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terça-feira, 5 de abril de 2016

"O que é a verdade?" Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos" (Nietzsche)

   
                                    


             

              A crítica de Nietzsche à metafísica da verdade

 

 Estando claro, de início, que a expressão “Deus está morto” significa muito mais do que uma constatação do esvaziamento do sentido existencial vinculativo da crença no Deus judaico-cristão; estando claro que essa expressão aponta para o vínculo entre a metafísica e a constituição dos valores superiores e que sua significação consiste no reconhecimento da dissolução da normatividade dos conceitos metafísicos, passemos a considerar a crítica nietzschiana à Verdade como um valor superior do qual Deus é um significante. Na medida em que o signo Deus foi, ao longo da história do desenvolvimento da metafísica, identificado com a Verdade, e a Verdade tornou-se divina, ou seja, um valor superior, o acontecimento da morte de Deus descerra um horizonte que torna possível uma crítica radical da Verdade como valor superior.

A crítica de Nietzsche à Verdade como valor metafísico é um desdobramento de sua crítica à linguagem. No que diz respeito à crítica nietzschiana à linguagem, cingir-nos-emos a compor estes poucos encadeamentos verbais. A linguagem é, para Nietzsche, uma metáfora para as coisas; ela não espelha a realidade tal como é, mas serve tão-só para expressar as relações dos homens com essa realidade. O homem, pelo esquecimento de que é ele o produtor das metáforas (palavras), acredita ser capaz de atingir a verdade através da linguagem. A verdade é, portanto, fruto desse esquecimento. Por isso, para Nietzsche, a verdade é uma ilusão, embora necessária, porque serve à sobrevivência.

Não se reconhecendo como os verdadeiros produtores das metáforas, os homens passam a acreditar que há uma relação de causalidade entre a palavra e o objeto designado. Institui-se, assim, uma mentira social, necessária, no entanto, para a própria organização social e sobrevivência dos homens. O mentiroso é aquele que se usa das palavras, se vale de designações que contrariam as convenções estabelecidas. É somente em estado de rebanho, dirá Nietzsche, vivendo em sociedade, que os homens, por meio do engano, buscam a verdade. A linguagem lhes possibilita estabelecer normas de conduta dentro das comunidades.

A verdade em si é, portanto, inacessível ao intelecto humano, justamente porque ela não é outra coisa senão produto de operações metafóricas que entram na base da constituição de conceitos. Nietzsche nem por isso deixa de reconhecer a vontade de verdade; ele admite que os homens precisam buscar a verdade, porque disso depende a possibilidade mesma de viverem em estado de rebanho e de sobreviverem. Todavia, a vontade de verdade mascara uma face moral (e Nietzsche se especializou em pôr a nu justamente aquilo que está encoberto). Essa face moral que a verdade encoberta se sustenta na oposição metafísica entre verdade e aparência. Essa oposição está na raiz da afirmação de uma vida além-mundo e da negação da vida mesma vivida neste mundo. Em outras palavras, essa oposição leva a que se tome a vida verdadeira como a vida além-mundo e a única vida que conhecemos, a vida neste mundo, como um simulacro, uma imagem imperfeita da verdadeira vida que está além da experiência sensível. A verdade passa a ser considerada, desse modo, um valor superior, transcendente; e a ciência se torna a expressão mais alta da busca da verdade, tomada como absoluta e como algo que deve ser desvelado.

A crítica nietzschiana à verdade redundará também numa crítica à Ciência que se apresentará como mais um Ídolo (um ideal) que precisa ser demolido. A ciência concebe o mundo dotado de uma ordem mecânica, que funciona mediante leis que, se compreendidas, permitem o acesso à verdade. Mas Nietzsche não admite haver qualquer ordem no mundo; para ele, o mundo é um caos, a lógica que supomos encontrar no mundo não está no mundo, mas nos homens. São os homens que logicizam o mundo. São eles que projetam relações de causalidade entre os acontecimentos do mundo. A ciência está, portanto, fundada na crença na vontade de verdade, de tal sorte que a verdade ganha um valor superior. Sendo a verdade um valor superior, Nietzsche concluirá que a ciência não conseguiu liquidar Deus. O Deus da ciência se chama agora a Verdade. A ciência professa sua fé no valor metafísico da verdade. A vontade de verdade se expressa como crença na superioridade da verdade. É nessa crença que a ciência se baseia. A ciência não é possível sem o postulado, sem a hipótese de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade vale mais que a aparência ou a ilusão.

Nietzsche, como grande dessacralizador, desenvolveu sua crítica corrosiva aos ideias superiores com um objetivo bem definido: tornar o mundo mais humano, tornar o homem demasiado humano. Se a ciência fracassou na tentativa de humanizar mais o homem, que alternativa poderia restar a ele? Nietzsche lhe aponta um caminho: a arte. Para Nietzsche, a arte, não deixando de ser uma mentira, é uma mentira que confere, no entanto, profundidade à vida humana. A arte transforma a visão que temos da vida, preterindo, para tanto, da lógica. Ela causa um abalo na percepção que temos do presente. A arte leva em conta a ignorância natural do homem sobre si mesmo. Não tem ela a pretensão de atingir alguma essência do homem, mas tão somente “afetá-lo” em sua superfície. Mas é justamente ao fazê-lo, que ela aproxima o homem de si mesmo. A arte torna a vida mais suportável. O espírito dionisíaco se expressa na arte, e Nietzsche se vale dele para conduzir o homem a um retorno a si mesmo. Nietzsche se propôs naturalizar o homem, livrando-o das sombras de Deus e das ilusões da razão. O homem que se reconhece no engano e reconhece o engano em que sua vida estava imersa é, portanto, um homem livre de seus ídolos (Deus, a Verdade, a Ciência, a Razão, a Lógica...).

Em linhas gerais, portanto, o acontecimento da morte de Deus parece envolver, no horizonte hermenêutico que ele descerra,

 

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;

b) a busca por superar a metafísica platônica;

c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;

d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;

e) a rejeição de uma vida além-mundo.

 

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração, a saber, deixa de ser acolhedor. A morte de Deus permitirá superar a dicotomia entre a vida no mundo e a vida além-mundo.

Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, tendo sido reconhecido que “Deus está morto”. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.

Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito do fato de o acontecimento da morte de Deus impossibilitar-nos o acesso ao “em si”:

 

   “Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia, tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”. (p. 64).


 

O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.

A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a destruição do poderio da verdade. Que Nietzsche tenha ressumado em suas páginas um profundo sentimento antiplatônico é um fato do qual não é difícil dar testemunho; mas dessa constatação não se segue a conclusão de que Nietzsche não tivesse para com o pensamento de Platão uma grande dívida[1]. Vejamos um trecho, que se topa em Crepúsculo dos Ídolos, em que Nietzsche estende seu repúdio a Platão e ao cristianismo. O fragmento é parte de um texto em que Nietzsche nega ter aprendido alguma coisa com os gregos, após, num texto anterior, elogiar o estilo romano.

 

 

 

(...) Para achar graça no diálogo platônico, este tipo de dialética presunçosa e infantil, é preciso jamais ter lido os bons franceses – Fontenelle, por exemplo. Platão é entediante. – Minha desconfiança de Platão vai fundo: afinal, acho-o tão desviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao cristianismo – ele já adota o conceito “bom” como conceito supremo -, que eu utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se soar melhor, idealismo, antes que qualquer outra palavra. Pagou-se caro pelo fato de esse ateniense ter frequentado a escola dos egípcios (- ou dos judeus no Egito?...). Na grande fatalidade que foi o cristianismo, Platão é aquela ambiguidade e fascinação chamada de “ideal”, que possibilitou às naturezas mais nobres da Antiguidade entenderem mal a si próprias e tomarem a ponte que levou à “cruz”...E quanto de Platão ainda se acha no conceito “Igreja”, na construção, no sistema, na prática da Igreja![2]

 

 

A crítica ferina que Nietzsche dispensará ao cristianismo se faz a reboque da crítica radical a que ele submete a metafísica platônica. Nietzsche, como se pode ler no excerto supracitado, vê em Platão um “cristão anterior ao cristianismo”, um tipo decadente, tal como o é o tipo crucificado, o qual Nietzsche opõe ao tipo dionisíaco. O tipo crucificado expressa a funcionalização religiosa da dor (a dor é funcional, porque “serve para”). Para o tipo crucificado, o lugar do “para quê” situa-se no além da vida. Para o tipo dionisíaco, a vida é santa demais para necessitar de uma instância outra, transcendente, que a justifique. Para o tipo dionisíaco, o sofrimento é fecundidade (a vida é fecunda na dor), é possibilidade de reinvenção da vida. Dionísio é um tipo afirmador; é um tipo forte que redime a finitude. O crucificado, ao contrário, é um tipo negador, um tipo cansado, que acusa a finitude. Se os cristãos veem na cruz um lugar de sacrifício de Deus (o Cristo), se para Jesus a cruz é lugar de amor, Nietzsche entenderá que a cruz crucifica a vida.

Toda a metafísica - entenderá Nietzsche - se desenvolveu como acusação da vida. Nietzsche contra Schopenhauer: a visão trágica contra a visão pessimista. Na perspectiva trágica de Nietzsche, a dor, que não deixa de ser uma evidência, é considerada uma parte essencial da tessitura da existência. A dor não deve nos desencorajar de viver, ela não deve ser razão suficiente para desaprovarmos o mundo. Nietzsche encontra no espírito dionisíaco sua fórmula afirmadora da vida. Toda a filosofia nietzschiana é uma filosofia afirmadora da existência, em que pese o reconhecimento do sofrimento como parte estrutural. O homem dionisíaco é um sábio trágico: ele diz sim a um modo específico de viver. Pois toda afirmação da vida é afirmação de modos de conformação da vida, os quais afirmam um modo específico de viver.  O tipo pagão é um tipo vital que se constituiu afirmativamente. O sofrimento é, para ele, promessa de mais vida. O tipo pagão (dionisíaco) afirma a vida no sofrimento.

Na visão pessimista de Schopenhauer, o espetáculo da dor e do mal moral é razão suficiente para desaprovar a existência. Seu pessimismo não tem outra razão de ser senão em face do horror provocado pela realidade da dor. A dor é um escândalo, uma perturbação que precisa ser eliminada. Para Schopenhauer, a pregnância da dor e do sofrimento no mundo é prova de que este mundo não merece ser aprovado.

Nietzsche contra Platão: há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o seu “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica.

De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão; e o pensamento platônico fincou as raízes da formação do pensamento ocidental. Um papel fundamental nessa formação desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o mundo inteligível, ou o mundo das Ideias ou Formas perfeitas. A partir daí, o mundo suprassensível será o fundamento do mundo sensível. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como o conhecemos por meio de nossa percepção sensorial; e de verdadeiro, o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. O dualismo platônico se expressa na admissão da existência de um mundo suprassensível como razão de ser do sensível. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos poderiam ser desenvolvidos, tais como ‘corpo-alma’, ‘essência-existência’, ‘matéria-forma’, ‘fenômeno-númeno’, ‘mundo como vontade-mundo como representação’, etc.

Na Idade Média, com a Patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido pelos cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.

O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim, ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, fatigado, porque eleva sobre a única vida verdadeira uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.

Para a superação deste homem decadente, cansado, produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma superação do próprio homem, se tornaria um criador de valores, “que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nascerá, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo”[3] – em uma palavra, o além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.

Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma mentira. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior. Uma vez que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação distorcida da mensagem de Jesus.

Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, deve, necessariamente, tornar esta vida, aqui e agora, mais forte –vida que precisa ser vivida com todas as suas contradições. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, é um valor decadente, é um valor que leva ao enfraquecimento, à degeneração da vontade de viver.

A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir, da superação da vontade de nada. Nesse sentido, é uma filosofia antiniilista. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista.

O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é experiência de aprovação dos modos de configuração da vida. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati, isto é, amor ao modo como o mundo se destina.

A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro mundo, ao contrário do que ensinou Platão.

O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência, no instante como lugar da eternidade.

 Dionísio transforma o devir, o sofrimento, o aniquilamento em promessa de vida, em ser mais. Na aniquilação, Dionísio faz que a vida seja mais.  O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa.

“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche.

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.

 

BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.

 

CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.

 

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.

 

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.

 

FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.

 

GAARDER, Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

                                                

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

________________ Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

________________ Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

 

________________ Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

________________ Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

_________________ Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

_________________ O Anticristo. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

_________________ A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

_________________ Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

 

PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

 

ROSSET, Clément. A Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

 

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

 

SOUSA, Mauro A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.

 

VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

 

 

 

 



 

[1] Não se deve perder de vista que Nietzsche, ao eleger Platão como seu principal adversário, o fez de modo estratégico. Platão desenvolveu seu pensamento segundo o modelo do lógos. Nietzsche, ao contrário, desenvolveu um pensamento crítico ao modelo do lógos. Nietzsche vê em Sócrates e em Platão marcos do pensamento grego dos séculos V e IV a.C., momento em que surge o pensamento científico-racional.

[2] Crepúsculo dos Ídolos - O que devo aos antigos, § 2.

[3] Genealogia da Moral, Segunda Meditação, §24.


segunda-feira, 28 de julho de 2014

"Você é genuíno? ou apenas um ator? Um representante? ou o que é representado? - Enfim, não passa da imitação de um ator" (Friedrich Nietzsche)

                           



                            Viver como Nietzsche

Fala o desiludido – eu buscava grandes homens, e sempre achei os macacos de seu ideal”.
(Crepúsculo dos Ídolos)

Comecemos, pois. Em princípio, preciso esclarecer o significado pretendido com o título deste texto, dado que esse título autoriza mais de um sentido (possivelmente, muitos). Viver como Nietzsche é viver como uma pessoa conciliada com o real, com a vida. É esse o sentido que pretendo fique, desde já, realçado com a escolha linguística que fiz. Há outro sentido que ilumina o realce do primeiro e que me parece também pertinente. Viver como Nietzsche é viver e perceber o mundo sob o olhar da suspeita. Não suponho que todos sejam capazes de tal experiência contínua e decisiva; pois que, nas sociedades ocidentais, muitos são ainda os decadentes. Cesso de talhar as palavras, pois que não quero torná-las pontiagudas demais. Não quero parecer que me encontro em alguma condição privilegiada, inacessível aos que se interessam por ler-me.
Se o leitor me consentir, inicialmente, que um tal viver, se não é inacessível, ao menos demanda certo labor de um corpo que não se pensa mais como distinto do espírito, de um corpo, aliás, que nega que exista uma tal substância, então posso eu prosseguir com o curso de minhas reflexões.
A produção deste texto é motivada pela necessidade de retornar a Nietzsche, a fim de lhe fixar o lugar de excelência que lhe cabe na incisiva transmutação em meu olhar-sentir o mundo, a existência e a mim mesmo como Dasein (para usar um conceito apropriado de Heidegger).
Em algum lugar, escrevi que a filosofia – e, por consequência, o ateísmo – fez reconciliar-me com o mundo. A leitura de Nietzsche é que me sugeriu essa forma de compreender-me como um renascido dos fracos e decadentes. Quem, em algum momento, leu Nietzsche ou a respeito de sua filosofia sabe alguma coisa concordará na afirmação de que Nietzsche procurou reconciliar o homem com o real. Sua filosofia é seu esforço de tornar o homem reconciliado com a vida e suas forças (dela) no aqui e agora do mundo.
Com vistas a ilustrar o que se deu comigo, depois que passei pela leitura cirúrgica de Nietzsche, tome-se o seguinte passo de um texto meu, escrito há 4 ou 5 anos. O título que encabeça esse texto é A Aurora do Renascimento em Deus. Escusa dizer que, àquela altura, ainda estava aferrado à crença em Deus. Uma nota sobre as condições de produção desse texto é necessária. Ele se reúne a outros tantos textos que compõem uma coletânea de escritos vazados numa linguagem efusivamente místico-religiosa que me acalentou durante um longo período em que vivi entrevado numa liricamente produtiva depressão.

 “Muitas vezes, sinto-me sufocado pelo mundo. Certo dia, quando imerso num profundo desespero, vociferei a irreprimível insatisfação de estar encarnado e irremediavelmente contido nesse mundo. Não aceitava a insensibilidade alheia, a indiferença das pessoas, especialmente das jovens moças a que entregava os filhos líricos de meu coração. Muitos foram rejeitados, abandonados, ignorados pela estreiteza e a vacuidade do coração delas.
Meus poemas eram sopros de anelo cálido e efervescente que minha alma lançava aos Céus, para que Deus me desse beber do cálice do Amor Bendito. E meus poemas não cessavam de nascer, embebidos num pessimismo nefasto.
Algumas tempestades foram necessárias, para que minha alma gozasse da beleza dos dias de um céu azul cristalino e ensolarado. Sempre neguei a matéria, o corpo passível de corrosão, que será consumido pela terra faminta de protoplasmas e citoplasmas. Sou homem, decerto, mas não sou um corpo com alma, mas uma alma com corpo. Esse invólucro é temporário; há de extirpar-se como extinguíveis são as pragas que assolam o milharal.
Como seja eu pura alma em ebulição lírica, desejo incessantemente transcender; busco, mediante a palavra, alcançar universos supra-sensíveis, aos quais o acesso só é possível pela reflexão e introspecção.
Pasme-se, leitor, como também fiquei atônito, ao ler este passo de Huberto Rodhen, em Em Comunhão com Deus, à página 43:
“Para que o homem possa ingressar nesse mundo grandioso do “espírito”, é necessário que transcenda as fronteiras dos “sentidos” e do “intelecto” “.

Há milhares de anos, a vida do homem se estabeleceu no céu dos sentidos e do intelecto. Libertar-se dessa atmosfera de racionalidade e imediatismo é necessário para que o homem logre alcançar as regiões supra-sensíveis e supra-intelectivas. O prelúdio para a experiência real do mundo invisível aos olhos do corpo, mas visível aos olhos da alma, é a fé.”
(BAR)

Como não pretendo me deter na análise deste excerto, porquanto sua leitura é suficiente para tornar possível a apreensão pelo leitor da representação de um ethos que contrasta claramente com o ethos de que é expressão o próximo excerto que vou referir. Ethos, desde Aristóteles, ainda que nele encerre também um sentido moral, significa “imagem de si”. E é o lógos ou o discurso o lugar que engendra o ethos. Com base no conceito de ethos, poder-se-ia ver, pela análise, que a imagem de si construída pelo sujeito do texto acima é a de um indivíduo em claro conflito com o mundo e aprisionado nas ilusões de uma tradição judaico-cristã e platônica à luz da qual ele experiencia a si mesmo e sua relação com o mundo. Mas a tarefa de interpretação deixo ao encargo do leitor. Considere-se, agora, este outro texto, escrito mais recentemente, do qual se depreende um outro ethos- um ethos cirurgicamente modificado pela leitura de Nietzsche e, de modo geral, pela imersão aturada na literatura filosófica.

“A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito. Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste espírito niilista que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci. Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil, para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).”

(BAR)


Esse fragmento foi colhido do texto, publicado neste blog, em 11 de março de 2013, cujo título é reencontrando-me. O referido fragmento já inicia com a declaração da transformação cirúrgica empreendida pela filosofia no sujeito que se constrói no curso do discurso. Em seguida, evoca o legado de Nietzsche, cuja filosofia foi determinante do salto de reconciliação com o mundo dado por esse eu então afetado ou renascido. No texto, esse eu afetado se reencontra com a imagem-de-eu de outrora, ciente,  no entanto, de que sua condição atual é tão imagética quanto o fora no tempo para o qual se reporta.  Esse “eu” já não se crê como substância; sabe-se como um sintoma de um corpo, ou um feixe de representações, sensações, sentimentos de um cérebro. Sabe que, outrora, era um ídolo em cuja centralidade concentrava todas as fraquezas da vida. Que o leitor ausente tire as conclusões que lhe forem mais coerentes, eu consinto, contanto que não se convença delas apressadamente. Já tarda o momento de me ocupar com a exposição da contribuição do pensamento de Nietzsche. Retomo suas demolidoras marteladas filosofantes, com o propósito de elucidar de que modo se nos aproveita o viver como Nietzsche.

1. Nietzsche e a filosofia do martelo

Nietzsche inaugurou a época do que viria a ser chamado de desconstrução da metafísica e da religião. Se assumirmos que o materialismo é a filosofia que sustenta serem ilusórias todas as formas de transcendência, serem ilusórios todos os nossos ideais e serem nossos valores produtos inconscientes de certas realidades materiais, deveremos aceitar, forçosamente, que Nietzsche fora o verdadeiro fundador do materialismo contemporâneo (Ferry, 2008).
Nietzsche desenvolveu uma crítica radical do que ele chamou de ídolos’, a saber, todos os ideais que puseram em movimento a atividade filosófica, religiosa e política durante séculos. Nietzsche foi o desconstrutor, aquele que, nas suas próprias palavras, “filosofava a marteladas” (Ferry, 2008).
Embora se tenha reconhecido como um herdeiro das Luzes, sua crítica ácida continuou o que as Luzes não levou adiante. O espírito crítico das Luzes insurgiu-se contra a religião e a metafísica, denunciando suas ilusões. Todavia, não levou adiante sua empresa; e passou a exigir e a adotar novos ídolos, quais sejam: a Razão, a Verdade, a Democracia, a República, a Liberdade, etc. Esses ídolos ocuparam o lugar deixado pelo mundo inteligível de Platão e pelo paraíso dos cristãos. Posteriormente, àqueles ídolos se reuniram outros como o Socialismo, o Anarquismo, o Comunismo, o Cientificismo, o Patriotismo, etc.
Nietzsche tão logo se apercebeu de que esses ídolos laicos ainda mantinham intacta a estrutura do além em detrimento do mundo real do aqui em baixo. Em Vencer os medos (2008), o filósofo Luc Ferry dá-nos a saber no que consistia o trabalho do espírito crítico para Nietzsche.

“O espírito crítico tem, portanto, de voltar a trabalhar e continuar criticando o que as próprias Luzes, por uma espécie de inconseqüência, por falta de radicalidade, deixaram subsistir das antigas formas religiosas” (p. 73).


Quando Nietzsche declarou “Deus está morto”, não reconheceu tão-somente a morte dos ídolos que o homem fabricou, mas também a do Homem do humanismo. Todos os seus ídolos, ou seja, todos os seus ideais mantinham a estrutura fundamental da religião e, por isso, deviam ser demolidos.
Nietzsche fez “tabula rasa” da tradição ocidental (mais especificamente, dos valores dessa tradição), levando a termo uma empresa que Descartes e as Luzes, antes dele, tinham já iniciado. Sucedeu, contudo, que tanto Descartes quanto as Luzes deixaram inacabado o trabalho.


2. Nietzsche – o contrário de um niilista

Não pretendo fazer incursão na discussão sobre se Nietzsche desenvolveu ou não um pensamento que poderia ser filiado à esteira do pensamento niilista. O que me ocupará é a tarefa de mostrar o que Nietzsche entendia por niilismo, para, assim, situá-lo como o contrário de um niilista, tal como nós o entendemos hoje.

Comecemos por notar o seguinte: na medida em que Nietzsche insurgiu-se contra todos os ídolos da cultura ocidental, Nietzsche dispensou uma crítica severa ao niilismo que constitui o cerne dessa cultura. 
À luz do nosso entendimento atual do termo niilismo, Nietzsche pode parecer-nos um partidário do niilismo, visto que se dedicou a demolir todo um universo de valores sobre os quais o homem ocidental ancorou até então sua vida. A pós-modernidade, que, àquela altura, Nietzsche viria a inaugurar, pode ser caracterizada como o período profundamente marcado pela perda do universo de referência axiológico que orientava a vida do homem. No entanto, o niilismo, para Nietzsche, significava algo totalmente contrário ao que significa para o senso comum hoje. Para nós, um niilista é aquele que não defende nenhum valor, que não tem ideal. Para Nietzsche, ao contrário, niilista é justamente aquele homem que vive aferrado a “convicções empedernidas” e excessivamente morais. Niilista, segundo Nietzsche, seria aquele que tem ideais, sejam eles religiosos, metafísicos ou laicos, humanistas ou materialistas. Cabe, aqui, frisar que Nietzsche não rejeitava apenas os ideias metafísico-religiosos, mas todos os tipos de ideais, inclusive os gestados pela mentalidade laica e cientificista.
Ora, segundo a perspectiva nietzschiana, os ideais – os ídolos – são não só irreais, como também mantenedores da estrutura metafísico-religiosa do além. Essa estrutura aniquila o real. Esses ideais foram inventados pelos seres humanos a fim de revestir de sentido a sua vida, e também a fim de consolá-los na experiência de sua finitude; sob muitos aspectos, por isso, esses ideais negam a vida como ela é.
O idealismo é, portanto, para Nietzsche, um niilismo, se entendermos por idealismo uma atitude de negação do real em nome do ideal. Toda tentativa de melhorar o que existe em nome de um futuro próspero, em que se dará a realização do homem, ou em nome de um sentido velado, de um projeto superior, é um niilismo. É contra esse niilismo que se erige a crítica de Nietzsche. É esse niilismo que tem de ser negado, se intentamos resgatar o real do peso da moral do ressentimento à qual ele sucumbiu. Trata-se – evocando as palavras de Sponville – de lamentar um pouco menos, de esperar um pouco menos para amar um pouco mais. O desespero de Nietzsche, o desespero de Sponville não é o desespero do qual tenta incessantemente fugir o homem decadente; é um desespero afirmativo do real, porque é a própria ausência de qualquer esperança. Para amar o real, o presente, é preciso livrar-se das esperanças que nos põem sob o domínio da tirania do futuro. Amar o real, dirá Nietzsche, é amá-lo como presença tal como nos é dada. É o que ele chama de amor fati, que é o amor pelo que existe, que é a “inocência do devir”, uma inocência que se conquista no momento em que nos libertamos do peso das paixões tristes que nos mantêm atados ao passado e das nostalgias e das culpas (Ferry, p. 80). Nietzsche retoma aqui a sabedoria dos antigos e anuncia a necessidade de nos libertarmos da tirania do futuro e das ilusões da esperança (ib.id.).
Nietzsche se apresentava como um imoralista, ou mesmo como o Anticristo. Se isso repugna às sensibilidades forjadas em nossa tradição moral de base judaico-cristã, é que essa repugnância é sintoma de uma enviesada compreensão de Nietzsche. Não era Jesus o alvo da corrosiva crítica nietzschiana, mas a Igreja, o sacerdote, o cristianismo.

O filósofo de Röcken procurou afastar os perigos do niilismo, situando-se “além do bem e do mal”. Em sua própria vida, não deixou de distinguir entre formas de vida doentias, nocivas, atrofiadas, astênicas, em suma, “ruins”, e formas de vida mais vivas, mais generosas, mais afirmativas e alegres (Ferry, p. 75).


3. O homem dionisíaco


O conceito de dionisíaco constitui o pilar que sustenta o pensamento de Nietzsche em O nascimento da tragédia (1872). O dionisíaco reúne o conhecimento da dimensão trágica da vida à fruição alegre e robusta dela (vida). Com esse conceito, Nietzsche se opôs ao pessimismo shcopenhauriano. Ao contrário de Schopenhauer, Nietzsche buscou uma justificação da vida, uma afirmação da vida sem concessão, em que pese seus aspectos mais terríveis e pungentes. O amor fati é uma espécie de convocação de Nietzsche a que amemos a vida mesmo naquilo que ela tem de mais doloroso. É neste momento em que atingimos o ápice do viver como Nietzsche. Seria possível continuar amando a vida mesmo depois das mais incisivas e pungentes cicatrizes? É possível amá-la mesmo quando ela é sentida como uma doença que contraímos sem qualquer responsabilidade no contágio? Precisemos bem o ‘lugar’ donde essas questões se enunciam, pois que Nietzsche não está sugerindo que amemos a vida por um decreto de uma autoridade heteronômica (de Deus, por exemplo). O homem de Nietzsche, ou melhor, o homem dionisíaco, é um homem desesperado, no sentido de que ele não nutre esperanças, ilusões, não espera viver a eternidade num além-mundo.
O dionisíaco não é apenas o conceito que orienta a filosofia de Nietzsche; é, provavelmente, o único conceito que atravessa toda a sua obra. No seu O nascimento da tragédia, Nietzsche objetivou, fundamentalmente, construir uma filosofia trágica da existência. Essa filosofia se apresenta como uma alternativa ao cristianismo que culpa o mundo desde o surgimento do primeiro homem.
Na figura do deus grego de origem oriental Dionísio, Nietzsche viu o contraponto ao cristianismo que tanto influenciou a sua infância. Sem pretender deslindar toda a temática dionisíaca, quero, no entanto, frisar a seguinte ideia fulcral, e a partir dela precisar quem é o homem dionisíaco: o trágico é apresentado em Nietzsche, sob a perspectiva de uma filosofia pessimista e estética. Todavia, trata-se do pessimismo dos fortes, como tal, de um pessimismo que não nega a vida. Esse pessimismo trágico aceita a existência e a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento.
A alegria, de acordo com essa perspectiva, deve ser encontrada não na harmonia; mas na dissonância. O mundo trágico é um mundo sem redenção. Nietzsche teve a coragem de ligar o pessimismo ao instinto de vida. Longe de significar fraqueza, seu pessimismo afirma a força da vida, a robustez da vida. Segundo Nietzsche, o pessimismo é fonte de alegria.
Em suma, o homem dionisíaco é sinônimo de homem trágico. Ele é uma resposta ao pessimismo de Schopenhauer, que enfraquece a vida. O trágico, em Nietzsche, é o que nos permite viver. O homem trágico vê a vida cheia de alegria e de poder, a despeito – o que não nos deixa de impressionar – da mutabilidade fenomênica de suas formas. É devido ao sofrimento inerente à vida que o homem dionisíaco a afirma. Numa passagem que me parece suficientemente elucidativa, em O nascimento da tragédia (2007) Nietzsche anuncia a que se opõe a sua (contra)doutrina dionisíaca:

“A moral não seria uma “vontade de negação da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contra-doutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (ênfase no original, p. 18)”.


Compreende-se, quando se atenta para o excerto acima, pois, que homem dionisíaco é o oposto do homem cristão; é o próprio anticristo, porque não busca um além que nega a vida.  Esse homem dionisíaco não encara o sofrimento como a via crúcis para ir ao encontro da eternidade no colo acolhedor de Deus. O sofrimento não é, para ele, um pedágio que se paga no aqui para permanecer fiéis à travessia para a eternidade.
Na concepção trágica de Nietzsche, a vida se estrutura pela dissonância prazer/dor. A vida se apresenta como vida sem redenção, que não oferece escapatória, e da qual também não se espera escapar. É esta a vida eterna, o eterno retorno da vida, de que fala Nietzsche em seu Crepúsculo dos Ídolos. Nessa obra, encontramos a definição do pensamento dionisíaco, com cuja apresentação ponho termo a este texto, com a certeza de que o que se silencio fala mais (produz mais sentidos) do que aquilo a que dei uma materialidade verbal.


“Aquiescência à vida, até em seus problemas mais afastados e mais árduos; o querer-viver sacrificando alegremente os seus tipos mais realizados para a sua própria e inesgotável fecundidade – é tudo isto o que chamei dionisíaco”.