Do intertexto sem-sentido
A minha amiga Rafaela Gomes,
Tenho
recomendado aos meus amigos on-line o livro Como me tornei estúpido, de Martin Page. Várias de suas passagens
repercutiram vivamente em minha alma, dentre as quais destaco uma que vem a
propósito, depois que li o poema nonsense, de minha amiga e poetisa
brilhante Rafaela Gomes. Este texto é uma versão estendida do comentário sobre
o referido poema, que lhe estampei na página do blog.
“Não é possível viver demasiadamente consciente,
demasiadamente pensante. Aliás, observemos a natureza: tudo o que vive muito e
contente não é inteligente. As tartarugas vivem séculos, a água é imortal
(...). Na natureza, a consciência é a exceção; pode-se até postular que ela é
um acidente, uma vez que ela não assegura nenhuma superioridade, nenhuma
longevidade particular”.
(p. 61)
Fiquei
cogitando, depois que li esse trecho, na angustiante condição humana: somos
seres de consciência superior e sabemos que vamos morrer. Ao contrário das
tartarugas, a natureza de nossa consciência é incompatível com a efemeridade de
nossa existência. Temos pouco tempo para ousar apreender a complexidade dessa
existência cujo mistério nos abarca. O mais impressionante é que, até onde
sabemos, somos os únicos seres capazes de reflexão, vale dizer, de pensar o já
elaborado pelo pensamento. Daí, fui mais longe e pensei na aventura intelectual
humana; pensei no legado de espíritos geniais que o gênero humano já produziu
(o de Karl Marx, Freud, Nietzsche, Einstein...); homens que viveram para as
suas ideias, pelas suas ideias, que dedicaram toda uma vida a revolucionar,
cada qual em seu campo de interesse... todos passaram, já que, apesar da
genialidade de suas mentes, eles compartilham da condição mortal de todo ser vivente.
Mas seu legado permanece, apenas ele permanece entre nós e, se preservado,
acalentará os pensamentos de futuras gerações. Agora pensem comigo: se não
houver nada além da cessação da consciência com a morte, de que valeu o esforço
intelectual empreendido por esses homens? Não digo para nós, seus
beneficiários; mas para eles mesmos, que sucumbiram como deve sucumbir todo ser
humano, quer intelectual, quer medíocre (ou estúpido). Estou sincera e
verdadeiramente convencido de que não há um Deus como o representado pela
ideologia judaico-cristã. Sou ateu sereno e conciliado com o Mistério. E, por
vezes, a sombra desse absurdo que é a existência avança contra os meus
pensamentos e me ponho a especular sobre a possibilidade de essa existência
cuja totalidade sempre nos escapa ser cíclica (talvez, a morte seja um
recomeço; talvez esse “eu”, esse sentimento de “eu” singular, diferenciado,
irrepetível seja eterno; talvez, haja reaparecimentos de sua unidade e cada
novo reaparecimento implique o apagamento da consciência de outros tantos
reaparecimentos anteriores.).
O que
aconteceria, se nós soubéssemos de onde viemos (não a nossa origem na longa
cadeia evolutiva; Darwin já nos ensinou a respeito dela...); refiro-me ao
espantoso acontecimento da vida (questão metafísica, porque envolve o sentido
transcendente)... o que aconteceria, se nós soubéssemos qual é o propósito da
vida e onde ela desembocará? Seríamos, por isso, mais felizes ou infelizes?
Seríamos menos angustiados? Nossas inquietações cessariam? Seríamos capazes de
rever nossas metas, nossas ambições? Ainda continuaríamos prisioneiros de
nossas paixões destrutivas? Empregaríamos ainda nosso ser a serviço do
dinheiro, o deus da prática? Ainda estaríamos dispostos a fazer guerras, a
acumular riqueza e a ostentá-la?... A vida é um grito no silêncio, nesse
grandioso silêncio que se estende pela infinidade do Universo. Estamos imersos
nesse silêncio, nesse mistério silencioso, por isso a vida é mesmo absurda,
porque excede nosso peculiar excesso de consciência (embora ele não se
verifique em muitas pessoas, para a felicidade delas). Viver transcende a
consciência, o entendimento. Porque a vida se acha de permeio entre as duas
pontas deste instigante Mistério. Nós estamos imersos nele, tentando respirar
com nossos pensamentos e levando a vida à sombra dos rastros da morte. A morte
deixa pegadas na vida; ela sinaliza para nós que seja qual for a medida da
dimensão de nosso projeto, seja ele grandioso, seja modesto, a vida que a ele
se entrega pode ser pulverizada, num instante de desatenção ou imprudência. A
vida mata a vida; outras vidas matam outras vidas. A morte é inexorável; é
necessidade (afinal, tudo que vive tem de morrer); a vida, contingente e
frágil; e o Mistério, a orla da loucura. Por isso, é prudente quem não se detém
a pensá-lo; sua profundeza pode absorver nossa alma, sugá-la, dilacerá-la; ou
pode atravessá-la como uma lâmina que expõe as metades de uma laranja. E o
sentido, cuja integridade nos esforçamos por construir e preservar, se
estilhaça. E o absurdo ecoa do silêncio da grande questão do Ser (ele nos
previne: ‘É bom que não me toque’). A questão do Ser fora assim expressa por
Leibniz: “por que existe alguma coisa ao invés de nada?”. Alguns comentadores
julgaram-na sem sentido: nada, por definição, nega a existência; é o não-ser.
Por que o ser ao invés do não-ser? Por que estamos aqui? Poderíamos não estar
aqui? Sim, diz a razão, ao que tudo indica, a existência é contingente (poderia
dar-se ou não). Agora, estamos no âmago do Mistério, onde nossos pensamentos
minguam e correm o risco de se diluir...