou ainda não terminou. 
Tanto Epicuro quanto Lucrécio não sabem explicar por que a morte, considerada uma lei inexorável, não é absurda.  Tanto em Epicuro quanto em Lucrécio o mal é velado e a morte é negada. Ao sustentar que, enquanto existimos, a morte está ausente, e que, quando estiver presente a morte, nós é que não existiremos mais, Epicuro nega justamente o momento trágico da morte, que não é o nada do não ser mais, mas o momento da vida que cessa. É justamente em face do momento em que o ser é tragado pelo não ser, é justamente diante desse aniquilamento do ser que a razão permanece tragicamente em silêncio.
Considerem-se, na próxima seção, alguns outros problemas com a tese epicurista “a morte não é nada para nós”.



4.1. Outros problemas na abordagem epicurista da morte


Em princípio, malgrado as insuficiências da abordagem epicurista do problema da morte – que tratarei de evidenciar nesta última seção deste estudo – para o espírito grego e, e de modo especial, para os filósofos helenistas, o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante. É desse modo que se justifica a meditação sobre a morte. É, em essência, o que significa o apotegma “aprender a morrer é aprender a viver”. Aos antigos, e de modo especial, aos epicuristas e estoicos, não lhes escapava à consciência a compreensão de que tudo que existe está destinado à dissolução. Assim, sou levado a meditar sobre a morte, sempre já dada, iminente, como uma lei fundamental da ordem universal.  O filósofo, portanto, está, sem cessar, perfeitamente consciente, não só do que faz, mas também do que pensa (lógica vivida), e do que é, de seu lugar no cosmo (física vivida).
Vimos que o argumento apresentado por Epicuro com vistas a nos libertar dos terrores da morte baseia-se no seu experiencialismo. A primeira asserção do experiencialismo é que todo mal e todo bem residem na sensação. Como a morte é a privação da sensação, a morte não pode ser um mal (tampouco um bem). Ora, para que um estado-de-coisas possa ser considerado como um bem ou como um mal para um indivíduo, é necessário que este indivíduo possa experienciá-lo, o que não é o caso da morte. O experiencialismo exige também a existência de um sujeito da experiência. Assim, a morte de uma pessoa não pode lhe ser um mal, porquanto ela já não existirá no momento em que a morte lhe chegar.  Epicuro concebe a morte em termos de estado de morte. O indivíduo que se encontra na condição de morto não experiencia a própria morte. Novamente, quando a morte está presente, eu mesmo é que estarei ausente. A morte é privação de toda sensação.
Mas, então, mesmo que aceitemos o argumento de Epicuro, mesmo que admitamos que não podemos ter a experiência de nossa própria morte, será que a morte não pode ser considerada um mal? Será que Epicuro consegue nos aliviar da angústia que nos assalta fazendo-nos estremecer de temor e perplexidade em face do absurdo da morte, ou seja, em face desse destino último inevitável, inelutável, inexorável? Consideremos, pois, o primeiro contraexemplo que parece demonstrar que a privação da experiência é um mal. Tomemos o caso de uma pessoa que, repentinamente, entra em coma. Ainda que ela não possa ter experiências ruins, tendemos a considerar seu estado um mal (porque, estando em coma, ela está privada da companhia das pessoas amadas, está privada de realizar seus projetos, suas possibilidades). Consideremos, agora, o caso de uma pessoa que sofreu um grave acidente num lugar e tempo (L1) dados. Devido a graves lesões, ela perdeu irreversivelmente as funções cerebrais superiores e não se lembra nem do acidente nem da vida anterior ao acidente.  Seu estado pós-traumático, ou seja, seu estado atual e irrecuperável a condena a viver numa condição semelhante à de uma criança pequena. Mesmo que essa pessoa não esteja consciente das perdas de suas funções cerebrais superiores, tendemos a concordar que um mal lhe aconteceu. O estado atual em que se encontra essa pessoa é um mal relativamente ao estado anterior ao acidente, e as consequências do acidente são males relativamente à possibilidade de o acidente nunca ter acontecido. Nesses dois exemplos, há um mal que não decorre da experiência de uma dor ou sofrimento, mas da privação dos bens, das possibilidades, das experiências que essa pessoa ainda poderia ter. Por analogia, o mal da morte para uma pessoa reside na privação dos bens, dos possíveis, das alegrias que ela poderia ter ou realizar se houvesse continuado a viver. A morte, ao contrário do que supunha Epicuro, pode ser considerada um mal porque ela nos priva de nossos desejos, interesses, projetos. Em outras palavras, a morte impede-nos de realizar os objetivos que estabelecemos para a nossa vida. A morte interrompe os nossos projetos. Se, como ensina Heidegger, o homem, é poder-ser, é projeto, a morte é um mal porque nos deixa insatisfeitos e irremediavelmente inacabados.  Como acertadamente observou Schopenhauer ( 2013, p. 70), “em regra, apenas o fim total, o fim de todos os fins, é o que desejamos que nos ocorra o mais tarde possível”,
Que sentido podemos dar à vida por meio da busca do prazer, se a morte nos deixa sempre com aspirações não realizadas? A morte é um mal porque é aniquilamento sempre possível de minhas possibilidades. A morte priva o indivíduo de todas as suas possibilidades e mais particularmente da própria possibilidade de ser um “eu”. Eis o que me parece ser o momento decisivo do argumento contra Epicuro, e que Schopenhauer soube intuir, ao dizer “após a morte, serás o que foste antes de nascer” (ibid., p. 31). É Schopenhauer também quem reconhece que “certamente, a morte deve ser vista como o verdadeiro sentido da vida” (Schopenhauer, 2014, p. 63) – intuição esta a dos antigos também: tudo que existe está destinado irremediavelmente à dissolução! Schopenhauer aqui nos põe face a face com o âmago do absurdo: “o estado em que a morte nos coloca se nos apresenta como um nada absoluto; porém isso significa apenas que ela é algo sobre o qual nosso intelecto – esse instrumento surgido apenas para servir à vontade – é totalmente incapaz de pensar”. (ibid., p. 62). Cada indivíduo é um destino único e uma biografia; é uma individualidade insubstituível. É isso que será destruído pela morte. Assim, a morte é, para o próprio indivíduo, antes de tudo, uma privação de sua existência, condição necessária e fundamental para a realização de suas possibilidades, seus projetos, interesses e desejos. A morte é um mal porque implica a percepção de que tudo estará definitivamente acabado para nós. É claro, pode-se argumentar, que nem sempre a morte é vista como um mal. Para uma pessoa que sofre uma doença dolorosa e que se encontra em estado terminal, a morte lhe será até um bem, já que a livrará de uma condição insuportável. Mas isso não torna a morte menos absurda, já que estar jogado no mundo para necessariamente morrer é absurdo. É o que parece dar razão à revolta de Pessoa: “Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo  e o mistério de ambos”.
Ainda contra Epicuro, podemos dizer que a morte é um mal e absurda, porquanto, considerando-se seu caráter de destino inexorável e sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte torna o indivíduo consciente de sua finitude, o faz mergulhar num sentimento de desespero no instante em que intui ser sua vida fútil e absurda, porque todos os seus esforços, projetos, desejos e realizações pessoais se lhe afiguram como insignificantes e vãos. Dada a sua imprevisibilidade ameaçadora, a morte pode privar o indivíduo das suas possibilidades de modo prematuro. A morte, como bem notou Sartre, é um mal, porque priva o indivíduo, de forma irreversível, da possibilidade de atribuir um sentido as suas experiências passadas e a sua vida. Ela cristaliza o indivíduo eternamente no momento em que se achava quando ele morreu e o coisifica eternamente desde o momento em que se torna um cadáver. O mal e o absurdo da morte, na opinião de Sartre, residem na redução do para-si morto a um em-si, condição esta em que o sentido de suas realizações passadas fica irreversivelmente entregue à liberdade e ao bem querer daqueles que sobreviveram e que desfrutam uma vitória sobre o para-si morto.
Ora, se uma vez estejamos mortos, tudo está definitivamente acabado para nós, resta absurdo e é um mal que, na condição de morto, ou seja, privados de qualquer sensação, consciência e memória, privados do acesso a nossos estados mentais passados e futuros, as nossas vivências e experiências anteriores à nossa morte nunca tenham acontecido. Deveras, para o morto, ele mesmo nunca existiu, o que me leva a concordar com a impressão de Schopenhauer, ao comparar a vida a um sonho:

“(...) a vida pode ser vista como um sonho, e a morte como o despertar. Mas então a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha, e não a que está em vigília; eis por que a morte se apresenta como aniquilamento. Em todo caso, a partir desse ponto de vista, a morte não deve ser considerada a passagem para um estado totalmente novo e estranho, mas, antes, apenas o retorno ao estado que nos é próprio desde a origem e do qual a vida foi somente um breve episódio”. (Schopenhauer, 2013, p. 34).


Note-se que a analogia entre a vida e o sonho, proposta por Schopenhauer, proíbe que depreendamos do “despertar pela morte” o significado “acordar num novo estado de vida”. Ele é claro em dizer que “a personalidade, o indivíduo pertence à consciência que sonha”. A vida consciente é viver, experimentar-se como quem vive um sonho que acabará definitivamente com o retorno ao estado inorgânico ou ao nada, que é o aniquilamento a que o indivíduo é reduzido com a morte. Seguindo, então, a intepretação de Schopenhauer, e admitindo que a morte é a negação pura e simples do ser, o puro e simples não-ser do ser, e que ela implica necessariamente o desaparecimento de um eu consciente de si mesmo pleno de desejos de autoexpressão, ela é um mal e, sobretudo, absurda, porque condena irreversivelmente à nulidade e à insignificância tudo o que o indivíduo experimentou (suas vivências de alegrias, dissabores, sua labuta diária, as exigências que cumpriu, os aborrecimentos diários, etc.) no tempo transcorrido até a sua chegada. O morto, enquanto morto, encerrado na mais completa e definitiva indiferença em relação a tudo o que acontece no mundo e aos sobreviventes em cuja companhia deixou de encontrar-se, e privado do acesso às suas vivências passadas, não sabe e não pode saber de sua existência; portanto, quando consideramos o morto entregue a esse estado de completa e definitiva ignorância com relação a sua vida antes que a morte o privasse dela, devemos concluir que o seu estado atual de ‘não existência’ é semelhante ao estado de ‘não existência’ anterior ao nascimento. Novamente, devemos ouvir Schopenhauer e assentir em sua intuição: “após a morte, serás o que foste antes de nascer”. É justamente em face dessa intuição que a razão recua e que o absurdo a dilacera. É porque a morte nos reduz ao estado do nada anterior ao nascimento, da não existência prévia ao nascimento, que a vida – esse breve episódio perturbador do silêncio do nada- sendo como um fenda, uma “rachadura” que, dividindo o nada, se parecendo a um sonho breve entre dois “nadas”, resiste às nossas pretensões de a explicar racionalmente e insiste em esmagar nossas tentativas de lhe dar um sentido humanamente razoável e satisfatório. O absurdo da morte, que espelha o absurdo da vida, parece residir no fato de que ele é vivido subjetivamente como precariedade e insuficiência da vida, que não parece ser mais do que uma imagem onírica do nada ou – se preferirmos – da pregnância e predomínio do inorgânico que, pela morte, reivindica a restauração definitiva do silêncio do nada, que avança inexorável e “se quer” eternamente imperturbável.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).  São Paulo: Editora UNESP, 2002.
_________. Antologia de Textos de Epicuro. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

LUCRÉCIO. DA NATUREZA DAS COISAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Coleção Os Pensadores.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a morte: pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

__________. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 85.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz." (Epicuro)

                 
                        


                  Epicurismo e sua ética hedonista[1]

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo enquanto velho, porque ninguém é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz"
(Epicuro - Carta a Meneceu)


1. O prazer (hedoné)

O epicursismo[4] é a doutrina filosófica, cujo fundador foi o filósofo grego atomista Epicuro (341-270 a.C.), nascido em Samos, e que preconiza, no âmbito da moral, ser o bem o prazer, isto é, a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários.
Segundo Epicuro, o prazer é o soberano bem; e a dor, o soberano mal. A busca do prazer deve levar à ataraxia[5], isto é, ao estado de impertubabilidade da alma, pela supressão da dor. O prazer é o começo e o fim da vida feliz; e o prazer e a dor ensinam-nos o que devemos procurar e o que é necessário que evitemos. O bem viver, na visão de Epicuro, consiste em saber gerir bem os prazeres.
O prazer é o princípio da vida feliz, porquanto é o primeiro bem conforme à natureza e, por isso, é com base nele que usufruímos ou rejeitamos as coisas, em consonância com a sensação. O prazer é o fim, porque é desejado por si mesmo; é o prazer o bem que dá sentido a todos os bens.
A ética epicurista funda-se sobre a regra que consiste na busca do prazer e na necessidade de escapar a toda dor do corpo e a toda perturbação da alma. O caminho pelo qual alcançamos a eudaimonia, a vida feliz, envolve duas exigências: a ausência de dor e a ausência de perturbação na alma.
O prazer é o sumo bem, pois que a ele todos os seres vivos tendem, desde o nascimento. Todos os seres vivos buscam o prazer e se esforçam para escapar à dor por meio de uma inclinação natural. O prazer é um estado que envolve a carne[6] e é reclamado por ela. É necessário libertar a carne do sofrimento, a fim de que o prazer seja alcançado. Ao prazer se subordinam todos os valores e todos os bens espirituais. O prazer não é um estado passageiro ou fugaz, mas um estado permanente que supõe o equilíbrio das partes do corpo; é o estado que experimenta um corpo com saúde.
Uma vez que o prazer deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis) e que sua busca é conforme à nossa natureza, todo prazer é rigorosamente físico, de sorte que os prazeres espirituais também o são, sobretudo porque, no epicurismo, a alma é dotada de corporeidade, conforme atesta o seguinte fragmento de Epicuro:

A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo.[7]


Do trecho supracitado, não é custoso depreender que a física epicurista não admite a separação entre alma e corpo. Não só a alma é corpórea, como também há uma integralidade da alma com o corpo. A alma permeia toda a estrutura corporal. A alma traz em si a causa principal das sensações, mas estas não seriam possíveis se não estivessem integradas ao resto do organismo. Dessa integração resulta que, deteriorando o corpo, a alma também se dissolve.
Que as considerações precedentes não nos induzam a um erro que, de todo modo, parece ter-se consagrado na posteridade, qual seja, o que decorre da crença de que Epicuro pense ser todo e qualquer prazer um bem. O excerto a seguir, conquanto encerre o postulado básico da ética epicurista, suscitando-nos a crença verdadeira de que a vida feliz depende da busca do prazer, nem por isso deixa de nos advertir de que essa busca envolve um critério.

Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.[8]


Epicuro proíbe-nos de escolher todo e qualquer prazer, porque há prazeres pelos quais sofremos “maiores pesares”[9]. É necessário distinguir entre o prazer estável ou em repouso e o prazer em movimento. Os prazeres em movimento podem ser bons, como os que se experimentam na saciedade da sede e da fome, na proteção contra o frio, etc. Sucede, todavia, que esses prazeres precisam ser renovados, porque eles são movidos por carências que não cessamos de sofrer. Como, continuamente, sentimos fome, sede e frio, continuamente necessitamos do prazer sobrevindo à supressão dessas sensações.
Por outro lado, o prazer em repouso, porquanto não decorre de carências, é sempre experimentado sem a afecção prévia da dor, do sofrimento ou da perda. Por conseguinte, o verdadeiro prazer reside na serenidade ou tranquilidade da alma e do corpo.
No fragmento seguinte, colhido de Carta a Meneceu (2002, p. 39), Epicuro não só rejeita a possibilidade de escolher qualquer prazer, mas também nos lembra que, não raro, preferimos certos sofrimentos aos prazeres, sempre que àqueles sobrevêm prazeres maiores.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos os mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem sempre ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal, ao contrário, um mal como se fosse um bem. (grifo nosso).


Esse trecho reclama alguns comentários, os quais, elucidando-o, assentam o terreno em que se situará o objeto de nossas próximas considerações. Urge notar, em primeiro lugar, que a natureza é sempre a medida para a determinação do que é bom e do que é mau. Os prazeres são um bem, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a ele; a dor, por seu turno, é um mal, porque todos os seres vivos tendem naturalmente a esquivar-se dela. Não obstante, a qualidade dos prazeres pode variar segundo as circunstâncias, o que nos demanda a capacidade de avaliação que nos orienta na escolha daqueles prazeres que não carreiam dor futura. Analogamente, ainda que dores e sofrimentos sejam, naturalmente, um mal, ocasiões há em que devemos escolher suportá-los, se, após ponderação, ficarmos convencidos de que isso nos acarretará maiores prazeres.
Acresce-se, em segundo lugar, que, muitas vezes, deixamo-nos seduzir por coisas que se apresentam como um bem, perdendo de vista o mal maior que dele se seguirá. Isso se dá por nos deixarmos ceder à credulidade, à superstição e à ignorância. Cumpre-nos, na próxima seção, mostrar como a alma avalia os prazeres.

2. A avaliação dos prazeres pela distinção entre os desejos

Segundo Epicuro, a alma avalia os prazeres distinguindo, entre os desejos, aqueles que são naturais daqueles que, não sendo naturais, estão calcados sobre vãs opiniões. Acresça-se que, entre os desejos naturais, há os que são necessários à felicidade; outros, à própria vida; e os que, embora naturais, não são necessários para atingir as duas finalidades.
Constituem desejos naturais e necessários uma alimentação sóbria, uma habitação, uma veste que nos proteja contra o frio ou o calor, etc. Por outro lado, são desejos naturais não necessários os que variam os prazeres mediante a variedade da alimentação, da bebida, do vestuário, etc. Segundo Epicuro, tais desejos podem tornar-se imoderados muito facilmente, donde se segue a necessidade de disciplina constante para moderá-los. Por isso, a felicidade e a bem-aventurança dependem da ausência de dor e da moderação nos afetos. Epicuro é explícito ao rejeitar estar na posse das riquezas e na abundância das coisas, ou mesmo na obtenção de cargos e do poder, a felicidade; e igualmente claro é ao advertir os “incautos”, que insistiam em distorcer sua doutrina, de que eles estavam equivocados. Pode-se ler sobre as referidas rejeição e advertência no que se segue:

Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-se aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.[10]


Há que considerar, finalmente, os desejos não naturais e não necessários, que surgem de nossas vãs opiniões. Assim, acreditamos que o prazer se acha na riqueza ostensiva, na fama, na glória, na posse de poder. Para Epicuro, essa crença errônea se acompanha do medo e da perturbação: aquele que ostenta sua riqueza teme perdê-la; aquele que não a possui teme não conseguir obtê-la. No primeiro caso, o indivíduo se perturba com a possibilidade de se ver privado do prazer que acredita estar na posse da riqueza; no segundo caso, perturba-se por não conseguir usufruir o prazer que acredita haver nessa posse.
Consoante mantém Epicuro, a frugalidade dos desejos naturais necessários garante nossa independência, nossa autarcía (autossuficiência); por outro lado, a intemperança dos prazeres que decorrem da vã opinião não só nos impede a autossuficiência, como também nos torna prisioneiros da perturbação. Os desejos naturais e necessários nos livram da dor; os desejos naturais e não necessários, embora nos livrem da dor, podem acarretar danos. Finalmente, os desejos inaturais e não necessários são aqueles que não nos livram da dor e podem ainda nos causar prejuízos. Não há desejos inaturais e necessários, porquanto “inatural” e “necessário” são atributos mutuamente excludentes.
Para Epicuro, devemos ceder a um desejo que nos conduz à tranquilidade, estado sobre o qual repousa a felicidade, e devemos renunciar a um desejo que não nos permite fruir esse estado de tranquilidade. Ainda no que diz respeito aos desejos, é notável o fato de a doutrina epicurista antecipar aquilo que se tornaria um postulado da psicanálise freudiana: a insaciabilidade do desejo.
A experiência comum basta para nos assegurar de que o prazer obtido diminui gradualmente à proporção que nos acostumamos a ele. O termo científico para caracterizar essa experiência é adaptação hedônica. É no momento exato em que nos acostumamos a algo prazeroso que ele deixa de ser prazeroso. Ao estado de insatisfação em que nos encontramos, porque acostumados ao que é agradável, segue-se um novo desejo que demanda satisfação. Mas não tarda para que este estado de satisfação obtido ceda lugar à nova insatisfação, a que se segue outro desejo que reclama satisfação, e o processo se dá ad infinitum. Schopenhauer via aí uma trama que torna impossível a experiência de uma felicidade positiva e duradoura, porque nos vemos sempre suscetível à alternância entre o desejo, ao qual precede uma carência, a satisfação – no entanto, sempre temporária – e o tédio, no qual o prazer está destinado a se converter. O movimento desejo-satisfação (prazer)-tédio é cíclico, de modo que jamais atingimos a satisfação plena de nossos desejos, visto que, continuamente, somos lançados ao estágio inicial do ciclo: estamos permanentemente desejando e continuamente insatisfeitos.
Em  O mal-estar na cultura (2010), Freud soube bem reconhecer que, a despeito de o funcionamento psíquico ser comandado pelo que chama de programa do princípio de prazer, por força do qual somos impulsionados a buscar o prazer e desejamos permanecer nesse estado indefinidamente, toda permanência anelada não é mais que “uma sensação tépida de bem-estar” (p. 63). Após considerar só ser possível experienciar a felicidade como fenômeno episódico, escreve Freud, patenteando que seu pensamento se alinha com o ensinamento epicurista[11]:

Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio de prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado.[12]


Parece claro que Freud está de acordo com o fato de que só nos é possível experienciar uma felicidade do tipo negativo, a saber, o estado em que não experimentamos dor (ou desprazer), em que não nos encontramos infelizes.
Retomemos, por algum instante, a contribuição de Schopenhauer, com vistas a assinalar que, a par da influência inconteste da mística hinduísta e budista em seu pensamento, influência de que os trechos que citaremos não deixam de dar testemunho, claros nos parecem também os traços da concepção epicurista sobre a felicidade. Pelo menos ao se ocupar dela, em sua obra A arte de ser feliz (2001), Schopenhauer demonstra sua afinidade com o pensamento epicurista no tratamento das condições para a vida feliz[13]. Senão, vejamos:


O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz, portanto em reduzir as próprias pretensões a um nível bastante moderado no que diz respeito a prazeres, posses, categorias, honra, etc., pois a aspiração à felicidade e a luta para conquistá-la por si só já atraem grandes desventuras. A moderação, por sua vez, é sábia e aconselhável, porque é facílimo ser muito infeliz, enquanto ser muito feliz não apenas é difícil, como também é totalmente impossível.[14]

Malgrado o pessimismo característico que atravessa profundamente o pensamento schopenhaueriano e que nos acautela do inconveniente na pretensão de ler Schopenhauer à luz do horizonte hermenêutico epicurista, sem matizar aqui e ali a medida da influência epicurista sobre seu pensamento, é clara sua anuência à regra da moderação dos desejos e dos prazeres. Essa anuência o aproxima do pensamento não só epicurista, mas dos gregos de um modo geral. Seu pessimismo exacerbado explica por que Schopenhauer realça muito mais as possibilidades de dor e sofrimento do que as de felicidade, no que ele se demonstra herdeiro da sabedoria oriental, sem, contudo, silenciar o pessimismo do pensamento grego.
A tese schopenhaueriana em A arte de ser feliz constitui um sinal evidente da influência epicurista: toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.[15] Por isso, embora acredite que a verdadeira satisfação é impossível e que, por extensão, a felicidade positiva seja irrealizável para o homem, a ele é possível uma felicidade negativa, que consiste em evitar a dor. Cumpre, aconselha Schopenhauer, “não desejar ser muito feliz, a fim de não se tornar muito infeliz”[16].
A efetividade da dor é o postulado central de toda metafísica schopenhaueriana e reaparece como elemento orientador de seu exame sobre a felicidade. No trecho abaixo, Schopenhauer assume a posição epicurista e a radicaliza, pelo menos sob o segundo dois aspectos seguintes: 1) para ele, o prazer é negativo – caso em que anui a um genuíno epicurismo, posto que não use a expressão “prazer verdadeiro” para referir-se ao prazer negativo; 2) embora ele não pareça admitir a possibilidade de discriminar a qualidade dos prazeres de acordo com as circunstâncias, aconselha-nos a abstenção dos prazeres como meio de assegurar a ausência maior de dor. Nesse último caso, Schopenhauer parece sugerir que uma vida que se obstine na busca de prazeres e alegrias poderá arrastar-se para um turbilhão de dores e sofrimentos que só se poderiam evitar abstendo-se daquela busca. É lícito supor que, para Schopenhauer, nessa abstenção de prazeres e alegrias, que leva a uma ausência maior de dor, reside o verdadeiro prazer e a única felicidade possível.


Justamente porque na vida a dor é predominante, enquanto os prazeres são negativos, quem faz da razão o fio condutor da própria ação e, portanto, reflete sobre as consequências e o futuro de tudo aquilo que se propõe fazer, muitas vezes deverá aplicar o sustine et abstine e sacrificar os prazeres e as alegrias para assegurar a maior ausência possível de dor em toda a vida.[17]


Schopenhauer não poderia ser mais grego, ao apelar para a necessidade de empregar a razão na condução da ação. Nesse apelo, ele deixa entrever um coro de vozes que, fazendo eco à tradição socrática, encontra herdeiros ao longo da história do pensamento filosófico.[18] No entanto, para Schopenhauer, uma ausência de dor que seja tanto mais confortante quanto verdadeira só se obtém à custa da abstenção dos prazeres, posição esta a que um epicurista muito provavelmente não anuiria.[19] Ademais, em consonância com o seu pessimismo e a despeito de aceitar o postulado da razão como meio de conduzir a ação, Schopenhauer nos adverte de que a razão não nos promete em troca uma existência “não marcada por muitas dores”[20]
Como não seja da alçada desse trabalho o ocupar-se com a discussão sobre a medida da consonância do pensamento schopenhaueriano com o pensamento epicurista, cingir-nos-emos a dizer (esperamos sem grande equívoco) que, sustentando articuladas entre si as teses: 1) todo projeto de vida deve pautar-se pela intenção de evitar a dor; 2) a única forma possível de felicidade é a de uma felicidade negativa -, o tratamento schopenhaueriano da questão da vida feliz se filia à tradição epicurista, ainda que se possa esperar, muito em virtude do teor de seu pessimismo, uma divergência em um ou outro momento. Conjugando ainda as duas teses referidas com o postulado segundo o qual “viver é sofrer”, que constitui a primeira das quatro Nobres Verdades budistas, Schopenhauer constrói uma doutrina que só nos promete a experiência de um estado relativamente menos doloroso. Uma vez atinjamos a compreensão dessa verdade schopenhauriana, poderemos desfrutar o bem-estar que a vida nos concede.

3. A relação necessária do prazer com a virtude

Não obstante Epicuro aderir à experiência de um prazer positivo, que se alcança pelos sentidos, que envolve a corporeidade do vivido[21], um epicurismo, em sua forma radical, sem jamais desprezar os prazeres do corpo, aspira à experiência de prazeres negativos, razão por que leva uma vida ascética. A ética epicurista se pauta por uma lógica severa, nesse sentido: somos felizes quando experienciamos a tranquilidade; só estamos tranqüilos quando livres da dor; e só ficamos livres da dor quando todos os nossos desejos estão realizados; e nossos desejos só podem ser satisfeitos caso sejam moderados.
Do exposto, segue-se que o epicurismo nunca é uma permissão para o excesso de indulgência; mas, ao contrário, é sempre um compromisso com a austeridade. Seus princípios éticos prescrevem disciplina e discernimento. O maior prazer ou o prazer verdadeiro se acha na ausência duradoura de dor.
Distanciando-se dos estóicos, para os quais prazer e virtude deviam ser mantidos em esferas separadas, em função do fato de acreditarem que os homens maus e infelizes também gozam de prazeres, os epicuristas advogavam que a virtude é um meio para o prazer. No epicurismo, o prazer é o único motivo para a ação, visto que é o único padrão pelo qual se pode julgar a equidade da conduta. Destarte, uma ação é moral se ela produzir mais prazer do que dor; e imoral, se produzir mais dor que prazer. Disso resulta que nossos julgamentos éticos não devem apoiar-se nas ações em si (está certo fazer X?), tampouco nas suas consequências para os outros. Nossos julgamentos devem levar em conta apenas as emoções que uma ação produzirá em nós (se fizermos X, nos sentiremos bem?). Evidentemente, o padrão ético é sempre relativo, quer às pessoas que executam uma ação, quer às circunstâncias em que o fazem.
No sistema ético epicurista, à luz do qual a virtude está intimamente ligada ao prazer, ela jamais é considerada em si mesma. Assim, dirão os epicuristas, somos virtuosos não porque, necessariamente, apreciamos a virtude, ou porque a virtude em si mesma é algo admirável, mas porque desejamos o prazer que ela proporciona. Para um epicurista, portanto, toda virtude, necessariamente, acarreta prazer. Onde há virtude há prazer e também felicidade.
Podemos compreender por que o epicurista pensa ser o prazer o único motivo para a ação virtuosa, considerando os dois casos seguintes. No primeiro caso, diz-se que ser corajoso é virtuoso, mas, dirá o epicurista, aquele que é corajoso, que exibe coragem, não o faz por estimar a coragem, mas em vista de viver sem ansiedade. No segundo caso, e de modo semelhante, quem é moderado não o é porque valoriza a moderação, mas porque lhe é cara a paz de espírito que a moderação lhe acarreta.
Cumpre também lembrar que tanto para os antigos gregos quanto para os antigos romanos, a moderação era um traço de caráter de amplo alcance: a força para agir moderadamente era extensiva a todos os tipos de situação; logo, moderação, para eles, era semanticamente muito mais extenso do que nosso uso moderno do termo, deveras estrito.
Em suma, Epicuro sustenta a superioridade dos prazeres negativos, que são estáticos (implicam inatividade) e se caracterizam pela ausência de perturbação da alma e do corpo. Esses prazeres são considerados completos. A felicidade não se alcança na busca do prazer cinético ilimitado[22], que consiste em satisfazer continuamente determinados desejos, mas na busca do prazer estático limitado, a saber, a ausência de dor. Essa forma de prazer se caracteriza pela ausência de desejos que demandam satisfação. Assim, desde que todo desejo está satisfeito, não resta dor alguma, e o limiar de todo prazer possível se nos desvela sem obstáculos. De tudo que dissemos, pode-se, seguramente, concluir que a ética epicurista é uma terapêutica: a) estando o corpo em bom estado, mas a alma perturbada, o epicurista prescreve a correção das falsas opiniões acompanhada da supressão dos temores desencadeados por elas; b) estando o corpo em mau estado, mas a alma sadia, o epicurista prescreve a supressão da dor física pela formação de imagens mentais prazerosas relativamente ao passado, ou pela projeção positiva dessas imagens relativamente ao futuro.




[4] De um lado, o epicurista situa a felicidade no prazer; de outro lado, para o estóico, a felicidade consiste na exigência do bem segundo a razão. Essa exigência do bem ultrapassa o interesse individual. Comum aos epicuristas e aos estóicos é a pretensão de atingir a ataraxia (estado de tranquilidade ou impertubabilidade da alma). A ética estóica combina serenidade autossuficiente e benevolente, estado este que leva o sábio a uma indiferença em relação à pobreza, à dor, à morte, com a promoção de uma ordem política e civil que espelhe a ordem do cosmo. O estóico celebra a apatia, que se caracteriza por ser um estado de ausência de sentimentos baseados em crenças erradas, ou seja, de sentimentos que nos levem a não conferir à virtude o seu devido papel. A rigor, apatia é ausência de paixões; é não ter ou experimentar sofrimento. Daí ser ela um estado em que somos indiferentes aos reveses da vida.
[5] Os epicuristas advogavam que a ataraxia pode ser alcançada pela busca dos prazeres “tranquilos” e pela satisfação dos desejos naturais. É necessário renunciar aos desejos supérfluos (ser rico, poderoso, etc.), cuja satisfação acarreta mais perturbação do que prazer. O sábio feliz se contenta com o estritamente necessário.
[6] “Carne” é o termo usado por Epicuro (ele escreve “a voz da carne diz”) para designar o sujeito da dor e do prazer, isto é, o indivíduo. Nesse sentido, a carne não é uma parte anatômica do corpo, nem é separada da alma. Não há prazer e sofrimento sem que se tenha consciência e sem que esse estado de consciência se reproduza na “carne” (Hadot, 2010, p. 170-171).
[7] EPICURO. Física. Coleção Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva et. al. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 16.
[8] Ibidem, p. 17.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Não menos notável é a influência que sobre seu pensamento exerceu a filosofia de Schopenhauer. O pessimismo à moda schopenhaueriana instila-se nas páginas freudianas. Prova-o sua crença na impossibilidade de podermos experienciar uma felicidade positiva.
[12] Idem.
[13] Essa afinidade com o pensamento epicurista não deve obnubilar a presença de traços do modo de vida (sabedoria) estóico em seu pensamento. Dão testemunho da influência estóica sobre o pensamento de Schopenhauer, os fragmentos seguintes tomados, respectivamente, da Máxima 18 e da 19. Na máxima 18, lemos: “as coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar devem ser enfrentadas somente com a capacidade de julgar que opera com conceitos e in abstracto, ou seja, a partir de uma reflexão fria e austera (...)” (p. 55). Na máxima 19, topa-se o seguinte: “Não permitir a manifestação de grande júbilo ou grande lamento com relação a algum acontecimnto, uma vez que a mutabilidade de todas as coisas pode transformá-lo de um instante para outro; em vez disso, usufruir sempre o presente da maneira mais serena possível: isso é sabedoria de vida” (p. 55 et.seq.)
[14] Máxima 36, p. 83.
[15] Ibidem, p. 84.
[16] Ibidem, p. 82.
[17] Ibidem, p. 85.
[18] Dessa miríade de vozes, entre as quais estão as dos cínicos, dos epicuristas, dos estóicos, Aristóteles é, sem dúvida, uma figura notável, cuja contribuição é evocada, várias vezes, por Schopenhauer no texto da Arte de Ser Feliz.
[19] Um epicurista não nos pede a abstenção dos prazeres, mas orienta-nos a fruir deles de modo moderado. Ademais, Schopenhauer não faz distinção entre os prazeres, tal como o exige a ética epicurista. A ataraxia não é um estado de abstenção de prazeres, mas a realização da forma de prazer mais pleno, qual seja, a da ausência de dor e perturbação.
[20] SCHOPENHAUER, Arthur. Op.cit., p. 85.
[21] Apesar de anacrônico, no contexto de nossa discussão, o conceito de corporeidade, tal como concebido por Merleau-Ponty (1999), parece servir bem para descrever o corpo no epicurismo, isto é, corpo como uma estrutura experiencial vivida, ou o corpo como constituído de estruturas físicas e experienciais vividas. “A corporeidade do vivido” indica que nossa relação com o mundo é primeira e fundamentalmente relação que se estabelece com o corpo, que, à luz dessa perspectiva, é um agregado de aspectos físicos, psicológicos e espirituais. O prazer e o sofrimento são, essencialmente, afecções que compreendem a estrutura experiencial do corpo.
[22] O problema com os prazeres cinéticos ou em movimento é que eles jamais se perfazem e sua busca depende da satisfação temporária de desejos que são, por natureza, insaciáveis. Por isso, embora possam ser bons em si mesmos, tais prazeres não garantem a ataraxia, estado permanente e feliz ao qual a ética epicurista pretende conduzir o homem.