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sábado, 16 de maio de 2015

"(...) é preciso necessariamente concluir, de tudo o que disse antes, que Deus existe: pois ainda que a ideia de substância esteja em mim por ser eu mesmo uma substância, eu não teria, porém, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não houvesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Descartes)

                           
                    


                              O Deus cartesiano
                         No caminho da autonomia secularizadora



Introdução

Atendo-se à Revelação, o teólogo do século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor, pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:

1) O Novo Testamento adotou completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e percebendo-o.

2) Há duas novidades que merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para salvar a humanidade de seus pecados.

3) Finalmente, a compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico, penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele não necessita do mundo nem dos homens.

Conquanto se admita que a antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua antropologia?


2. A verdade eterna: o cogito agostiniano

Intentando responder aos céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável, Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico. Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos acontecimentos, mas a verdade eterna. Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade, mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção entre o cogito agostiniano e o cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com Descartes, em cuja filosofia o ego cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo (aparentemente), se contrapõe à objetividade.


3. O cogito cartesiano

Não sem razão Descartes é apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro “moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã, coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica. Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena, irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na tradição.
Com a hipótese do gênio maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da auto-reflexão do cogito. Duvida-se de tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical. Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos que ela sofre um abalo: pois o cogito precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito. O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu - circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado, Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como fundamento das elaborações do cogito. Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu pensamento.
Em Descartes, pode-se dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da existência do mundo.  




sexta-feira, 7 de março de 2014

"Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir." (Descartes)

                                                Resultado de imagem para Descartes


                                                        Filósofos em cena

                                        Cogito, ergo sum
                                                                    (Penso, logo existo)

Ao longo deste texto, debruçar-me-ei sobre a questão do Cogito cartesiano. Antes de atacá-la, serão necessárias algumas considerações prévias que lhe darão uma consistência contextual. Como a questão sobre a qual versa este texto se assenta na distinção entre alma e corpo, convém apresentar, em linhas gerais, como o conceito de alma (em oposição ao corpo) foi definido e desenvolvido na tradição filosófica. Posteriormente, vou-me deter a considerá-lo na filosofia de Platão, cuja posição sobre o tema determinou o caminho das especulações posteriores (cite-se a influência que o pensamento de Platão exerceu sobre o de Santo Agostinho). Em seguida, trago à cena o itinerário da filosofia de René Descartes, etapa em que me deterei a discorrer sobre a questão do Cogito.

1. Anima

Do latim anima, a alma se opõe ao corpo e é um dos princípios do composto humano. Trata-se dos princípios da sensibilidade e do pensamento. A alma torna o corpo vivo distinto da matéria inerte ou da máquina. Para Aristóteles, a alma é “o ato primeiro de um corpo natural organizado”.
Na filosofia antiga e clássica, a alma é tomada como sinônimo de espírito e se opõe ao corpo. Se, por um lado, o corpo está destinado à destruição, ao perecimento, a alma, por outro lado, é indestrutível. É preciso dizer, no entanto, que os antigos falavam de uma imortalidade da alma (ver Platão) e não do espírito.
Na filosofia contemporânea, usa-se apenas a forma espírito. A partir de Kant, questões como a imortalidade da alma não faziam mais parte da alçada da filosofia. Como nos interesse compreender o conceito de alma no racionalismo de Descartes, devemos ter em conta que, em sua filosofia, alma é sinônimo de espírito. Descartes concebia a alma como uma substância completamente distinta do corpo.
Na filosofia antiga e clássica, a alma era vista como o sopro ou princípio da vida e do movimento. Ainda que a ela esteja associado um sentido religioso, a alma ou o espírito recobre a atividade pensante e pode chegar a identificar-se com a mente.
Decerto, a ideia de espírito abriga as atividades intelectuais. Para os materialistas, não há o dualismo corpo-alma, de modo que a alma é tão material quanto o corpo, embora ela assuma uma forma mais sutil da matéria.



2. A alma para Platão

Que a brevidade com que tratarei da questão da relação entre a alma e o corpo em Platão não sinalize uma compreensão empobrecida ou descuido interpretativo meu é coisa com que me preocuparei ao situar o dualismo alma-corpo no pensamento platônico. Não é difícil sustentar que a filosofia platônica deu margem a uma interpretação dualista.
O problema da alma, em Platão, pode ser visto sob duas perspectivas: a primeira toca à relação entre a alma e o corpo e consiste em saber se a alma é ou não separada do corpo; a segunda diz respeito à imortalidade da alma. À parte a distinção feita por Platão entre corpo e matéria – que o cristianismo tratou de tomar como sinônimos -, para Platão, o corpo é mortal; e a alma, imortal. Platão nos legou a crença numa vida após a morte e também a crença em que a alma preexiste ao corpo. E muitas religiões se apropriaram dessa compreensão, ainda que seus doutrinadores sequer tenham consciência disso.
Platão sofreu, como se sabe, influência da doutrina pitagórica, que não só sustentava a imortalidade da alma, mas também a possibilidade de a alma, após a morte do corpo, habitar outros corpos. Ainda que eu esteja ciente de haver certas contradições em Platão, por exemplo, quando admite que o corpo é um suporte da alma tornando possíveis, assim, as sensações – entendimento este que aponta para uma imprescindibilidade do corpo em relação à alma -, mantenho-me no curso de uma interpretação dualista que, em todo caso, Platão autoriza, ao pensar a relação entre a alma e o corpo.
A alma é; o corpo também é. Assim, eles são o mesmo; no entanto, o corpo é a seu modo: é mortal, é perecível; a alma é imortal, imperecível. Nesse sentido, se opõem. A morte nunca atinge, no homem, a alma. Ela foge do corpo, escapando à morte. Daí depreender-se a ideia do corpo como cárcere da alma. Uma vez perecido o corpo, a alma se liberta. No mundo das coisas sensíveis, a alma existia habitando o corpo. Quando a morte atinge o homem, apenas o corpo perece; a alma, todavia, retorna a uma além-mundo donde proveio.
O argumento platônico – aliás como todo argumento – não pretende provar nada, mas convencer. E sua lógica supõe que tudo tem o seu contrário; o contrário da morte é a vida, mas não a vida cujo fim ela decretou: sua lógica não se encerra aí. Ela nos leva a compreender uma continuidade da vida no “além-vida-morte”. Destarte, antes de nascermos neste mundo, antes de vivermos esta vida, já vivíamos em outro mundo e uma outra vida.


3. O racionalismo de Descartes

Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês, é considerado na tradição da historiografia filosófica o pai da filosofia moderna. Embora seja conhecido por ter descoberto a lei da refração, em ótica, seu trabalho mais famoso é uma obra filosófica, intitulada de Meditações sobre a filosofia primeira. Ela orientou as especulações sobre a filosofia da mente e epistemologia por, pelo menos, trezentos anos.
Descartes ventilou questões atinentes ao modo como conhecemos o mundo, valendo-se, para tanto, de um ceticismo radical. A única coisa de que dizia poder ter certeza é de nossa própria existência. Essa certeza toma forma na máxima “Cogito, ergo sum”, traduzida, comumente, como “penso, logo existo”.
Seu objetivo, nas Meditações, era a construção do edifício do conhecimento sobre sólidas fundações. Ao submeter à revisão as crenças que tinha, Descartes se deu conta de que elas eram, por vezes, contrárias entre si. Resolveu, então, por ordem a esse emaranhado de crenças, de sorte que pudesse justificar uma proposição com base em outra por inferência.
Seria, evidentemente, dispendioso e mesmo impossível examinar uma crença por vez. Descartes decidiu, pois, lançar mão de um método: o método da dúvida. Por esse método, se questionava sobre a origem de suas crenças. Se a origem delas se revelasse falível, a crença devia ser descartada; se, ao contrário, se revelasse infalível, ele poderia estar seguro de que qualquer crença da mesma origem garantiria os princípios do conhecimento.
Descartes critica tudo que aprendeu na escola, porque não repousava sobre fundamentos ou princípios sólidos. Para se fundar na certeza, o conhecimento deveria iniciar-se pela busca de princípios absolutamente seguros. O método serve ao homem para conduzir bem a sua razão (para Descartes, a razão é a faculdade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso). Serve-lhe também para procurar a verdade nas ciências. A busca da verdade depende de que sigamos um caminho reto, seguro e certo, isto é, um método.
O bom método deve exibir as seguintes características, segundo Descartes:

1) Deve permitir o conhecimento do maior número possível de coisas;
2) Deve compreender o menor número de regras possível;

O método cartesiano se pretende universal e se inspira no rigor da matemática e se assenta no encadeamento racional. Para Descartes, o método é sempre matemático, visto que no horizonte do filósofo estava o ideal matemático. A matematização do mundo era a ambição cartesiana. Para tanto, o conhecimento deve ser completo e inteiramente dominado pela razão.
Aspirando à brevidade, não vou apresentar as quatro regras fundamentais do método cartesiano. Passo, doravante, a considerar o porquê de Descartes ser considerado um racionalista. O estudo da filosofia de Descartes faz-nos ver o primado da Razão sobre os sentidos na busca pelo conhecimento e pelo estabelecimento da verdade. Descartes concebia o homem como um animal racional. Sustentava que a razão ou o bom senso era distribuída igualmente entre os homens, conquanto observasse que nem todos os homens se servissem dela corretamente, donde se segue a necessidade de um método para a boa condução da razão.
No século XVII, tempo em que vivera Descartes, o racionalismo é definido como a doutrina que, por oposição ao ceticismo, atribui à Razão humana a capacidade exclusiva de conhecer e de estabelecer a verdade. O racionalismo se opõe ao empirismo, por considerar a Razão como independente da experiência sensível. A razão é inata, imutável e igual em todos os homens. O racionalismo, em oposição ao misticismo, rejeita toda e qualquer intervenção dos sentimentos e das emoções (Descartes separa a Razão da Emoção). No domínio do conhecimento, a única autoridade admitida por um racionalista é a Razão.

3.1. As verdades primeiras

Por intuição, Descartes entendia um conhecimento direto e imediato, que nos permite aceitar uma coisa como verdadeira. A intuição é a visão da evidência. Uma idéia é evidente sempre que é uma ideia clara e distinta. Uma ideia clara se impõe a nós em sua verdade imediata, sem que possamos dela duvidar. Uma ideia é distinta quando não se confunde com nenhuma outra.
Segundo Descartes, além da intuição, precisamos nos valer do raciocínio discursivo, bem como da dedução. A dedução é uma demonstração que conduz o espírito (a alma) a uma conclusão certa, com base num conjunto de proposições que se encadeiam necessariamente umas as outras, segundo uma ordem: cada proposição deve estar ligada àquela que a precede e àquela que a segue.
Descartes advoga que devemos rejeitar como falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Só devemos aceitar as coisas indubitáveis. A dúvida, em Descartes, não se confunde com a dúvida cética, que serve para sustentar a impossibilidade de o conhecimento humano atingir a verdade. Descartes objetivava a verdade; por isso, sua dúvida visava a encontrar uma primeira verdade, que se impusesse ao espírito de modo que ele aderisse a ela com absoluta certeza. Trata-se de uma dúvida metódica, voluntária, provisória e sistemática. Não é possível atingir a verdade, se, antes, não pusermos todas as coisas em dúvida. São falsas todas as crenças das quais não podemos duvidar. Por isso, Descartes rejeita os dados dos sentidos: eles, muitas vezes, nos enganam. Além disso, rejeita os raciocínios: por vezes, eles nos induzem ao erro.

4. O Cogito

Após duvidar de tudo, Descartes descobre a primeira verdade, expressa na fórmula Penso, logo existo. A primeira observação sobre essa máxima é que ela não é uma prova, não deve ser interpretada como uma prova. Ela é um saber imediato, uma espécie de intuição intelectual, por meio da qual se conclui do “eu penso” o “(eu) existo”.
Lembremos que duvidar de tudo que julgava saber não era o fim da filosofia cartesiana. Descartes não era um cético; ele buscou por em revista tudo aquilo  que acreditava ser verdadeiro, com vistas a atingir uma primeira certeza. Essa primeira certeza é a da existência de um “eu pensante”. Não podemos duvidar nem de que pensamos nem de nossa existência, já que o fato mesmo de duvidar é pensar e, para duvidar, precisamos, necessariamente, existir. Quem pensa é uma substância; como tal, precisa existir enquanto pensa. Tendo-se assegurado de sua existência, Descartes, perguntando-se sobre “quem sou eu”, conclui ser uma substância que pensa. Ele identifica o “eu” à alma; e a alma, ao pensamento. Assim, ele estabelece o primado do espírito, fazendo dele algo completamente distinto do corpo. Fica estabelecido o dualismo cartesiano: a alma é uma substância completamente distinta do corpo.
Com base na primeira verdade, Descartes chega à segunda verdade: a da existência de Deus. Ele argumenta que o exame das ideias desse “eu” leva à certeza da existência de Deus. É Deus quem garante as verdades matemáticas e nos permite, através delas, agir sobre o mundo. Deus também assegura a existência do mundo, campo da atividade humana. Recuperando o argumento de Santo Anselmo, Descartes “prova” a existência de Deus: por definição, o ser perfeito é aquele que possui todas as perfeições. A existência é uma perfeição; logo o ser perfeito (Deus) existe. Pressuposta, nesse argumento, está a ideia de que a existência é um atributo de Deus tanto quanto o é a perfeição.
Faço uma digressão, a fim de trazer à cena o chamado Argumento Ontológico de Santo Anselmo (1033 -1109), evocado por Descartes. Santo Anselmo, que se baseava no pressuposto segundo o qual não poderia haver oposição entre a Fé e a Razão, manifestava grande confiança na capacidade de a Razão poder demonstrar a verdade dos dogmas revelados. Ele era um verdadeiro racionalista, ainda que nutrisse grande confiança na Revelação. Santo Anselmo assume a premissa segundo a qual Deus é o ser perfeito além do qual não é possível pensar um ser maior e mais perfeito. Esse Ser não poderia existir apenas em nossa inteligência ou pensamento, porque, assim, poderíamos supor existir na realidade um ser ainda mais perfeito. Seres que existem na realidade são mais perfeitos do que os que só existem na inteligência. Como Deus é o ser mais perfeito além do qual nada maior pode ser pensado, é necessário que Deus exista tanto na inteligência quanto na realidade.
Volvemo-nos a Descrates. O sentido da fórmula “penso, logo existo” consiste em inferir a existência necessária de um eu pensante. A existência dessa substância pensante é a primeira certeza a que chegou Descartes, a qual resistiu à dúvida suscitada pelo argumento do Deus enganador. Essa primeira certeza também se mantém imune à dúvida cética.
O cogito é a fonte de todo o idealismo posterior: o pensamento é a única realidade que é imediatamente dada ao espírito, de modo que qualquer outra realidade deve ser deduzida dele. O idealismo cartesiano é uma filosofia dualista, porque define o corpo e a alma como duas substâncias completas, heterogêneas e essencialmente opostas. As ideias são separadas das coisas. As ideias são modos do pensamento, ao passo que as coisas são modos da extensão.
Fazendo eco a Platão, Descartes sustenta que, em virtude de o eu estar ligado a um corpo, o conhecimento que temos do mundo exterior é confuso, porque provém dos sentidos.

4.1. A distinção entre alma e corpo

Tomem-se excertos da obra Discurso do Método: Meditações (2008), nos quais ficam patentes a distinção entre o físico e o psíquico e a desvalorização dos sentidos como fonte de conhecimento. No primeiro trecho, a seguir, Descartes estabelece a separação entre alma e corpo:
“(...) quando examinara por que dessa não sei qual sensação de dor se segue a tristeza no espírito, e da sensação de prazer nasce a alegria ou então por que essa não sei qual comoção do estômago que se chama fome, nos faz ter desejo de comer, e a secura na garganta nos faz ter a vontade de beber (...) não podia apresentar nenhuma razão, senão que a natureza assim mo ensinava; pois certamente não há nenhuma afinidade e nenhuma relação, pelo menos que eu possa compreender, entre essa comoção do estômago e o desejo de comer (...)”.

(p. 130)


Nesse trecho, a separação entre o psíquico e o físico se depreende dos pares “sensação de dor” e “tristeza no espírito”, “sensação de prazer” e “alegria”, etc. As sensações situam-se no domínio corpóreo; e as emoções de tristeza e alegria, no domínio do espírito.
Abaixo, não é custoso ver a desvalorização dos sentidos como fonte segura para o conhecimento:

“(...) depois, muitas experiência foram pouco a pouco arruinando todo o crédito que dera aos meus sentidos: pois observei numerosas vezes que umas torres que de longe pareciam redondas, de perto se mostravam quadradas, e que uns colossos erguidos sobre as mais altas cumeeiras dessas torres me pareciam estatuetas quando as olhava de baixo (...) encontrei erros nos juízos fundados nos sentidos externos; e não só nos sentidos externos, mas até nos internos: pois há algo mais íntimo ou mais interno que a dor?”.

(p. 130-131)


Após alcançar a certeza de sua existência, Descartes conclui que a sua essência é ser uma coisa que pensa (é o pensamento). Eu sou uma substância pensante. No próximo fragmento, é patente a distinção entre alma e corpo. Destaco os trechos que marcam essa distinção:

“(...) embora talvez - ou antes certamente como o direi em breve – eu tenha um corpo ao qual estou muito intimamente unido, no entanto, porque, por um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim enquanto sou somente uma coisa pensante e não extensa, e, por outro, tenho uma ideia distinta do corpo enquanto é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e pode ser ou existir sem ele”.

(p. 132)


Descartes não nega a íntima união entre alma e corpo, mas pensa o eu ou se percebe a si mesmo como independente do corpo. A alma e o corpo são tomados como ideias claras e distintas e, como tais, não se confundem; são concebidos como coisas separadas. Eu não sou o meu corpo; sou uma coisa que pensa.
Descartes segue apontando outras evidências que dão base à compreensão da alma e do corpo como duas substâncias completamente distintas. Descobre que aas faculdades de imaginar e de sentir não são indispensáveis para a consciência que ele tem de si mesmo. Essas faculdades dependem, no entanto, da substância pensante (o eu, a alma), à qual estão irremediavelmente ligadas.
Também outras faculdades como a de mudança de lugar não podem ser concebidas, ou mesmo não existiriam sem que estivessem unidas a alguma substância, que Descartes identifica com a substância corporal ou extensa. O conceito claro e distinto dessa substância (o corpo) dá a conhecer que nela há uma espécie de extensão, mas, de modo algum, inteligência. O que dá base para que a relacionemos a uma substância independente.
Descartes não duvida de que é dotado de uma faculdade passiva de sentir, isto é, “de receber e reconhecer as ideias das coisas sensíveis” (p. 132). Porém, a utilidade dessa faculdade depende da existência de uma faculdade ativa habilitada a formar e produzir ideias. Descartes, como se pode ver, subordina a faculdade da sensibilidade à faculdade da inteligência. No excerto abaixo, ele fornece mais um argumento para endossar a distinção entre alma e corpo:

“Ora, essa faculdade passiva não pode estar em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe o pensamento e também que aquelas ideias muitas vezes me são representadas sem que eu contribua de modo algum para tal e até mau grado meu; cumpre, pois, necessariamente, que ela esteja em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que está objetivamente nas ideias que são produzidas por essa faculdade esteja contida formal e eminentemente, como notei acima; e essa substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corporal, em que está contida formal e efetivamente tudo o que está objetivamente e por representação nessas ideias; ou então é Deus mesmo ou alguma outra criatura mais nobre que o corpo, na qual aquilo está contido eminentemente”.

(pp.132-133, grifos meus)


Descartes recorre, por vezes, a Deus como uma espécie de fiador do conhecimento seguro do mundo. Deus não pode enganar, portanto, fica excluída a falsidade do domínio das ideias ou opiniões sobre as coisas sensíveis. Na passagem, a seguir, é mesmo estranho que Descartes chegue a suprimir a rígida separação entre alma e corpo, mas o texto não parece deixar margem à dúvida sobre essa supressão. Descartes reconhece que tem um corpo dotado de disposições, necessidades, que é capaz de sofrer efeitos como o de dor:

“A natureza também me ensina por essas sensações de dor, de fome, de sede, etc., que não estou só alojado em meu corpo como um piloto em seu navio, mas , além disso, a ele estou unido estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho como um só todo com ele”.

(p. 134)

Claro parece que não mais se distinguem corpo e alma. Descartes não só suprime a separação estrita entre a alma e o corpo (“a ele estou unido estreitamente), como também desliza facilmente da ideia de “união estreita” para a de “unidade” (“compondo como um só todo com ele”). Adiante, Descartes considera as sensações de fome, de sede, de dor como “maneiras confusas de pensar” e afirma que elas se originam “da união e da mistura do espírito com o corpo”. Agora, não faz sentido situar as sensações como atributos exclusivos do corpo. Elas assumem formas confusas da atividade do pensamento, porquanto decorrem da mistura do espírito com o corpo.
A natureza é concebida por Descartes quer como reunião ou complexo de todas as coisas dadas a mim por Deus, quer como reunião que compreende muitas coisas que só pertencem ao espírito, como a noção de verdade, a de infinitude, a de irreversibilidade do efeito no tempo, etc. Em sentido estrito, a natureza recobre apenas as coisas que Deus me dá enquanto sou um composto de espírito (alma) e corpo.
Sendo racionalista, Descartes sustenta que somente o espírito permite-nos ter acesso à verdade. O espírito não é responsável por dar vida ao corpo. Descartes diz ser possível ao corpo, concebido como uma máquina composta de ossos, nervos, músculos, etc., mover-se do mesmo modo. A natureza do homem é um composto de alma e corpo. Descartes reconhece que essa natureza é falha e se engana facilmente. Como, então, em face disso, assegurar a bondade de Deus?
A retomada da rigorosa distinção entre alma e corpo se acha no excerto a seguir:

“há uma grande diferença entre o espírito e o corpo”

(p. 137)

O corpo é, por natureza, divisível (res extensa); e o espírito (res cogitans) é inteiramente indivisível. O eu cartesiano é concebido como uma coisa absolutamente inteira. O eu ou essa coisa que pensa é representado como uma totalidade uma. É verdade que o espírito está unido ao corpo, ou assim pareça, mas a eliminação de uma parte do corpo não implica a subtração de qualquer das faculdades do espírito, segundo crê Descartes: a do querer, sentir, conceber, etc.
Essas faculdades estão intimamente ligadas ao espírito, pois que “é o mesmo espírito que se aplica inteiro a querer, a sentir e a conceber, etc.” (p. 137).
Sucede ao contrário com as coisas corporais ou extensas. Elas podem ser segmentadas em nosso pensamento. Nosso espírito pode dividi-las em muitas partes facilmente. Descartes extrai daí a conclusão segundo a qual “o espírito ou a alma do homem é inteiramente diferente do corpo” (p. 139).
O cérebro é a base das impressões recebidas pelo espírito. O espírito as recebe do cérebro. O componente físico atua sobre o mental: o espírito é afetado pela sensação quando o corpo manifesta algum sintoma. Por exemplo, a secura da garganta causa no espírito a sensação de sede, fazendo com que ele leve o composto à satisfação dessa necessidade.
Descartes reconhece que os sentidos indicam muito comumente o verdadeiro quando se referem às comodidades e incomodidades do corpo. O espírito pode servir-se deles para examinar uma mesma coisa e, com o auxílio da memória, relacionar os conhecimentos disponíveis no presente aos obtidos no passado. Graças ao entendimento, o espírito descobre as causas dos seus erros.

4.2. A relação mente-corpo

Há, ao menos, uma região da experiência que não se esclarece facilmente pela razão. Ao descobrir, com Descartes, que sou uma substância pensante, impôs-se-me a compreensão de que meu corpo é uma substância distinta de mim, cuja essência consiste em pensar. Ademais, dei-me conta de que há coisas materiais diferentes de meu corpo que se movimentam no espaço-tempo.
Descobri também que posso compreendê-las como figuras geométricas por meio do espírito. Não obstante, persiste o problema de saber como meu corpo – uma res extensa (coisa extensa) – pode interagir com a minha mente, a substância pensante que sou.
Descartes nos fez ver que o corpo age sobre a mente, quando, por exemplo, a sensação de sede causa-me o desejo de beber água. Todavia, quando nos detemos sobre a questão ainda não se nos afigura ao espírito clara e distintamente como um ato corporal pode afetar um sentimento na mente. Como o corpo, substância material, pode afetar a alma, substância imaterial?
A substância pensante é clara e distintamente acessível ao pensamento; o corpo também pode ser conhecido do mesmo modo, quando considerado como uma máquina. Mas, na medida em que eu sou um composto de alma e corpo, o modo como essas duas substâncias distintas se relacionam continua me sendo um mistério.
A esta altura, preciso esclarecer o que Descartes entende por substância. Para ele, é o que pode existir por si mesmo, é o que tem existência independente. Descartes foi chamado de dualista por assumir a existência de duas substâncias apenas, conforme vimos: a substância corpórea, que ocupa espaço e é divisível; e a substância pensante, que não ocupa espaço e é indivisível.
Mas o próprio Descartes reconhece ser Deus também uma substância, de modo que já não são mais duas as substâncias de que se constitui a realidade, mas três. Ocorre que a definição de substância por ele adotada supõe que ela seja algo independente, que existiria independentemente de qualquer outra coisa, o que nos leva a concluir que somente Deus, por definição, deveria ser considerado uma substância. Aliás, essa foi a posição assumida por Espinoza, que marcou sua filosofia como um monismo. 
Coube a Descartes conferir um lugar central ao problema da interação entre mente e corpo na filosofia. Ele se notabilizou pelo modo como o enfocou. Ainda que o dualismo corpo-mente fomente discussões calorosas na filosofia contemporânea, filósofos há hoje que reconhecem que o dualismo não fornece uma explicação satisfatória sobre o modo como pensamos a nós mesmos, à luz do que sabemos por meio da ciência atual.
O dualismo cartesiano não se desenvolveu nos mesmos moldes do dualismo medieval. Descartes postulou a existência de duas substâncias distintas: res extensa e res cogitans. Ele insistiu na independência dessas substâncias e julgou ser o “eu” uma consciência unitária e transparente a si mesma.
As faculdades mentais eram atividade de um “eu” presente e capaz de existir sem o corpo.
A teoria cartesiana enfrentou visões adversárias. Na concepção de Aristóteles, por exemplo, a alma, denominada de pneuma, era uma coisa física. O cristianismo jamais se desprendeu da ideia, forjada pela visão ortodoxa da Igreja, de que a ressurreição se estendia ao corpo e à alma, portanto, ao composto corpo-alma. Destarte, nem os cristãos se sentiram dispostos a acolher a visão cartesiana, que não cessava de fazer apelo ao Deus cristão, da existência de uma alma completamente independente do corpo.
A inovação de Descartes repousa em ter conferido à substância pensante independência relativamente ao corpo. Hoje, no entanto, dispomos de conhecimentos, advindos das ciências do cérebro, que endossam uma objeção de peso ao dualismo cartesiano: como sustentar que o pensamento seja independente do corpo, mais especificamente, do cérebro, se há evidências de que certas faculdades mentais são prejudicadas ou deixam de existir quando certas regiões cerebrais são lesadas? É certo que lesões no cérebro suprimem certas possibilidades de pensamento.
Não obstante, do ponto de vista lógico, a concepção de Descrates da imaterialidade da alma não deixa de ser válida. Ele notou bem que, no homem, a existência se funda na capacidade de o eu ser concebido como distinto do corpo. A noção de conceber tem um papel importante no postulado da distinção entre o corpo e a alma. Descartes argumentou que o que pode ser concebido como algo distinto poderia ser tomado como existindo de modo distinto. Descartes recorre a noção de Deus para assegurar que a separação fosse possível.
O raciocínio de Descartes esclarece-se com o seguinte encadeamento de ideias: se posso conceber o “eu” como uma substância pensante (um conhecimento que se me dá de imediato), então posso imaginar esse “eu” prescindindo de um corpo; desse modo, o corpo não precisa ser parte essencial da natureza do eu.
Espinosa assumiu, contrariamente ao dualismo cartesiano, uma posição que se acomoda bem à perspectiva funcionalista da mente. Segundo Espinosa, mente e corpo são uma mesma substância. Essa substância única encerra o atributo do pensamento e da extensão. A mente é um modo finito da substância infinita concebida como pensamento; o corpo é um modo finito da substância infinita concebida como extensão. Para Espinosa, portanto, mente e corpo são uma única coisa, ainda que, da perspectiva em que nos situamos, os concebamos como sistemas irredutíveis um ao outro.
No que tange à teoria funcionalista da mente, os estados mentais são considerados como componentes do software; e os estados corporais (cerebrais) são concebidos como componentes do hardware. À luz dessa concepção, fisiologistas e neurocientistas se ocupam da atividade cerebral como se estivessem considerando componentes do hardware; ao passo que psicólogos tratam das atividades mentais como sistemas de input e oupt de informação, ou seja, como propriedades de um software.





sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

René Descartes é considerado o fundador da filosofia moderna e maior representante da racionalidade


Como nos tornamos humanos?


Este texto resulta de um sentimento de perplexidade que se sintetizou num maravilhamento que cuidei deveria partilhar com vocês, leitores. Esse estado de alma é decorrência da leitura do primeiro capítulo do livro As paixões ordinárias, de David Le Breton, intitulado de Corpo e simbolismo social. A questão fundamental sobre a qual o autor se debruça é a emergência das emoções como produtos culturais. A tese basilar se exprime com as seguintes palavras:



“As percepções sensoriais, ou a experiência, e a expressão das emoções parecem emanar da intimidade mais secreta do sujeito; entretanto, elas também são social e culturalmente modeladas. Os gestos que sustentam a relação com o mundo e que colorem a presença não provêm nem de uma pura e simples fisiologia, nem unicamente da psicologia: ambas se incrustam a um simbolismo corporal que lhes confere sentido, nutrindo-se, ainda, da cultura afetiva que o sujeito vive à sua maneira”.
(p. 9)

O excerto leva-nos à conclusão de que não existe uma origem fisiológica absoluta, tampouco psicológica, para as nossas emoções. Raiva, rancor, amor, ciúme, etc. são emoções que aprendemos a manifestar por força da nossa socialização. Tal proposição ficará elucidada ao longo do desenvolvimento deste texto.


1. O animal humano


          A razão, a linguagem e a cultura são instâncias da realidade responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies de animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele; sua inserção na realidade do mundo depende de um processo de socialização que é ininterrupto. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real. Ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por um consistente processo de aprendizagem ao longo da vida. Os animais, no entanto, estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para a sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc., mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de contar com a ajuda de outros significativos que o acolhem (particularmente, seus pais).
A criança aprende a sobreviver em contato com as normas de sua sociedade que, através de processos formativos, vai criando as condições necessárias para que ela “descubra” o mundo, se relacione com ele de modo ativo e construtivo. Evidentemente, a aprendizagem, que é um processo de modificação do comportamento na experiência, serve para a adaptação do homem à estrutura de sua sociedade. Para ilustrar a atuação dos agentes sociais na formação da consciência da criança, convém atentar para as palavras da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles (1989: 21):
“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
A vida em sociedade requer que cada indivíduo tome parte da dialética social; para tanto, constitui um processo importante da imersão do indivíduo na estrutura social a interiorização. Ela constitui a base primária de compreensão de nossos semelhantes e do mundo enquanto realidade social dotada de sentido. Na interiorização, a sociedade se interioriza em nós, ou seja, apreendemos os processos subjetivos do outro, tornando-o subjetivamente significativo para nós. A subjetividade do outro torna-se significativa para nós. Note-se bem que, na interiorização, um indivíduo assume o mundo em que os outros vivem. O mundo dos outros, uma vez compreendido por um indivíduo, passa a ser o seu mundo também. Cada um passa a fazer parte do ser do outro. É por meio da socialização, que é o processo pelo qual o indivíduo é amplamente e consistentemente introduzido no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela, que o indivíduo torna-se sujeito e, portanto, capaz de viver em sociedade. Essa socialização é gradativa: primária na infância, tendendo a ampliar-se, à medida que a criança cresce e se desenvolve.


2. Natureza e Cultura


O termo cultura será entendido aqui como a totalidade das características de uma realidade cultural (Santos, 2006), e não como sinônimo de acervo de conhecimentos que um indivíduo acumulou. Cultura é uma dimensão do processo social, é uma construção histórica, portanto, humana; é produto, pois, de uma coletividade humana.
Creio ser assaz esclarecedora a definição de cultura oferecida pelo eminente antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que transcrevo abaixo:
Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações”.
A cultura é o campo da ação e da vontade humanas; a natureza é o reino da necessidade e da causalidade. Na natureza, as coisas estão organizadas segundo uma ordem necessária, segundo leis sobre as quais os homens não têm domínio; na cultura, os homens agem segundo sua vontade, a fim de atingir determinados objetivos; é nesse domínio que se instituem os valores de bom e mau, de verdadeiro e falso, de útil ou nocivo, de belo e feio, etc.
Gostaria de destacar dois aspectos importantes na definição de cultura: o primeiro afeta à sua dimensão simbólica e essa característica leva-nos a reconhecer que a relação entre os homens com a realidade que os envolve é uma relação fundada em significações, dependente, portanto, da linguagem. O segundo toca ao fato de a cultura servir como uma espécie de “lente” através da qual o homem percebe, interpreta e compreende a realidade. Esta não pré-existe às suas experiências culturais, mas é uma construção da interação entre a sua cognição, percepção, linguagem e cultura.
A cultura surge no momento em que os homens estabelecem um sistema de regras e conduta, que visam a assegurar a sobrevivência da comunidade. Essas regras não podem ser transgredidas sob pena de alguma forma de punição. Os homens, ao criarem a Lei, organizam toda a vida da comunidade; determinam-se, assim, os modos de transmissão de costumes às gerações posteriores e preside-se a ações que serão responsáveis pelas instituições tais, como a família, a religião, as formas de trabalho, as formas de poder, guerra e paz, etc. Com a Lei, os homens dão a sua existência, que não é simplesmente biológica, uma concretude simbólica. É pelo poder simbólico da linguagem que os homens atribuem às coisas, aos objetos, ao entorno biossocial em que vivem significações ou sentidos. As relações do homem com o mundo são relações essencialmente simbólicas. Por exemplo, costumamos atribuir valor ou significado a objetos (imagens religiosas, patuás, vestimentas usadas em rituais, etc.). A dimensão simbólica é responsável pelo estabelecimento dos valores, tais como “bem”e “mal”, “bonito” e “feio”, “verdade” e “falsidade”, etc. Lembro que tais palavras designam valores que atribuímos às coisas.
Foi a proibição do incesto e o costume de comer alimentos cozidos que nos distanciaram do universo natural. Disso se conclui que a sexualidade e a culinária foram responsáveis por introduzir a dimensão simbólica na vida humana. Graças a essa dimensão, que inclui também o trabalho, os seres humanos tomaram consciência do tempo e de diferenças temporais, como passado, presente e futuro. Ademais, tomaram consciência da morte e lhe atribuiu sentidos; organizaram o espaço, significando-o com as noções de perto, distante, abaixo, acima, ao lado, etc. Os homens passaram, graças à diferenciação do tempo e do espaço, a se relacionar com o ausente, distinguindo, por exemplo, o sagrado do profano, os deuses e os homens.
Podemos destacar, abaixo, em síntese, a importância da dimensão cultural na vida humana nos seguintes itens:

a) A cultura determina o comportamento humano e fornece justificações para as suas realizações;
b) Os padrões culturais, subtraindo, ainda que parcialmente, dos homens os instintos, os orientam em seus atos;
c) A cultura permite ao homem adaptar-se aos diferentes ambientes naturais;
d) A cultura permite ao homem modificar o ambiente em que vive, transformar o mundo;
e) A cultura torna o homem dependente da aprendizagem, libertando-o de um condicionamento genético, ou seja, de uma relação imediata com o meio determinada geneticamente.
f) A cultura, porque é um processo acumulativo de experiências históricas de gerações anteriores, estimula e, ao mesmo tempo, limita a atuação dos indivíduos.

Para encerrar esta seção, gostaria de referir o passo do antropólogo Roque de Barros, em seu livro Cultura – um conceito antropológico (2008), em que podemos compreender melhor a ideia de que a cultura fornece-nos uma moldura ou um quadro referencial pelo qual “vemos” o mundo:


“O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”.
(p. 68)


O exemplo mais interessante oferecido pelo antropólogo, com o qual abro caminho para a próxima etapa de minha discussão, que se desenvolverá sobre o processo de humanização do homo sapiens pela cultura, é o do riso. O riso, que é uma propriedade dos homens e de primatas superiores, é primariamente um fenômeno biológico, resultante da contração de certos músculos da face e da emissão de um dado som vocal. Em geral, o riso exprime estado de alegria. Não obstante a natureza biológica do fenômeno, os homens riem diferentemente. Conta o autor que um índio Kaapor, ao rir, emite um som profundamente alto, de modo que sua risada assemelha-se a gritos de guerra; ademais, a expressão facial em nada parece com a que estamos acostumados. Um observador de fora, ao ver um japonês rindo, poderia concluir que todos os japoneses riem da mesma maneira, muito embora os japoneses concordem em que o riso varie de uma pessoa para outra em sua cultura. Os japoneses percebem uma variação de um mesmo padrão cultural, que não é percebida por um brasileiro, por exemplo.
Do exposto, devemos reconhecer que gestos, comportamentos que, aparentemente, parecem ser reflexos de disposições biológicas são, na realidade, modelados culturalmente. É da influência da cultura sobre o corpo que vou me ocupar na próxima seção.



3. As crianças selvagens


Em Paixões Ordinárias – livro já referido no limiar desta exposição -, David Le Breton apresentará casos impressionantes, bem documentados, de cuja veracidade o próprio autor diz não ser possível duvidar, de crianças que foram abandonadas e acolhidas por certos animais, entre os quais lobos. Evidentemente, nos dirá o autor, que muitas delas foram devoradas por esses animais; outras, no entanto, foram livradas da morte e acolhidas por eles. Dou lugar à voz do autor, que nos conta:
“(...) dispomos de informações precisas a respeito de uma dezena de casos de crianças-lobos, evocados por R. M. Zingg, na obra que este autor dedicou ao tema. A história de Amala e Kamala é, particularmente, a mais rica em documentação, em virtude da publicação do diário do pastor Singjh que, juntamente com sua esposa, acolheu as meninas durante toda a vida das mesmas”.
(p. 19)
E prossegue:
“No ano de 1920, durante uma viagem à região de Midnapore, o pastor é advertido pelos indígenas da presença de “homens fantásticos” na floresta. Em companhia de alguns homens, ele vai até o local e, ao crepúsculo, avista três lobos adultos, dois filhotes de lobos e duas crianças – de aspecto irreconhecível – saírem de seu covil. Essas últimas se comportam exatamente como os lobos, primeiro mostrando suas cabeças, com alguma precaução, farejando e observando de todos os lados, antes de deixar o esconderijo. As duas meninas foram capturadas, adotadas pela família do pastor e receberam os nomes de Amala e Kamala. A constituição física das crianças verificou-se rica em ensinamentos: maxilares proeminentes, dentes comprimidos e cortantes, caninos longos e pontiagudos, olhos estranhamente brilhantes na penumbra, articulações inflexíveis nos joelhos e quadris. Espessas calosidades marcavam as palmas de suas mãos, cotovelos, joelhos e as plantas dos pés. Suas línguas pendiam de lábios grossos e escarlates. Elas imitam a respiração ofegante e o bocejar dos lobos, abrindo amplamente os maxilares. Elas enxergavam no escuro sem dificuldade.”
(idem)
O autor relata também que as meninas bebiam leite e água como os gatinhos. Como se vê, o comportamento delas foi adaptado ao comportamento dos lobos. Isso implica o reconhecimento de que o corpo humano é maleável, adaptável às condições naturais em que vive.
Ensinará o autor:
“Nesse período da vida, durante o qual a criança socialmente integra e assimila a função simbólica do seu grupo; aquele que foi isolado pelas circunstâncias e posto na situação excepcional de “adoção” por um desses animais hospitaleiros ao homem, não tem alternativa senão calcar sua relação com o mundo sobre aquilo que ele observa no cotidiano. Nos primeiros anos de vida, a criança revela uma imagem fidedigna, posto que amiúde desairosa, dos comportamentos daqueles que a entornam. Neste caso, o animal vem preencher, com suas representações específicas, as potencialidades incultas em consequência do rapto do meio humano”.
(pp. 20-21)
É interessante notar que os animais cumpriram o papel do outro significativo para essas crianças. A experiência corporal delas é modelada pelo comportamento dos lobos. Um sentimento como o de alegria era desconhecido delas, pois, como relata o pastor que as acolheu, elas nunca riam. As únicas emoções que pareciam conhecer eram a cólera ou a impaciência. Sentimentos como o de vergonha, o de pudor também eram ignorados por elas. Acostumadas a viver em ambientes gélidos, não tinham sensibilidade ao frio. O processo de aculturação em casos como esse, em geral, não é completamente bem-sucedido; casos há em que a morte é inevitável.
“No caso das meninas de Midnapore, Amala não sobreviveu a alguns meses de captura; Kamala, ao revés, assimilou um princípio de socialização graças aos esforços do Pastor Singh e de sua esposa. Ela aprendeu a ficar na posição ereta, conheceu o sentimento de pudor, o riso, a sensibilidade ao frio, um princípio de linguagem, adquiriu o controle esfincteriano e fecal, modificou os seus gestos, etc.. Lentamente, cercada da afeição do pastor e de sua esposa, ela adquiriu uma atitude receptiva à ritualidade social”.
(p. 22)
A história das meninas Kamala e Amala patenteia-nos que o homem é um ser dotado de potencialidade, ou seja, de uma disposição impressionante à sobrevivência em quaisquer condições a que se veja entregue. Novamente, lançam luzes as palavras do autor, que observa:

“Experimentando tais fronteiras como uma evidência, as crianças que dividem alguns anos de sua existência com animais interpelam-nos profundamente sobre o sentido do vínculo social, e, paralelamente, sobre os limites do corpo. Suas histórias fendem um abismo em certezas aparentemente inquebrantáveis. Talvez seja por esse motivo que os debates sobre o tema raramente evitam apaixonadas manifestações. Após o retorno à comunidade humana é difícil afastar a impressão de que suas histórias revelam campos e suas inteligências às dimensões aceitáveis socialmente. A maioria das crianças “selvagens” abduzidas de seu meio de adoção morre precocemente”.
(p. 23)
O caso de Victor do Aveyron é, igualmente, impressionante, mas um pouco diferente das meninas de Midnapore. Victor, antes de ser abandonado - condição em que permaneceu por longo tempo - viveu um curto período de socialização, o que lhe permitiu sobreviver em tal condição. Foi capturado por camponeses, em 1800, depois de ter sido visto pela primeira vez em 1797. O menino ficou sob a tutela de um pedagogo, Jean Itard. Lemos o seguinte a respeito de um acontecimento da vida do garoto:

“Em pleno inverno, Itard, por vezes, avistara Victor nu, rolando sobre a neve. As temperaturas mais baixas não causam incômodo ao seu corpo. Itard admiravas-se com a resistência térmica da criança e com a sua jubilação em face do rigor dos elementos. (...) O pedagogo então submeteu Victor a uma série de ações enérgicas visando a perturbar as percepções térmicas que esse último havia inventado para si quando vivia nos planaltos do Aveyron. Ele relatou no seu diário com qual rigor infligia a Victor, diariamente, demorados banhos quentes, sucedidos por banhos gélidos, vestindo e em seguida abrigando a criança calorosamente. Um lento trabalho de erosão, de supressão e de fragilização modificou as atitudes primárias da criança, que se tornou sensível às variações climáticas”.
(p. 27)
Percebe-se, claramente, que o menino foi submetido a um longo processo de “lapidação”, cuja consequência imediata foi a redução de sua imunidade a doenças, fato que o tornou frágil. Nesse caso, o menino não tinha alternativas. Tendo sido interrompida a sua socialização, não dispunha de meios para exercer um papel ativo em face do processo de “aculturação” que sofria. Ao contrário, a criança que se beneficia de uma socialização normal e continuada, embora não esteja completamente livre de processos condicionantes, de ações modeladoras, tem relativa liberdade para agir (dependendo do contexto sócio-histórico, é claro). Com amadurecimento, ela tenderá a ganhar maior autonomia. Isso não era possível no caso de Victor.
É interessante notar que seu corpo era adaptado ao meio ambiente em que viveu durante anos, isolado da civilização. Consoante nos conta o autor,

“A sensibilidade térmica de Victor era adaptada às condições ecológicas de sua existência num ambiente adverso. Outras manifestações corporais de Victor suscitaram alguma surpresa: sentado ao lado do fogo, ele tomava, sem nenhuma pressa, os pedaços de carvão ardentes que caíam da lareira e nela os recolocava. Na cozinha, ele frequentemente tirava com as mãos as batatas da água fervente onde elas cozinhavam para em seguida comê-las”
(p. 28)

Victor, a despeito dos esforços do pedagogo, jamais conseguira falar. Com a deficiência linguística, o menino tinha carência na elaboração de pensamentos, o que confirma a ideia de que sem linguagem verbal não há possibilidade de pensamento.


4. O que concluir?
Os casos das crianças selvagens levam-nos ao reconhecimento do papel fundamental que cumpre o outro na vida de um ser humano. Esse outro é responsável por induzir a sociabilidade daquele com quem estabelece relação. O corpo humano é investido de significado quando do relacionamento com o mundo, para o qual é necessário o concurso de outras pessoas.
O domínio da linguagem é um meio de inserir-se num universo humanamente construído; desprovida dela, o ser humano não é capaz de organizar a realidade segundo os padrões da sociedade. A linguagem é um fator determinante da humanização do homem.
A organização da realidade se dá na relação com o outro através da linguagem. O outro não é apenas um estruturador do mundo para mim, é também quem avalia, pondera, afeta-me enquanto ser. Ensina-nos o autor:
“Estamos em nosso corpo “como numa encruzilhada habitada por todos”, escreve raivosamente Artaud, que viveu, numa forma de despojamento e de alienação, a fidelidade do seu corpo contra todo o simbolismo exterior. Meu corpo é meu por carregar traços de minha história pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas contém igualmente uma dimensão que em parte me escapa, remetendo aos simbolismos que conferem substância ao elo social, sem os quais eu não seria”.
(p. 37)
A moral, o sentimento de justiça e injustiça é consequência da socialização. Nenhum homem nasce com senso de moralidade; ele desconhece, completamente, o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim, o que pode ou não pode fazer. A sociedade é que lhe fornecerá tais referenciais.
Estar com Sartre a razão ao advogar que o homem se faz a si mesmo ao existir. E a existência humana – reitero essa ideia – depende da presença, do reconhecimento do outro. Somos na medida de nossas relações significativas com o nosso entorno social. Nossos hábitos, nossos comportamentos, nossos traços biológicos são resultado da relação com o meio ambiente, condicionada pela cultura.
Descartes estava errado, ao sugerir que a ideia de Deus era inata ao homem. A criança selvagem não tem religião, não é capaz de conceber qualquer entidade de semelhante natureza.
Espero que tenha sido avivada no leitor a ideia de que, se, por um lado, a cultura é responsável por nos afastar da condição de imanência à natureza, de afrouxar os laços que, em virtude de uma pré-disposição biológica, podemos manter com ela; por outro lado, a ausência de sua atuação e penetração põe em evidência a capacidade impressionante de o organismo humano adaptar-se à vida animal.
Devemos, humildemente, reconhecer que, para além de nosso garbo racional de homens civilizados, somos animais humanizados.


Para pensar...


a) A cultura penetra no ser do homem domando-o e contendo a força de seus instintos. Mas ela não consegue suprimi-los. Em que situações agimos instintivamente?
b) Os homens são seres cuja existência é destinada a ser social? A vida em sociedade é a única forma de existência para o homem? Se houver outra, qual seria?
c) A criança, embora leve desvantagem, nos seus primeiros anos de vida, em relação aos filhotes de animais, tem uma admirável capacidade para a aprendizagem e desenvolvimento cognitivo. Isso tornaria a condição social do homem inevitável?