Resenha
crítica de O
manifesto comunista
Karl Marx (1818-1883)
foi um filósofo alemão, nascido em Trier, proveniente de uma família judia
convertida ao protestantismo. Sua obra exerceu grande influência em sua época e
um significativo impacto na formação do pensamento social e político
contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu quando da ocasião em que entrou em
contato com a obra dos economistas ingleses Adam Smith e David Ricardo e rompeu
com o hegelismo e com a tradição idealista da filosofia alemã. Malgrado essa
ruptura, o pensamento de Marx deve muito à filosofia de Hegel e ao materialismo
de Feuerbach no qual foi buscar o conceito de alienação. Marx reconheceu em
Feuerbach o mérito de ter superado a dialética idealista de Hegel, mas lhe
censurou a incapacidade de analisar adequadamente a autoconsciência e suas
projeções religiosas num quadro de referência que abrigasse a influência
determinante de forças econômicas e sociais fundamentais. Para Marx, todo o
materialismo ao longo da história do pensamento, inclusive o de Feuerbach,
apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob
a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis.
O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a
própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo
de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso
da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em
si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais
concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo
– tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo,
porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou emprestado o conceito de dialética;
no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento
culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o
sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um
processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo
dialético, que assenta na proposição segundo a qual a contradição que move
a história não é a contradição do Espírito com ele mesmo, não é a contradição
de sua face subjetiva com sua face objetiva, mas a contradição que se
estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais. Essa
contradição, de acordo com Marx, tem um nome. Chama-se luta de classes.
Os indivíduos só formam uma classe porque se veem obrigados a sustentar
uma luta contra outra classe; do contrário, eles continuariam a se enfrentar
uns aos outros com hostilidade em termos de competência. O sujeito da história
não é o Espírito, consoante pensava Hegel, mas as classes sociais em luta. A
história passa, então, a ser concebida não mais como história das realizações
do Espírito, mas a história do modo como os homens reais produzem suas
condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir tanto da ruptura com a tradição idealista
hegeliana, na esteira da qual o real era compreendido a partir da ideia, quanto
da revisão crítica do materialismo intuitivo de Feuerbach, cujo problema
fundamental foi não considerar a práxis histórica, que se desenvolveu o
chamado materialismo histórico, termo de que fez uso Engels
(posteriormente Lênin) para designar o método de interpretação histórica
proposto por Marx. Antes de considerar, em linhas gerais, esse método, cumpre
dar a conhecer quem foi Friedrich Engels, principal colaborador e amigo íntimo
de Marx.
Engels (1820-1895) também era alemão e também sofreu influência do
hegelismo. Tendo estudado na Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos
“jovens hegelianos”. Engels não foi só um colaborador teórico de Marx, mas
também seu amigo mais íntimo, tendo-o assistido, inclusive, financeiramente.
Ambos escreveram quase sempre juntos, o que torna difícil distinguir, entre as
principais teses do marxismo, quais são as ideias de Marx e quais são as de
Engels.
Admite-se, contudo, que o materialismo histórico é
um produto típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no
desenvolvimento da filosofia marxista.
2. Materialismo histórico
Impõe-se-nos esclarecer agora o materialismo histórico.
Esse método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados
em fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de
trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva
antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de
trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à
satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas
históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas
que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do materialismo repousa, portanto, sobre o
fato de ele assumir a perspectiva segundo a qual a produção
historicamente diversa da vida material condiciona, em última instância, a
produção da vida social, política e espiritual. É preciso, no entanto,
salientar que só relativamente as condições materiais são determinantes, porque
elas próprias são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um
sentido muito relativo, porque a prática que as modifica na história é
condicionada não só pela base material da sociedade, mas também por fatores
ideais.
O materialismo histórico se opõe a toda forma idealista de
pensamento, ou seja, a toda forma de pensamento que pretende dar primado
teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao “Espírito”, tomados esses conceitos como
realidade primeira, em detrimento das relações sociais, particularmente as
relações sociais de produção. À luz desse método de análise e de interpretação
do real, a natureza humana e as formas históricas das sociedades são
consideradas relativamente às relações de trabalho concretas, diversas e
mutáveis. Por conseguinte, não admite que o “Espírito” possa ser pensado como o
“Sujeito” da história ou o princípio organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do materialismo repousa sobre a assunção de
que a produção historicamente diversa da vida material condiciona, em última
instância, a produção da vida social, política e espiritual. O materialismo
histórico vê a História à luz da articulação de duas dimensões, a saber, a
da superestrutura e a da infraestrutura, a
segunda das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos
fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar
a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo
histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última
instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a
realidade primeira. A ideia de materialismo, neste quadro de
referência, sublinha o fato de se conceber a infraestrutura, a dimensão
material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a
formação da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada.
O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,
política e intelectual em geral.
Não obstante, é sempre importante ter em conta o fato de que a
infraestrutura, embora determine, em última instância, a superestrutura, não é
o domínio exclusivamente determinante. Destarte, a produção das ideias e das
representações incide sobre a atividade material do homem, e os fatores
superestruturais podem tornar-se determinantes da forma das lutas históricas.
Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de
conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia
política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política,
considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma
verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e
Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo, assim compreendido, dá margem à
tendência de distinguir o pensamento de Marx do pensamento de seu amigo e
colaborador Engels. É possível também identificar diversas formas de marxismo,
seja em razão das diferentes interpretações do pensamento desses autores, seja
em razão de juízos de valor com base nos quais haveria um marxismo que se deve
aceitar e outro que se deve rejeitar.
4. O Manifesto do Partido Comunista: apresentação da obra e
de sua estrutura
O livro Manifesto do Partido
Comunista (doravante, Manifesto) foi redigido por Marx em co-autoria com
Engels. Esse trabalho é, a par de O
Capital, um marco do desenvolvimento do marxismo. O texto do Manifesto foi responsável por
desencadear um movimento comunista moderno muito similar a outros muitos que
ocorreram a partir de meados do século XIX. Escrito em 1847 e assumido na
íntegra pela Liga dos Comunistas, que se compunha de exilados alemães, o texto
do Manifesto veio a lume em 1848,
período em que a Europa foi tomada por várias convulsões sociais. Tendo sido
derrotado o movimento revolucionário, o Manifesto
caiu em ostracismo e assim permaneceu por pelo menos uma década.
Quando a tendência que no Manifesto
encontrava sua base teórica – o socialismo científico – tornou-se hegemônica
relativamente às demais tendências socialistas, durante a Primeira
Internacional (1864-72), Marx passou a ser o grande expoente do movimento
comunista. O Manifesto se diz “do
Partido Comunista”, porquanto destinado a essa entidade, que não era mais que
uma pequena seita clandestina de refugiados. Ao longo da história, os partidos
trabalhistas se utilizaram do texto como uma espécie de catecismo destinado à
formação política de seus militantes, os quais não chegaram a se assumir como
membros representantes de um “partido comunista”, pelo menos até a eclosão da
revolução bolchevique em 1917.
O Manifesto é considerado
o texto fundador do marxismo e, estruturando-se com base na famosa tese segundo
a qual o motor da história é a luta de classes, se pretende um programa
político dos comunistas que, àquela altura, já gozavam do poder.
Já de início, o texto dá-nos testemunho de que o comunismo já era
conhecido como força política por todas as grandes potências da Europa.
Ademais, em consonância com sua natureza, o Manifesto
convoca os comunistas a revelar ao mundo inteiro sua visão de mundo, seus
objetivos e suas tendências, de sorte que, afirmando-se enquanto agentes
políticos, que pretendiam a revolução social, assumissem o combate às falsas
concepções comuns, à época, sobre o comunismo.
O Manifesto se compõe de
quatro capítulos, o primeiro dos quais, estampando o título Burgueses e Proletários, se destina ao
exame da forma antagônica e permanente em que se manifesta o movimento
histórico, qual seja, o antagonismo entre burgueses e proletários. È nesse
capítulo que encontramos a emblemática asserção que constitui o cerne do método
de análise do materialismo histórico, segundo a qual “a história de todas as
sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”.
Cumpre destacar que, embora reconhecida pelos autores como uma
classe que protagonizou, na História, um significativo movimento
revolucionário, lançando por terra as relações feudais, patriarcais e idílicas,
a burguesia moderna, não podendo subsistir sem revolucionar também,
incessantemente, os instrumentos de produção, as relações de produção e todas as
relações sociais, se mostrou incapaz de abolir os antagonismos de classe; pelo
contrário, ela produziu uma outra classe – a dos proletários – que, sendo
produto do desenvolvimento da própria burguesia, se lhe estabeleceu em
oposição.
O segundo capítulo, intitulado de Proletários e comunistas, tem como ponto de partida a questão sobre
a relação que devem manter os comunistas com os proletários. Nesse tocante, o
texto ressalta que os comunistas não constituem um partido oposto aos outros
partidos operários, que os interesses dos comunistas não diferem dos interesses
do proletariado em geral. O objetivo precípuo dos comunistas é, portanto, o
mesmo objetivo perseguido pelos diversos partidos proletários. Esse objetivo se
desdobra em três momentos: constituição do proletariado em classe; derrubada da
hegemonia burguesa; e conquista do poder político pelo proletariado. Nessa
seção, também se definem o comunismo e o capitalismo, tomado o primeiro em
declarada oposição ao segundo.
Na tentativa de definir e esclarecer as bases teóricas em que se
sustenta o movimento comunista, Marx & Engels se defendem contra a
suposição – equivocada, segundo eles – de que os comunistas estariam
interessados em abolir a propriedade privada.
No terceiro capítulo – Literatura
socialista e comunista -, os autores passam em revista as formas assumidas
pelo socialismo, ao longo da História, para o que eles se debruçam sobre a
literatura socialista. Ao longo dessa tarefa, são discriminados e comentados o socialismo reacionário, o qual compreende
o socialismo feudal, o socialismo pequeno-burguês e o socialismo alemão; o socialismo conservador ou burguês e, por
fim, o socialismo e comunismo
crítico-utópicos. Ainda que este último tenha logrado alguns avanços em sua
empresa, quando cotejado com as formas anteriores de socialismo, todos teriam
fracassado na tentativa de, transformando a base material da sociedade,
conduzir o proletariado ao poder.
O quarto e último capítulo, cujo título é Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição,
encerra a tentativa de situar os comunistas relativamente aos diversos partidos
que, no movimento da História e por toda a Europa, insurgiram-se contra a
exploração burguesa. Assim é que, reiterando o objetivo central do movimento
comunista – a luta pelos interesses da classe proletária – os autores afirmam o
compromisso dos comunistas com a defesa e a representatividade das diversas
bandeiras com as quais se desfralda o comunismo em diversos países da Europa,
não sem descurar de reconhecer aqui e ali quem, dentre os credenciados a
aliados, estão a defender verdadeiramente os objetivos do comunismo e,
consequentemente, do proletariado, e quem, apresentando-se como representantes
da causa, conservam ainda a mentalidade e as condições constituídas pela classe
a cujos privilégios os comunistas se opõem.
5. Comentário crítico
Não parece haver dúvida de que o Manifesto constitui um marco na consolidação do que se consagrou
chamar de marxismo. Nesse texto, é
notável o esforço empregado pelos autores em traduzir em formas práticas o que
até então se apresentava como apenas um método de análise histórica – o
materialismo histórico. No Manifesto,
o materialismo histórico assume a sua força intervencionista no movimento
histórico, sem descurar de articular dialeticamente os domínios que já se
topavam na origem da constituição desse método: teoria e prática.
O texto, no entanto, não deve sua força, seu impacto à sua alegada
cientificidade. Essa força parece dever-se mais à sua retórica, cujo efeito de
persuasão assemelha-se à de um texto sagrado.
No momento em que o texto, fixando o lugar dos comunistas na arena
histórica, identifica seu adversário – o capitalismo -, ele o faz de modo um
pouco apocalíptico. O capitalismo, conquanto dotado de uma realidade objetiva,
constitui uma etapa do desenvolvimento histórico, que a revolução comunista
trataria de superar. O ter convertido em dogma a inevitabilidade da revolução
comunista constitui um problema que parece ter passado ao largo da percepção
dos autores. A própria crença de que a história tem um sentido, que se expressa
na forma de lutas incessantes de classes, explica o ter assumido como dogma a
consolidação da vitória do proletariado sobre a burguesia.
Cuidamos que o Manifesto
não deve ser lido como um documento que desvela a inevitabilidade da direção
tomada pelo movimento histórico. O programa do comunismo de Marx e Engels e com
ele seus valores humanistas devem ser contemplados em consonância com as
possibilidades históricas que se faziam presente à época.