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terça-feira, 20 de novembro de 2012

"Tornei-me mais esclarecido quando compreendi que os homens se fizeram crentes de que foi Deus que os criou" (BAR)


                            



   Os ebionitas e os marcionitas
  Afinal, de que Deus se trata?





E se fosse dada a imensa maioria de pessoas que acredita em Deus e que habita este imenso território chamado Brasil a oportunidade de ter acesso a estudos sérios, desenvolvidos por renomados especialistas na história dos cristianismos primitivos e da confecção da Bíblia, que vantagens poderiam obter essa grande parcela da população? Este texto será escrito de modo que se aproxime ao máximo dos gêneros da conversação informal. Vou até baixar o nível de formalidade deste texto.

E me dirijo a leitores que, provavelmente, não lerão este texto. Me dirijo a pessoas que vivem a falar de Deus, pessoas que já de manhã cedo postam no facebook  algo como “vamos aproveitar esse dia lindo que Deus nos proporciona”. Como eu disse, essas pessoas não lerão este texto, coisa que eu lamento. Mas não lamento a tal ponto de me recusar a escrevê-lo, embora eu ache que eu deveria estar manifestando as ideias que aqui se encontrarão num livro publicável. Os leitores que me acompanham há tempo, talvez se admirem do que escreverei, aprendam alguma coisa, mas certamente não se surpreenderão.

Começarei do princípio e vou me esforçar para que esse princípio não se prolongue tanto. Duas idéias básicas ficaram estacionadas em meu espírito agora. Ei-las a seguir:

Ideia 1: é necessário que se faça ver um ateísmo esclarecido;

Ideia 2: é desejável que se faça ver uma fé esclarecida.


Vou agora explicar estas ideias. Um ateu esclarecido é aquele que não se limita a atacar cegamente um sistema de crenças ao qual se opõe, sem conhecer a história que o produziu. Em outras palavras, dizer que Deus é uma ilusão, que é um “amigo imaginário”, entre outras coisas, é percorrer um caminho “argumentativo” infrutífero. Um ateu esclarecido buscará antes saber como foi possível crer nesse Deus. Qual é a sua origem? Como se construiu a ideia de Deus? Em que contexto sócio-histórico Deus ganhou voz? Estas são algumas perguntas que deverá se fazer um ateu esclarecido e cujas respostas deverá buscar. Um ateu esclarecido deverá ter em mente que está lidando com um Deus – seja lá de que forma ele, ateu, o entenda – que é produto de uma herança milenar (na verdade, de mais de dois milênios; isso para ficarmos no Deus cristão, séc. I d.C).

Agora, no que diz respeito à possibilidade de uma fé esclarecida, aí estamos lindando com algumas complicações. É verdade que a Igreja católica vem vendendo a ideia, já faz algum tempo, da necessidade de conciliar fé e razão; nenhum religioso admite que se considere sua fé uma “fé cega”. O problema é que quando se propõe a conciliação entre fé e razão não entra aí a importância de esclarecer as massas religiosas (mais especificamente, cristãs) dos fatos históricos que se encontram na origem do cristianismo então vitorioso (a visão proto-ortodoxa que nos chegou, não sem sofrer uma série de cisões) e da história da fabricação da Bíblia. A consciência desses fatos talvez contribuísse para que os cristãos leigos (uma observação: leigos porque não iniciados nas ordens eclesiásticas) compreendessem as verdadeiras razões por que professam a fé que então herdaram, por que, hoje, acreditam no que dizem acreditar. Se tal conhecimento poderia levá-los a questionar sua fé, a namorar, ainda que por alguns instantes, o agnosticismo, ou mesmo, a entregar-se de corpo e alma aos braços do ateísmo, eu não saberia, por ora, dizer. E meu objetivo não é esse.

Terei de pedir ao leitor, que suponho acredite em Deus, que admita o que se segue:

1) Tudo que sabemos sobre Deus veio pelas mãos de muitos homens que viveram em uma época remota, em regiões muito distantes, em culturas que não são a nossa;

2) Sabemos de Deus, portanto, aquilo que esses muitos homens escreveram sobre Deus.;

3) Ninguém – insisto NINGUÉM – tem acesso direto a Deus (ninguém nunca o viu, nunca o tocou, nunca sentiu seu cheiro, nunca conversou com ele). Tudo que sabemos de Deus são tão-só representações de Deus.



Preciso esclarecer este ponto. Dizer que só temos acesso a Deus pelas representações que fizeram dele determinadas classes de homens, que viveram em uma cultura muito diferente da nossa, num período de tempo remoto e pelas representações que nós fazemos dele graças à herança judaico-cristã que, juntamente da herança greco-romana, veio a formar a cultura ocidental, não deveria surpreender os iniciados em estudos filosóficos. Muitos filósofos e cientistas concordam que não temos acesso direto ao mundo, que nossas relações, incluindo aí as formas de conhecê-lo, é mediada por representações desse mundo. Basicamente, construímos modelos mentais para interagir e compreender o mundo. Nossos discursos desempenham aí um papel fundamental. Neles e através deles, não só interagimos com o mundo, mas o compreendemos. Não quero que o leitor pense que a representação é uma forma de “espelhar” o mundo (essa é uma visão aristotélica, já não mais aceita). Nietzsche, aliás, a rejeitava. Representações envolvem conceitos, abstrações. O mundo representado não é o mundo tal como é, mas tal como nos parece ser. Melhor será falar em “reconstrução do mundo”. Também não assumo o extremo de defender que o mundo extralinguístico, tal como apreendemos pelos sentidos, não exista. Mas estou com Charaudeau (2010), ao nos ensinar que não há uma realidade fixa, que existe independentemente da linguagem.

É importante aceitar o postulado da construção discursiva do mundo, para melhor compreender os acontecimentos dos quais lhe falarei adiante. É claro que nessa construção entram fatores perceptuais-cognitivos, linguísticos, culturais e históricos. Todo discurso é uma realidade dotada de materialidade histórica. Sem complicar mais a cabeça do leitor, o fato é que, quando se considera o conceito de Deus, essa visão de que Deus é uma entidade de discurso, é construído discursivamente é a única capaz de explicar por que houve, na história dos cristianismos primitivos, tantas visões divergentes sobre a natureza e identidade de Deus (mas não só sobre ele, evidentemente; outros aspectos da doutrina que se oficializou também não foram aceitos unanimemente; houve muitas contendas, disputas, conflitos e até assassinatos em torno de qual seria o cristianismo verdadeiro e, é claro, a visão verdadeira de Deus).

Falta uma última coisa a ser considerada. Trata-se da Escrita da História da Bíblia. Em primeiro lugar, a Escrita da História na Bíblia conta muito mais com a criatividade do autor do que com seu compromisso em relatar os fatos tal como ocorreram no passado. É claro que podemos encontrar relatos do que realmente aconteceu, mas não era este o objetivo principal dos autores. Em segundo lugar, os escritores da história da antiga Israel escreviam para responder problemas de seu tempo. Tratava-se da escrita de uma historia nacional e coletiva, ao mesmo tempo literária e que tinha por objetivo recordar o passado e avaliar o significado de seus eventos. Ao recuperar literariamente o passado, os autores buscavam as causas das condições do presente.  Há outras coisas importantes para saber. Uma delas é que as profecias hebraicas não prediziam o futuro. O profeta hebraico não tinha a intenção de predizer o que iria acontecer futuramente, mas sim de fazer uma crítica social e religiosa de seu tempo. O leitor poderá conhecer mais sobre a história do Antigo Testamento, lendo o livro Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. Mckenzie.



Prossigamos...

Sem mais delongas, dou-lhe, leitor, um testemunho da imensa diversidade dos cristianismos primitivos. Na verdade, só tratarei de dois grandes grupos que compõem essa diversidade, mas é interessante que o leitor saiba que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs a respeito de Deus, de Cristo, do significado de sua morte, entre outras coisas. Por exemplo, havia cristãos que acalentavam a crença em que Deus criou o mundo; outros, porém, não pensavam assim. Para estes, o mundo tinha sido criado por uma divindade inferior ou subordinada e ignorante. Para esse segmento de cristãos, isso explicava por que o mundo é tão cheio de sofrimento, miséria e maldade. Mas não me estenderei sobre esse assunto. Remeto o leitor ao livro Evangelhos Perdidos (2008), de Bart D. Ehrman, livro em que me baseio na presente exposição.

Estamos situado no período que se estende do século II ao IV d.C, época em que certos cristãos, chamados ebionitas, entraram em cena. A origem do nome é desconhecida, embora muito provavelmente se prenda à palavra hebraica ebyon, que significa “pobre”.  Segundo Ehrman (p. 152), é possível que esses cristãos, seguindo fielmente o ensinamento de Cristo sobre o desapego aos bens materiais, tivessem renunciado às propriedades e se resignassem a viver na pobreza. Mas o que me importa é trazer à cena a doutrina ebionita. No que acreditavam os ebionitas?

Em primeiro lugar, os ebionitas, tal como o era Jesus, eram judeus. Eram judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus. Os ebionitas não deixaram nada escrito, ou melhor, nada do que teriam escrito foi preservado. O que deles se sabe vem das mãos de seus opositores, os cristãos proto-ortodoxos, representados, por exemplo, na figura de heresiólogos (oponentes de heresias), tais como Orígenes de Alexandria (183-254), filósofo e escritor cristão. Ehrman (ib.id.) nos lembra ser possível que houvesse vários grupos ebonitas, cada qual com sua visão teológica.

Os ebionitas, então, acreditavam que Jesus era o Messias judeu, que fora enviado pelo Deus judeu ao mundo para salvar o povo judeu, cumprindo, assim, o que diziam as Escrituras hebraicas. A divergência com os proto-ortodoxos começa agora. Os ebonitas também defendiam que, para seguir a Cristo, a pessoa deveria, em primeiro lugar, seguir a lei judaica. Deveria tornar-se um judeu, o que significa observar o Sabá e a dieta kosher (por exemplo, deveriam evitar comer carne de porco e mariscos); além, é claro, de se submeter à circuncisão. A doutrina ebionista estava, assim, em claro desacordo com os ensinamentos de Paulo. A esta altura, é bom lembrar que eles não propunham nada além do que sabiam a respeito de Jesus e de seus discípulos: eles eram judeus e viveram segundo a tradição judaica.

Para sustentar suas perspectivas, os ebonitas recorriam à autoridade de Pedro e do próprio irmão de Jesus, chamado Tiago, líder da igreja de Jerusalém, depois da suposta ressurreição do Messias.

Outro aspecto interessante da visão ebionita dizia respeito à identidade de Jesus. Eles não aceitavam a ideia de que Cristo preexistia à encarnação em Jesus, não estava ele junto a Deus antes de vir a Terra. Também não aceitavam a crença, católica, de que Jesus teria nascido de uma mulher virgem. Essa é uma crença ensinada no catolicismo. Outros segmentos do cristianismo a rejeitaram (o absurdo tem lá seus limites!).

Os ebionitas, que não tiveram acesso à versão do Novo Testamento que chegou até nós (uma falsificação de outras tantas que a precederam), sustentavam que Jesus era filho de Deus não porque tinha uma natureza divina, mas por adoção. É isso mesmo: Deus adotou Jesus para seu filho. Jesus, para os ebonitas, era um homem, de carne e osso, que nascera da união sexual entre seus pais. Mas era, evidentemente, um homem moralmente exemplar, que seguiu fielmente a Lei judaica proclamada por Deus ao seu povo.  Assim, Jesus morrera na cruz para a expiação dos pecados do mundo, cumprindo assim o que estava escrito nas Escrituras hebraicas. Como Jesus resignara-se ao sofrimento e ao seu destino funesto, Deus lhe concedeu ressuscitar dos mortos e o glorificou, conduzindo-o ao Paraíso. Abro parêntesis neste momento. É que sempre achei a doutrina da Salvação pelo sacrifício do cordeiro, que fora Jesus, esdrúxula, para dizer o mínimo. Ponderemos. Como era de costume entre os primeiros judeus, oferecia-se a Deus, no Templo, um animal sacrificado, para que, assim, se perdoassem os pecados. Os cristãos proto-ortodoxos compreenderam o sacrifício de Jesus segundo esse modelo ritualístico judaico. Cristo é o cordeiro de Deus oferecido em sacrifício para a expiação dos pecados do mundo. O cristão fiel enche a boca e fala com orgulho e com penosa e fervorosa gratidão que Jesus salvou cada um de nós (seja cristão ou não). Jesus morreu pela salvação da humanidade. Está certo. Mas morreu para nos livrar do quê? Ora, nada é mais claro: da ira de Deus que estava disposto a punir a humanidade pelos seus pecados (possivelmente, Deus estaria disposto a repetir o que fizera na época de Noé (é claro que a história do dilúvio e de Noé é um mito). Mas, enfim, se Cristo morreu para nos salvar, ele o fez para nos livrar da destruição que sobre nós recairia pela ira de Deus. Agora, compreendamos. Deus enviou seu filho e determinou seu sacrifício, para que ele, Deus, se contentasse e decidisse não mais acabar com o mundo. Isso faz algum sentido? Que espécie de Deus perverso e repugnante é este que destina ao suplício e à morte o próprio filho, para, assim, se comprazer e decidir não mais dizimar a humanidade? Essa doutrina só poderia sair da cabeça de um louco. Vamos pensar um pouco mais. Um pai ou um filho pode sacrificar sua vida em favor da vida um do outro. Um filho pode morrer para que seu pai viva, ou vice-versa. Mas não é isso que acontece nesta história repugnante. Deus tinha todo o poder para decidir não dizimar a humanidade; sendo um ser dotado de conhecimento perfeito, deveria se valer de outro recurso para tentar “salvar” a humanidade. Mas isso não incluía enviar seu próprio filho para que fosse crucificado. Os cristãos veem nisso um ato de amor de Deus, porque deu seu próprio filho em sacrifício. Mas sacrifício para quem? Para ele mesmo Deus!!! Quem vê nisso um ato de amor está moralmente esclerosado. Deus não precisava sacrificar seu próprio filho, se lhe estava ao alcance do poder (já que ele é dotado de poder infinito) agir de outro modo, por exemplo, perdoando os pecados, revelando-se como vinha se revelando aos profetas hebraicos. Deixemos o absurdo desta histórica, moralmente repugnante, embora crível e papagaiada por milhões de cristãos até hoje.

Voltemos aos ebionitas. Eles condenavam o sacrifício de animais. Para eles, o verdadeiro cristianismo consistia numa prática de estrita obediência aos ensinamentos judaicos de Jesus, que era Deus por adoção.

Vejamos agora outro grupo de cristãos considerados pela visão dominante, a dos cristãos ortodoxos, como hereges. Entram em cena os marcionitas. Eu os referi, em outro texto. Esse grupo tinha esse nome em virtude dos ensinamentos do teólogo, que vivera no século II, chamado Marcião.

Ao contrário dos ebonitas, os marcionitas eram antijudaicos. Eles rejeitavam não apenas os costumes judaicos, mas principalmente as Escrituras e o seu Deus. Quais eram as posições teológicas de Marcião, que causou alvoroço entre os líderes proto-ortodoxos? Ele, seguindo de perto Paulo, entendia que Cristo era o caminho para o verdadeiro conhecimento de Deus. Era preciso ter fé em Cristo para poder alcançar a salvação de Deus. (veja-se como a doutrina trabalha a dependência e a necessidade de salvação relativamente a Deus). Há uma relação tutelar entre Deus e o homem. Para Marcião, não importava a Lei. O Evangelho era a boa nova. A Lei abrigava mandamentos severos, culpa, julgamento, inimizades, punição e morte (ver. Ehrman, p. 159).

Tendo observado (e este é um ponto importante, quando adotamos a perspectiva da relação entre real e linguagem, que anunciei no início deste texto) que a imagem do Deus das Escrituras hebraicas (Antigo Testamento) não era compatível com o a imagem do Deus de que nos falou Jesus, nos Evangelhos, Marcião concluiu se tratar de dois Deuses diferentes. O Deus irado, vingativo, assassino dos judeus não era o mesmo Deus misericordioso, amoroso e gracioso anunciado por Jesus. Marcião foi mais adiante e desenvolveu a concepção de que o Deus dos judeus é o que criou o mundo; e o Deus de Jesus até àquela altura nunca tinha se comprometido com o mundo. Dele nunca ninguém, na verdade, tinha ouvido falar, até a vinda de Cristo. O Deus do Antigo Testamento era o Deus do povo de Israel. Era um juiz que concedeu a seu povo a Lei. O Deus de Jesus, por outro lado, não considerava os judeus seu povo; e não era um Deus que instituiu uma Lei. Agora, percebam como, a partir do reconhecimento por Marcião de duas formas distintas de representação de Deus (não que ele acreditasse se tratar de “representações”, é claro; para ele existiam realmente dois deuses), a história do sacrifício de Cristo muda sensivelmente.

Enquanto, para Marcião, o Deus judaico era um Deus que exigia obediência e punia transgressões e, por isso, vivia encolerizado, o Deus de Jesus, de quem até então ninguém havia ouvido falar, veio a este mundo, através de Jesus para livrar as pessoas do Deus vingativo dos judeus. Como observa Ehrman,



“(...) Jesus veio de forma completamente inesperada e fez o que ninguém poderia jamais ter esperado: sofreu a punição pelos pecados de outras pessoas, a fim de salvá-las da ira justa do Deus do Velho Testamento”.

(p. 160)


O que vemos aqui, caro leitor? Tudo bem, o Deus de Jesus, sendo mais poderoso, poderia ter dado cabo do Deus judaico, sem precisar sacrificar o próprio filho; mas agora estamos diante de uma razão mais aceitável por que Jesus foi sacrificado. Aceitável, do ponto de vista lógico, mas não justificável, do ponto de vista moral. Que fique bem claro! De qualquer modo, a história não deixa de ser menos crível e estranha. Porque, afinal, o sacrifício de Jesus haveria de  surtir o efeito pretendido? Ou seja, o mero sacrifício de Jesus fez com que o Deus judaico desaparecesse, deixasse de existir, em algum sentido? Continuo insistindo em que o Deus cristão deveria ter evitado o sacrifício do próprio filho, adotivo ou não, mas filho. E não é menos verdade que os judeus continuam adorando YHWH, o Deus cujo nome é impronunciável.

Para Marcião, portanto, o Evangelho era a boa-nova que não poderia vincular-se aos velhos escritos judaicos. Marcião acreditava (e nisso tenho de concordar com ele, uma visão sóbria que não se encontra mais entre os cristãos de nosso tempo) que um Deus bom não poderia criar um mundo cheio de miséria, desastres, doenças e morte. Esse Deus só poderia ser mal. Para ele, um Deus responsável pelo próprio mal; um Deus criador do mal. Era o Deus de Jesus que era bom.

E quanto à natureza de Jesus? Marcião ensinou que Jesus não era um homem de carne e osso. Na verdade, achava que ele sequer tinha corpo. Também acreditava que ele sequer tinha nascido. Ele só parecia ser humano.

Devo reconhecer, a esta altura, que o sacrifício de Jesus não parecia ter o objetivo de liquidar o Deus judaico, mas tão-só libertar as pessoas de sua tirania. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito:



“Jesus pagou o preço pelos pecados de outras pessoas ao morrer na cruz. Tendo fé em sua morte, pode-se escapar aos espasmos do encolerizado Deus dos judeus e ter a vida eterna com o Deus de amor e misericórdia, o Deus de Jesus. Mas como Jesus poderia morrer pelos pecados do mundo se ele não tinha um corpo real? Como poderia seu sangue derramado trazer expiação se ele não tinha sangue de fato?”

                                       

                                               (pp. 160-161)



Deixando de lado os problemas de ordem lógica, na doutrina de Marcião, interessante é entender que “a morte de Jesus era um tipo de armadilha que enganou o ser divino que controlava as almas humanas perdidas pelo pecado, e que o Deus dos judeus foi forçado a libertar as almas daqueles que acreditavam na morte de Jesus, sem perceber que, na realidade, a morte foi só aparente” (p. 161).

Agora, sim! O Deus dos judeus não foi aniquilado numa batalha cósmica contra o Deus de Jesus. O que ocorreu, na visão de Marcião, foi o uso de um estratagema pelo Deus cristão para ludibriar o Deus judaico, forçando-o a libertar as almas dos pecadores. Restaria saber se Marcião teria alguma resposta para a pergunta: O que foi feito, então, do Deus judaico? Ele continua a existir em competição com o Deus de Jesus? Teria ele se aliado a Satanás para atentar a humanidade? Infelizmente, ficaremos sem saber as respostas. Antes de apresentar as conclusões a que podemos chegar, quero elencar as diferenças entre as visões ebionitas e marcionitas, a título de síntese.

Os ebionitas defendiam que:

a) era preciso tornar-se judeu para seguir corretamente a Deus;

b) havia apenas um Deus;

c) era necessário permanecer fiel às leis do Antigo Testamento e o considerar como a revelação única do Deus verdadeiro;

d) Jesus era um ser completamente humano.



Os marcionitas defendiam que:

 a)      seguir a lei judaica era inapropriada para que se conseguisse ter uma relação correta com Deus;

b)      havia dois deuses;

c)      as leis judaicas deveriam ser rejeitadas e que o Velho Testamento fora inspirado por um Deus inferior;

d)      Jesus era inteiramente divino.



Outras diferenças podiam ser apontadas, mas não me preocupei em ser exaustivo. Concluamos, então.



Comecei este texto propondo a necessidade tanto de um ateísmo esclarecido quanto de uma fé esclarecida. Um ateu esclarecido pode mostrar, com base nos seus conhecimentos históricos da formação do cristianismo, dos quais são testemunho este texto, que cada grupo cristão acreditava deter a verdade sobre Deus. Cada qual tinha uma visão sobre quem foi Jesus, de modo que foi um acidente histórico o fato de, hoje, se acolher um conjunto de crenças que são consideradas “verdadeiras” ou “corretas”. No livro, Ehrman especula sobre o que teria sido o cristianismo, se os grupos vitoriosos fossem ou os ebionitas ou os marcionitas. Certamente, o cristianismo hoje não seria o mesmo.

Um ateu esclarecido, ao invés de martelar a ideia de que Deus é um ser imaginário, uma ilusão, mostrará que não se pode confiar na Bíblia como um testemunho fidedigno da existência de Deus. Certamente, por muitas razões, como a de que o Deus do Antigo Testamento – e isso reconheceu muito bem Marcião – não pode ser o mesmo Deus do Novo Testamento. Mas não devemos nos apressar em julgar ser o Deus do Antigo Testamento completamente distinto do Deus do Novo Testamento. Não nos esqueçamos de que podemos ler em Mateus 18: 8:



“Portanto, se tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançados no fogo eterno”.



E em Mateus 8:12:



“E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”.



O Deus de Jesus também tinha um inferno destinado aos ímpios, o que mostra que, pelo menos quem escreveu Mateus, afinou os ensinamentos de Jesus com o imaginário judaico de Deus. Na verdade, o autor de Mateus defendia a ideia de que a salvação só viria com a observância de todos os mandamentos.  O Jesus de Mateus foi construído numa visão estritamente judaica.

O ateu esclarecido deverá apenas tomar o cuidado quando da consideração dos evangelhos, porque seus autores discordaram entre si. Há uma série de inconsistências entre os textos.

Quanto ao leitor, precisa reter o seguinte: a) vimos que, na história do cristianismo, uma história complexa e marcada por diversidade de perspectivas e interesses, muitas eram as formas como Deus era pensado; muitas eram as formas como Deus era construído. O que nos chegou foram as construções discursivas de Deus do grupo vitorioso, o dos proto-ortodoxos; b) não dispomos de meios para determinar se as construções discursivas de Deus que nos foram legadas são as verdadeiras. Claro está que não há como provar que Marcião estava errado. Ele até obteve muito sucesso, fundando igrejas por onde passou.

Um Deus que se acredita grandioso e dotado de infinita sabedoria deveria ter-se revelado de tal modo que não desse margem a muitas especulações a seu respeito. A história prova que cada grupo cristão tinha uma visão sobre quem era Deus, sobre como agia, sobre como se relacionava com Jesus, etc.

Um Deus transcendente é, na verdade, uma construção discursiva; na verdade, Deus é imanente ao discurso produzido por seres humanos. Deus é imanente ao processo histórico em que seres humanos estão envolvidos.

Se não assumirmos, com base no que apreendemos sobre a diversidade de evangelhos, alguns perdidos para sempre, outros descobertos, com base nas evidências de que foram necessários muitos conflitos e disputas para o estabelecimento da visão ortodoxa (correta) do cristianismo (sem que Deus tenha feito nada a respeito para pôr fim às disputas e revelar quem estava com a razão), que, afinal de contas, foi forjado na imaginação de muitos homens que precisavam suportar as condições de opressão em que viviam, como, então, podemos explicar por que foram possíveis diversas visões teológicas nos primórdios do cristianismo?

Não encare, leitor, este texto como a expressão de um ataque a fé ou à religião. Eu apenas procurei elucidar os interessados sobre uma parte da verdadeira história cujo processo explica o cristianismo tal como o conhecemos hoje. Tenho de reconhecer, contudo, que também acalentei a esperança de que os leitores viessem a perceber que o Deus em que creem é um Deus que tem uma história, que esse Deus tem raízes na história do antigo Oriente Médio. É um Deus que, graças muito ao papel do imperador romano Constantino (séc. III d.C), se impôs a maior parte do mundo. Não obstante, o fato de o Deus judaico-cristão não ter alcançado autoridade entre todos os povos do mundo (haja vista a diversidade religiosa em todo o mundo; os haitianos, por exemplo, adeptos da religião vodu, o ignoram) deveria ser uma evidência de que ele é um Deus que não transcende à história; é, ao contrário, um Deus que tem uma história. Qualquer pessoa que teve o privilégio de concluir sua escolarização média aprendeu, por exemplo, que povos das Américas do Sul e Central conheceram o cristianismo católico pela força dos colonizadores; povos que antes cultuavam muitos deuses se viram forçados a aceitar a adoração a um único Deus, que se impôs como o verdadeiro. Não é novidade alguma que a expansão da fé cristã num Deus único já vinha se dando, pelo menos desde que Constantino ascendeu ao poder de Roma. Quero dizer que sozinho Deus não se faria presente para muitos povos. Acho isso tão óbvio, tão claro. Deus existe não como ser transcendente ao mundo, mas como entidade ideológica (ideológica porque produzida por um sistema de valores, ideias e crenças) forjada num processo histórico determinado. Se Deus é carecido de materialidade natural (ele não é como a natureza e todo que nela há), não lhe falta materialidade histórica.

É simples aos que creem em Deus justificar o desconhecimento de Deus por outras comunidades humanas pela ignorância de seus indivíduos ou pela crença de que eles estão enganados sobre suas crenças religiosas, de que estão enganados sobre seus deuses, que não são reais, que não são verdadeiros. Trata-se de uma justificativa ideológica, porque mascara as verdadeiras razões por que eles desconhecem ou não têm necessidade do Deus cristão. Não é que eles estejam enganados (aliás, eles podem estar tão enganados quanto os próprios cristãos em relação ao seu Deus); eles simplesmente, criaram um sistema cultural que não contempla a crença num Deus único e transcendente; a razão por que não precisam acreditar num Deus tal como o do cristianismo, o do judaísmo ou do islamismo, é que lhes basta seu sistema de crenças sobrenaturais e suas divindades.  Esse sistema de crenças e as divindades referidas por ele funcionam em sua cultura. Se atendem às suas necessidades de sobrevivência em grupo, então não é necessário recorrer a outro sistema de crenças e a outra divindade.

Então, quando você acordar pela manhã e agradecer a seu Deus o dia lindo que lhe proporciona e desejar convocar a todos para que tomem parte nessa gratidão, lembre-se de que você está assumindo a existência de um Deus que não, necessariamente, será aceito por todo o mundo, de que muitos, pelas razões que apontei e por outras tantas que me escaparam, simplesmente o ignoram, e lembre-se também de que tudo que sai de sua boca a respeito de Deus tem uma história e isso é verdadeiro também em relação a todos os nossos discursos. Não espero que isso  o/ a leve a assumir o ateísmo ou o agnosticismo, mas que possa fazer com que se interesse, ao menos, por compreender melhor sua própria fé.