A
superstição nossa de cada dia
É lugar-comum dizer
que o brasileiro é supersticioso. De fato, o é; quem o negaria? O
reconhecimento do fato em si não constitui razão suficiente para que lhe
dedique um texto. Interessa-me, aqui, na verdade, fazer ver que formas de
pensamento supersticioso coexistem com formas de pensamento religioso na
consciência do brasileiro. Curiosamente, há entre os que esta terra tropical
habitam aqueles para quem não há nenhum conflito entre a crença num Ser
superior (Deus) e suas crenças supersticiosas. Não estou assumindo que todas as
formas de superstição sejam agasalhadas por todos. Certamente, há muitas
pessoas que rejeitam a crença de que um gato preto possa trazer azar, ou que
passar por debaixo de uma escada tenha o mesmo efeito danoso. Mas é certo
também que muitas pessoas, a despeito de acreditarem em Deus, levam a sério a
influência dos astros em sua vida (a astrologia é também uma forma de
superstição, considerada, comumente, como pseudociência).
O que é superstição?
Invés de apresentar, desde já, uma definição, começarei com uma ilustração.
Suponhamos que você tenha quebrado um espelho em sua casa e, nesse mesmo dia,
fica sabendo de sua demissão. Você, supersticioso ou supersticiosa, acreditará
que o fato de ter quebrado o espelho fez com que tivesse uma má sorte, ou seja,
perdesse o emprego. Você busca estabelecer uma relação de causalidade entre
dois eventos que, logicamente, não se prestam a tal associação. Toda
superstição é, portanto, uma forma de pensar contrário à racionalidade ou à
lógica. Se depois de avistar um gato preto, eu tropecei e caí no chão, é
possível que eu tenha concentrado tanto a minha atenção no animal, que me
distrai e não vi um desnível no chão diante de mim. Sucedeu um acidente, cuja
causa, provavelmente, estivesse em minha desatenção.
Assim, por superstição podemos entender a crença em
que há relações de causa-efeito entre eventos aos quais tais relações não se
aplicam logicamente. Tal crença é contrária à racionalidade. Não há por que supor
uma relação de causa-efeito entre o fato de eu ter quebrado o espelho em casa e
de, posteriormente, saber de minha demissão. Há, decerto, uma causa para que eu
fosse demitido; talvez, se devesse à necessidade de “cortar custos” na empresa.
Eu não pretendo me
alongar sobre o assunto. Quero apenas chamar a atenção de meus leitores para o
fato de que se pode ser religioso, se pode crer na existência de um ser
providente (pode-se crer na providência de Deus, isto é, na suprema sabedoria
com que ele governa todas as coisas), na existência de um ser, acima de tudo,
amoroso e protetor, mas, ainda assim, acreditar que a existência individual
está submetida às contingências da sorte ou do azar.
Quantos religiosos dão três leves pancadas com o punho fechado numa madeira, crendo que, assim, afastam um possível infortúnio? Decerto, eu também conservei esse hábito durante um longo período de minha vida (quando ainda acreditava em Deus). Para mim, hoje isso soa bastante ridículo. Quem acredita em Deus não poderia acreditar, a princípio, nas flutuações do acaso. A crença de que, se não dermos três batidinhas na madeira, o infortúnio enunciado possa, de fato, sobrevir é incompatível com a crença na providência divina. Ora, ou Deus “está no comando” de tudo que nos acontece, seja positivamente, seja negativamente, ou estamos à mercê das contingências da sorte (aqui entendida como “destino”). Se Deus é o tecelão do destino, não há espaço para o acaso e a má sorte.
Lembro aqui um caso
trágico de uma jovem que morrera quando, andando pela calçada a caminho do
trabalho, fora atingida por uma roda de caminhão (.http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html), na Avenida Brasil
(RJ). De fato, interpretamos o caso como uma fatalidade, uma coincidência
infeliz, desastrosa. Os religiosos têm de lidar (ou pelo menos, teriam de
lidar) com o fato de que Deus não pôde (ou não quis) salvá-la. Eu não me
surpreenderia se um religioso dissesse tratar-se de pura falta de sorte da
moça. E ainda acrescentasse “que Deus tenha compaixão para com a sua família”.
Superstições e
formas ritualísticas, como simpatias, povoam o imaginário do brasileiro
declaradamente religioso. Isso não deveria causar espanto, já que as religiões
são consideradas, à luz da racionalidade, formas de superstição.
Oração e simpatias guardam afinidade. Ambas
são práticas que visam à obtenção de alguma coisa. O que as difere,
fundamentalmente, é que o efeito benéfico da primeira depende da autoridade de
uma força superior (em geral, um deus); o que não sucede com as simpatias. Nestas,
a pessoa manipula certos objetos, combina-os, executa certas tarefas segundo
passos pré-estabelecidos, para obter a realização de seu desejo (v. http://www.blogodorium.com.br/simpatias-para-marido-amarrar-amansar-e-para-ele-voltar/).
Ambas, contudo, exigem que a pessoa tenha fé.
Assim como é
interessante buscar entender a origem do pensamento religioso no homem, também
interessante é investigar sobre a origem de muitas superstições. Vejamos as razões
históricas para algumas das muitas superstições comuns entre nós.
A superstição do gato preto surgira na Idade Média, época em que se acreditava que
os felinos, por seus hábitos noturnos, tinham pacto com o demônio,
especialmente se fossem da cor preta, que lembrava as trevas. No Egito,
entretanto, os gatos são considerados sagrados; portanto, animais que trazem
boa sorte. A má fama do gato preto entre nós remonta à Idade Média, tempo em
que também se acreditava que uma bruxa podia tomar a forma de um gato preto.
A superstição do bater na madeira parece estar associada
à antiga crença de que bons espíritos residiam em árvores. Bater na madeira,
assim, é uma forma de a pessoa invocar os espíritos a que a protejam. Trata-se
de um costume pagão. Os sacerdotes celtas
costumavam bater na madeira para afugentar maus espíritos, porque
acreditavam que as árvores eram capazes de consumir demônios.
Outra superstição
cuja origem é curiosa é a de abrir o
guarda-chuva dentro de casa. Acredita-se que se abrirmos um guarda-chuva
dentro de casa, recairá sobre nós azar. Uma possível explicação para essa
crença decorre do hábito, mais comum entre os antigos, de abrir o guarda-chuva
para se proteger contra os raios solares.
Assim é que, abrindo o guarda-chuva dentro de casa, insultava-se o deus
sol. Há quem a explique de outro modo. Como o guarda-chuva nos protege contra
as tempestades, acredita-se que, abrindo-o dentro de casa, insultam-se os
espíritos guardiães, do que resulta ficarmos desprotegidos contra as intempéries
da vida.
Há ainda a crença de
que, se derramarmos um pouco de sal no ombro esquerdo, livramo-nos da má sorte.
A explicação para essa superstição prende-se à lenda, segundo a qual, estando o
diabo sempre em pé atrás de nós, joga-se sal para trás a fim de acertar-lhe os
olhos.
Finalmente, a crença
em que um trevo de quatro folhas traz boa sorte está associada ao mito de Adão
e Eva. Conta-se que, após a expulsão do paraíso, Eva levara a Adão um trevo de
quatro folhas como lembrança de uma vida venturosa no paraíso.
Clara está a relação
intrínseca entre superstição e religião. Várias superstições parecem ter-se
originado de crenças religiosas. Disso não se segue que todos os fiéis admitam
a confluência de interpretações supersticiosas com suas crenças religiosas. Uns
podem ser mais ou menos suscetíveis que outros a buscar explicações para os
acontecimentos da vida que não se alicerçam no sistema doutrinário de sua fé
religiosa. No entanto, cuido que, em alguma medida, a formação religiosa
contribui para manter algumas estruturas do pensamento supersticioso na
consciência do homem comum.
O pensamento
religioso-supersticioso não mina, de modo algum, o pensamento racional, é
claro. Mas poderá exigir a reorientação e aplicação deste na compreensão do
mundo em outras esferas ou práticas da vida. Por exemplo, hoje, usamos a razão
para entender por que estamos gripado e com febre (penso que não se acredite
mais, pelo menos nas sociedades “civilizadas”, na possessão de maus espíritos
como causa de nossas doenças); também a usamos quando buscamos tratar da gripe
(vamos ao médico, tomamos os remédios que ele receita e procuramos seguir suas
orientações); isso não impede que muitos dentre nós, façam uma oração, caso a
gripe se agrave; e, por incrível que pareça, não impede que o absurdo da fé
interfira fatalmente no destino de uma pessoa, como no caso de uma aluna adepta
da crença cristã dissidente Testemunhas de Jeová, que se recusara a receber
transfusão de sangue, simplesmente porque contrariava um preceito de sua fé (v.
http://www.paulopes.com.br/2012/10/minha-aluna-tj-morreu-por-recusar-transfusao.html#.UIbXS2_A9Hc). Nesse caso, de fato, o pensamento supersticioso se
sobrepôs ao pensamento racional, na base do qual se deveria pautar a decisão da
família. O bom-senso sucumbiu à convicção absurda da fé. Para os cristãos que
não comungam da interpretação de tal seita dissidente, o negar-se a continuar
vivo, recusando-se a receber sangue, é, certamente, uma atitude contrária à
vontade de Deus. Para essa classe de cristãos (católicos, por exemplo), o ato
de doar sangue para salvar uma vida e o de aceitar a doação são atitudes
agradáveis a Deus. As Testemunhas de Jeová entendem diferente. Baseando-se em
alguns ensinamentos bíblicos e, ingenuamente, supondo que tenha sido um
mandamento divino, esses cristãos veem nos registros bíblicos abaixo a
expressão da proibição à transfusão de sangue.
“10. A todo israelita ou a
todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer qualquer espécie de sangue, voltarei minha face contra
ele, e exterminá-lo-ei no meio de seu povo. 11. Pois a alma de carne está no
sangue; e dei-vos esse sangue para o altar; a fim de que ele sirva de expiação
por vossas almas, porque é pela alma que o sangue expia. 12. Eis porque eu
disse aos israelitas: ninguém dentre vós comerás sangue, nem o estrangeiro que
habita no meio de vós. 13. Se um israelita ou um estrangeiro que habita no meio
deles capturar um animal ou um pássaro que se possa comer, derramará o seu
sangue, e o cobrirá com terra, porque a alma de toda carne é o sangue que é sua
alma. Eis porque eu disse aos israelitas: não comereis sangue de animal algum,
porque a alma de toda carne é o seu sangue; quem o comer será eliminado”.
(Levítico 17: 10-13)
“28. Com efeito, pareceu bem ao
Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável.
29. Que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne
sufocada e da impureza. Dessas coisas fazeis bem de vos guardar
conscienciosamente.”
(Atos, 15: 28, 29)
(Actos dos Apóstolos
15:28, 29)
Parece-me que a ignorância
sobre o contexto sócio-histórico da produção dos livros bíblicos (a Bíblia é
composta de textos de várias épocas e lugares; só a Bíblia hebraica (Antigo
Testamento) tem aproximadamente mais de mil e quinhentos anos e seu texto mais
antigo remonta a 1200 a .C.
(cf. Swenson, 2010)) explica o sério equívoco de interpretação. O livro Levítico
(referente ao terceiro filho de Jacó, cujo nome – Levi - designou uma das
tribos de Israel) trata do acordo entre Deus e os protoisraelitas. Compreende uma série de leis sobre a
regulamentação de várias esferas da vida (matrimônio, sacrifícios, festas,
etc.). O autor de Levítico estava orientando seu povo sobre novas formas de se
relacionar com Deus, pela supressão de antigos costumes. Em Atos, o tema é o
desenvolvimento da Igreja nascente, no que diz respeito tanto às suas raízes
judaicas quanto ao Império Romano. O autor (possivelmente, Lucas; mas há
controvérsia) proíbe o sacrifício de animais, prática comum entre os antigos
judeus e pagãos. Ver aí uma proibição à transfusão de sangue, prática
inexistente na época (verificada, embora de modo pouco ortodoxo, no século XV
d.C), é superinterpretar o texto ou distorcer o sentido previsto pelo
texto. Como os sentidos são produzidos
num contexto sócio-histórico e ideológico, convém que possam ser reconstruídos
com base nas informações sobre esse contexto. O aparato teórico-metodológico da
Análise do Discurso pode nos auxiliar nesta tarefa.
Eu tenho insistido, mas
voltarei, em breve, ao assunto, que a grande maioria dos religiosos que se sentam
nos bancos das igrejas, que oram e seguem os rituais do culto ou da missa,
ignoram a História da fabricação da Bíblia.
Os autores bíblicos não tinham o compromisso com a verdade histórica ou
com o relato fidedigno do que aconteceu historicamente. Por isso, convém
atentar para as palavras de Mckenzie, em Como
ler a Bíblia, história, profecia ou literatura (2007):
“A Bíblia,
naturalmente, reflete a cultura da sociedade dos antigos israelitas e gregos
romanos, onde foi produzida. Ela foi escrita em hebraico e em grego, e não em
inglês [português]. Não esperamos encontrar em suas páginas referências ao
estilo de vestuário ocidental ou modos de transporte modernos. Nem devemos
esperar que apresente estilos literários contemporâneos. A interpretação
errônea do gênero leva o leitor contemporâneo a expectativas irreais e algumas
vezes não razoáveis sobre o conteúdo e a mensagem da Bíblia”.
(p. 28)