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terça-feira, 23 de outubro de 2012

"Quão terrível obra é o mundo das superstições! Pobre de nós se tudo isso fosse verdade! (BAR)


   

                 A superstição nossa de cada dia
 
É lugar-comum dizer que o brasileiro é supersticioso. De fato, o é; quem o negaria? O reconhecimento do fato em si não constitui razão suficiente para que lhe dedique um texto. Interessa-me, aqui, na verdade, fazer ver que formas de pensamento supersticioso coexistem com formas de pensamento religioso na consciência do brasileiro. Curiosamente, há entre os que esta terra tropical habitam aqueles para quem não há nenhum conflito entre a crença num Ser superior (Deus) e suas crenças supersticiosas. Não estou assumindo que todas as formas de superstição sejam agasalhadas por todos. Certamente, há muitas pessoas que rejeitam a crença de que um gato preto possa trazer azar, ou que passar por debaixo de uma escada tenha o mesmo efeito danoso. Mas é certo também que muitas pessoas, a despeito de acreditarem em Deus, levam a sério a influência dos astros em sua vida (a astrologia é também uma forma de superstição, considerada, comumente, como pseudociência).

O que é superstição? Invés de apresentar, desde já, uma definição, começarei com uma ilustração. Suponhamos que você tenha quebrado um espelho em sua casa e, nesse mesmo dia, fica sabendo de sua demissão. Você, supersticioso ou supersticiosa, acreditará que o fato de ter quebrado o espelho fez com que tivesse uma má sorte, ou seja, perdesse o emprego. Você busca estabelecer uma relação de causalidade entre dois eventos que, logicamente, não se prestam a tal associação. Toda superstição é, portanto, uma forma de pensar contrário à racionalidade ou à lógica. Se depois de avistar um gato preto, eu tropecei e caí no chão, é possível que eu tenha concentrado tanto a minha atenção no animal, que me distrai e não vi um desnível no chão diante de mim. Sucedeu um acidente, cuja causa, provavelmente, estivesse em minha desatenção.
Assim, por superstição podemos entender a crença em que há relações de causa-efeito entre eventos aos quais tais relações não se aplicam logicamente. Tal crença é contrária à racionalidade. Não há por que supor uma relação de causa-efeito entre o fato de eu ter quebrado o espelho em casa e de, posteriormente, saber de minha demissão. Há, decerto, uma causa para que eu fosse demitido; talvez, se devesse à necessidade de “cortar custos” na empresa.
Eu não pretendo me alongar sobre o assunto. Quero apenas chamar a atenção de meus leitores para o fato de que se pode ser religioso, se pode crer na existência de um ser providente (pode-se crer na providência de Deus, isto é, na suprema sabedoria com que ele governa todas as coisas), na existência de um ser, acima de tudo, amoroso e protetor, mas, ainda assim, acreditar que a existência individual está submetida às contingências da sorte ou do azar.

        Quantos religiosos dão três leves pancadas com o punho fechado numa madeira, crendo que, assim, afastam um possível infortúnio? Decerto, eu também conservei esse hábito durante um longo período de minha vida (quando ainda acreditava em Deus). Para mim, hoje isso soa bastante ridículo. Quem acredita em Deus não poderia acreditar, a princípio, nas flutuações do acaso. A crença de que, se não dermos três batidinhas na madeira, o infortúnio enunciado possa, de fato, sobrevir é incompatível com a crença na providência divina. Ora, ou Deus “está no comando” de tudo que nos acontece, seja positivamente, seja negativamente, ou estamos à mercê das contingências da sorte (aqui entendida como “destino”). Se Deus é o tecelão do destino, não há espaço para o acaso e a má sorte.
Lembro aqui um caso trágico de uma jovem que morrera quando, andando pela calçada a caminho do trabalho, fora atingida por uma roda de caminhão (.http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html), na Avenida Brasil (RJ). De fato, interpretamos o caso como uma fatalidade, uma coincidência infeliz, desastrosa. Os religiosos têm de lidar (ou pelo menos, teriam de lidar) com o fato de que Deus não pôde (ou não quis) salvá-la. Eu não me surpreenderia se um religioso dissesse tratar-se de pura falta de sorte da moça. E ainda acrescentasse “que Deus tenha compaixão para com a sua família”.
Superstições e formas ritualísticas, como simpatias, povoam o imaginário do brasileiro declaradamente religioso. Isso não deveria causar espanto, já que as religiões são consideradas, à luz da racionalidade, formas de superstição.
 Oração e simpatias guardam afinidade. Ambas são práticas que visam à obtenção de alguma coisa. O que as difere, fundamentalmente, é que o efeito benéfico da primeira depende da autoridade de uma força superior (em geral, um deus); o que não sucede com as simpatias. Nestas, a pessoa manipula certos objetos, combina-os, executa certas tarefas segundo passos pré-estabelecidos, para obter a realização de seu desejo (v. http://www.blogodorium.com.br/simpatias-para-marido-amarrar-amansar-e-para-ele-voltar/).  Ambas, contudo, exigem que a pessoa tenha fé.
Assim como é interessante buscar entender a origem do pensamento religioso no homem, também interessante é investigar sobre a origem de muitas superstições. Vejamos as razões históricas para algumas das muitas superstições comuns entre nós.
A  superstição do gato preto surgira na Idade Média, época em que se acreditava que os felinos, por seus hábitos noturnos, tinham pacto com o demônio, especialmente se fossem da cor preta, que lembrava as trevas. No Egito, entretanto, os gatos são considerados sagrados; portanto, animais que trazem boa sorte. A má fama do gato preto entre nós remonta à Idade Média, tempo em que também se acreditava que uma bruxa podia tomar a forma de um gato preto.
A superstição do bater na madeira parece estar associada à antiga crença de que bons espíritos residiam em árvores. Bater na madeira, assim, é uma forma de a pessoa invocar os espíritos a que a protejam. Trata-se de um costume pagão. Os sacerdotes celtas  costumavam bater na madeira para afugentar maus espíritos, porque acreditavam que as árvores eram capazes de consumir demônios.
Outra superstição cuja origem é curiosa é a de abrir o guarda-chuva dentro de casa. Acredita-se que se abrirmos um guarda-chuva dentro de casa, recairá sobre nós azar. Uma possível explicação para essa crença decorre do hábito, mais comum entre os antigos, de abrir o guarda-chuva para se proteger contra os raios solares.  Assim é que, abrindo o guarda-chuva dentro de casa, insultava-se o deus sol. Há quem a explique de outro modo. Como o guarda-chuva nos protege contra as tempestades, acredita-se que, abrindo-o dentro de casa, insultam-se os espíritos guardiães, do que resulta ficarmos desprotegidos contra as intempéries da vida.
Há ainda a crença de que, se derramarmos um pouco de sal no ombro esquerdo, livramo-nos da má sorte. A explicação para essa superstição prende-se à lenda, segundo a qual, estando o diabo sempre em pé atrás de nós, joga-se sal para trás a fim de acertar-lhe os olhos.
Finalmente, a crença em que um trevo de quatro folhas traz boa sorte está associada ao mito de Adão e Eva. Conta-se que, após a expulsão do paraíso, Eva levara a Adão um trevo de quatro folhas como lembrança de uma vida venturosa no paraíso.
Clara está a relação intrínseca entre superstição e religião. Várias superstições parecem ter-se originado de crenças religiosas. Disso não se segue que todos os fiéis admitam a confluência de interpretações supersticiosas com suas crenças religiosas. Uns podem ser mais ou menos suscetíveis que outros a buscar explicações para os acontecimentos da vida que não se alicerçam no sistema doutrinário de sua fé religiosa. No entanto, cuido que, em alguma medida, a formação religiosa contribui para manter algumas estruturas do pensamento supersticioso na consciência do homem comum.
O pensamento religioso-supersticioso não mina, de modo algum, o pensamento racional, é claro. Mas poderá exigir a reorientação e aplicação deste na compreensão do mundo em outras esferas ou práticas da vida. Por exemplo, hoje, usamos a razão para entender por que estamos gripado e com febre (penso que não se acredite mais, pelo menos nas sociedades “civilizadas”, na possessão de maus espíritos como causa de nossas doenças); também a usamos quando buscamos tratar da gripe (vamos ao médico, tomamos os remédios que ele receita e procuramos seguir suas orientações); isso não impede que muitos dentre nós, façam uma oração, caso a gripe se agrave; e, por incrível que pareça, não impede que o absurdo da fé interfira fatalmente no destino de uma pessoa, como no caso de uma aluna adepta da crença cristã dissidente Testemunhas de Jeová, que se recusara a receber transfusão de sangue, simplesmente porque contrariava um preceito de sua fé (v. http://www.paulopes.com.br/2012/10/minha-aluna-tj-morreu-por-recusar-transfusao.html#.UIbXS2_A9Hc). Nesse caso, de fato, o pensamento supersticioso se sobrepôs ao pensamento racional, na base do qual se deveria pautar a decisão da família. O bom-senso sucumbiu à convicção absurda da fé. Para os cristãos que não comungam da interpretação de tal seita dissidente, o negar-se a continuar vivo, recusando-se a receber sangue, é, certamente, uma atitude contrária à vontade de Deus. Para essa classe de cristãos (católicos, por exemplo), o ato de doar sangue para salvar uma vida e o de aceitar a doação são atitudes agradáveis a Deus. As Testemunhas de Jeová entendem diferente. Baseando-se em alguns ensinamentos bíblicos e, ingenuamente, supondo que tenha sido um mandamento divino, esses cristãos veem nos registros bíblicos abaixo a expressão da proibição à transfusão de sangue.



10. A todo israelita ou a todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer qualquer  espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei no meio de seu povo. 11. Pois a alma de carne está no sangue; e dei-vos esse sangue para o altar; a fim de que ele sirva de expiação por vossas almas, porque é pela alma que o sangue expia. 12. Eis porque eu disse aos israelitas: ninguém dentre vós comerás sangue, nem o estrangeiro que habita no meio de vós. 13. Se um israelita ou um estrangeiro que habita no meio deles capturar um animal ou um pássaro que se possa comer, derramará o seu sangue, e o cobrirá com terra, porque a alma de toda carne é o sangue que é sua alma. Eis porque eu disse aos israelitas: não comereis sangue de animal algum, porque a alma de toda carne é o seu sangue; quem o comer será eliminado”.

(Levítico 17: 10-13)



“28. Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável. 29. Que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da impureza. Dessas coisas fazeis bem de vos guardar conscienciosamente.”

(Atos, 15: 28, 29)


      
                     (Actos dos Apóstolos 15:28, 29)

Parece-me que a ignorância sobre o contexto sócio-histórico da produção dos livros bíblicos (a Bíblia é composta de textos de várias épocas e lugares; só a Bíblia hebraica (Antigo Testamento) tem aproximadamente mais de mil e quinhentos anos e seu texto mais antigo remonta a 1200 a.C. (cf. Swenson, 2010)) explica o sério equívoco de interpretação. O livro Levítico (referente ao terceiro filho de Jacó, cujo nome – Levi - designou uma das tribos de Israel) trata do acordo entre Deus e os protoisraelitas.  Compreende uma série de leis sobre a regulamentação de várias esferas da vida (matrimônio, sacrifícios, festas, etc.). O autor de Levítico estava orientando seu povo sobre novas formas de se relacionar com Deus, pela supressão de antigos costumes. Em Atos, o tema é o desenvolvimento da Igreja nascente, no que diz respeito tanto às suas raízes judaicas quanto ao Império Romano. O autor (possivelmente, Lucas; mas há controvérsia) proíbe o sacrifício de animais, prática comum entre os antigos judeus e pagãos. Ver aí uma proibição à transfusão de sangue, prática inexistente na época (verificada, embora de modo pouco ortodoxo, no século XV d.C), é superinterpretar o texto ou distorcer o sentido previsto pelo texto.  Como os sentidos são produzidos num contexto sócio-histórico e ideológico, convém que possam ser reconstruídos com base nas informações sobre esse contexto. O aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso pode nos auxiliar nesta tarefa.
Eu tenho insistido, mas voltarei, em breve, ao assunto, que a grande maioria dos religiosos que se sentam nos bancos das igrejas, que oram e seguem os rituais do culto ou da missa, ignoram a História da fabricação da Bíblia.  Os autores bíblicos não tinham o compromisso com a verdade histórica ou com o relato fidedigno do que aconteceu historicamente. Por isso, convém atentar para as palavras de Mckenzie, em Como ler a Bíblia, história, profecia ou literatura (2007):



“A Bíblia, naturalmente, reflete a cultura da sociedade dos antigos israelitas e gregos romanos, onde foi produzida. Ela foi escrita em hebraico e em grego, e não em inglês [português]. Não esperamos encontrar em suas páginas referências ao estilo de vestuário ocidental ou modos de transporte modernos. Nem devemos esperar que apresente estilos literários contemporâneos. A interpretação errônea do gênero leva o leitor contemporâneo a expectativas irreais e algumas vezes não razoáveis sobre o conteúdo e a mensagem da Bíblia”.
(p. 28)