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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


terça-feira, 18 de janeiro de 2022

"Abre um livro, e há uma voz que fala. Um mundo mais ou menos estranho ou acolhedor emerge para enriquecer o estoque de hipóteses do leitor sobre como se deve compreender a vida". (M. Robinson)


   




O mundo do leitor

Por que todos deveriam ler?

 

Por que todos deveriam ler é o ponto arquimediano que sustenta, que confere textura e consistência à ordem de reflexões e análises que apresento neste texto. Meu objetivo precípuo é oferecer um conjunto, teoricamente estruturado, bem fundamentado, de razões por que penso que a leitura é uma prática de vida indispensável à plena realização da autonomia, da liberdade e da potência de viver (a mais importante dentre todas!). À proporção que eu for avançando na exposição e na articulação dessas razões, espero lograr convencer o leitor de que a imersão na prática da leitura leva-o a dessituar-se, a desenraizar-se, cognitiva, fisiológica e afetivamente das ocupações da vida ordinária, do solo da cotidianidade mediana, domínio no qual as atividades repetidas dos atores sociais reproduzem continuamente os aspectos estruturais do sistema social, domínio da vida cuja duração e fluxo não levam à parte nenhuma, - para nos fazer participantes de outro nível ou estratos de realidade, para nos fazer frequentar novas e complexas dimensões da realidade. Descerrando dimensões mais profundas, intricadas e complexas da realidade, talvez sequer entrevistas em nossa experiência ordinária, a leitura possibilita-nos a abertura de planos de compreensão igualmente mais complexos, com dimensões que permanecem obnubiladas na experiência cotidiana de mundo. A leitura nos leva a experienciar outros vastos campos de sentido desconhecidos, porque velados durante a maior parte do tempo vivido na faina cotidiana. Ler é perfurar a espessura da autoevidência do mundo da ocupação com as coisas, do mundo da vida (conceito que será dilucidado por mim mais adiante), do mundo utilitário das relações com  todas as coisas que tocam ao viver comum e imediato. Mas equivocar-se-á quem daí concluir que a leitura nos afasta do mundo, nos aliena dos problemas concretos e “reais” da vida. Como bem ensina Lajolo (2000, p. 7), “(...) lê-se para entender o mundo, para viver melhor”, ao que ajunta “quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê” (ibid.). Quanto mais e melhor compreendemos o mundo mais avidamente e intensamente devoramos os livros, porque a complexidade do real é inesgotável, e a compreensão que podemos ter dele, apesar de limitada pela natureza de nossas faculdades cognitivas, é sempre renovada e realimentada por essa inesgotabilidade.

Desde já, faz-se mister dizer que não ignoro que a produção de leitura é um processo abrangente de que fazem parte componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais, econômicos e políticos. Outrossim, admito que ler não se restringe a uma experiência de trato com o texto escrito. É possível ler outros objetos simbólicos (sinais de trânsito, expressões corporais e gestuais, obras de arte, eventos e situações sociais, filmes, peças de teatro, etc.). A leitura implica a compreensão de formas simbólicas, independentemente dos suportes materiais ou plataformas digitais pelos quais elas se expressam. Não obstante, meu enfoque sobre a leitura a situa no domínio da cultura letrada, à luz da qual ela é vista como condição necessária para a participação, cada vez mais ampla, dos indivíduos em suas esferas. O exercício contínuo da leitura é fundamental para que compreendamos como as produções da cultura letrada contribuem diretamente para o estabelecimento de relações de poder e de dominação dos grupos letrados, dos indivíduos possuidores do capital cultural e simbólico sobre os grupos não letrados, carecidos dessas formas de capital. Ler é um acontecimento histórico que diz respeito a outras formas de expressão da atividade humana no devir histórico. Também não ignoro que a prática de leitura pode ser dificultada ou mesmo inviabilizada por condições sociais objetivas. Sobre tais condições nos chama a atenção Martins, no excerto abaixo:

 

(...) em nossa trajetória existencial, interpõem-se inúmeras barreiras ao ato de ler. Quando, desde cedo, veem-se carentes de convívio humano ou com relações sociais restritas, quando suas condições de sobrevivência material e cultural são precárias, refreando também suas expectativas, as pessoas tendem a ter sua aptidão para ler igualmente constrangida. Não que sejam incapazes (...). A questão aí está ligada às condições de vida, a nível pessoal e social. (Martins, 2006, p. 18).

 

A defesa que faço, aqui, da importância da prática da leitura passa pela consideração das condições socioculturais e econômicas concretas que determinam as várias formas de desigualdade entre as classes sociais. Esse tema merecerá a minha acurada atenção, antes mesmo de atacar a questão central a partir da qual se costuram as reflexões deste texto. Doravante, visando a evitar muitos desvios e digressões no curso do discurso, motivadas pela necessidade de aclarar, pontualmente, um ou outro conceito teoricamente pertinente à discussão, passo a inventariá-los e esclarecê-los abaixo. Alguns destes conceitos, embora codificados por palavras de uso corrente nas práticas linguísticas cotidianas, passam ao largo do foco da consciência reflexiva dos indivíduos. Muitos destes conceitos, cujo significado descerro, não são definidos nem problematizados na fala do homem comum. Outros conceitos têm circulação em domínios teóricos especializados e conhecê-los contribuirá para que meu texto torne-se tanto mais legível quanto semanticamente cristalino e consistente para o leitor.

 

1. Conceitos básicos pressupostos na leitura deste texto

 

a) Preconceito

É uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou categoria social. Na qualidade de atitude, preconceitos combinam crenças e juízos de valor com predisposições afetivas positivas ou negativas. Sociologicamente, o preconceito é um tema importante, porque todo preconceito fundamenta práticas de discriminação, constitui o estofo do tratamento desigual de indivíduos que pertencem a um grupo ou categoria particular. Quando o tratamento desigual se expressa como abuso, exploração e injustiça sistemáticos, o tratamento desigual e o preconceito que lhe está na base tornam-se opressão social. Opressão social descreve uma relação de dominação e subordinação entre grupos ou categorias de indivíduos, na qual o grupo dominante obtém algum benefício com o abuso, a exploração e a injustiça praticados sistematicamente contra o grupo subalterno.

 

b) Estereótipo

Crença rígida, excessivamente simplificada, não raro, exagerada, aplicada a uma categoria inteira de indivíduos ou a cada indivíduo da mesma categoria. Estereótipos constituem a base do preconceito, que, por sua vez, é usado para justificar discriminação e atitudes positivas e negativas. Estereótipos podem ser tanto positivos quanto negativos. Assim, por exemplo, a crença estereotipada de que os judeus são gananciosos é negativa, e a crença de que os cristãos não o são é um estereótipo positivo.

 

c) Representações coletivas

São fenômenos mentais compartilhados socialmente pelos quais as pessoas organizam suas vidas. Representações coletivas são elementos constitutivos de qualquer cultura. Elas recobrem o conjunto de crenças, ideias, valores, símbolos e perspectivas que moldam os modos de pensamento e de sentimento que são gerais e permanentes numa sociedade ou grupo social. As representações coletivas são compartilhadas pelos membros de uma sociedade como sua propriedade coletiva. A socialização dos indivíduos se dá na comunicação das representações coletivas que são, então, compartilhadas entre eles, nas mais diversas esferas de interação social. A própria interação social depende da circulação constante de representações coletivas em uma sociedade.

 

d) Emoções

A linguagem evoca, representa, eleva ou arrefece nossas emoções. Na vida cotidiana, vinculamo-nos a tudo que nos ocupa através de nossas experiências emocionais e subjetivas com base nas quais o cotidiano se dota de uma espessura de significado. As emoções possibilitam aos indivíduos uma valiosa compreensão de suas relações com o mundo e de suas expectativas a respeito dele; ademais, elas os orientam em suas diferentes formas de agir. Segundo Solomon (2015, p. 22), “emoções são processos”. Emoções não são sentimentos. Para Solomon, sentimentos são sensações não inteligentes. Jung, por sua vez, considera sentimento uma palavra vaga para designar apreciação, julgamento de valores (agradável, desagradável, bom ou mau). Solomon dá-nos a conhecer a seguinte definição de emoção:

 

(...) é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações com outras pessoas, bem como seu bem estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes.

 

 

e) Senso comum

 

A expressão senso comum designa, segundo Jessé Souza (2019, p. 16), “o conjunto de crenças dominantes compartilhadas pela esmagadora maioria de indivíduos de uma sociedade”. Podemos também definir o senso comum como um conjunto diversamente sistemático de representações (da realidade, do homem, da natureza e do sobrenatural), de juízos morais e afetivos acerca das ações individuais e coletivas, acerca das condições em que se realizam essas ações, bem como um conjunto sistemático de crenças sobre a relação de causas e efeitos entre os eventos humanos, naturais e sobrenaturais. O senso comum abriga também esquemas interpretativos úteis que servem para orientar nossa conduta e conferir ordem e significado à vida cotidiana. Os esquemas interpretativos do senso comum são constituídos e adotados por cada indivíduo, natural e inconscientemente, no curso de sua socialização primária e secundária e formam o pressuposto basilar das suas ações sociais. O senso comum é o principal fator de orientação da maioria das ações humanas assumidas como “normais” e recorrentes na vida cotidiana. O senso comum exibe, num grau elevadíssimo, a espessura de objetividade, a aparência de irrevogabilidade e coercitividade que o sociólogo atribui à realidade social. O senso comum inclui uma concepção, implícita ou explícita, radical e elementar, do mundo, que é compartilhada mesmo por indivíduos que têm opiniões políticas e valores opostos. Para Chauí (2008), o senso comum compreende um conjunto de saberes que estruturam nossa vida cotidiana e orientam nossas ações nesse domínio. Esses saberes que compõem o senso comum possuem, segundo a autora, as seguintes características:

I) são subjetivos, porque veiculam emoções e opiniões individuais ou de grupo, são e variáveis de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições socioculturais em que vivem os indivíduos e os grupos;

 

II) em decorrência de seu caráter subjetivo, os saberes do senso comum envolvem uma avaliação qualitativa das coisas, que varia consoante os efeitos que elas produzem sobre nós, os desejos que provocam em nós, ou ainda conforme a finalidade ou uso que atribuímos a elas;

 

III) os saberes do senso comum agrupam ou distinguem as coisas, segundo se apresentem a nós como diferentes ou semelhantes;

 

IV) os saberes do senso comum trata cada fato, cada coisa como algo distinto de todos os outros fatos e coisas, por possuir qualidades que nos afetam de maneira diferente;

 

V) os saberes do senso comum operam generalizações, pois que tendem a reunir numa só categoria ou ideia coisas que são julgadas semelhantes;

 

VI) porque operam generalizações, os saberes do senso comum envolvem o estabelecimento de relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos, mesmo que essas relações não sejam razoáveis. Essas relações de causa e efeito são, muitas vezes, expressões de superstição;

 

VII) os saberes do senso comum afastam de sua esfera a surpresa e a admiração em face da regularidade, da constância e da diferença das coisas; ao contrário, dão maior visibilidade ao que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso, miraculoso;

 

VIII) os saberes do senso comum incluem uma persistente incompreensão a respeito da investigação científica, que o senso comum vê como magia, como uma atividade que se ocupa do misterioso, do incognoscível;

 

IX) O senso comum projeta nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo em face do desconhecido. Por exemplo, o homem comum da Idade Média via o demônio em toda parte; e muitas pessoas supersticiosas e religiosas, ainda hoje, acreditam em assombração;

X) em função de todas as características elencadas anteriormente, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais os indivíduos passam a interpretar toda a realidade imediata e todos os acontecimentos que experienciam.

 

O conceito de senso comum interessa-me na medida em que ele instancia um domínio de experiência comum que, não esgotando a complexidade da realidade, retém dela apenas as aparências, as superfícies e  aspectos que não são articulados em camadas mais profundas de sentido. A leitura nos desabitua a nos contentar em arranhar as superfícies da realidade.

 

f) Esquemas interpretativos

 

Por esquemas interpretativos, entendem-se os quadros, as molduras (frames) interpretativos de uma situação à qual temos de dar uma resposta imediata. Os esquemas interpretativos nos permitem atribuir, com rapidez, um sentido a um evento ou acontecimento. Eles estruturam nossa experiência de mundo no senso comum e são colhidos de um repertório de saberes e vivências arquivados em nossa memória. Os esquemas interpretativos não são o mesmo que preconceito nem estereótipo, muito embora preconceitos e estereótipos concorram para a escolha de um esquema interpretativo em vez de outro. Na vida cotidiana, os esquemas interpretativos orientam nossas ações. Assim, a ação imediata que se segue a um evento no campo da percepção do sujeito depende de um esquema interpretativo que ele adote nesse momento. Se, por exemplo, um transeunte ouve um grito de jovens numa rua pouco iluminada, ele buscará um esquema interpretativo que lhe permita formular algumas hipóteses: são jovens brincando? Serão bandidos assaltando pessoas? Será uma briga por algum motivo? O que o transeunte fará rapidamente – fugir, chamar a polícia, correr em auxílio – dependerá do esquema interpretativo ativado por ele para dar sentido a essa situação específica. Os esquemas interpretativos de que se constitui o senso comum, geralmente, são muito grosseiros, formam-se em processos educativos informais da socialização primária e abrigam apenas os elementos suficientes para conferir um sentido rudimentar à situação com a qual lida o sujeito. Mas, em outros casos, os esquemas interpretativos também variam bastante em termos de complexidade e de organização. Alguns são muito elaborados, amplamente artificiais, logicamente restritivos e servem à articulação de interpretações sobre diversos planos de um acontecimento, de sorte que são úteis para orientar também processos muito complexos de argumentação e contra-argumentação.

 

g)  Experiência

Experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Experiências têm sempre caráter pessoal. Elas envolvem sempre uma repetição de um estado de coisas em que o sujeito está envolvido e cuja uniformidade o habilita a resolver problemas. Por isso, costumamos dizer que aprendemos com a experiência. A experiência é uma das fontes de nosso conhecimento do mundo. A experiência, portanto, recobre tudo o que o homem sente, o que ele percebe, o que ele compreende em todos os momentos da vida. Nas experiências, se nos dão sensações e percepções de modo inseparáveis. O que sentimos e percebemos, ao ter experiências, são totalidades estruturadas dotadas de sentido. Há, em toda percepção, interpretação, compreensão. Toda percepção é uma experiência dotada de significação, porque o que é percebido tem sentido em nossa história de vida, é parte de nossas vivências.

 

h) Percepção

Cabe aqui acrescentar algumas palavras sobre o conceito de percepção. Em geral, a percepção envolve a capacidade de operar uma síntese das sensações. Toda percepção é uma atividade cognitiva. Sem pretender fazer longas incursões nos terrenos da discussão sobre a natureza do ato perceptivo, quero apenas advertir que não devemos tomá-lo restritivamente como sinônimo de sensação. A percepção envolve sempre uma interpretação feita pelo sujeito percepiente. Hume, por exemplo, não reduzia a percepção às sensações; ele concebia as percepções como impressões e ideias. Para ele, impressões são um gênero de percepção que afetam nossa consciência com mais força e vivacidade. Entre as impressões, ele inclui as sensações, as paixões e as emoções. As ideias são outro gênero de percepções. Elas são “pálidas imagens das impressões no pensamento e no raciocínio”. As impressões e as ideias se distinguem em termos de graus: as impressões produzem efeitos mais fortes sobre a consciência, ao passo que as ideias são menos “impregnantes” – ou, se o leitor preferir – marcantes. As ideias têm efeitos mais tênues sobre o espírito. Sem me alongar demais sobre essa matéria, o que importa é fazer entender que a percepção é interpretação dos estímulos e que ela está intimamente articulada aos processos simbólicos de produção de significação. Os estímulos, quando interpretados na percepção, são organizados numa totalidade significativa. Percebemos sempre as totalidades significativas dentro de outras totalidades significativas.

 

I) Representação

Por representação, entendo tanto a atividade por meio da qual algo é conhecido, como o conteúdo, o objeto conhecido. Representar algo é reter a imagem mental de algo. A representação é também um quadro, uma moldura mental ou cognitiva, à luz da qual algo ou um objeto se torna acessível ao entendimento, se torna conhecido. Representações são símbolos, na medida em que se põem no lugar da coisa ou do objeto a ser conhecido. Epistemologicamente, mantenho uma versão sociointeracional do representacionalismo. Destarte, assumo que o conhecimento que temos do mundo é filtrado por uma instância intermediária entre o sujeito e o objeto. Essa instância intermediária são as representações, que são produzidas nas práticas intersubjetivas de que participam os sujeitos nas inúmeras situações de comunicação. O acesso dos sujeitos ao mundo, aos objetos que afetam sua consciência, sua sensibilidade nunca é direto, mas sempre mediado pelas representações simbólicas, pelas representações construídas no e pelo discurso nas práticas socioculturais. Não limitando a questão da representação ao âmbito da teoria do conhecimento, faz-se necessário, para fins de formação de um leitor crítico, entender que o processo de representação da realidade é uma atividade desenvolvida no próprio discurso, concebido como forma de prática social. Tanto o processo de representação quanto o discurso que o realiza, embora se refiram à realidade, também a constituem. Essa concepção de representação como um processo fundado discursivamente é um contributo teórico da Análise de Discurso Crítica.

 

j) Mundo

Empreguei a palavra “mundo” várias vezes neste texto, sem me preocupar em precisar seus significados, já que assumo como parte do conhecimento linguístico pressuposto como partilhado com o leitor o saber acerca do que significa a palavra “mundo”. Essa palavra é parte de nosso léxico mental, usamo-la com muita frequência nas práticas linguísticas do dia a dia. Mas, quase nunca, nos detemos a pensar no que essa palavra significa em cada um dos usos correntes que fazemos dela. Vejamos um exemplo. Suponhamos que, no noticiário do Jornal Nacional, ouvimos o seguinte enunciado “O mundo entra em alerta com a descoberta de uma nova variante do coronavírus”. Note-se que o predicador “entrar em alerta” -  ‘pôr-se, estar em estado de muita atenção, de preocupação’ - se combina com um sujeito cujo núcleo é um substantivo [- animado]. Somente seres animados,  seres vivos reais ou imaginários, em geral, entram em estado de alerta, mas não entes não vivos (inanimados). O uso da palavra “mundo”, nesse caso, expressa hipérbole e prosopopeia. Em “o mundo entra em alerta”, sabemos que se superdimensiona o estado de alerta (não é o mundo inteiro que entra em alerta; mas apenas uma parte de pessoas, em número significativamente muito reduzido, digamos, os cientistas, as autoridades públicas e algumas pessoas da população mundial). Por outro lado, atribuímos uma qualidade ou comportamento próprio de seres vivos (entrar em estado de alerta) a um ente não vivo (o mundo). É claro que o mundo contém um vasto ecossistema vivo, mas nós já não o concebemos, tal como no passado, como um organismo vivo. Deixando de lado os pormenores dessa discussão, o fato é que, quando dizemos “o mundo entra em alerta”, queremos apenas dizer que, na verdade, é a comunidade humana, são os grupos humanos que se põem em estado de atenção (mas não bandos de chimpanzés, por exemplo, embora eles também façam parte do mundo). Também usamos a palavra “mundo” em expressões do tipo “mundo do narcotráfico”, “mundo do crime”, “o meu mundo”, “o mundo literário, científico”. Em todas essas ocorrências, a palavra “mundo” significa ‘a totalidade de um campo ou mais de um campo de atividades, de relações ou, como no último caso,  de investigação´. Em “o mundo científico”, “mundo” designa ‘o campo de atividades desenvolvidas por cientistas ou o campo de investigação científica’. Quando uma pessoa apaixonada diz “quando o conheci ou a conheci, o meu mundo mudou completamente”, essa pessoa quer dizer que a sua relação com o campo de coisas e pessoas que participam, direta ou indiretamente, da sua vida diária mudou significativamente.

Para os meus propósitos neste texto, interessa-me dar a conhecer os dois significados com que o conceito de mundo é usado em filosofia e nas ciências, em geral: 1) a totalidade das coisas existentes; 2) a totalidade de um campo ou mais campos de investigação, de atividades ou relações. No sentido 1), o mundo é o próprio cosmo, identificação feita, pela primeira vez, por Pitágoras, no século VI a.C. O mundo como cosmo é uma totalidade ordenada. Essa definição do conceito de mundo prevaleceu na filosofia grega desde então. Platão a aceitou, acrescentando a distinção entre o “todo”, cujas partes podem dispor-se de várias maneiras diferentes, e a “totalidade”, cujas partes preenchem posições fixas. Aristóteles, concordando com Platão, disse que o mundo é a estrutura, a constituição da totalidade (a sua ordem) que permanece a mesma, a menos que suas partes se organizem diferentemente. Para Platão e para Aristóteles, o mundo é a ordem imutável do universo. Os estoicos, por sua vez, distinguiam entre o “universo”, concebido como totalidade de todas as coisas existentes, incluindo o vácuo, e o “mundo”, que recobria o sistema do céu e da terra, bem como dos seres que os habitam. Já na modernidade, com Heidegger, “mundo” comporta um significado mais familiar e próximo ao sentido do uso que o homem comum faz desse vocábulo. O mundo é o campo constituído pelas relações do homem (Dasein) com as coisas e com os outros homens e seres. Discordando de Heidegger, mantenho que não há apenas o mundo humano, o mundo histórico edificado pela atividade humana. O mundo não se esgota neste vasto complexo geopolítico e cultural (histórico) em cujas esferas vivem os animais humanos em comunidades culturais complexas. Há outros muitos mundos diferentes do nosso que constituem a biocenose (a totalidade de interações entre os seres vivos de todas as espécies que povoam o biótopo, no vasto ecossistema vivo de que somos uma parte). Há mundos microscópicos que não vemos a olho nu (o mundo dos vírus, das bactérias, por exemplo). Há outros bilhões de mundos neste imenso universo cujos espaços infinitos ignoramos (bilhões de galáxias).

Em nossas práticas linguísticas cotidianas, usamos a palavra “mundo” para nos referir à totalidade de tudo que (nos) acontece, que fazemos no espaço-tempo restrito do nosso planeta cosmologicamente insignificante.

 

l) mundo da vida

 Introduzido por Hurssel na filosofia, o conceito de mundo da vida recobre o mundo imediato em que vivemos intuitivamente, com suas ocorrências familiares, com as coisas que aprendemos na experiência comum no cotidiano. O mundo da vida é o mundo habitado por todos nós na lida com as coisas, nas ocupações da vida cotidiana. O mundo da vida recobre o mundo do trabalho, o mundo das tarefas domésticas, o mundo dos encontros casuais, o mundo dos transeuntes, etc. O mundo da vida se opõe ao mundo da ciência, não raro estranho e enigmático para o homem imerso no mundo da vida. Coube a Harbemas ressignificar o conceito de mundo da vida de modo a fazê-lo descrever o horizonte contextual difuso ao longo do qual se desenvolvem, se espraiam e se articulam as práticas comunicativas intersubjetivas destinadas ao entendimento e à compreensão, práticas em que se formam as convicções, as crenças gerais e fundamentais aceitas e compartilhadas coletivamente.

 

m) Crença

Usamos, com muita frequência, a palavra “crença” nas diferentes situações comunicativas de que participamos na vida diária. Mas sabemos o que significa dizer que alguém tem uma crença em algo, que alguém crer em algo? O campo de investigação filosófica que se preocupa em determinar o que queremos dizer quando dizemos que alguém possui uma crença, que alguém diz crer em algo é a epistemologia. A epistemologia se ocupa, na verdade, do conhecimento, ela busca esclarecer as condições e os limites do conhecimento verdadeiro. Mas um dos componentes da definição clássica do conhecimento é a crença. Conhecimento é definido como crença verdadeira justificada. Não basta simplesmente que uma pessoa creia que x é o caso para que ela possa dizer que tem conhecimento de x. Afinal, posso crer em coisas que não são verdades. Em outras palavras, posso crer em proposições que são falsas. Em epistemologia, crença é a atitude de quem manifesta adesão a uma proposição (um estado-de-coisas) que toma por verdadeira. Os linguistas chamam verbos factivos uma classe de predicados que tem a propriedade de implicar a pressuposição feita pelo falante de que o conteúdo da oração completiva é factual, ou seja, o falante, ao usar tais verbos, assume como verdadeiro o estado-de-coisas designado na oração completiva. São exemplos de verbo factivos epistêmicos verbos como saber, crer, acreditar, perceber, notar, ignorar, entre outros. O estado de coisas descrito na oração completiva conserva sua factualidade, mesmo que o verbo da oração principal seja negado. Ao produzir o enunciado “eu creio que Júlio ganhou na loteria”, o locutor assume o pressuposto de que a oração “Júlio ganhou na loteria” é factual. Mesmo que alteremos a polaridade da frase, o pressuposto da factualidade atribuída ao conteúdo da oração completiva se mantém (cf. Eu não creio que [Júlio ganhou na loteria]). Entendamos bem que a factualidade da proposição é assumida como pressuposta, ou seja, quem crê que x pressupõe que x é um fato. Mas podemos ter crenças falas. A crença não implica a existência objetiva de seu objeto. Por exemplo, se eu digo “creio que o atual rei da França é calvo”, eu assumo como factual o conteúdo “o atual rei da França é calvo”, embora a proposição “o atual rei da França é calvo” seja, evidentemente, falsa (a França não é mais uma monarquia). Toda crença envolve, portanto, um compromisso, certo comprometimento, uma adesão relativamente frouxa, mais ou menos firme ao conteúdo da crença por parte de quem a sustenta. Crenças moldam nosso comportamento e motivam nossas ações. Toda crença é uma atitude pela qual afirmamos, com certo grau de probabilidade, que é verdadeiro o estado-de-coisas descrito num enunciado. Crenças são intrinsecamente representativas, porque encerra um modelo de mundo, uma imagem mental daquilo que é passível de conhecimento. Crenças são sempre representativas, porque funcionam como mapas mentais pelos quais nos orientamos no mundo e o experienciamos. Nem todas as crenças são imediatamente acessíveis. Uma crença pode ser falsa e mesmo assim justificada. Por exemplo, quem acredita que Bolsonaro é honesto porque não há crime comprovadamente imputado a ele pode ter uma crença falsa, apesar de justificada. Quem acredita que as vacinas que nos imunizam contra a covid-19 causam câncer porque foi isso que ouviu de um médico negacionista tem uma crença falsa, embora justificada. Crenças falsas são, portanto, aquelas que representam o mundo incorretamente.

 

n) Ideologia

No domínio do discurso público e privado, sobretudo no domínio político, faz-se largo uso do termo ideologia, sem que haja o devido cuidado em precisar, no espectro polissêmico de seus usos, em que sentido se está empregando o termo naquela situação de fala em que o termo ocorre. Meu escrúpulo teórico e analítico impõe-me sempre o dever de esclarecer o sentido em que emprego o termo ideologia. Esposo o conceito de ideologia tal como definido por Gallo:

 

[ideologia é] uma força material que se entranha nas estruturas subjetivas pré-conscientes de cada indivíduo, fazendo com que ele reproduza em todos os seus atos – do pensar ao escovar os dentes, do trabalhar profissionalmente ao relacionamento amoroso – a estrutura da máquina social de produção. Em palavras mais simples, para usar uma metáfora biológica, cada um dos indivíduos se torna uma das células do aparelho reprodutor desse sistema social. (Gallo, 2009, p. 121).

 

O aspecto que cuido importante na definição de ideologia proposta por Gallo é tanto a sua natureza material quanto seu entranhamento nas estruturas pré-conscientes da subjetividade. Partindo do pressuposto de que a relação entre o homem e o mundo é sempre mediada pela interpretação, ou seja, pela interpretação do mundo feita por ele, de modo que o que se dá a conhecer ao homem é sempre uma representação, que pode ser mais ou menos próxima da realidade, e nunca a realidade em si mesma, importa-me sublinhar dois aspectos da concepção de ideologia adotada por Gallo: a materialidade da ideologia e sua relação com a subjetividade.

Segundo Gallo, a ideologia “(...) só adquire sentido quando cristalizada nos atos do cotidiano”. (ibid., p. 78). Gallo, contudo, nega que a ideologia se manifeste em discurso, no que estou em completo desacordo com ele. Gallo não reconhece a materialidade linguístico-histórica do discurso. O discurso é uma realidade sócio-histórica. Faltou a Gallo a percepção disso. A materialidade do discurso recobre a relação com a exterioridade (histórica). Materialidade, em Análise do Discurso, é a forma encarnada, a forma material onde se prendem indissociavelmente forma e conteúdo: forma linguístico-histórica, significativa. A materialidade do discurso é linguístico-histórica. Todos os sistemas semióticos, consoante ensina Bakhtin, contribuem para expressar a ideologia e são moldados por ela. Bakhtin localiza a ideologia no signo, visto que a própria consciência só pode existir por meio da materialização em signos nas interações sociais. Anuo à tese de Gallo, quando observa que “a ideologia se insere na própria estrutura da consciência, em sua busca de fundamento” (ibid., p. 79), mas, se, como propõe o autor, a ideologia se entranha na estrutura da consciência dos indivíduos, cabe perguntar como ela consegue se inserir na consciência individual. A resposta encontramos em Baktin: por meio do signo. Bakhtin entende a consciência como uma realidade material, e a materialidade da consciência se constitui, se forma na interação social por meio dos signos. A consciência incorpora estruturalmente a ideologia, porque a consciência é povoada de signos entretecidos por fios ideológicos. Para Bakhtin, o signo (ou a linguagem) é o locus, por excelência, da ideologia.

Para Gallo, a ideologia se manifesta socialmente, isto é, “no fato de muitas pessoas agirem e pensarem de forma análoga”. (ibid.). Quando considerada a relação da ideologia com a subjetividade, assumo, com Gallo, que o sujeito é socialmente fabricado, produzido pela ideologia. A subjetividade, isto é, a maneira particular pela qual cada indivíduo experiencia o mundo, entende a sociedade e se insere em seus processos, é um efeito da produção ideológica. Assim, é preciso pensar a vida individual, tudo aquilo que o indivíduo experiencia em termos do que sente, pensa, age, acredita, etc. como efeitos da “máquina de produção”:

 

 

(...) a máquina de produção estabelece uma rede de relações que atravessa todo o corpo social, chegando a cada indivíduo, entranhando-se à sua estrutura, levando-o a pensar e a agir no restrito panorama que a máquina constrói, no restrito paraíso de produção. Uma produção é algo muito mais abrangente que a maneira pela qual uma sociedade produz; mais que isso é a forma pela qual ela se produz e a maneira pela qual ela se reproduz. (ibid., 97-98, grifo meu).

 

 

Um modo de produção não se limita a ser o conjunto das relações necessárias à produção e reprodução material da existência dos homens; é também um modo de produção de ideologia que produz consciências, subjetividades que vão, por sua vez, reproduzir, em cada ato de linguagem, em cada ato cotidiano, por mínimo que seja, esse mesmo modo de produção, “até que a mera possibilidade de se pensar e agir de forma diferente não passe de uma possibilidade, constantemente exorcizada pela sociedade e pelo próprio indivíduo”. (ibid., p. 98). No mundo do capitalismo global, a ideologia capitalista produz uma subjetividade única que, por sua vez, produz e reproduz o sistema capitalista, ao mesmo tempo a ideologia capitalista produz e reproduz a si mesma ajustando-se às diferentes classes sociais envolvidas naquele modo de produção.

 À luz da Análise de Discurso Crítica (ADC), a ideologia estabelece e sustenta relações de dominação.

 

o) Dominação

Outro conceito que, não frequentando as esferas do discurso comum nas quais se movimenta o homem comum não especialista, precisa ser previamente conhecido pelo leitor é o de dominação. Em sentido lato, entende-se por dominação, em sociologia, a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo entre pessoas. Dominação pode também significar a existência, no interior de um grupo social ou de uma instituição, de alguns elementos mais fortes que outros, que lhes impõem mais ou menos um ponto de vista. A dominação é uma relação social de superioridade ou de subordinação de um sujeito, de uma classe social ou instituição relativamente a outros sujeitos, classes sociais e instituições. Na dominação, o grupo ou instituição, ou sujeito dominantes controla a distribuição dos recursos materiais de natureza diversa – isto é, tanto bens de consumo e dinheiro quanto ideias, ideologias, discursos – e o ordenamento dos respectivos direitos e processos políticos relacionados a essa distribuição, valendo-se, para tanto, segundo as circunstâncias, de diversas formas de poder, de autoridade, de influência, entre outros recursos destinados a condicionar o comportamento, embotar a consciência reflexiva, bloquear a percepção dos dominados. A dominação, através da socialização e do controle social, impede que os sujeitos dominados e os grupos subjugados compreendam como se gera a injustiça da ordem social vigente e que, portanto, venham a agir de modo crítico e autônomo para modificá-la. A dominação visa a produzir amplamente a legitimação social da ordem vigente. A dominação é tanto econômica quanto social, política e ideológica. Na condição de classes dominantes, as classes abastadas assumem e utilizam, para seus próprios fins, o excedente da riqueza social produzido pelas classes trabalhadoras, e garantem o direito político e jurídico de explorar o trabalho destas classes. A possibilidade de exploração do trabalho assalariado fundamenta-se na propriedade formal ou no controle efetivo dos meios de produção a partir da terra. As classes de proprietários dispõem dos meios de produção, o que significa dizer que dispõem dos instrumentos e insumos necessários à produção, bem como da força de trabalho dos trabalhadores (ela mesma um instrumento de produção). A possibilidade da exploração nas relações de dominação também se baseia na coerção física e ideológica exercida individual ou coletivamente sobre os membros das classes inferiores. São os sujeitos, inseridos em práticas discursivas e sociais, que contribuem para a manutenção e para a mudança das estruturais sociais em que agem, conquanto essas mesmas estruturas também determinem o que, quando e como algo pode ser dito. Onde há dominação, entretanto, pode haver também resistência. A prática de leitura fornece uma contribuição de inestimável importância para a formação de sujeitos aptos a resistir às formas de dominação, conferindo-lhes os conhecimentos e capacidades necessárias para que se tornem agentes de práticas discursivas que lhes questionam a legitimidade.

Finalmente, à luz desse conceito de dominação, lavrado na teoria marxista, é preciso reconhecer que o Estado é também um instrumento de dominação. Segundo Engels, a forma do Estado é a dominação, e seu conteúdo é a exploração.

 

p) Classes sociais

Por classe social, entende-se o conjunto amplo de indivíduos que se situam em uma posição semelhante na estrutura das relações econômicas, políticas e culturais, historicamente determinadas, de uma dada sociedade. Os indivíduos que compõem uma classe social compartilham entre si certas características consideradas socialmente relevantes, tais como riqueza ou renda, prestígio, estilo de vida, capital cultural e simbólico, tipo de moradia, grau de escolarização, entre outros. Todas as classes sociais mantêm relações de interdependência, predominantemente antagônicas. Uma classe social é, sociologicamente, definida a partir de seu fundamento objetivo, que é independente da consciência dos indivíduos e serve para distribuí-los em diversos conjuntos que recobrem modalidades semelhantes de uma variável ou de uma combinação de variáveis, tais como posição social nas relações de produção, a função exercida na organização social, a profissão, o pertencimento a um grupo étnico ou religioso, etc.

Para que possamos determinar o lugar de uma dada classe social na estrutura de classe, é necessário medir algumas dimensões, dentre as quais as mais frequentemente consideradas são: riqueza, poder e prestígio. Mas essas dimensões não esgotam o número de fatores definidores de uma classe social, conforme veremos. É preciso considerar a transferência dos valores imateriais de pais para filhos na socialização familiar em cada classe. Quando consideramos as classes sociais, não podemos ignorar os efeitos internos das classes nos indivíduos e os efeitos externos sobre a sociedade como um todo. Destarte, a pertença a uma classe social condiciona, de modo objetivo, isto é, independentemente da consciência ou da vontade do sujeito, alguns aspectos fundamentais de sua vida, tais como a profissão, na qual se expressa a divisão do trabalho a que ele é submetido, o nível de renda, as possibilidades educacionais, as expectativas ou esperanças da vida, o estilo de vida, o prestígio social de que goza e, sobretudo, a possibilidade de intervir nas decisões políticas, comunitárias e nacionais. Por isso, Weber definiu a classe social como “uma comunidade de destino” ou como “uma possibilidade de vida”. A classe social só se torna um fator determinante do comportamento do sujeito que a ela pertence se ele tiver condições de desenvolver uma clara consciência de classe. Salta evidente o papel desempenhado pelos processos formativo-educacionais, sobretudo os da escola que se pretende verdadeiramente democrática e que resiste aos poderes políticos e econômicos que a organizam de modo a que sirva de instrumento para a reprodução e legitimação dos valores, das ideologias e dos padrões de comportamento prestigiosos das elites.

Além de fornecer ao leitor os insumos teóricos necessários à realização de uma exitosa tarefa de compreensão do presente texto, todos os conceitos elencados e esclarecidos anteriormente patenteiam, de forma indubitável, que a linguagem é um sistema de conhecimento do mundo, que as palavras funcionam como escaninhos cognitivos que codificam e armazenam o conhecimento socialmente produzido sobre o mundo. Por isso, quem amplia o seu vocabulário amplia seus horizontes de conhecimento de mundo; quem lê mais abre mais “janelas” para perceber e compreender melhor e em mais profundidade o mundo.

 

 

2. As condições invisíveis da desigualdade de classes

 

Durante o período longo que precedeu à escritura deste texto e em que garimpei livros, fiz fichamentos, anotações, apontamentos e fui articulando, numa estrutura coerente, trajetos teóricos, os vários temas, cujo tratamento me pareceu relevante, fui me confrontando com a complexidade do real. No que tange à complexidade do real, Morin (2015) nos diz que ela envolve imperfeição e incerteza. A complexidade exige o reconhecimento do irredutível, a saber, do que não pode ser reduzido ao simples, do que não se presta a simplificações. É oportuno atender nas seguintes considerações feitas pelo filósofo acerca do conceito de complexidade:

 

(...) a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade e da incerteza... Por isso, o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus. (...) (Morin, 2015, p. 13-14).

 

Todo este texto, que é uma forma de ação social que dá testemunho da complexidade do real, é  também a realização de meu esforço por levar o leitor a aperceber-se de que quanto mais lê mais ele se expõe à complexidade do real, mais ampliada se torna a sua consciência desse “tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico”. E quanto mais experiencia, não apenas intelectualmente, mas também afetivamente, a complexidade do real mais desenvolvida se torna a sua capacidade de pensamento complexo, sem a qual ele não pode compreender nada, ou quase nada, da complexidade das relações, das retroações que formam o tecido do mundo que a leitura lhe abre. O desenvolvimento do pensamento complexo não se dá sem dificuldade, conforme nos lembra Morin:

 

A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o jogo infinito das inter-retroações), a solidariedade dos fenômenos entre eles, a bruma, a incerteza, a contradição. (ibid., p. 14).

 

Quando cuido que o não leitor vive uma vida “empobrecida”, quero dizer, com esse juízo de valor, que o leitor vive uma vida pouco intelectualmente fecunda e presa às grades perceptivo-representativas do senso comum, através das quais a realidade que ele experiencia se lhe apresenta como uma sequência de imagens análogas às de um filme que passa numa tela de cinema. Tanto quanto ignora o que aconteceu nos bastidores da gravação do filme, também ignora as forças, os processos, as estruturas responsáveis por produzir os efeitos imagéticos da realidade que só pode experienciar em fragmentos, em pedaços nos restritos limites das grades perceptivo-representativas do senso comum. Como só consiga ver pedaços, fragmentos de realidade no fluxo de imagens, através das grades do senso comum, o não leitor é muito pouco capaz de estabelecer as articulações necessárias para construir uma totalidade significativa minimamente compreensível. Mesmo tendo muitas reservas para com o pensamento de Platão, sua teoria do conhecimento tem intuições que ainda hoje me parecem muito certas e valiosas. Para conhecer verdadeiramente, ensinava Platão, precisamos ultrapassar, transcender o horizonte da dóxa. Aqui Platão me parece irrefutável. A opinião, embora necessária à experiência prática da vida cotidiana, compele a adesão sem verificação; é veiculada sem que precise ser demonstrada ou provada. No senso comum, muitas vezes, aderimos passivamente às opiniões correntes, que se formam pelas impressões sensíveis, por nossos hábitos e pelos costumes nos quais fomos educados. Para conhecer, no entanto, precisamos ultrapassar o estrato das aparências, dos simulacros, das imagens, que distorcem, disfarçam, ocultam as estruturas profundas, as teias simbólico-imaginárias do real, as quais sustentam o aparecer de tudo quanto é cognoscível. O inteligível não se deixa apreender imediatamente; para desvelá-lo, precisamos de investigação, precisamos nos demorar em ruminações espirituais, precisamos nos deter a excogitar. Não estou sugerindo, como fizeram Platão e Aristóteles, cada qual à sua maneira, que o conhecimento verdadeiro envolva apreensão de essências; estas ou nos são incognoscíveis ou  são brumas do imaginário; todavia, o conhecimento supõe um salto, um ir além do aparecer comum para imersões no complexo, para demorar-se em exames profundos da trama contraditória, entretecida de ambivalências e significados difusos que escapam ao tatear costumeiro do senso comum e de suas opiniões flutuantes. A prática da leitura nos acostuma à compreensão de que a realidade nunca se deixa mostrar totalmente e seus efeitos fenomênicos nos levam, com muita frequência, ao autoengano e à adesão a supostas certezas que assumimos como inabaláveis.

O que se seguirá, doravante, é mais uma etapa do desdobramento da questão central por que todos deveriam ler. O simples ato de formulá-la impele-me à tarefa necessária de enfrentar a questão das desigualdades sociais como obstáculos ao desenvolvimento de práticas de leituras por sujeitos pertencentes às classes sociais menos favorecidas. E, ao me debruçar sobre esse problema, sem pretender aqui apontar soluções para ele, mas tão-só compreender seus aspectos que não são normalmente visíveis, procurarei sensibilizar o leitor para o fato de que toda tentativa de compreender a realidade é desencadeada por uma ou mais questões que elaboramos; essas questões iniciais, que são tomadas como pontos de partida da investigação, suscitam, ao longo do percurso investigativo, outras questões encadeadas com as anteriores. É assim que a questão “por que todos deveriam ler” encaminha as questões “o que é ler”, “por que alguns não se habituaram a ler”, “quais as condições necessárias à formação de leitores competentes”, etc. Todas essas questões que se vão impondo à consciência reflexiva do sujeito habituado à leitura e à escrita patenteiam a complexidade da realidade em referência à qual elas foram formuladas. Vejamos, então, quais são as condições objetivas das desigualdades entre as classes sociais, que constituem fatores que dificultam ou inviabilizam o desenvolvimento do hábito de leitura entre os membros das classes menos favorecidas.

Em seu livro A ralé brasileira (2020), Jessé Souza, rejeitando a visão reducionista e enviesada do economicismo em suas versões liberal e marxista, que insiste em explicar a desigualdade social entre as classes em termos meramente econômicos, chama-nos a atenção para a importância da transferência dos valores imateriais na reprodução das classes sociais e de seus privilégios ao longo do tempo.  Para Souza, tanto o economicismo liberal quanto o marxismo vulgar, incorrem no mesmo erro:

 

(...) Reside em não perceber que mesmo nas classes altas, que monopolizam o poder econômico, os filhos só terão a mesma vida privilegiada dos pais se herdarem também o “estilo de vida”, a “naturalidade” para se comportar em reuniões sociais que é aprendida desde tenra idade na própria casa, com amigos e visitas dos pais, em aprender o que é “de bom tom”, em aprender a não ser “over” na demonstração de riqueza como os “novos ricos” e “emergentes”, etc. (Souza, ibid., p. 25).

 

 

 

Vê-se, pois, que o economicismo, que é a visão dominante adotada por todas as pessoas comuns, não especialistas, torna invisíveis as pré-condições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem os fatores decisivos para explicar as desigualdades econômicas visíveis entre as classes sociais. Ao se referir ao modo como se reproduzem os valores imateriais na classe média, Souza observa que eles são reproduzidos “pela transmissão afetiva, invisível, imperceptível, porque cotidiana e dentro do universo privado da casa”. (ibid.). Assim, são as  pré-condições, reproduzidas no meio familiar da classe média, que “irão permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural”. (ibid.).

 

O filho ou a filha da classe média se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a mãe lendo romance, ao tio falando inglês fluente, ao irmão mais velho que ensina os segredos do computador brincando com jogos. (ibid.).

 

 

Esse processo de identificação afetiva, que consiste em imitar os padrões de comportamento que amamos e de quem amamos, se dá no nível pré-reflexivo, sem a mediação da consciência do sujeito. Esse processo é tão natural quanto respirar e andar; e é por isso que ele é tão invisível quanto extremamente eficaz como forma de legitimação do privilégio. O caráter invisível de tal processo de identificação emocional e afetiva não deixa de implicar uma extraordinária vantagem na competição social, seja na escola, seja no mercado de trabalho em relação às classes desfavorecidas. É por esquecer as diferenças nos modos de socialização familiar entre as classes sociais que ecoa persistentemente em nossas sociedades capitalistas o discurso meritocrático que inculca a crença na importância do “mérito” individual na conquista de uma vida social e econômica bem-sucedida. Atente-se para o que escreve Souza nesse tocante:

 

Como todas as pré-condições sociais, emocionais, morais e econômicas que permitem criar o indivíduo produtivo e competitivo em todas as esferas da vida simplesmente não são percebidas, o “fracasso” dos indivíduos das classes não privilegiadas pode ser percebido como “culpa” individual. (ibid., p. 26).

 

A “boa consciência do privilégio”, quer econômico das classes abastadas, quer cultural das classes médias, deita raízes na invisibilidade das pré-condições familiares da reprodução do privilégio de classe e no abandono social e político secular de classes sociais inteiras, cotidianamente reiterados por toda a sociedade. Já em seu Como o racismo criou o Brasil (2021), Souza nos mostra que, abaixo do 0,1% que recobre a camada social dos ricos e super-ricos, todas as classes sociais lutam por um tipo de capital que não é visível como o são o dinheiro e a propriedade: o capital cultural, que consiste na “incorporação do conhecimento útil e legítimo da sociedade”. (ibid., p. 18). Urge, então, entender que é a família de classe média, que se define pela reprodução do privilégio da educação, “que vai criar e implementar de modo invisível, e por isso mesmo extremamente eficiente, a farsa da meritocracia pela incorporação privilegiada e tornada invisível de capital cultural”. (ibid.).  O sucesso escolar, que representa o meio de todo sucesso social, que se traduz em termos de renda e poder aquisitivo diferenciados anos mais tarde, tem como fundamento as pré-condições emocionais e afetivas que são construídas desde o berço no seio familiar de cada classe social. Em vista disso, qualquer projeto sociopolítico-pedagógico de incentivo à leitura, orientado para a formação de leitores, deve informar-se pela consciência social de que “disposições para o comportamento prático como disciplina, autocontrole, visão prospectiva e capacidade de concentração e de pensamento abstrato” (ibid.) são privilégios de classe, mormente em sociedades como a brasileira. Todas essas competências não são nem naturais nem acessíveis a todos. Convém atentar para o excerto colhido de Souza, abaixo:

 

(...) toda família de classe média transmite uma série de aptidões às novas gerações. O hábito da leitura é criado a partir do exemplo dos pais, que faz a criança, que ama os pais, amar a leitura mais tarde. (ibid., p. 19).

 

 

 

Quando, por outro lado, volvemos olhares sobre a vida cotidiana dos excluídos e humilhados da sociedade brasileira, encontramos uma vasta e heterogênea classe social que reproduz somente valores e representações coletivas “negativos” na socialização familiar. O próximo trecho de Souza impõe-se à nossa cuidadosa atenção.

 

 

Mesmo nas famílias mais estruturadas, com pais amorosos, o filho brinca com o carrinho de mão de servente de pedreiro do pai e, como também ama o pai, aprende a ser trabalhador manual desqualificado brincando. Quando a mãe lhe diz para ir à escola dos negros e pobres, avisando que esse é o único caminho para sair da pobreza, como ele pode acreditar, se a escola da mãe apenas a tornou uma analfabeta funcional – como tantos outros dessa classe social brasileira? (ibid., p. 19-20).

 

 

 

O autor ensina que a socialização familiar se realiza inteiramente por exemplos práticos de vida e não por discursos, de sorte que “são esses exemplos práticos que os filhos vão imitar e mais tarde reproduzir como herança de classe específica”. (ibid., p. 20). Não podemos, portanto, renunciar à conclusão forçosa a que nos levam as reflexões precedentes: as classe sociais são construções socioculturais, cuja base é constituída pela influência emocional e afetiva da socialização familiar.

 

 

2.1. O controle exercido pelas ideias e discursos dominantes

 

A dominação social exercida pelas elites não é apenas econômica e política; é também, sobretudo, ideológica. A ideologia, como já mencionei, é de natureza material, e sua materialidade é o signo. Consoante nos ensina Bakhtin, “a realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais”. (2006, p. 36). Os signos compõem nossos textos, os quais, por sua vez, são expressões materiais das práticas discursivas. As ideologias que se inscrevem e se estruturam em práticas discursivas se tornam assaz eficazes quando se tornam naturalizadas e alcançam o status de “senso comum”. Segue-se daí que a dominação ideológica se efetiva através dos discursos. O discurso, para Fairclough (2001), é um modo de ação, uma forma em que os indivíduos podem agir sobre o mundo e, mormente, sobre os outros. O discurso também é um modo de representação (de produção de significados). Há uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social. O discurso é moldado e restringido pela estrutura social: quer pela classe e por outras relações sociais, quer pelas relações específicas que ocorrem em instituições particulares, quer ainda pelos sistemas de classificação, pelas várias normas, tanto as de natureza discursiva com as de natureza não discursiva. Para Fairclough (ibid., p. 91), “o discurso é socialmente constitutivo”. Isso significa dizer que o discurso contribui para constituir todas as dimensões da estrutura social, a qual, direta ou indiretamente, o  molda e o restringe. Em outras palavras, o discurso é, ao mesmo tempo, moldado pela estrutura social e constitutivo dessa estrutura. Discurso e estrutura social se moldam reciprocamente. O discurso é uma prática de significação do mundo e, como tal, constitui e constrói “o mundo em significado” (p. 91). O discurso, como prática ideológica, constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo a partir de posições diversas nas relações de poder. Não se pode, portanto, perder de vista o fato de que falar em “controle exercido pelas ideias dominantes” é o mesmo que falar de controle exercido pelos discursos dominantes, já que as ideias se materializam em signos, se estruturam e se expressam em práticas discursivas.

As ideias e os discursos dominantes são produzidos pelas elites dominantes. Para que a dominação se produza e se reproduza, indivíduos e grupos devem se apropriar da produção de ideias para que possam estender a toda a sociedade uma interpretação e justificação da realidade que estejam de acordo com os interesses deles. Lembra Souza, em seu livro A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro (2019, p. 26), que “no mundo moderno, a dominação de fato tem de ser legitimada cientificamente.” A instância que legitima e valora em termos de aceitabilidade, de correção uma ideia ou um discurso não é mais a religião, mas a ciência. Segundo o autor, “é a ciência hoje, mais que a religião, que decide o que é verdadeiro ou falso no mundo”. (ibid.). Segue-se daí que é fundamental compreender como as ideias recebidas e os discursos que as veiculam são criados e como eles influenciam o modo como cada sociedade vai se organizar, se estruturar. Antes de descer a pormenores sobre como se dá a institucionalização das ideias, isto é, como elas são fabricadas, organizadas e distribuídas pelas instituições que exercem o controle social, devemos reter a seguinte lição de Souza:

 

Em vez de um código genético que define por antecipação nosso comportamento, só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. (ibid.).

 

 

Diferentemente de abelhas e formigas, animais que também vivem em comunidades, nós somos uma espécie de animais que, além de viver em comunidade, interpreta a própria ação, de modo que “toda a nossa atuação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias”. (ibid.). São as ideias e, sobretudo, os discursos que nos permitem interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela. Vejamos, então, de modo breve e um pouco esquemático, como se realiza a institucionalização das ideias dominantes (sem perder de vista o fato de que as ideias dominantes se materializam nos discursos dominantes, e são estes que realizam efetivamente uma dominação consistente). As ideias não são entes que habitam um mundo etéreo e transcendente (como pensava Platão), absolutamente apartado das vivências comuns e concretas do dia a dia. As ideias têm existência material, já que se encarnam em práticas discursivas, em práticas institucionais por meio das formas simbólicas que povoam e organizam as esferas de interação social. As ideias se textualizam, estão encarnadas em livros, nos códigos da Lei, nos documentos oficiais da administração do Estado, nos editoriais da imprensa, etc. Elas são veiculadas e reproduzidas diariamente pelos textos produzidos e reproduzidos nas plataformas digitais e nos veículos de comunicação. São as ideias (e os discursos) dominantes, produzidos e reproduzidos pelas classes dominantes, política e economicamente, pelas instituições dominantes que passam a determinar a vida das pessoas comuns e seu comportamento cotidiano, sem que elas tenham consciência reflexiva disso. Em nossas sociedades ocidentais, quer sejamos especialistas, quer não, habituamo-nos a pensar o mundo e a condição humana relativamente a todos os demais seres existentes com base no esquema metafísico-dualista formado pela separação entre alma e corpo, ou espírito e corpo. As raízes dessa separação entre alma e corpo,  ou entre espírito e corpo, se encontram na metafísica de Platão. Ela constitui o pressuposto metafísico de sua teoria ética. (o leitor interessado em compreender, com mais detalhes, a teoria da alma, em Platão, poderá encontrar neste blog um texto inteiramente dedicado ao tema). Dou a saber, muito resumidamente, em que consiste esse pressuposto. Para Platão, a vida virtuosa não se realiza, se a parte racional da alma não exercer pleno domínio sobre as partes apetitiva e colérica. A alma virtuosa é aquela que não se deixa sucumbir aos apelos do apetite e da cólera, o que significa dizer que não cede aos apelos irracionais das paixões cuja sede é o corpo. O peso do corpo e das paixões sobre a alma leva Platão a conceber o corpo como uma espécie de prisão da alma. Mas a essência da alma – a sua imortalidade – não é destruída, nem prejudicialmente afetada pelas influências danosas do corpo. A vida virtuosa exige o domínio do espírito (a parte racional, reflexiva do composto alma e corpo que é o homem) sobre as paixões desmedidas e indomáveis do corpo. Não estando submetida ao domínio da alma racional ou do espírito, as paixões incontroláveis do corpo levariam o indivíduo a se tornar escravo do desejo (sempre insaciável) ou dominado pela loucura (embora Sócrates não visse todo delírio como um mal, mas isso não nos interessa aqui). Esse esquema metafísico-dualista assumirá a forma de uma hierarquia moral invisível por força do trabalho dos primeiros Padres da Igreja Cristã primitiva. Graças ao trabalho diário, secular e silencioso de milhares de sacerdotes e monges cristãos, tanto na Europa quanto nos rincões mais distantes do globo, aquele esquema metafísico-dualista de Platão, então ressignificado na dogmática cristã como caminho para o bem e para a salvação do cristão, se transformará numa hierarquia moral que passará a ser inculcada nos camponeses e nos citadinos, “e isso em uma época histórica na qual as pessoas tinham a salvação no outro mundo como ponto fundamental de suas vidas”. (ibid., p. 21). Se aquele esquema metafísico-dualista separava aqueles que possuíam espírito daqueles que não o possuíam, e que, por não o possuírem, eram percebidos como animais ou apenas como corpos sem alma (para Descartes, no século XVII, em plena modernidade, os animais eram “máquinas” simplesmente, sem afetividade, sem inteligência, sem alma), a hierarquia moral invisível cunhada no cristianismo, operando nas relações humanas, está na base da reprodução do racismo racial e cultural, uma chaga inextirpável de nossa civilização ocidental e, sobretudo, de nossa sociedade brasileira. (ver Souza, 2019, 2020, 2021).

A separação platônica entre espírito e corpo, que sussurra em clichês, persistentes no discurso do senso comum, como aquele com que se recomenda “agir pela razão e não pela emoção” (pelas paixões), ou como outros tantos que censuram os comportamentos ou modos de ser passionais (“ela é muito passional”, “ele se deixou levar pelas paixões”, assumindo a forma de uma hierarquia moral invisível por força do trabalho da instituição que, antes da modernidade, e durante a maior parte da história ocidental, exercia o poder não só espiritual, mas também político e econômico – a Igreja Católica -, passou a colonizar a vida das pessoas comuns, moldando seu modo de ser, de pensar e seu comportamento cotidiano, sem que elas o saibam, ou melhor, sem que elas suspeitem do modo como as ideias e os valores associados àquela antiga distinção metafísica passaram a ser tão evidentes e naturais para elas. A bem da verdade, nossa tendência tão comum de perceber as emoções como fonte da irracionalidade e as paixões como caminho para a infelicidade foi moldada por uma ideia moral que dominou o pensamento dos filósofos gregos antigos. Os estoicos, que adotaram o racionalismo e intelectualismo moral socrático,  tal como Platão, viam nas paixões a fonte de toda a infelicidade. Se Platão nos legou a ideia de que as paixões e tudo que é passional no agir humano supõem forças ilógicas e irracionais, os estoicos não viriam a contradizer o maior discípulo de Sócrates.

Segundo Souza, na modernidade, a hierarquia moral invisível é reproduzida hegemonicamente pela mídia e pela indústria cultural por meio de seus bens de consumo, tais como livros populares (entre os quais o do gênero autoajuda) e cinema. É essa reprodução massificada da hierarquia moral invisível, que separa os homens e as mulheres entre seres superiores e seres inferiores, entre seres autoritários e poderosos e seres submissos e fracos, que produz saberes e discursos que legitimam as várias formas de dominação (política, econômica, ideológica e cultural) e opressão social, política e econômica. Como lembra Souza (2019, p. 26), “não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repertório de ideias”.

A institucionalização das ideias é, conforme venho mostrando, um processo histórico ao longo do qual elas se unem aos interesses de uma instituição – no caso examinado, da instituição religiosa que deseja angariar fiéis, e se materializam nas práticas institucionalmente reguladas que cunham os seus agentes (que os formam, os educam) – são estes os sacerdotes e os monges -, os quais passarão a atuar continuadamente no tempo, por meio da prática da catequese, de sermões e outros dispositivos institucionais, de modo a transmitir o repertório de ideias já codificadas num cânone, num corpo de discursos, de textos legitimados pela instituição religiosa. Em resumo, Souza nos esclarece a respeito desse longo processo, o seguinte:

 

É precisamente essa ação continuada no tempo, atuando sempre em um mesmo sentido, que logra mudar a percepção da vida e, em consequência, o comportamento prático e a vida real e concreta como um todo para uma enorme quantidade de pessoas. (ibid., p. 22).

 

 

Não resta dúvida de que essa hierarquia moral invisível e dominante determina as ações e os pensamentos de uma maioria esmagadora de pessoas ainda hoje, sobretudo porque elas não percebem o seu poder sobre elas, sobretudo porque elas nunca refletem sobre a influência que essa hierarquia exerce sobre seu comportamento diário e sobre sua vida como um todo. Consoante nota Souza, “sem consciência crítica da ação dessas ideias sobre nosso comportamento, somos todos vítimas de uma concepção que nos domina sem que possamos sequer esboçar reação”. (ibid.).

Finalmente, não é difícil inferir de todo o exposto, nesta seção, que às classes dominantes estão associados os valores do espírito, do conhecimento valorizado socialmente, da produção do pensamento crítico, enquanto às classes trabalhadoras e dominadas se associam os valores “baixos”, “vis” do corpo, do trabalho braçal e do trabalho maquinal dos músculos que se assemelha ao operar dos animais, considerados, segundo um preconceito muito arraigado e corrente na consciência coletiva, “irracionais”. Como nos adverte Souza, “nós nunca refletimos acerca dessas hierarquias, assim como não refletimos sobre o ato de respirar”, e conclui “é isto que as faz tão poderosas: elas se tornam naturalizadas”. (ibid., p. 23, grifo meu).

 

 

3. A importância da leitura: um convite e suas múltiplas vozes

 

A esta altura da discussão que venho empreendendo, pode parecer que a importância da leitura é demasiado evidente para mobilizar tal dispendioso esforço em justificá-la. Bastaria o senso comum para nos convencer da importância dela: ler é importante para que adquiramos mais conhecimento de mundo. Sem negar que ler muito e habitualmente amplia o nosso repertório de conhecimentos sobre muitas coisas, o que não fica claro para as pessoas que acolhem, sem reflexão, essa conclusão óbvia do senso comum, é que os textos não são apenas instrumentos de representação e meios para formação de arquivos de conhecimento. Os textos não se limitam a registrar, a codificar o conhecimento socialmente existente, Como ensina Koch (2004, p. 171), eles são “formas básicas de constituição individual e social do conhecimento, ou seja, textos são linguística, conceitual e perceptualmente formas de cognição social”. Podemos dizer a mesma coisa, referindo novamente Koch (ibid., p. 172), na seguinte formulação: “todo conhecimento declarativo de nossa sociedade é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primeiramente linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente fundado.” O conhecimento declarativo é o tipo de conhecimento que se formula em proposições, em enunciados linguísticos e que obtemos por meio das produções linguísticas, tais como “A Terra gira em torno do Sol”, “A capital da Argentina é Buenos Aires”, “Todo solteiro é não casado”, etc. Assim, não preciso ir à Argentina para saber que sua capital é Buenos Aires; eu o sei, porque aprendi isso nos livros, na escola com professores que me disseram que Buenos Aires é a capital da Argentina. Assim também sei que a Terra gira em torno do Sol porque aprendi isso nos livros de ciências. Sei que todo solteiro não é casado, porque conheço o significado da palavra “solteiro”, cuja definição é ‘pessoa que não se casou’. Os textos que lemos não apenas servem para transmitir saberes, conhecimentos; eles os constituem, os elaboram, os tornam socialmente existentes. Nas palavras de Koch, referidas abaixo, fica mais claro o que significa dizer que textos são formas de cognição social:

 

Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de segmentá-lo, de diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais. (ibid., p. 173).

 

 

Espero esteja igualmente claro que, ao me referir a textos, estou tomando-os em sua versão escrita. Mas os textos não se definem pela modalidade linguística em que são expressos. Há textos escritos e há textos falados. Toda a comunicação oral se realiza por meio de textos falados. Há várias maneiras de definir o conceito de texto, independentemente se aparecem na modalidade falada ou na escrita. As definições de texto variam segundo as teorias linguísticas que se ocupam de compreender os processos de produção de significado na linguagem. Por isso, proponho que o texto seja definido como uma forma linguística, cognitiva e social complexa que permite a interação social. Textos são a realização material de eventos comunicativos. Textos instanciam (realizam, tornam socialmente apreensíveis, explícitos) os discursos, mas não se confundem com eles.

Quando se diz que a leitura nos permite adquirir conhecimento, concebemos, normalmente, “conhecimento” como algo já produzido, como o produto resultante da atividade de conhecer. Quando nos referimos a alguém que possui “vastos conhecimentos sobre uma matéria”, pensamos em “conhecimentos” como um capital social e/ou cultural possuído por essa pessoa. Mas a presença do sufixo derivacional “-mento” no vocábulo “conhecimento” permite-nos também ativar um outro domínio cognitivo, assentado na noção de ‘processualidade’, no caráter processual do “conhecer”. Quando falamos em “investimento no conhecimento científico”, o que pretendemos dizer é “fornecimento de aporte econômico para o desenvolvimento do modo de conhecer próprio da ciência”. Em outras palavras, “conhecimento científico”, nesse caso, não é o resultado da pesquisa científica, mas o processo ou ato de conhecer próprio da ciência. É no sentido de tornar possível a produção de conhecimento socialmente relevante e valorizado que devemos entender o texto como forma de cognição social, como formas básicas de constituição individual e social do conhecimento.

Pretendo, pois, de agora em diante, mostrar que a leitura nos possibilita não apenas um enriquecimento intelectual, cognitivo, cultural; a leitura é uma experiência que enriquece e desenvolve vários outros aspectos da nossa vida.

Em seu livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo (2000), Lajolo observa que “(...) lê-se para entender o mundo, para viver melhor”; e ajunta “(...) quanto mais abrangente a concepção de mundo, de vida, mais intensamente se lê”. Para Lajolo, os livros patrocinam a suspensão do real como meio pelo qual o retorno ao real é iluminado e fundado. Quero me deter na consideração  dessas imagens da “suspensão do real” e do “retorno iluminador ao real” construídas por Lajolo para nos fazer compreender o papel da leitura. A suspensão do real não se identifica com a ruptura com o real, o afastamento do real; não é que o leitor se aliene do real. O que é suspenso é este nível de realidade que nos é familiar, é a aceitabilidade de uma realidade cujo caráter objetivo, cuja concretude ontológica não questionamos. O real que se suspende é este nível de realidade em que se ancora a nossa consciência prática, que nos garante o que Giddens (2002) chama de segurança ontológica. A segurança ontológica recobre a nossa “atitude natural” na vida cotidiana, graças à qual temos a forte sensação da concretude, da objetividade de uma realidade exterior à nossa consciência e compartilhada com outras pessoas. À medida em que nos envolvemos cognitiva e emocionalmente na leitura, à medida que experienciamos o mundo textualizado durante o tempo em que permanecemos absorto na prática da leitura, acompanhando atentamente como o autor vai construindo uma versão, uma imagem da realidade em consonância com seus objetivos e seu projeto de sentido, o mundo que habitamos fora do texto, que se nos dá à consciência em seus aspectos fenomênicos, é iluminado de  tal modo, que regiões antes nunca percebidas, dimensões que antes permaneciam imersas em brumas se relevam significativamente compreensíveis. Para a composição deste texto, revisitei vários livros, procurei manter-me distante dos estímulos perturbadores da cotidianidade, para entregar-me completamente à leitura. Em um dos livros que visitei, intitulado de Por que o mundo não existe (2016), do filósofo Markus Gabriel, se me deparou um trecho que me enlaçou o espírito, fecundando-o. Gabriel escreveu “o sentido é, então, o modo como um objeto se manifesta” (ibid., p. 70). Veja-se que o autor apresenta-nos uma definição de “sentido”. Usamos a palavra “sentido”, por exemplo, em expressões como “o sentido da vida”, “o sentido de uma ação”, “o sentido a ser seguido”. É claro que, naquele trecho de Gabriel, “sentido” situa-se no campo semântico de “significado”. No livro O sentido da existência (2016b), do mesmo autor, é nos dito que “o sentido é uma modalidade de organização para a qual alguma coisa se apresenta de algum modo (...)”. (ibid., p. 16). Para Gabriel, que endossa um novo realismo, há um mundo cuja ordem é anterior ao aparecimento do sujeito cognoscente. Não me interessa aqui me deter na questão epistemológica e metafísica que a posição de Gabriel suscita. Mas interessante, para mim, é chamar a atenção para o fato de que, ao propor um tema, ao formular o problema do “sentido” e ao nos convidar para que acompanhemos a discussão por ele proposta sobre o problema, o autor faz com que nós, leitores,  tornemo-nos participantes deste mundo construído textualmente, tornemo-nos experienciadores de uma realidade que se vai construindo discursivamente, à medida que vamos avançando na leitura e vamos acompanhando o desdobramento do texto. E o mais importante é que, ao nos propor um problema para ser meditado, somos estimulados a pôr o mundo da cotidianidade, o mundo das ocupações com as coisas aqui e agora “entre parênteses”. Este mundo não deixa de existir no sentido corrente, é claro; mas deixa de nos solicitar, deixa de nos importunar; ele não está ausente, pelo menos não completamente; ele se converteu numa espécie de “pano de fundo”. O mundo textual não é, contudo, uma alteridade absoluta; não se trata de um mundo totalmente diferente do mundo fora do texto. Mesmo nas literaturas ficcional ou fantástica, o mundo do texto é construído com os elementos de que se compõe a realidade extralinguística. Mas o mundo do gênero fantástico ou ficcional é um mundo recriado, reconfigurado, reconstruído segundo a imaginação criativa do autor que inscreve no real vivido novas, extraordinárias e insólitas possibilidades de experiência, com vistas a nos desabituar de nossa atitude natural em face da ordem do mundo, atitude natural esta com base na qual apreendemos que o mundo e sua ordem é tal como o vemos, o percebemos na experiência imediata, sensorial, cognitiva que temos dele; atitude natural esta que nos habituar a pensar que a ordem do mundo existe independentemente de nossos cérebros, que não teriam qualquer participação na criação, na construção dessa ordem que percebemos. Também nas prosas do domínio jornalístico e acadêmico, na prosa narrativa dos gêneros do conto, do romance, o mundo ou a realidade são construídos e reconstruídos, embora sem romper com a verossimilhança. Voltando ao livro Por que o mundo existe, nele encontramos um trecho em que o autor nos diz que “o mundo é o campo de sentido no qual todos os outros campos de sentido se manifestam”. (ibid., p. 73). Ele também observa que o mundo “é o campo de sentido de todos os campos de sentido”. Note-se que ele agora nos incita a refletir sobre outra questão, qual seja, “o que é o mundo?”. O mundo é definido por ele como “campo de sentido de todos os campos de sentido”; é, portanto, o campo ao qual todos os demais campos de sentido pertencem. Novamente, não me interessa elaborar um comentário crítico do pensamento do autor. Importa-me, em compensação, sensibilizar o leitor para o fato de que a perspectiva proposta pelo autor sobre o que é o mundo contrasta com nossa atitude natural de experienciar “o mundo”, de defini-lo, de entendê-lo. O que a leitura, nesse caso, faz conosco? Ela nos desacostuma de uma maneira rígida de olhar, de pensar, de imaginar, de definir as coisas,  de experimentar as ocorrências do mundo,  de viver a realidade. Ela nos propõe uma nova percepção (interpretação) de mundo, que ativa outras experiências de significação do próprio mundo.  Ela provoca a desestabilização do terreno comum no qual enraizamos nossas percepções habituais sobre o mundo. Ela produz rachaduras, fissuras, quebras no solo da experiência da vida cotidiana. A leitura fomenta nossa capacidade de pensamento abstrato, descola o pensar dos modos vulgares de interpretação da realidade imediata.

Regina Zilberman, por sua vez, lembra que “ler coincide com a aquisição de um hábito e tem como consequência o acesso a um patamar do qual dificilmente se regride.”. Lajolo, novamente, nota que “a ação de ler caracteriza toda a relação racional entre o indivíduo e o mundo que o cerca” (ibid., p. 15). Ainda, segundo a autora, “ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum”. A leitura qualifica toda nossa relação com a realidade; ler transforma nossas relações habituais, rotineiras com a realidade cotidiana. E José Luiz Fiorin diz que “ler é construir a liberdade da alma”.

Eliana Yunes, em Leitura como experiência, afirma que “ler é desfazer a certeza e vacilar com a confiança de que se perdendo há mais a encontrar” (2003, p. 10). A autora faz uma defesa do ócio criativo, chamando-nos a atenção para a forma de sociabilidade instituída na vida moderna, que elide o tempo necessário ao exercício da reflexão.

 

A vida moderna, principalmente, acelerou a velocidade do cotidiano urbano com compromissos, tarefas, negócios que aboliram o tempo para pensar; só sentimos epidermicamente e agimos como que tocados à corda, à pilha, mecanicamente, chegamos ao tempo em que o ócio deixou de ser a antessala da preguiça para tornar-se preliminar da reflexão, condição e memorial da criação. E todo homem tem direito a este tempo de contemplação, experiência do ócio criativo. Contudo, na vida urbana ele nos escapa, premidos que estamos pela necessidade de produzir “automaticamente”. (ibid., p. 11, grifo meu).

 

 

 

Como souberam ver os filósofos da Escola de Frankfurt, não basta que as classes trabalhadoras lutem pelo benefício de dispor de mais tempo livre do processo de produção, sem quebrar a lógica da produção que continua a operar nos hábitos cotidianos no exíguo tempo de ócio que resta aos trabalhadores. O capitalismo não só torna escasso o tempo livre exigindo trabalhadores superprodutivos; ele molda e determina as esferas destinadas ao lazer, ao passatempo, ao divertimento dos trabalhadores, de modo que o requerido ócio criativo jamais se realiza, na verdade, e o tempo livre é preenchido do descanso intercalado, não raro, com tarefas que atendem à necessidade de recuperar a energia, a saúde e a boa disposição dos trabalhadores para que voltem a operar com eficiência na produção. Atualmente, o uso de smartphones e das redes sociais como Facebook e Instagram preenche a maior parte do tempo livre disponível aos trabalhadores, quer nos fins de semana quando uma parte deles não está ocupada em seus empregos, quer no percurso de suas casas até o local de trabalho. A questão que se impõe e que importa a quem se preocupa com a formação de leitores é mais a da qualidade de fruição do tempo livre disponível do que a da quantidade de tempo livre disponível.

Ainda segundo Yunes, “a leitura de um texto hoje pode nos devolver de forma mais autônoma ao mundo” (ibid., p. 12). As considerações de Yunes, aqui citadas, levam o seu leitor a formular várias questões. Este é um papel fundamental desempenhado pela prática de leitura: nos habilitar a ser questionadores, sujeitos pensantes capazes de questionar. Como viemos a nos tornar autômatos sociais? Por que passamos a responder ao mundo produtivo de modo tão maquinal? Por que nos conformamos a essas condições de exploração e opressão? Por que nosso tempo é cada vez mais sequestrado por pessoas que nos forçam a trabalhar e enriquecem à nossa custa? Por que nos habituamos a certos tipos de lazer enquanto nos recusamos a fruir outros, no exíguo tempo livre que nos é dado fruir? Essas são questões que os fragmentos citados do texto de Yunes nos levam a elaborar. Ao bom encontro com tais questões, vem Sonia Kamer, quando, em seu artigo Escrita, experiência e formação – múltiplas possibilidades de criação da escrita, faz a seguinte ponderação: “(...) se penso na leitura e na escrita como experiência é porque as entendo como locus da indignação e da resistência”. (2003, p. 67). Assim, descobrimos outra finalidade da leitura: ser o lugar de indignação e de resistência. A leitura (e também a escrita) formam pessoas capazes de articular atos de indignação e de resistência. Não basta simplesmente reconhecer a injustiça e a opressão da ordem vigente, nem descobrir um novo esquema de corrupção orquestrado pelo governo e odiar os corruptores; é preciso aprender articular, isto é, elaborar verbalmente um manifesto de indignação, que seja também a realização de um ato de resistência contra os mecanismos institucionais da dominação. Mas, para articular a indignação e a resistência, preciso, antes de tudo, compreender com clareza como operam esses mecanismos institucionais que produzem e reproduzem a dominação (social, política, econômica, ideológica); e, para compreender, é preciso ler; do contrário, permaneceremos em estado de ignorância apática ou em estado de insatisfação conformada. Para Kamer, ler não só nos torna sujeitos politicamente mais conscientes, mais participativos. Para ela, “trabalhar com a linguagem, a leitura e a escrita pode favorecer uma ação que convida à reflexão, a pensar sobre o sentido da vida individual e coletiva”. Este é, certamente, um dos grandes benefícios da leitura filosófica, que deveria ser mais do que um simples hábito, mas uma necessidade existencial de cada um. A autora também observa que a prática da escrita é condição de possibilidade para pensar sobre a história pessoal e coletiva que se faz conjuntamente com os outros, ampliando, assim, o raio de ação e reflexão individual e coletivo. Em Jogos de inclusão e exclusão sociais: sobre leitores e escritores urbanos no final do século XX no Rio de Janeiro (2003), Tania Dauster evoca um princípio básico da Linguística Textual, ou seja, dos estudos que se ocupam das condições indispensáveis à produção e compreensão textual. Segundo Dauster,

 

Quando se produz o sentido, acontece a leitura. Quanto mais informação, experiência, leituras anteriores, mais sentido vai ter o texto lido e mais leitor será o leitor. (ibid., p. 100)

 

 

Ao enfatizar a importância do background cultural do leitor quando da prática de leitura, Dauster alude ao princípio teórico comum aos atuais estudos em Linguística Textual, segundo o qual a compreensão de um texto depende da mobilização contínua pelo leitor de conhecimentos prévios que ele possui. Kleiman (2003) concorda com Dauster, nos esclarecendo sobre quais os tipos de conhecimento devem ser ativados pelo leitor em sua memória para que consiga atingir uma compreensão adequada de um texto:

 

(...) o leitor utiliza na leitura o que já sabe, o conhecimento adquirido ao longo da vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. (2003, p. 13, grifos meus).

 

 

 

3.1. Os benefícios da leitura

 

É, certamente, porém, mais do que todas as autoras referidas anteriormente,  Luzia de Maria que virá a contribuir para a sistematização das razões por que ler é importante. Em seu Clube do livro – ser leitor: que diferença faz? (2009), a autora inventaria vários benefícios proporcionados pela leitura. Explicitá-los será a tarefa que me cumpre, doravante.

 

1) a leitura favorece mais compreensão

 

Já insisti demais em aclarar este aspecto da importância da leitura. Não resta dúvida de que a leitura acarreta maior capacidade de compreensão do mundo. Mas Maria acrescenta um ingrediente que fica apenas entrevisto nessa concepção de leitura que nos é consensual: ler nos torna melhores leitores tanto na escrita dos textos quanto na escrita da vida. Maria observa que “quanto mais experiente for o leitor – tanto na vida quanto nos textos – melhor leitor será, tanto na escrita da vida quanto na escrita dos textos”. (ibid., 83). Não só ler mais e melhor nos faz escrever mais e melhor, nos faz mais competente na construção do pensamento complexo, mas também nos fazer ser os verdadeiros autores da construção histórica de nossa vida, porque a leitura nos ajuda a compreender o modo como vivemos, como temos vivido e o que temos feito para mudar, mesmo que no raio limitado de nossa ação individual e com os escassos recursos de que dispomos, as condições concretas que nos impedem de exercer mais liberdade, nos mantendo num estado contínuo de subserviência. A autora acrescenta que a leitura também “produz sempre mais conhecimento sobre a leitura, de modo que os que leem muito, sem dúvida, tendem a ler melhor”. Deveras, não há receitas prontas que sirvam ao desenvolvimento da proficiência em leitura. A competência de leitura vai-se desenvolvendo à proporção que realizamos mais práticas de leitura diversificada. Ler mais para ler melhor – este é o caminho para nos tornarmos leitores cada vez mais aptos a compreender os silêncios que atravessam as palavras, os não ditos que significam no dito, os sentidos que se produzem nos implícitos, nas entrelinhas, etc.

 

2) a experiência na leitura produz mais conhecimento sobre a própria leitura

 

É justamente isso que diferencia um leitor competente de um leitor mediano ou um não leitor. Conforme ensina a autora, “(...) quem lê mais lê melhor”. (ibid.,p. 87). Quanto mais experiência em leitura cumulamos, mais conhecimento sobre a própria leitura adquirimos. Segundo Maria, a leitura também promove a experiência de vida, ou seja:

 

(...) aquela experiência que vai acrescentando conhecimentos vários à nossa teoria de mundo, vai nos tornando capazes de formular melhores e mais promissoras previsões, seja diante dos textos ou dos infinitos desafios que a vida nos coloca permanentemente. (ibid., p. 88).

 

 

 

Notemos que a autora entende que a leitura acrescenta mais conhecimentos à nossa “teoria de mundo”.  O que isso quer dizer? Ora, todos nós, já em nossa socialização primária, e depois ao longo de toda a nossa socialização secundária, que só cessa com a nossa morte, vamos construindo uma “visão de mundo”, certa concepção básica pré-reflexiva de como o mundo é simplesmente. As nossas experiências pessoais na interação com os outros significativos (pais, irmãos, tios, avós, amigos) e com outros atores sociais que nos educam ou que formam nossas opiniões (professores, o padre da igreja, o nosso chefe no trabalho, os colegas de trabalho, os profissionais da mídia televisiva, etc.) vão contribuir para compor, para formar, para construir nossa interpretação, percepção, visão básicas do mundo. Mas essas experiências pessoais, por mais numerosas que sejam, são limitadas às esferas do tempo-espaço em que elas ocorrem. Se não promovidas pela leitura, que nos faz, por assim dizer, habitar outros mundos históricos, que nos faz compreender o que não compreenderíamos nos limites restritos e fugazes das experiências pessoais no cotidiano, tais experiências dificilmente (talvez até nunca) nos tornarão sujeitos dotados de consciência crítica. Ora, é, no mínimo, ingenuidade supor que chegaríamos a compreender adequadamente e melhor as razões da injustiça social e econômica que nos deparamos no cotidiano de nossas metrópoles, numa conversa casual com amigos de trabalho, não especialistas, do que o conseguiríamos, certamente, com muito mais profundidade e consistência teórica, se nos detivéssemos na leitura de um livro escrito por um sociólogo especializado no estudo do tema. Nossas experiências pessoais, se não ampliadas, fomentadas, enriquecidas pela experiência de leitura, continuarão se moldando, se reproduzindo em conformidade com os clichês, os preconceitos, as crenças falsas, os supostos saberes que circulam largamente nas esferas de interação social do cotidiano. Além disso, cada indivíduo, enquanto sujeito social e histórico, existe num espaço-tempo muito limitado no longuíssimo e complexo tempo histórico da humanidade. Como poderia ele pretender conhecer bem e melhor o que acontece no aqui e agora de seu mundo histórico (a modernidade do século XXI), se não puder conhecer ou se recusar a conhecer o que outros homens que viveram numa época anterior à sua (num passado até muito remoto), fizeram? O aparecer social, a que temos acesso em nossas experiências pessoais imediatas na vida cotidiana, mascara as condições reais que o fazem aparecer como aparece. Por exemplo, as pessoas das classes trabalhadoras (tanto as pobres quanto as de classe média), em sociedades como a nossa, tão marcadas por desigualdades sociais e econômicas, se queixam de que trabalham muito e são mal remuneradas, entreveem a exploração a que são submetidas no cotidiano de trabalho, mas não compreendem como a exploração das inúmeras classes sociais subalternas se produz no capitalismo. Em outras palavras, muitas da imensa maioria de pessoas que compõe as classes trabalhadoras podem sentir que há exploração nas relações desiguais entre empregador e patrão, mas não chegam a perceber e compreender adequadamente como a exploração do trabalho assalariado veio a se constituir  como uma realidade intrínseca ao sistema capitalista. O que elas podem sentir na pele são os efeitos práticos e imediatos, vivenciados subjetivamente, de um exploração que é sistematicamente reproduzida como um elemento intrínseco à máquina de produção capitalista. Portanto, para que pudessem compreender as condições estruturais, os processos sociais, econômicos e simbólicos que explicam o aparecer social, aquilo que elas vivenciam na cotidianidade mediana, nas relações imediatas de trabalho, elas teriam de ler; em uma palavra, teriam de se debruçar sobre os livros.  Como, na maioria das vezes, se mantenham mal dispostas para com a leitura, evitando-a, vivem em conformidade com o que simplesmente ouviram falar, desde tenra idade: que o mundo é assim – injusto, cruel, desumano, desigual, violento, etc. – que devem  aceitar “a vida como ela é”. Como vivam divorciadas ou impedidas da prática da leitura, essas pessoas, em geral, não compreendem como são possíveis as relações de dominação e exploração, e não as compreendendo, contribuem consciente ou inconscientemente, para a reprodução dessas relações contrárias aos seus próprios interesses, no mundo histórico em que vivem, cujo sistema de produção é o capitalismo. É claro que o grau de compreensão e as condições de possibilidade para a compreensão da realidade sociopolítica e econômica variam segundo o nível de escolaridade dos indivíduos e os privilégios de classe. A educação oferecida aos mais pobres é bastante deficitária e precária para que possamos esperar que venham a se dar conta da exploração a que é diariamente submetida a sua classe social.

 Não vou aqui me alongar sobre o caso bastante emblemático dos bolsonaristas que veem o comunismo como uma ameaça real em toda parte no Brasil, sem que sequer saibam alguma coisa sobre o comunismo histórico, sobre o marxismo e o lenismo que o fundamentaram teoricamente. A ignorância e a burrice dessa gente já é motivo de piada em programas de entretenimento na televisão e nas plataformas digitais da rede de internet. Mais importante será frisar o seguinte: adquirimos mais experiência por meio da leitura.

                 

3) Ler é um ato libertário

 

A leitura é uma experiência de formação de sujeitos autônomos. A leitura torna possível a liberdade da autonomia, a liberdade de construir conhecimentos sem a mediação de um professor; a leitura promove o autodidatismo. Porque favorece o desenvolvimento do pensamento complexo do leitor, a leitura dota-o da capacidade de compreender a complexidade da realidade. Tanto mais complexo, elaborado, profundo for seu pensamento, tanto mais apto estará o leitor para lidar com a complexidade das ocorrências do real.

 

4) A leitura favorece melhor o desenvolvimento da inteligência

 

Em princípio, no que toca ao entendimento comum de inteligência, devemos reconhecer, com Gardner (1995), que não há uma única inteligência. Definindo a inteligência como “a capacidade de resolver problemas ou de elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários”, Gardner propõe que sejam identificados sete tipos de inteligência: a inteligência linguística, a inteligência lógico-matemática, a inteligência espacial, a inteligência musical, a inteligência corporal-cinestésica, a inteligência interpessoal e a inteligência intrapessoal. Foge à alçada deste trabalho o deter-me a comentar cada um dos tipos de inteligência propostos por Gardner. Se as mencionei, foi com o único fito de chamar a atenção para a inconveniência de falarmos em inteligência no singular. As inteligências são múltiplas. Todas as pessoas são capazes, se as condições objetivas para tanto lhes forem dadas, de desenvolver um ou mais de um tipo de inteligência. Não há dúvida de que a leitura favorece o desenvolvimento de algumas formas de inteligência, como a linguística, a interpessoal e a intrapessoal. Todavia, o que a leitura especificamente favorece é o desenvolvimento intelectual, a capacidade de pensamento crítico e abstrato. Nas palavras de Maria,

 

Ela [a leitura] areja as consciências e as torna aptas a dar sentido às próprias experiências, a construir conhecimentos a partir da observação direta, a partir da vivência pessoal. A leitura educa o olhar e oferece ao estudante a amplidão do patrimônio cultural humano. E, para reabilitar o gosto do conhecimento e capacitar o estudante a aprender a complexidade dos tempos autuais, penso que o caminho viável é promover o autodidatismo. (ibid., p. 106).

 

 

Maria, outrossim, advoga a necessidade de exercitar a leitura diversificada como condição indispensável à formação de um leitor que ostente “um olhar plural e interesses mais variados”, sobretudo num tempo histórico em que os regimes autoritários e os populismos conservadores voltam a crescer e a ganhar terreno, com suas forças homogeneizantes e uniformizadoras. Um simples exemplo é suficiente para demonstrar a importância da formação desse leitor ávido por diversificar seu repertório de leituras. Cada vez mais os estudiosos das ciências sociais e políticas vêm denunciando o crescimento da propaganda fascista em várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Entre nós, os opositores, politicamente mais engajados, do governo de Bolsonaro, chamam-no de fascista. Para quem nunca estudou ou já não mais se lembra do que foi o fascismo como um regime político que vigorou na Europa durante a década de 30, chamar Bolsonaro de fascista pode soar apenas como mero xingamento ou um exagero de “intelectuais modinha”. Mas basta estudarmos como se constrói e se dissemina a propaganda fascista, como se manifesta o comportamento fascista, para reeducar o nosso olhar, para repensar o nosso julgamento anterior. Um dos traços marcantes da política fascista é a substituição do debate fundamentado pelo medo ou o ódio. Além disso, um líder fascista mente de modo inconsequente; ele destrói os espaços de informação; dissemina e reforça teorias conspiratórias; utiliza a linguagem para provocar emoções, incitando-as na audiência. A política fascista abala a confiança nas universidades. Esses traços que caracterizam a propaganda fascista que atua de modo a minar os conceitos e as instituições democráticas bastam para perceber que governos atuais como o de Jair Bolsonaro, no Brasil, como o de Viktor Órban, na Hungria, e o governo do ex-presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, são governos que em nome da pretensa defesa das instituições democráticas utilizam (ou utilizou, no caso do governo de Trump) de táticas fascistas. Entenda bem, prezado pressuposto leitor, que mantendo-se divorciado da prática de leitura, ninguém poderá ler e compreender bem e em profundidade o significado do que se passou a chamar de bolsonarismo no Brasil. Da mesma forma, quem se mantém indisposto para com os livros, mesmo tendo as condições sociais e materiais para estabelecer com eles um convívio de philia, jamais perceberá os perigos que ameaçam a democracia aqui e em várias partes do mundo; jamais, em suma, verá e compreenderá aquilo que os estudiosos querem nos fazer ver: o crescimento do autoritarismo político, dos populismos de direita ultraconservadores no mundo. Sem a experiência da leitura, não conseguiremos ver o grande perigo que esses movimentos políticos representam para a vida de cada um de nós que reconhece, mesmo num nível pré-reflexivo, que viver em regimes democráticos, malgrado seus impasses e conflitos, é melhor do que viver em regimes onde todas as liberdades (a liberdade política, a liberdade individual, a liberdade de pensamento e de imprensa) são abolidas em nome de delírios de um poder de Estado que se institui pela força, pela violência e coerção declaradamente abertas e livres de um ordenamento jurídico-político que o limite.


5) A leitura mantém a saúde do cérebro

 

Trata-se aqui de reconhecer o que é consenso entre os neurocientistas: manter um nível elevado de estudos ou um envolvimento intelectual em práticas assíduas de leitura diminui significativamente as chances de desenvolvermos doenças degenerativas na velhice. Sei que esse benefícios para a saúde cerebral são, por si mesmos, insuficientes para estimular as pessoas a ler mais, já que muitos de nós sabem também que manter atividades físicas regulares é indispensável para conservar a saúde de nosso corpo como um todo e para favorecer a longevidade e, no entanto, muitos de nós nos recusamos a praticá-las. Sem embargo, o sedentarismo do corpo acarreta tantos prejuízos à saúde quanto o sedentarismo intelectual leva a deterioração precoce do cérebro. O cérebro precisa ser exercitado por meio de atividades intelectuais, entre as quais se incluem os jogos (de carta, de tabuleiro, de esporte), palavras cruzadas e – leitura.

Como a principal característica do cérebro é a plasticidade, isto é, a capacidade que ele tem de se reconfigurar por toda a vida, o cérebro pode ser modelado e a inteligência ou as aptidões intelectuais podem ser desenvolvidas, construídas:

 

A cada momento em que nos lançamos numa nova experiência, em que fazemos novos contatos – com pessoas ou conhecimentos e informações – novas conexões neurais são estabelecidas e isso significa uma permanente reformulação no desenho de nosso mapa cerebral. (ibid., p. 127).

 

O cérebro, portanto, pode ser modelado; e nossas experiências é que constroem as estruturas neurais de nosso cérebro. Ensina-nos Maria que “apenas 30% da capacidade intelectual de uma pessoa é decorrência de sua herança genética; os outros 70% resultam das experiências a que ela foi exposta e das aprendizagens que construiu durante a vida”. (ibid., p. 128). Aprendizado e exercício são importantes para que se estabeleçam conexões mais fortes entre os neurônicos. Essas conexões serão mais fortes ou mais fracas dependendo do uso que fazemos de nosso cérebro. Escusando-me do exagero, não estão completamente errados aqueles que acusam os bolsonaristas de não fazerem uso de seus cérebros. É claro que eles usam o cérebro, mas fazem um mau uso dele.

Uma vez que estejamos convencidos de que a leitura é um caminho fecundo para o desenvolvimento intelectual, somos forçados a reconhecer que a inteligência se desenvolve pelo acúmulo de experiências de mundo ao longo da vida. Enquanto vivemos, estamos continuamente envolvidos em processos de aprendizagem. Se é verdade que nunca cessamos de aprender algo ao longo da vida, é igualmente verdadeiro que necessitamos de um contexto sociocultural e familiar que favoreça novas experiências e estimule o desenvolvimento da aprendizagem. Lembra Maria que “nosso cérebro é alimentado, permanentemente, pelas nossas interações com o meio exterior, com o grupo social que nos cerca, com tudo aquilo que a vida nos oferece a cada instante”. (ibid., p. 131). Se o desenvolvimento de nosso cérebro é dependente do entorno sociocultural, devemos nos questionar quais tipos de bens culturais nos são oferecidos, se o que nos é oferecido contribui ou não para o desenvolvimento de nosso cérebro, se os encontros que fazemos estimulam novas e fortes conexões neurais ou conservam as mesmas existentes. Nosso cérebro é um cérebro social em dois sentidos: primeiro, no sentido de que seus neurônios estabelecem conexões com seus vizinhos; segundo, no sentido de que necessita de interações sociais para se desenvolver. Uma vez que nós, humanos, somos animais sociais, nosso nascimento e desenvolvimento se dão, necessariamente, num meio social, onde construímos nosso aprendizado e nossas inteligências por meio das interações sociais que estabelecemos com os outros nesse meio. Nosso cérebro é extraordinariamente dinâmico. As experiências de linguagem significaram um grande salto cognitivo para a nossa espécie. A prática de leitura veio, posteriormente, nos descerrar outros muitos níveis de realidade que não percebemos em nossas experiências ordinárias de mundo. É somente praticando a leitura que passamos a compreender o que significa a visão sistêmica da realidade, paradigma científico que tem dominado cada vez mais as ciências atuais. O que, basicamente, essa visão sistêmica da vida sustenta é que todos os organismos vivos são totalidades integradas, são componentes sistêmicos de um vasto e amplo ecossistema, de sorte que a vida humana está intimamente ligada a uma rede ecossistêmica do qual fazem parte também os demais seres. A visão sistêmica da realidade é holística: vivemos num mundo que é plurissistêmico, multissistêmico. Os diversos sistemas que compõem o mundo se comunicam, se interpenetram, se predem mutuamente. As decisões que tomamos no sistema econômico afetam outros sistemas, por exemplo, geram impactos negativos na biodiversidade do planeta. A atual pandemia da covid-19 é um exemplo e uma consequência dramáticos das escolhas que fazemos, por exemplo, escravizando a vida animal, devastando gigantescas áreas florestais que abrigam a biodiversidade e microrganismos potencialmente perigosos, caçando primatas nas florestas africanas e entrando em contato com seu sangue contaminado por vírus altamente letais, etc.

Cabe ainda acrescentar, antes de encerrar esta seção, que, segundo Jung, é com a imagem de mundo que o homem constrói que ele modifica a si próprio. O homem que acreditou em que o Sol girava em torno da Terra é diferente do homem que compreendeu ser a Terra um planeta que gira em torno do Sol. Assim, para Jung, cada indivíduo desenvolve uma cosmovisão, ou seja, uma consciência ampliada ou aprofundada que constitui um imagem do mundo; e essa imagem do mundo o modifica e é através dela que esse indivíduo se orientará e experienciará a realidade. Jung reconhecia que é necessário um grande esforço individual para arrancar a consciência das preocupações e ocupações da vida ordinária, de modo a orientá-la na direção dos problemas gerais e profundos da condição existencial humana. Na maior parte das vezes, os indivíduos permanecem com uma cosmovisão, ou o que Jung chama de atitude, inconsciente em suas vivências ordinárias, sem chegar a formar uma atitude conceitual e concreta que lhe permita saber por que motivo e para que fim vive e age do modo como vive e age. Sem chegar a desenvolver uma cosmovisão profunda do mundo, seus motivos e intenções fundamentais permanecem inconscientes para o indivíduo,  e tudo se lhe afigura muito simples e “natural”.

 

6) A leitura torna as pessoas mais criativas

 

Outra vantagem que nos possibilita a leitura é o desenvolvimento da criatividade. Para Maria, a leitura pode tornar as pessoas mais criativas, porque “ela oferece essa bagagem de conhecimento indispensável à inauguração de novas associações”. (ibid., p. 142). De que ordem são essas associações? A autora fala em associação de elementos entre os quais ninguém jamais havia feito antes relações ou aproximações. A criatividade consiste nisto: relacionar uma coisa com outra, aproximar uma coisa de outra, de modo inédito. Penso que as associações, as conexões novas, imprevistas que a leitura nos permite fazer são associações entre significados, entre percepções, interpretações. Não criamos a partir do nada; não há criação ex nihilo; não obstante, podemos fazer notar novos arranjos, novas estruturas significativas, novas causas, novas consequências ainda não vistas ou entrevistas num primeiro lance de olhar sobre um fenômeno ou uma realidade. Se, como pretende Gabriel Markus, o mundo é o campo de todos os campos de sentido, a leitura, na medida em que promove a criatividade, permite-nos tornar visíveis outros campos de sentido que não eram percebidos, visíveis também outras relações entre campos de sentido que não haviam sido feitas, etc.

 

7) a leitura aproxima as pessoas

 

Luzia de Maria advoga que “quem lê passa a ter o que dizer e pode se tornar uma pessoa mais interessante e mais bem aceita socialmente”. (ibid., p. 148). O que diz a autora é confirmado diariamente em muitos meios sociais. Muitas pessoas admiram e se sentem atraídas, não só sexualmente ou amorosamente, mais intelectualmente por pessoas exibem, em sua fala, um amplo repertório de leituras. É claro que transitamos aqui pelo terreno do variável prestígio social conferido ao leitor e que é socialmente distribuído aos indivíduos e aos grupos que detêm alguma forma de poder ou capacidade de influência. Nem todas as pessoas se sentem interessadas em ouvir o que pessoas que leem demais têm a dizer; muitas delas se sentem, de algum modo, ameaçadas, minoradas intelectualmente, quando não conseguem atingir o grau de compreensão previsto ou exigido na fala dos mais letrados, dos intelectualizados. De qualquer forma, a leitura nos faz ter coisas interessantes para dizer, que podem não interessar  talvez a uma maioria, mas que encontrará acolhida entre aqueles, cujos valores imateriais recebidos, são semelhantes. A autora ainda defende que “a leitura aproxima as pessoas” (ibid.), o que é verdade, mas nem sempre o é. Pelas razões que apontei, ler demais pode nos tornar menos sociáveis, pode fazer com que recaiam sobre nós juízos de valor merecidos ou imerecidos, que, em vez de nos aproximar das pessoas, nos distanciam delas. Todavia, há que reconhecer, com Maria, algo que cuido inegável: a leitura nos proporciona “experiências que não só ampliam nossa visão do outro como a visão que temos de nós mesmos”. Prossegue a autora: “isso concorre para fortalecer a autoestima e significa um acréscimo de prazer em nossa vida, o que também fortalece as configurações do nosso cérebro e promove sua longevidade”. (ibid.). Wolf, em seu livro O cérebro no mundo digital , observa que “ler nos níveis profundos pode proporcionar um antídoto contra a tendência a afastar-se da empatia”. (2019, p. 64). Mas a autora adverte que a empatia não significa ser compassivo com os outros. Vai muito além disso. A empatia implica um conhecimento profundo do outro. A empatia “envolve uma inteira rede de sentimentos e pensamentos que conecta a visão, a linguagem e a cognição com amplas redes subcorticais”. (ibid., p. 65). A empatia compreende tanto conhecimento quanto sentimento. Ser empático, segundo a autora, “envolve abandonar conjecturas do passado e aprofundar nossa compreensão intelectual de outra pessoa, de outra religião, de outra cultura ou época”. (ibid., p. 67). Ela também nos ensina que “nossas palavras contêm e ativam momentaneamente repositórios inteiros de sentidos associados, memórias e sentimentos, mesmo quando fica determinado o sentido exato num contexto dado” (ibid., p. 44). A linguagem, e não só a leitura, é capaz de evocar em cada uma das palavras pronunciadas ou lidas “uma história inteira de miríades de conexões, associações e memórias guardadas por muito tempo”. (ibid.).

 

8) A experiência do prazer de ler

 

O melhor deixei para o final. É comum ouvirmos daqueles que gostam de ler, que amam ler, ou daqueles que, mesmo não sendo amantes dos livros, gostam de reiterar o que todo mundo diz, ou seja, que a leitura é fonte de prazer. Decerto, eu seria a primeira pessoa aceitar a plausibilidade desta tese, se não fosse o problema teórico que ela suscita: podemos educar as pessoas de modo que venham a sentir prazer em atividades que elas julgam enfadonhas e desinteressantes? Essa questão equivale a esta outra: será o prazer passível de ser objeto de ensino, de aprendizagem? Creio que os gostos estéticos, as sensibilidades para a fruição das artes podem ser moldados culturalmente, podem ser formados pelos exemplos, pelas experiências na socialização familiar. Contudo, não me parece razoável supor que as pessoas passarão a exercer uma atividade porque lhes disseram que ela provoca prazer. Ademais, alegar simplesmente que a leitura deve ser exercitada porque é fonte de prazer é passar ao largo do fato de que há situações em que temos de ler um livro ou um texto qualquer (por exemplo, porque teremos de fazer uma prova, porque falaremos dele num seminário, etc.) que nos causa enfado, aborrecimento, porque o tema não é interessante, porque não dispomos de conhecimentos prévios suficientes para encará-lo, ou simplesmente porque talvez preferíssemos ler outro livro mais interessante, etc.; portanto, nesses casos, ler causa, com muita frequência, desprazer. Que o prazer é indispensável à realização pessoal quem o negará? O prazer é um elemento muito importante na vida de qualquer ser humano. Quando exercemos uma atividade que nos dá grande prazer, entregamo-nos a ela de modo absoluto. Dedicamos a ela grande parte de nosso tempo na vida cotidiana, suspendendo os apelos do mundo em derredor. Quando imersos em experiências de sumo prazer, sequer nos ocupamos com a felicidade, com o que é a vida feliz. Decerto, não importa qual seja a atividade ou trabalho em que nos empenhamos – jardinagem, cozinhar, pintar, estudar, ler -, estaremos mais entregues a ele quanto mais prazer possamos experimentar em sua realização. O psicólogo Mihaly Csikszentmihaly chamou de fluxo a experiência de prazer intenso desencadeado por uma atividade que exercemos. Para ele, o envolvimento pleno no “fluxo” é que gera a excelência na vida. Entregues ao fluxo, fruímos a felicidade. A experiência do fluxo (a do prazer intenso) acarreta uma complexidade e crescimento maiores da nossa consciência.

Conquanto eu não esteja tão seguro quanto a tomar o prazer como uma boa razão para o incentivo à prática de leitura, concordo com Luzia de Maria, quando nota que são as experiências do fluxo que dão sentido à nossa vida. Tem razão a autora quando diz que “felizes são aqueles que conseguem conjugar o verbo trabalhar experimentando o fluxo em seu dia a dia”. (ibid., p. 145). E aqui me distancio de Aristóteles para me aproximar de Epicuro: o princípio da vida feliz é o prazer. Se Aristóteles negava ser o prazer o princípio da eudaimonia (felicidade), ele admitia, por outro lado, que o prazer que acompanha as atividades em que se empenham os homens as aperfeiçoa, as qualifica. Para Aristóteles, o prazer tem caráter quantitativo, visto que aumenta a qualidade da atividade. Sem atividade não há prazer; sem prazer, a atividade decresce, podendo, inclusive, ser suspensa. É justamente porque Aristóteles estabelece uma relação entre o prazer e a vida, entre o prazer e a atividade, entre o prazer e a perfeição tanto do órgão quanto do objeto de satisfação que ele afirma ser o prazer inseparável da virtude. É também por essas relações que ele pode afirmar que a virtude é uma forma de prazer superior, uma vez que a virtude é capaz de prolongá-lo, convertendo-o num ato menos fugaz. Mas é nas virtudes intelectuais que o prazer é mais intenso, mais vivo, mais longo e duradouro. Nesse tocante, me encontro em pleno acordo com Aristóteles. Para Aristóteles, a felicidade é uma forma de atividade da alma; ela tem um fim em si mesma. O homem feliz é aquele que realiza a atividade contemplativa através do exercício da razão teorética. Ao exercitá-la, esse homem se realiza plenamente, pois que vive segundo aquilo (o intelecto, a alma racional) que, em ato, é possibilidade para a (realização da) felicidade.

Ao sugerir que a leitura é fonte de prazer, a autora, conscientemente ou não, está de acordo com Aristóteles, no sentido de que, para ele, para cada um de nossos sentidos há um prazer que lhe é próprio, e também há um prazer próprio a cada uma de nossas atividades, tais como falar, fabricar, pensar, jogar... ao que acrescentaríamos – ler. Mas, se é assim, por que algumas pessoas rejeitam a leitura como uma atividade enfadonha e entediante? Para estas pessoas que não leem porque julgam a atividade desagradável e maçante, que poder pode ter sobre elas a alegação de que a leitura é fonte de prazer, se é justamente isso que elas negam? A situação da leitura parece ser a mesma que a de qualquer outra atividade: há pessoas que sentem prazer em assistir a um jogo de futebol, ou em jogar futebol, e outras não. Talvez, não haja, como pensava Aristóteles, um prazer inerente a cada atividade que realizamos. Também não creio que o prazer possa ser algo desenvolvido nas pessoas como as aptidões, o caráter, as competências, a inteligência, as boas maneiras, etc. Devo confessar que não sei como, ao longo de meu desenvolvimento psicossocial, passei a experienciar prazer em ler. E o prazer que eu sinto em ler não é comparável a qualquer prazer sensorial,  embora os prazeres sensoriais sejam inegavelmente importantes para o meu bem-estar e felicidade. Mas o prazer da leitura se prende a uma necessidade existencial visceral por que me sinto arrastado e sem qual as minhas experiências, as minhas vivências cotidianas se esvaziariam de toda significação, fazendo pesar sobre mim o tédio dos dias que se sucedem num tempo linear que me aviva a consciência de que “viver é perder terreno” (Cioran).

 

4. O que é ler: a formação do leitor e suas competências

 

Convém, doravante, descer a algumas considerações sobre o que é ler e quais são as competências, os conhecimentos que constituem a condição de possibilidade para que o leitor se torne um leitor proficiente na prática de leitura. Não pretendo levar à exaustão o tratamento que dispensarei sobre essas competências e saberes. Oferecerei tão-só um quadro teórico consistente com o que nos ensinam os estudos desenvolvidos na área da Linguística Textual.

Começarei, pois, por responder à questão: o que é ler? Ler é um processo interativo, sociocognitivo-interacional de produção de sentidos, não só porque o leitor precisa mobilizar um conjunto vasto de saberes a fim de construir a coerência para um texto, mas também porque a coerência ou os sentidos são construídos na interação entre o leitor, o texto e o autor. Sem que o leitor e o autor partilhem mutuamente uma quantidade de conhecimentos, a reconstrução do sentido cuja realização compete ao leitor se torna dificultosa e, em alguns casos, impossível. Para ser bem-sucedida, a leitura precisa apoiar-se numa base de conhecimento de mundo partilhado entre o leitor e o autor do texto.

A leitura também é uma atividade estrategicamente orientada, porque, ao ler, o leitor tem sempre em mente certos objetivos a serem atingidos, para o que, além de mobilizar uma série de conhecimentos armazenados em sua memória, precisa lançar mão de uma série de estratégias sociocognitivas pelas quais ele realiza vários passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis e muito rápidos.  Estas estratégias se subdividem em: estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas.  As estratégias cognitivas são de natureza inferencial e inconsciente. Elas recobrem os procedimentos através dos quais o leitor, utilizando os elementos formais presentes na superfície do texto, faz ligações semânticas entre esses elementos, ou entre eles e os saberes prévios que ele, leitor, possui. Inferência é a operação pela qual, valendo-se de seu conhecimento de mundo, o receptor (leitor/ interlocutor) de um texto estabelece uma relação não-explícita entre dois elementos (normalmente frases ou trechos) textuais, ou entre esses elementos e os conhecimentos necessários à sua compreensão. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. A inferenciação é, particularmente, a atividade que está na origem dos fenômenos de pressuposição e subentendido. As estratégias cognitivas permitem também que o leitor construa a coerência local do texto, reconhecendo as relações coesivas que se estabelecem entre os elementos sequenciais ali existentes. Por seu turno, as estratégias metacognitivas permitem o estabelecimento dos objetivos na leitura. Por meio delas, o leitor controla e regula o próprio conhecimento que vai adquirindo ao longo da leitura. Por exemplo, ele é capaz de saber se o que vem estudante até o momento é suficiente para uma adequada compreensão do assunto. Ao refletirmos sobre a extensão e a quantidade do conhecimento alcançado, valemo-nos de um conhecimento ou estratégia metacognitivo, ou seja, de uma competência adquirida pela reflexão sobre o próprio saber.

Para que haja compreensão mútua entre os interlocutores, numa atividade comunicativa, é preciso que os seus contextos sociocognitivos sejam, ao menos, parcialmente semelhantes. Os contextos sociocognitivos recobrem os conhecimentos enciclopédio, sociointeracional, procedural, textual, comunicativo, linguístico, ilocucional que os interlocutores previamente possuem e que precisam ser, em parte, compartilhados para que haja compreensão. Numa perspectiva sociocognitivo-interacional da produção de leitura, contextos são constructos mentais ou modelos mentais; são constructos subjetivos e socialmente fundamentados, elaborados pelos interactantes (no caso o leitor e o autor), e que dizem respeito às propriedades da situação que eles supõem relevantes. Assim, compreender um texto envolve a capacidade de o leitor construir um modelo mental adequado e coerente com os modelos de mundo textualmente representados. Os contextos permitem e condicionam a produção e compreensão dos textos falados e escritos. Contextos constituem o conjunto das suposições, baseadas nos saberes diversos dos interlocutores (leitor/ receptor/ produtor/locutor), que são mobilizados para a interpretação e a compreensão de um texto. Nossa autobiografia, a acumulação de experiências pessoais são uma coleção de modelos mentais. Modelos mentais são as representações cognitivas de nossas experiências. Por seu turno, modelos de contexto são tipos especiais de modelos mentais. Eles recobrem a maneira como experienciamos, construímos, definimos ou interpretamos o que está acontecendo no momento em que estamos participando de um evento comunicativo.

Quer na leitura, quer em qualquer outra prática interacional, cada um dos interlocutores traz consigo um contexto sociocognitivo. A cada momento da prática de leitura ou da interação (na conversação do dia a dia, por exemplo), esse contexto é modificado, ampliado, e o leitor/locutores precisam ajustar seu contexto aos novos contextos que são ativados e se originam na prática de leitura ou no intercurso da conversação. A prática de leitura, portanto, é um processo durante o qual o leitor está ativamente engajado num trabalho de interpretação e compreensão do texto, levando em conta, para tanto, seus objetivos, seu conhecimento sobre o assunto abordado pelo texto, sobre o autor, sobre a linguagem, etc. O leitor, ao ler, assume uma atitude responsiva ativa, ou seja, ele concorda ou não com as ideias, os argumentos do autor, completa-os, adapta-os, etc., porquanto, como diz Bakhtin, toda compreensão é prenhe de respostas; toda compreensão é produção de respostas, de significações. A leitura, portanto, é uma atividade que requer estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, por meio das quais o leitor busca realizá-la da forma mais bem-sucedida possível. Sem essas estratégias, não é possível atingir a competência na leitura. Essas estratégias é que vão permitir ao leitor controlar o que está lendo, vão permitir a ele tomar decisões em face das dificuldades pontuais de compreensão, vão possibilitar-lhe a busca de esclarecimentos que contribuam para validar no texto as hipóteses feitas por ele.

A compreensão de um texto não exige que os conhecimentos ativados pelo texto e os que o leitor têm armazenado em sua memória coincidam, mas que possam interagir dinamicamente. Assim, tanto para a produção quanto para a compreensão de textos, recorremos a três sistemas de conhecimento:

 

1) conhecimento linguístico;

 

2) conhecimento de mundo (ou enciclopédico);

 

3) conhecimento interacional.

 

O conhecimento interacional subdivide-se em:

 

1) conhecimento ilocucional;

 

2) conhecimento comunicacional;

 

3) conhecimento metacomunicativo;

 

4) conhecimento superestrutural.

 

Os contextos sociocognitivos subsumem todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos atores sociais, que necessitarão mobilizá-los, por ocasião da interação verbal (o que inclui a leitura, que é uma forma de interação verbal).

 

1) o conhecimento linguístico;

 

2) o conhecimento de mundo, quer declarativo (que adquirimos já pronto, pelos livros, pelo que nos ensinam os professores, etc.), quer episódicos (frames, scripts), que são adquiridos em nossas experiências sociais de diversas situações e eventos da vida cotidiana;

 

3) o conhecimento da situação comunicativa e suas regras (situcionalidade);

 

4) o conhecimento superestrutural ou de tipos e gêneros textuais;

 

5) o conhecimento estilístico ou o conhecimento das variedades da língua e sua adequação às diferentes situações de interação;

 

6) o conhecimento de outros textos que circulam em nossa cultura (intertextualidade).

 

Interpretar é uma atividade interativa, demasiadamente complexa de produção de sentidos, dado que se realiza com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua estrutura formal, e demanda a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos e sua reativação, reconstrução ao longo do evento comunicativo (ou da leitura).

No âmbito dos estudos em Análise do Discurso, Eni P. Orlandi ensina que ler são significa poder produzir qualquer sentido. Embora os sentidos possíveis para um texto sejam muitos, não pode ser qualquer um. Segundo a autora, “ninguém lê num texto o que quer, do jeito que quer e para qualquer um. Tanto quanto a formulação (emissão), a leitura (compreensão) é também regulada. No entanto, ler (...) é saber que o sentido pode ser outro”. (2012, p. 15).

Qual é, então, o critério que nos permite determinar quais sentidos são possíveis e quais não o são? Só a referência à história, diz Orlandi, permite determinar se a compreensão do leitor foi insuficiente, dadas as possibilidades de sentido previstas pela história de leituras para aquele texto, ou se as excedeu. Na multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto, há uma determinação histórica que faz com que só alguns sentidos sejam “legíveis”, “lidos” e outros não. O modo de produção da linguagem é inerente ao modo de produção social. Todo texto “guarda” uma história de leituras e de sentidos que irá determinar até onde pode ir o leitor em sua leitura.

 

4.1. A competência intertextual

 

Um leitor competente é aquele que também é capaz não só de identificar as relações intertextuais, a presença de outros textos no texto cuja leitura ele realiza, mas também de considerar as razões e a finalidade para a escolhas intertextuais feitas pelo autor. O leitor deve ser capaz, portanto, de responder à questão: por que e para que o autor citou tal ou qual texto, por que e para que aludiu a tal ou qual texto? Reconhecer o caráter intertextual de todo texto implica perguntar-se sobre as funções discursivo-argumentativas desempenhadas pelos outros textos que, incorporados explicitamente ou mencionados implicitamente, constituem a tessitura de todo e qualquer texto. Todo texto é um intertexto.

A intertextualidade é, portanto, constituinte do processo de escrita e leitura. Por intertextualidade, entende-se as diversas maneiras pelas quais a produção e interpretação de um dado texto depende de conhecimentos de outros textos que o leitor precisa ativar. A intertextualidade recobre um processo dialógico dos textos entre si, pois que recobre os diversos tipos de relações que um determinado texto mantém com outros textos. Todo texto é um intertexto.

A intertextualidade pode ser explícita, caso em que se verifica a citação da fonte do intertexto (este texto é um grande intertexto, um tecido composto por outros textos). São exemplos de intertextualidade explícita: discursos relatados como citações, referências; resumos e traduções; retomadas de textos do interlocutor para encadear sobre eles ou questioná-lo na conversação. A intertextualidade pode ser também implícita. Nesse caso, a presença de outros textos se dá sem citação expressa da fonte, exigindo do leitor a capacidade de recuperá-la na memória para construir o sentido do texto. São exemplos de intertextualidade implícita: as alusões, a paródia, certos tipos de paráfrases e ironias.

Finalmente, em sentido amplo, a intertextualidade é um fenômeno constitutivo de todo e qualquer texto; é um componente discursivo das condições de produção de todo texto. Ela é a condição mesma de possibilidade de existência dos textos, já que há sempre um já-dito, um dito prévio a todo dizer. Todo texto é um mosaico de outros textos, de citações, de outros dizeres que o antecederam e que lhe deram origem, a partir dos quais ele se constitui e aos quais responde de algum modo.

 

 

Palavras Finais

 

Integrar a experiência de leitura e, mormente, meu hábito diário de leitura ao domínio das vivências cotidianas estruturadas pelo senso comum não é, para mim, uma tarefa fácil. Não só porque, como este texto procurou mostrar, o mundo do leitor resiste a toda tentativa de ser assimilado pelos esquemas de percepção e compreensão próprios do senso comum, como também, sobretudo, porque a vida cotidiana se me afigura o modo mais límpido e cristalino de expressão da banalidade, da vanidade, da insignificância radical da existência. Tudo que os homens fazem no cotidiano, na azáfama da vida diária, tem esse caráter de loucura reprimida, de absurdidade sistematicamente recusada, de nadidade mantida sob os disfarces de suas ficções culturais e simbólicas. Apercebendo-me da vaidade de todas as coisas que os homens realizam sob o sol, devo igualmente reconhecer que também aquilo que mais amo fazer - que é ler e escrever - cai sob esse imperativo irrecusável: tudo é vaidade! Não é que me doa a insignificância última de todas as coisas em face da mais aguda consciência da inexorabilidade do túmulo, nem tanto os reveses da sorte que podem nos tornar prematura e mortalmente enfermos; o que me atormenta é ver tantas vidas que são privadas, seja pelas aleatoriedades naturais de uma gestação infeliz, seja por uma ordem socioeconômica injusta e perversa, de florescer, de se desenvolver, de participar dos processos de produção humanos deste mundo frágil com suas agitações, com seus estalidos, com seu burburinho no pavoroso silêncio da indiferença abissal do universo. No final das contas, viver é experienciar tudo que se nos dá neste domínio banal e irrecusavelmente real do cotidiano atarefado, das festas, viagens, bebedeiras, do consumo de bens e serviços, da geração e criação dos filhos, do tempo consumido no sofá diante da televisão ou em frente à tela de um celular... Viver, para a maioria esmagadora dos seres humanos, é consumir o corpo e a própria vida para ganhar dinheiro e subsistir até que adoeçam gravemente e morram num dia qualquer, para serem enterrados talvez numa tarde chuvosa entre choros, gemidos e o silêncio indiferente do universo... E tudo isso não significa absolutamente nada... Porque “a vida é apenas uma sombra que passa, um pobre bobo que se pavoneia e se exalta uma hora sobre o palco e depois não se ouve mais, uma história contada por um idiota, cheia de barulho e fúria, e que não quer dizer nada”. (Macabeth).