Dispersos
Sempre
que leio um livro, tenho o hábito de grifar trechos de parágrafos ou mesmo
parágrafos inteiros que me despertam atenção. Muitas vezes, além de
sublinhá-los, deixo junto a eles algum comentário ou questionamento. Tal hábito
me ajuda a localizar o que li, caso eu pretenda escrever sobre algum tema que
já tenha visitado em minhas leituras, ou mesmo me ajuda a reter o que li,
quando releio o mesmo livro ou capítulo.
Neste
texto, cujos limites já estão pré-fixados em meu espírito, pretendo trazer à
cena alguns trechos curiosos ou interessantes de uns poucos livros que já li ou
que ainda estou lendo. O primeiro trecho que compartilho com o leitor vem de
Bart D. Ehrman, em seu Quem Jesus foi,
Quem Jesus não foi? (2010). Escusa dizer que os cristãos menos suscetíveis
ao adestramento intelectual deveriam dar-se o trabalho de lê-lo. Leiamos com
atenção o trecho abaixo:
“A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e
nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos
Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos
posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para
informar aos leitores que os editores achavam que eram as autoridades por trás
das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é
algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou
de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão
dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus
livros o título de “segundo fulano”.
(pp. 119-120)
(grifo
meu)
Este
trecho permite-nos inferir que nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Nenhum
deles conviveu com Jesus. Em outro trecho, que não refiro por me faltar disposição
de ânimo para procurá-lo, Ehrman é mais explícito, ao nos ensinar que os nomes
Marcos, Mateus, João e Lucas não correspondem aos nomes dos verdadeiros autores
dos evangelhos. Apesar de a maioria esmagadora dos cristãos acreditar que
Mateus foi realmente o autor do “Evangelho segundo Mateus” e que esse Mateus
foi um dos doze apóstolos de Jesus, há um consenso entre os estudiosos
bíblicos, cujo trabalho de interpretação se assenta no método
crítico-histórico, de que os Evangelhos são produto de falsificações, resultado
de cópias sucessivas, feitas por copistas, não necessariamente aptos para tanto. O trecho a seguir nos ensina a respeito disso. O trecho consta do livro,
também de Bart D. Ehrman, intitulado de O
que Jesus disse? O que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê (2006):
“(...) De fato, muitas mudanças
encontradas nos primeiros manuscritos cristãos nada tinham a ver com teologia
ou ideologia. A maioria das mudanças é, de longe, resultado puro e simples de
erros – escorregões de pena, omissões acidentais, acréscimos despercebidos,
palavras mal grafadas, bobagens desse tipo. Os copistas podiam ser
incompetentes: é importante lembrar que a maioria dos copistas nos primeiros
séculos não eram treinados para esse tipo de trabalho, porque eram simplesmente
os membros letrados das assembleias que eram (mais ou menos) capazes e se
dispunham a fazê-lo. Mesmo mais tarde, a começar dos séculos IV e V, quando os
copistas cristãos emergiram como classe profissional dentro da Igreja, e mais
propriamente ainda, quando a maioria dos manuscritos era copiada por monges
dedicados a esse tipo de trabalho em mosteiros – mesmo nessa época, havia
copistas menos experimentados que outros. (...) Por vezes, os copistas
simplesmente se distraíam; outras vezes, tinham sono e fome;outras ainda,
compreensivelmente, não podiam dar o melhor de si. (...) Até mesmo copistas
competentes, treinados e alertas, de vez
em quando podiam cometer erros. Não obstante, em certas ocasiões, como vimos,
eles mudavam o texto porque achavam que ele tinha
de ser mudado. E isso, note-se, não apenas por razões teológicas. Havia
outras razões pelas quais os copistas introduziam uma mudança proposital – por
exemplo, quando chegavam a uma passagem que parecia incorporar um erro que
precisava ser corrigido, provavelmente uma contradição encontrada no texto, ou
uma referência geográfica errada, ou uma menção escriturística deslocada. Desse
modo, quando os copistas faziam mudanças intencionais, por vezes, os seus
motivos eram tão cristalinos quanto a água de fonte pura. Mas, seja como for,
tratava-se de mudanças que faziam com que as palavras originais do autor fossem
alteradas e, em última instância, perdidas”.
(p.65-66)
(ênfase
no original)
Os dois
trechos, quando reunidos a outro que ainda citarei, servem para refutar a
crença, bastante generalizada e empedernida no mundo judaico-cristão, segundo a
qual a Bíblia foi inspirada por Deus. Grosso modo, isso significa dizer que os
escritores bíblicos foram influenciados pelo “sopro do Espírito Santo de Deus”
a compor seus escritos. Estava eu, há pouco, ocupado na leitura do Tratado de Teologia – Adventista do Sétimo
Dia (2011), particularmente, concentrado na seção destinada ao estudo da
crença na Bíblia como uma obra de Deus. O autor, que é teólogo, irá se esforçar
por justificar por que podemos, com certeza, afirmar que a Bíblia tem origem em
Deus. Na verdade, inicialmente, a minha intenção era compor um texto por meio
do qual eu avaliaria criticamente os argumentos do autor, para defender justamente
a posição contrária, qual seja, a de que a Bíblia é uma obra humana e somente humana. Curiosamente, as
“evidências” apresentadas pelo autor em favor da crença de que a Bíblia
resultou de um trabalho também
divino (ele não nega que tenha sido produto do trabalho humano, evidentemente)
são todas colhidas da própria Bíblia (e não de fontes externas a ela). Ademais,
as “evidências” são, sem exceção, os registros dos autores bíblicos, que
simplesmente alegavam que as Escrituras foram inspiradas por Deus. Pergunto-me
que valor têm essas alegações como provas?
Ao
tratar do “locus” da Inspiração, ou seja, quem ou o que foi alvo de inspiração,
o teólogo observa o seguinte:
“A terceira opção para locus da
inspiração – a comunidade da fé na qual a Escritura teve sua origem – dificilmente merece ser mencionada como
alternativa viável. O conceito se baseia, em grande medida, em um método
específico de estudo da Bíblia. Por meio de um estudo
crítico-histórico-literário da Bíblia, os eruditos chegaram à conclusão de que muitos livros
bíblicos são produto final de um longo processo, no qual estiveram envolvidos
escritores, editores e redatores desconhecidos. Com base nesse fenômeno,
nega-se a concepção de que os livros da Bíblia tiveram autores terem sido
inspirados, a comunidade na qual os escritores atingiram sua forma final é que
foi inspirada a reconhecer a validade e autoridade da mensagem bíblica”.
(p. 45)
(grifo meu)
Nesse
excerto, o autor reconhece as contribuições de estudiosos como Ehrman, que
desenvolvem sérios estudos sobre a Bíblia, a fim de buscar uma compreensão
histórica sobre esta que é a obra mais vendida e lida do mundo. No entanto, ele
tão-só as rejeita como verdadeiras explicações sobre a autoria da Bíblia.
Veja-se o trecho em negrito. Saliente-se que ele as rejeita sem desenvolver
qualquer argumentação. Ele simplesmente quer manter a crença de que os
escritores bíblicos foram inspirados e que as alterações e cópias das quais nos
falam os historiadores bíblicos podem ter sido elas mesmas também inspiradas.
Não lhe ocorre que um trabalho que fosse inspirado por Deus não poderia carecer
de correção; é razoável supor que, se é Deus quem inspira as palavras do livro,
esse livro deveria primar pela exatidão e pela correção; ademais, deveria
incluir somente ensinamentos e palavras que dariam testemunho de uma
inteligência infinitamente superior à humana (o advérbio “infinitamente” aí tem
sentido obscuro, mas serve para assinalar como Deus é pensado pelos cristãos);
mas a Bíblia está longe de ser um livro repleto de ensinamentos e palavras capazes
de nos maravilhar.
Em
outro livro, intitulado Desvendando a
Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte (também esse trecho
serve para negar a validade da crença na Bíblia como obra inspirada):
“Olhe de perto a história do
Dilúvio, em Gênesis 6:5 – 8:19. Quantos animais entraram na Arca de Noé – dois
de cada espécie (6:19, 7:15), ou sete pares de cada animal puro e um par de
cada animal impuro (7:2-3)? Como veio o Dilúvio – de cima, pela chuva (7:4)?,
ou por um aumento das águas das profundezas, ou ambos (7:11)? E quanto tempo
ele durou – quarenta dias (7:17, 8:6), ou 150 dias (7:24)? (...)
considerando-se as histórias em sua forma final, tal como aparecem hoje na
Bíblia, os leitores podem concluir que uma fonte acrescenta algo a outra, ou
elabora sobre detalhes de outra, produzindo uma história ainda mais rica. Os
textos convidam a uma leitura assim, em camadas.
Provavelmente nenhuma das quatro
fontes literárias hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro
representam as tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não
juntas em uma sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi
construída sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite
edição e alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação
intencional de textos recebidos”.
(p. 67)
O fato
de lermos, por exemplo, em Timóteo 2 (3:16) “Toda Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para
instruir em justiça” não constitui prova suficiente para validar a crença de
que Deus é o verdadeiro autor da Bíblia. De passagem, cumpre notar que, ao
contrário do que sugere o teólogo, em Tratado
de Teologia, não foi Paulo autor de Timóteo 1 e 2 (Ehrman, 2010, 147). O
que nos impede de desconfiar do autor de Timóteo? Por que não deveríamos supor
que o autor, ao escrever o que escreveu, tinha intenção de que seu escrito
alcançasse prestígio na comunidade à qual ele se destinava? Supõe-se que
Timóteo era um pastor de Éfeso. Ora, se a intenção do autor de Timóteo era
fazer recomendações sobre como se deveria desenvolver o trabalho pastoral nas
igrejas, nada mais justo que reafirmasse a crença de que as Escrituras foram
divinamente inspiradas; afinal, se o texto fora atribuído a uma autoridade como
Paulo de Tarso, àquela altura convertido para o cristianismo, e se nesse texto
evoca-se a autoridade de Deus na confecção das Escrituras, que pastor ousaria
ignorar as recomendações que nele havia? Entenda-se: o apelo à autoridade de Deus, da
qual Paulo era um porta-voz, garantia a credibilidade das recomendações que
constam do texto Timóteo.
Por
fim, um outro trecho, agora colhido do livro Lunáticos por Deus – lendas, mitos e fatos (2011), de Michael Largo.
A história é dramaticamente bizarra, sem deixar de revelar quanto a fé pode ser
perniciosa:
“No Concílio de Nicéia, em 325 d.C.,
instituiu-se o dogma da Santíssima Trindade: só existe um Deus, mas n’Ele há
três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ário, bispo de Alexandria,
Egito, causou grande comoção ao afirmar que essa ideia estava errada.
Argumentou que Deus existia antes de Jesus e, portanto, Jesus, o Filho, não era
igual ao Pai. Numa determinada época, Ário tinha um número considerável de
seguidores e os conservou mesmo depois de ser condenado devido à sua recusa em
retratar-se, convertendo-se assim no primeiro herege da Igreja Católica e
sentenciado à excomunhão. Além disso, a extensa coletânea de seus textos
filosóficos e teológicos foi queimada e ele assistiu às chamas transformarem o
trabalho de sua vida em cinzas. Cópias de seus escritos descobertas
posteriormente, depois de aspergidas com água benta, também acabaram devoradas
pelo fogo. Para assegurar que sua mão não mais produziria blasfêmias, induziram
Ário a voltar do exílio para Constantinopla em 336, sob a alegação de que seria
reintegrado à Igreja. Ele tomou poucas precauções contra assassinos e, chegando
ao seu destino, desfilou abertamente pela cidade inteira, acenando para as multidões
com a sensação de desagravo, convicto de que suas postulações seriam
reconsideradas. Entretanto, antes de chegar à igreja, onde imaginava que o papa
o abençoaria agarrou a boca e as nádegas com as mãos. Enquanto tentava correr
para um banheiro, seu corpo repentinamente se enrijeceu. O sangue começou a
jorrar de cada orifício e testemunhas asseveraram haver visto o baço e o fígado
escorrerem juntos com os intestinos. Interpretou-se o acontecido como um sinal
de que Deus estava descontente com suas ideias heréticas, embora pareça que
Ário tenha sido envenenado por habilidosos alquimistas decididos a matá-lo de
um modo espetacular, diante das multidões. A parede onde ele se encostou foi
marcada e transformou-se em ponto turístico por séculos como um lembrete do
destino reservado àqueles que desafiam a crença na Trindade”.
(p. 47)
Deixo
aqui uma sugestão aos não-crentes ou declaradamente ateus, como eu, que se
interessem por compreender por que é tão custoso às pessoas de fé romper
definitivamente com o sistema de crenças e ideias irracionais de que foram
herdeiras. Talvez, a razão pela qual essas pessoas não consigam se emancipar da
ideologia religiosa seja o fato de os discursos religiosos se construírem com a
retórica da dependência emocional a um Outro supremo. Não é nenhuma novidade o
fato de os discursos religiosos serem discursos autoritários. Mas, talvez, não
seja claro a muitos o modo como esses discursos constroem a relação de
dependência dos fiéis para com esse Outro cuja autoridade é forjada para não
ser questionada. E é bom ter em conta que esse Outro, ou melhor, a autoridade
desse Outro (Deus) não é senão uma forma de representação da autoridade da
própria instituição Igreja.