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segunda-feira, 7 de março de 2022

"Estou longe de conhecer o ateísmo na condição de resultado, menos ainda como conhecimento: em mim ele é compreensível na qualidade de instinto". (Friedrich Nietzsche)




Aos adoradores do Insondável

 

  aquela senhora ajoelhada defronte do altar tendo entrelaçado nas mãos um terço? Ela reza a Deus com a voz silenciosa do pensamento suplicante... Quem a fita de longe cogita da representação que ela faz de Deus. Quem é Deus para ela, além de um mero interlocutor suposto na sua imaginação e forjado na caldeirinha de sua afetividade? ...

Interrompo meus estudos sobre a Filosofia Medieval, especificamente sobre as contribuições filosófico-teológicas do Pseudo-Dionísio, para escrever este breve texto, com o fito de dizer aos que insistem em sugerir que devo retornar ao seio do Altíssimo que é por conhecê-lo filosófica e teologicamente melhor do que vocês pensam conhecê-lo, por força dos ensinamentos doutrinários da Igreja, que o nego com todas as forças de meus nervos, que o nego com toda vivacidade do tutano de meus ossos, com todos os axónios de meu cérebro; mas não o nego por revolta ou birra infantil. Nego-o na condição de quem consumiu muitas horas e dias em meditações aturadas sobre o problema filosófico de Deus,  na condição de quem, por isso, sente-se autorizado pelos homens mais sábios da história do pensamento a fazê-lo; nego-o, portanto, como instância ontológica, nego-o como uma espécie de Pessoa transcendente com quem é possível manter um relacionamento humano, nego-o como Criador do mundo, nego-o como fonte da Vida e do Ser, nego-o como a resposta pronta e definitiva para todas as nossas agruras, para todas as questões viscerais da existência; nego-o porque a vida pulsante do dia a dia é um testemunho gritante de sua inexistência - ou, se preferirem, quiçá porque a inexistência de Deus lhes pareça uma verdade insuportável - , é um testemunho estridente de sua ausência e indiferença abissal (que, no entanto, se deixa sentir por todos os cantos do mundo, entre os gemidos dos inocentes que sofrem e morrem sem razão, nas lágrimas cálidas e dolorosas daqueles que pranteiam a morte absurda de um filho); nego-o também porque a vida do dia a dia é uma missiva aberta de denúncia da Insanidade, da futilidade, da insignificância cosmológica de que é tecida a existência humana e a história; nego-o como a figura tirânica, ciumenta, narcísica cunhada pelo imaginário popular que, aliás, afronta toda a seriedade e escrutínio das especulações teológicas e filosóficas que animavam o espírito de grandes pensadores em debates calorosos por séculos a fio.

Quem me quer como ovelha recobrada de Deus deve saber que habitamos dois campos de sentido, isto é, dois “mundos” radicalmente distintos e incomensuráveis. Não frequentei um curso de filosofia durante 6 anos, ao longo do qual mantive contato com a rica e interessante filosofia cristã para deixar-me seduzir e persuadir pelas admoestações dos servos da tradição apologética decantada em missas e em cultos. Deus, para mim, é apenas um conceito, um objeto-de-discurso, uma ficção cultural, ou, como o define Castoriadis, uma significação. Interesso-me pelo problema filosófico de Deus ou do Divino, que é polimórfico. No Ocidente, por contingências históricas, o Divino é representado na forma sígnica “Deus”, que encerra em si significados cunhados no imaginário-simbólico judaico-cristão. O conceito de Deus tem uma materialidade histórica, enfeixa uma materialidade de sentidos derivados de uma memória discursiva que, ao longo de milênios, em disputas políticas, teológicas e ideológicas, foi se formando e dando a este conceito sua espessura semântica e histórica como alguns a conhecem hoje. Por isso, é inútil tanto pretender calar-me quanto pretender converter-me à velha fé já sepultada por mim. E não me cuidem arrogante; afirmo-me apenas como um livre pensador, um pensador refratário a toda forma de dogmatismo. Conviver com as diferenças, com a pluralidade de modos de viver e de opiniões ou crenças não significa curvar-se à tirania das tolices das multidões. E, por fim, erra crassamente quem julga ser o filósofo um sábio ou - nos termos do vulgo - um “sabichão”. O filósofo é, desde a Antiguidade grega, o amante da Sophia, é aquele que mantém com a sabedoria uma relação profundamente erotizada. E como todo amante, que mais ama quanto mais o objeto amado lhe resiste ao desejo de posse, o filósofo ama permanentemente a sabedoria porque jamais a possui. O erotismo filosófico repousa sobre a busca da sabedora e nessa busca permanente e infindável ele se anima, se inflama. A todo pretenso saber de teólogos, sacerdotes e seus acólitas contraponho aquela famigerada máxima socrática, que constitui o marco de toda atitude verdadeiramente filosófica: “só sei que nada sei”. O maior perigo é ignorar que não se sabe nada daquilo que se afirma saber. Deus sabe quantos cemitérios foram abertos como custo alto pago por essa forma de ignorância!

  

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


sábado, 30 de outubro de 2021

“Se deus queria que as pessoas acreditassem nele, por que então ele inventou a lógica?” ( David Feherty)

 



CONFISSÃO

 

 

Devo confessar que são duas as razões por que me tornei ateu: 1) a acuidade crescente de minha consciência do caráter cruel e doloroso da vida (consciência esta inconciliável com o modo de vida cristão, em cujo cerne repousa a crença num Deus criador infinitamente bom); e 2) minhas incursões cada vez mais frequentes, densas e extensas nos estudos sobre a constituição da Bíblia e sobre a história dos cristianismos primitivos. Tais estudos me tornaram cristalino e vigoroso o sentimento de que a minha fé perdera completamente os esteios que outrora a tornaram possível. Não me posso esquecer de mencionar, nesse processo de emancipação de minha consciência, a importância de meus encontros prematuros (há mais de quinze anos) com o pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche (com quem tive os primeiros contatos lendo o seu Anticristo), que contribuíram sobremaneira para o abandono de meus hábitos de vida cristãos. Acho, honestamente, que as duas razões que me levaram a me libertar do peso asfixiante de décadas de doutrinação numa tradição religiosa são suficientemente fortes e consistentes para levar outras pessoas a abandonar também seus hábitos de vida religiosos. No entanto, uma grande maioria de pessoas no Ocidente ainda não ousou sequer considerá-las, não se dispõe sequer a cogitar delas, preferindo viver uma vida nutrida num embuste originário, ao qual o cristianismo deve sua existência: a ressurreição de Jesus. (talvez, porque, embora consistentes essas razões, raramente as pessoas abandonam suas convicções religiosas quando se lhes apresentam argumentos razoáveis). A lógica falha sistematicamente no cérebro de pessoas que foram expostas, desde tenra idade, a um sistema de doutrinação religiosa.

 Se a crença na ressurreição de Jesus nunca tivesse conseguido atrair seguidores, o cristianismo jamais teria existido. O cristianismo tradicional reza que a morte de Cristo trouxe a salvação à humanidade. Mas Cristo não poderia morrer verdadeiramente, se quisessem que alguém acreditasse que Deus trouxe a Salvação. Era preciso acreditar que Cristo ressuscitou dos mortos e que a sua crucificação não era um mal, mas um acontecimento planejado por Deus-Pai, cuja boa intenção (salvar os humanos) justificava o meio (permitir o martírio e a crucificação de seu filho). A ressurreição (este embuste de pouco mais de 2.000 anos) é o fundamento da religião cristã. Sem ela, Jesus não passaria de um profeta judeu apocalíptico (o que ele foi historicamente) que sofrera um fim trágico e imerecido. Mas, se Jesus nunca tivesse existido, ainda assim se teria desenvolvido alguma fé semelhante ao cristianismo? É provável que sim. No século I, época em que viveu Jesus de Nazaré, havia muitos outros candidatos a Messias, um dos quais era Apolônio de Tiana, que viajava com seus discípulos curando aleijados, expulsando demônios, recobrando a visão de cegos, etc. Muitos também acreditavam ser ele o filho de Deus. Apolônio pregava que as pessoas deveriam se preocupar com o destino de suas almas em vez de se preocupar com o conforto material. Ele também sofreu perseguição dos romanos, morreu e - para seus seguidores- ascendeu aos céus. A simetria com a vida de Jesus não é mera coincidência. Tanto quanto Jesus, Apolônio não sustentava uma doutrina de amor interétnico (ao contrário do que supõem os cristãos modernos, Jesus não pregava um amor universal). Na época em que viveu Apolônio, já tinham sido escritos os evangelhos cristãos. É possível que seus seguidores tenham construído suas narrativas da vida e do ministério de Apolônio a partir dos relatos sobre Jesus. Convergências desse tipo eram normais e frequentes. Os antigos catequizadores trabalhavam num ambiente competitivo, em que uma religião competia com outras a atenção das pessoas. Para que uma religião fosse bem-sucedida, era necessário que oferecesse, pelo menos, tantas vantagens quantas as que a concorrência oferecia. As religiões se desenvolviam acirrando a concorrência: os seguidores de Jesus odiavam os seguidores de Apolônio, e estes lhes retribuíam com a mesma moeda de ódio.

Este é apenas um dos muitos exemplos hauridos da investigação da história da formação do cristianismo que, uma vez conhecidos, tornam difícil legitimar a crença no Deus cristão como o único Deus verdadeiramente existente e em Cristo como o Messias que se identificou com a própria Verdade, levando Pilatos, tomado de perplexidade, a questionar: “Que é a verdade?” (João 18: 38).  

“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João 8: 32)

Mas, nesse caso, já não perguntamos nós hoje o que é a verdade, mas como seus efeitos (discursivos) se produzem na história.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

A formação da subjetividade cristã





A formação do sujeito cristão à luz do pensamento 
de Clemente de Alexandria e de Justino[1]


É com base na tese de Pierre Hadot, segundo a qual a filosofia antiga é exercício espiritual, visto que se destina a cunhar modos de ser, que nos cumpre elucidar a formação do sujeito cristão à luz do pensamento de Clemente de Alexandria e de Justino.
É impreterível dizer, de início, que Clemente, contrariamente ao costume, em sua época, de rejeição à filosofia, esforçou-se por mostrar que a filosofia era um bem e que aqueles que a ela se dedicavam estavam cumprindo a vontade do próprio Deus. À filosofia antiga cumpria a tarefa pedagógica de conduzir os gentios para Cristo, tal como a antiga Lei servia para encaminhar os judeus a Deus. A filosofia, portanto, é útil, segundo Clemente, também para aqueles que professam a fé cristã. É a filosofia que instrumentaliza os cristãos para a defesa de sua fé. Todavia, a fim de que ela cumpra satisfatoriamente sua função no cristianismo, faz-se mister que se circunscreva ao domínio de sua competência. A filosofia deve ser uma serva da fé; sua função é, pois, auxiliar a fé. Decerto, a filosofia continua a lançar luzes sobre o caminho dos que se convertem ao cristianismo, conduzindo-os a Cristo, com a ajuda de argumentos racionais; mas é Cristo, o Lógos divino, que se apresenta na qualidade de condutor, de Pedagogo, interpelando cada indivíduo em sua singularidade.
A formação de si, no cristianismo, não pode ser compreendida, sem que antes esclareçamos de que modo o cristianismo se apropriou e reinterpretou o lógos grego. O Lógos cristão é o Verbo que se fez carne; é um princípio metafísico e prático, porquanto pessoal e fundador de uma relação interpeladora (o sujeito cristão se faz sujeito na interpelação por esse Lógos). O Lógos é o Pedagogo (Cristo), que conduz cada indivíduo humano à Salvação.
A formação do sujeito cristão se dá, por conseguinte, mediante a pessoalização do princípio, que é o Lógos. Esse Lógos, que é Cristo, que é Deus que se fez carne, condiciona-nos, de sorte que não é possível ao homem viver uma vida virtuosa e justa senão pela obediência ao Pedagogo.
É importante notar que, na tradição cristã, o homem é um composto de razão e paixões. Estas formam sua corporeidade, sua carnalidade, sob cujo jugo a razão cai facilmente. É na articulação do lógos humano com o lógos divino que pode o homem viver uma vida virtuosa. No entanto, é tão somente pela condução do Pedagogo que o homem pode articular sua razão à razão divina. O Verbo divino se doa na pessoa do Pedagogo. Saliente-se que a condição de possibilidade daquela articulação consiste no fato de que o lógos humano é análogo ao lógos divino.
O poder “firme, venerável, consolador e salvador” do Pedagogo possibilita ao sujeito cristão a perseverança na fé, que é um hábito firme e constante; é o lugar do viver racional, a própria vida razoável. Na perseverança na fé, o sujeito cristão, conduzido pelo Pedagogo, não só conhece a Verdade, a cuja busca se lançou a filosofia pagã, mas a vive, porque a Verdade, identificada com Cristo, é agora uma pessoa; a Verdade é, para o cristão, um modo próprio de existência, é a realização plena de sua subjetividade, que deve sua constituição ao princípio (O Verbo), o qual é o horizonte pelo qual se devem pautar os comportamentos humanos.
Chamado por Tertuliano de filósofo e mártir, Justino encontrou na fé cristã a verdadeira filosofia. Embora admitisse que os filósofos gregos, como Platão e os estóicos, porque se dedicaram a conhecer e praticar a verdade, tomaram parte do Lógos, razão por que foram considerados cristãos anteriores a Cristo, não o possuíram integralmente, senão em gérmen. Ora, Justino sustentou que a integralidade do Lógos só aparece em Cristo, para cujo conhecimento pleno é indispensável a fé cristã.
Justino acreditava que o Lógos é odiado pelos demônios, contra os quais Ele trava uma luta incessante. Todos aqueles que vivem consoante o Lógos e se afastam dos vícios compartilham o mesmo destino doloroso. Este destino não é extensivo apenas aos cristãos, mas também a filósofos como Sócrates e Heráclito que, conquanto não participassem inteiramente do Lógos, tomaram parte desse destino doloroso dos cristãos. Os antigos filósofos foram considerados por Justino como irmãos, porquanto teriam aspirado à vida cristã.
Tendo em conta o exposto, a subjetividade cristã, segundo Justino, se constitui e se afirma como vida e força em Cristo. Somente os cristãos participam da integralidade do Lógos; e também somente eles conhecem os tormentos do fogo. O martírio é o lugar da afirmação da transparência do sujeito cristão; é na fé cristã que o sujeito cristão afirma sua autenticidade.
Justino acreditava que a Providência se pronuncia mediante o martírio. No martírio, os cristãos não só afirmam sua fidelidade à Verdade que lhes foi revelada, mas também se elevam ao status de co-responsáveis pela conservação da Criação. É a fé cristã que a conserva: se não fossem os cristãos, perseverantes, sem temor, no anúncio da verdade que viram, Deus teria destruído tudo que existe.




[1] Trabalho final da disciplina História da Filosofia Medieval I (UERJ). Este texto foi avaliado com a nota máxima. 

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Duas coisas enchem o coração de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e sempre crescentes, à medida que a reflexão nelas se detém e a elas se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim" (Immanuel Kant)

                                  


                                  A questão da moral
   Por que Deus não pode servir de fundamento para a moral?


O subtítulo deste texto introduz a questão central que será discutida: por que Deus não pode servir de fundamento para a moral? A forma em que ela se apresenta marca o pressuposto com base no qual se orientará toda a minha argumentação: Deus não pode servir para fundamentar a moral.
Antes de atacar essa questão, será necessário definir alguns conceitos que estão, necessariamente, implicados no tratamento do tema deste texto. Considerem-se, portanto, os conceitos de fundamento, moral, cultura e domínio objetivo. Passo, então, a defini-los a seguir:

a) Fundamento

Segundo Japiassú & Marcondes (2008), fundamento é “aquilo que fornece a alguma coisa sua razão de ser ou que confere a uma ordem de conhecimento uma garantia de valor e uma justificativa racional” (p. 118).
O problema da fundamentação dos valores morais diz respeito, portanto, à busca por determinar uma base de justificação racional para a existência de tais valores. O problema consiste, então, em determinar, em última instância, a sua origem, a qual é entendida como critério seguro para distinguir entre o certo e o errado. Há diversas teorias morais, muito embora, neste texto, me proponha delinear duas apenas: a teoria moral cristã e a teoria moral kantiana.
No mundo moderno, da discussão sobre a fundamentação da moral, que é uma questão especialmente filosófica, tomam parte também ciências como a biologia e a psicologia evolucionistas, que, em linhas gerais, assumirão que há fundamentos naturais e neurobiológicos que justificam a conduta humana e que, portanto, explicam o surgimento do comportamento moral nos seres humanos. Dados os limites desta exposição, não contemplarei a contribuição dos estudos de vertente evolucionista para a compreensão das bases do comportamento moral humano. Não obstante, os refiro, de passagem, a fim de lembrar que a discussão sobre a possibilidade mesma de fundamentar os valores morais não se circunscreve à oposição entre os que apelam a uma heteronomia transcendente (Deus) e os que advogam a relatividade dos valores morais à sociedade ou à cultura.
Eu assumirei que os valores morais ou a moral é uma construção cultural, que o que se entende por normalidade é culturalmente definido e que, portanto, a moral difere de uma sociedade para outra. Assim, a moral é resultado de hábitos sociais instituídos e aprovados historicamente, conquanto, ao endossar essa posição, eu não pretenda rejeitar a hipótese da existência de uma base intercultural comum que refletiria a universalidade de aspectos neurobiológicos e/ou naturais à luz dos quais se pode explicar o comportamento moral.

b) Moral

A moral compreende um conjunto de normas que definem ideias fundamentais sobre o que é considerado certo e errado, louvável ou repugnante, numa dada sociedade. As normais morais ou mores regulam o comportamento humano e servem de fonte de coesão social.
Fazem parte do escopo da moral normas que proíbem o incesto (proibição esta universal), o assassinato, a traição, o abandono das obrigações familiares, a profanação de símbolos religiosos e civis, etc. Os mores assumem, dada a sua importância, a forma de leis que implicam sanções, tais como prisão, exílio, ostracismo e execução.
Dentre as características básicas da moral, destaca-se o fato de suas normas serem vivenciadas como sagradas, ou seja, como provindas de uma heteronomia transcendente. Do ponto de vista sociológico, as normas morais são consideradas mutáveis e inerentes à vida social.

c) Cultura

Entendo por cultura o domínio fundamentalmente simbólico que marca a descontinuidade do homem em relação à natureza. Ela se constitui de sistemas mais ou menos coerentes de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se em face do Absoluto e reproduzir-se. A cultura constitui o modo próprio de ser do homem. Ela é responsável não só por ordenar o pensar, o agir, as formas de os seres humanos se relacionarem entre si e com o entorno biofísico, como também por fornecer os valores que servem para dar coerência a essa totalidade de vivências e para justificá-la.


d) Domínio objetivo

O que queremos dizer quando nos referimos a valores morais objetivos? O que o adjetivo objetivo significa nesse sintagma? Objetivo é tudo aquilo que existe independentemente do pensamento e que possui uma realidade autônoma no mundo externo. Tudo que dizemos pertencer à esfera da realidade objetiva (em oposição à realidade subjetiva) se nos apresenta como coisas independentes de nós, coisas que existem e se põem no exterior de nossa consciência como dados do mundo cuja existência nos limitamos, em geral, a constatar. Se dizemos, habitualmente, portanto, que há valores morais objetivos, queremos com isso dizer que tais valores existem independentemente das práticas humanas e que eles se impõem à consciência humana como dados por uma heteronomia (que um dos dois braços que formam a cultura ocidental – a tradição judaico-cristã - identificou com Deus).


Como eu esteja entendendo os valores como instituição social, faz-se mister destinar uma seção para o esclarecimento da noção de instituição.

1. A instituição
1.2. A sociedade como realidade objetiva


Em A construção social da realidade (2007), Berger & Luckmann introduzem o tema das origens da institucionalização, dando-nos a conhecer a diferença existente entre os modos de o homem e de os animais não-humanos se relacionarem com o ambiente em que vivem. Os animais não-humanos mantêm relações biologicamente fixas com o ambiente. Eles vivem, quer como indivíduos, quer como espécies, em mundos fechados, de tal modo que a organização de seus mundos é predeterminada pelo equipamento biológico inato presente nas diferentes espécies. O organismo deles é uma extensão do ambiente natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a relação do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão entre dois fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,

“(...) a experiência que o homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)


Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a compreensão do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão de atividades de produção de significados subjetivos, quando se considera essa especificidade da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre essas consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem é sempre uma atividade que se faz com outros, é sempre, portanto, uma atividade social; 2) os seres humanos produzem um ambiente humano em conjunto, em interação com outros seres humanos; 3) essa produção do ambiente humano não se dá sem uma totalidade de formações socioculturais e psicológicas de que os homens tomam parte; 4) quando se lançam olhares sobre os fenômenos humanos, claro fica que se está diante de um reino social; 5) humanidade e sociabilidade estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma direção e uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa estabilidade da ordem humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão chamando a atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento individual do organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para exteriorizar-se nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a ordem social é que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a transforma. A ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo, biologicamente determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É assim que a ordem social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a conduta humana (Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada biologicamente, nem redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não faz parte da natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do ambiente natural do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a forma da ordem social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem social é produto unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os autores:

“Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)


Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados biológicos, não se pode negar que a necessidade dessa ordem social provém do equipamento biológico humano (p. 77).

Como se dá a institucionalização? À página 77, escrevem os autores: “toda atividade humana está sujeita ao hábito”. O hábito é um aspecto fundamental do processo de fabricação da realidade institucional. Toda ação que se reitera muitas vezes molda-se num padrão, que passa, então, a ser reproduzido com economia de esforço e que é compreendido como padrão por quem a executa. O hábito torna possível que a ação seja reproduzida também no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço que o foi no passado. Isso é verdade tanto para a atividade social quanto para a atividade não-social. Mesmo um indivíduo solitário realiza ações habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de significado para o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no conjunto de conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são avaliados como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras. Acerca do valor do hábito, esclarecem-nos os autores:

“O hábito fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos”.
(p. 78)


Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para decisões que se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade de que cada nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma grande quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser antecipada.
Os processos de formação de hábitos estão na origem de toda institucionalização. Isso vale também para o caso hipotético de um indivíduo isolado. Não se pode ignorar que esse indivíduo solitário, supondo-se a formação de um “eu”, também terá de converter em hábito sua atividade, em consonância com a experiência biográfica construída num mundo de instituições sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas tipificações constitui uma instituição. Para efeitos de compreensão da institucionalização, não só a reciprocidade das tipificações importa, mas também a tipicidade das ações e dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas instituições – ou melhor, que são as instituições – são partilhadas entre os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e a própria instituição tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é ilustrada de modo bem simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:

“A instituição pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do tipo x. Por exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão decapitadas de maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos determinados de indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros de uma casta impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram designados por um oráculo)”.
(p. 79)


Como se vê, é a própria instituição que regula as ações desempenhadas pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na estrutura institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann, “implicam (...) a historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as tipificações das ações se constituem no curso de uma história de que tomam parte os agentes sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto dessa história. Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma instituição sem lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por força mesmo de sua existência, controlam a conduta humana, fixando-lhe previamente padrões na base dos quais ela se desenvolverá. A direção da conduta humana coloca-se sob o governo desses padrões. Isso evita que a conduta dos indivíduos tome outras direções potenciais mas não desejáveis para uma instituição. O caráter controlador é inerente, portanto, à instituição e é anterior a quaisquer dispositivos de sanções mobilizados para produzir apoio à instituição. O controle está entranhado na realidade de qualquer instituição, conforme notam Berger & Luckmann abaixo:


“Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)



Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta a Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade. Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu, embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar, claro é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social. No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é produto social (Berger & Luckmann, p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma análise pode negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:

1) sua realidade objetiva. O mundo institucional é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como uma realidade marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do indivíduo e cujas origens ele ignora;

2) sua perpetualidade. Toda instituição se perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do indivíduo, mas também porque continuará existindo depois de sua morte;

3) a sua historicidade. A própria história desse mundo institucional é dotada de objetividade. A biografia de um indivíduo se reduz a um episódio situado na história objetiva de sua sociedade.

4) sua facticidade inegável. As instituições com que se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles as percebem como tais.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão aí, exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou não” (p. 86). As instituições  resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre os indivíduos, quer devido ao seu caráter de facticidade (elas estão aí como “já dadas”), quer por força dos mecanismos de controle que lhes dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se impõe, mesmo que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de funcionamento. Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender muitos aspectos da ordem social e pode considerar opressivas as formas como eles se lhe apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.

“Existindo as instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)


A linguagem desempenha um papel fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me deter a avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso compreender a função da legitimação, como um fenômeno, necessariamente dotado de materialidade linguística, que atenderá às necessidades de permanência da instituição e seu reconhecimento pela geração futura.
Legitimação. O mundo social existe somente na medida em que é transmitido a uma nova geração. Esse processo de transmissão se realiza na forma de interiorização pelos indivíduos, na socialização, das estruturas institucionais (suas normas, ideias, valores, ideologias...). Portanto, o mundo social existe apenas quando do surgimento de uma nova geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do aparecimento de uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois, os modos pelos quais o mundo social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação na conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração recebe a realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos indivíduos. Vou ilustrar essa inacessabilidade da realidade da instituição à consciência dos indivíduos, pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento de pensamento. Imaginemos que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e Maria, não sendo criadores originais do mundo social (como também não o são os seus pais, é claro) não podem ter acesso direto ao significado das instituições. O conhecimento que se lhes tornam acessível o é por um “ouvi dizer”. O significado original das instituições deve ser interpretado para eles por meio de várias fórmulas legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação do mundo social, servindo para explicá-lo ou justificá-lo para as novas gerações, visam também a provocar nelas um consenso acerca da validade dos modos de funcionamento da própria instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam Berger & Luckmann,

“Segue-se que a ordem institucional em expansão cria um correspondente manto de legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e normativas”.
(pp. 88-89)


A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular a conduta dos indivíduos na ordem social.

“A nova geração engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem institucional exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre o indivíduo, independentemente das significações subjetivas que este passa a atribuir a qualquer situação particular”.
(p. 89)


As definições institucionais previamente existentes devem ser protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de instituição que capta dois aspectos básicos dela: sua padronização de hábitos e sua objetividade irredutível à consciência individual.

“[instituições] são as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)



Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um “fato social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas, cabe destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos sociais congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do processo de educação. Segundo ele,


“Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros tempos de sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas horas certas. Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a trabalhar, etc., etc.”
(p. 35)


Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina Durkheim, é que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem. Mas é a própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências individuais, acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.

A objetivação pela linguagem. Tenho repisado a ideia de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas experiências de mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas orientando-a no sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela linguagem no processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de nossas experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de conhecimento) que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em nossos discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a linguagem objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a todos os indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um estoque de conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias pelas quais se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são incorporadas ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger & Luckmann lançam uma luz sobre a importância da linguagem no processo de objetivação de nossas experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão” (p. 96). E prosseguem:

“Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência, ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar um profundo laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência designada e transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)


Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida na/pela linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir um caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral, mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações coletivas assumem a forma de ideologias.

“(...) Tendo a origem real das sedimentações perdido importância, a tradição pode inventar uma origem completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi objetivado. Em outras palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras, de vez em quando outorgados novos significados às experiências sedimentais da coletividade em questão”.
(pp. 97-99)



1.3. O que é, então, uma instituição?


Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre si e que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade. As instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram. As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas Simbólicas (2011), a respeito da influência que as estruturas sociais exercem na formação da consciência dos indivíduos:

“Se levarmos a sério (...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em classes, somos, necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre as estruturas sociais (em termos mais precisos, as estruturas de poder) e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)


Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor dissimuladamente princípios que regulam a estruturação da percepção e do pensamento do mundo, particularmente, do mundo social, por meio da imposição de um sistema de práticas e de representações cuja estrutura se calca objetivamente sobre uma base de divisão política que espelharia a estruturação dos domínios natural e sobrenatural do cosmos.


2. A problemática

O argumento moral em favor da existência de Deus encontra abrigo no pensamento de muitos filósofos, dentre os quais destacarei, para efeitos desta exposição, Immanuel Kant. O argumento moral apela às intuições das pessoas comuns e repousa sobre a crença de que a existência de valores morais objetivos e de toda a ordem moral objetiva se justifica melhor se Deus existir.
O argumento prende-se à experiência moral de muitos de nós e suscita a questão, de cujo desdobramento vou me ocupar neste texto: há valores morais objetivos? Convém não confundir essa questão com outra que ela suscita, a saber, a questão que consiste em determinar qual a melhor forma de justificar valores morais objetivos. Há, portanto, duas questões que se impõem ao exame reflexivo de quem quer que se debruce sobre o problema da objetividade dos valores morais: a questão que consiste em saber se podemos falar realmente em valores morais objetivos e a questão que consiste em determinar qual é a melhor forma de justificar valores morais objetivos. São essas as duas questões de cujo desenvolvimento me ocuparei.
Os partidários do argumento moral em favor da existência de Deus rezam que valores morais objetivos só podem ser justificados se supusermos a existência de Deus, isto é, de uma heteronomia transcendente que serve de fundamento para a ordem objetiva dos valores morais. Eu não só rejeito a necessidade de pressupor a existência de Deus, como também estendo minha rejeição à suposição de que há uma ordem objetiva de valores morais. Na medida em que encaro os valores morais como fatos sociais, sustento a tese de que a objetividade social é ela mesma produzida no domínio intersubjetivo, de modo que a objetividade resulta da intersubjetividade e nela se baseia. O que chamamos de objetividade em termos sociológicos (não nego, em princípio, a objetividade do mundo natural) é este espaço do entre-sujeitos, do inter-subjetivo, das práticas humanas socialmente determinadas, que, por força da repetição, por ocasião de processos educativos, vão-se objetificando e passam a ser percebidas pelos sujeitos sociais como integrantes de uma esfera cuja estrutura é independente deles.
Tal como exposta a problemática, duas questões se impõem à discussão:

a) A objetividade que costumamos atribuir aos valores morais não decorreria senão do modo como os experienciamos?

b) Quem é esse Deus que se pretende seja o fundamento da moral?

A primeira questão procura suscitar uma reflexão sobre a distinção entre uma objetividade a priori (por exemplo, a objetividade desta montanha que existe independentemente de mim e continuará existindo sem mim) e uma objetividade que julgamos existir nos valores morais, por força do modo como os experienciamos. A suposta objetividade dos valores morais se funda no esquecimento ou, para usar um termo marxista, num processo de fetichização, segundo o qual, uma vez instituídos tais valores, eles passam a ser percebidos pela consciência dos indivíduos como se existissem independentemente das práticas sócio-históricas em cuja origem estão os próprios homens, os verdadeiros criadores dos valores. Os indivíduos se esquecem de que o trabalho de criação dos valores morais é responsabilidade de muitas gerações de seres humanos. A primeira questão orienta, portanto, o argumento segundo o qual a objetividade dos valores morais é uma construção fundada no domínio da intersubjetividade, nesse lugar-entre que abriga as práticas intersubjetivas historicamente determinadas. Esse ‘lugar-entre’ é o lugar da objetivação das experiências humanas; é nesse lugar-entre que os valores adquirem o caráter de objetividade, muito em função das práticas discursivas.
A segunda questão alicerça o desenvolvimento do argumento segundo o qual postular Deus como fundamento dos valores morais é firmar uma perspectiva que, afirmando a absolutidade dos valores morais – absolutidade esta pressuposta no apelo à autoridade de um Deus supremo -, está, paradoxalmente, agasalhando a tese do relativismo moral. Esclarecendo este ponto, se o Deus a que Kant – e com ele os herdeiros da tradição das Luzes – faz apelo, na tentativa de estabelecer a justificação última da ordem moral, é o Deus bíblico, segue-se daí que se esquece de que esse Deus foi social e historicamente produzido e que sua suposta existência está intimamente associada à fé religiosa que marcou profundamente a cultura ocidental. Nesse sentido, o fundamento que se pretende encarne e garanta a natureza objetiva dos valores morais é ele mesmo relativo a uma tradição sócio-histórica cujas raízes remontam a aproximadamente 14 mil anos, tempo em que, no Antigo Oriente Próximo, foi-se desenvolvendo, pouco a pouco, a ideia de Deus.
Decerto, o esquecimento que está na base da postulação de Deus para fundamento da moral não é o único problema que deverá ser atacado. Veremos que uma breve incursão na história do desenvolvimento da ideia de Deus é suficiente para mostrar que Deus não é o melhor candidato para ocupar o estatuto de fundamento da moral.
Preciso frisar que o argumento de Kant em favor da existência de Deus é consequência de sua teoria ética, que será apresentada, em linhas gerais, mais adiante. Por ora, quero esboçar a estrutura de seu argumento.
Segundo Kant, uma vez que estamos comprometidos com valores morais objetivos e que os consideramos a forma mais racional de viver, temos de acreditar em um Deus pessoal, um sujeito transcendente que fez as leis e forneceu os valores. Esse sujeito é a fonte dos valores morais que tomamos por objetivos. O que, talvez, passe despercebido, no cerne deste raciocínio, é que a origem de valores morais objetivos se identifica com um sujeito, com uma pessoa, que se toma como autoridade transcendente. Isto é, a objetividade dos valores é garantida, em todo caso, pela subjetividade, pela arbitrariedade de uma heteronomia. Deus é o sujeito absoluto donde provém a objetividade dos valores.
Uma crítica desmitificadora, que se alinhasse com o pensamento de um Feuerbach, por exemplo, não veria nessa fonte absoluta da objetividade dos valores, ou seja, em Deus, senão uma forma de projeção da essência humana (ou da consciência) que, fora do homem, passa a ser adorada como Deus. Não encontrando nem na natureza nem em si mesmo as condições que justifiquem seu comportamento moral, o homem concebe na imaginação um Outro de si, que situa na transcendência para além de si mesmo e do mundo, e lhe confere a autoridade sobre a objetividade dos valores morais, que ele, homem, experiencia como tal, em virtude de não lhe ser acessível à memória a gênese histórica de tais valores .
Consideremos, doravante, as duas teorias da moral, a que já aludi, no limiar deste estudo: a teoria moral cristã e a teoria moral de Kant. Essas duas teorias da moral baseiam-se na ideia de dever.
As teorias morais assentadas sobre a noção de dever mantêm que cada indivíduo tem certos deveres, ou seja, ações que devem ou não executar – e que agir moralmente significa cumprir nosso dever. Não importam as consequências que decorrem disso. Consoante essas teorias, algumas ações são absolutamente certas ou erradas independentemente das consequências que resultam delas. As teorias baseadas no dever se dizem também ontológicas. É justamente porque elas não se preocupam com as consequências que resultam da realização das ações que se distinguem das teorias morais consequencialistas.

3. Teorias morais baseadas no dever

3.1. A moral cristã

O ensino moral cristão formou a base de nossa compreensão ocidental de moralidade. A influência da doutrina cristã na constituição de nossa concepção de moralidade é tal, que mesmo as teorias morais de base ateia lhe são fortemente devedoras.
Os Dez Mandamentos, por exemplo, abrigam variados deveres e atividades proibidas. Esses deveres se impõem independentemente das consequências que decorrem de seu cumprimento. Quem quer que acredite ser a Bíblia a palavra de Deus não tem dúvida sobre o que é certo e errado. Certo é aquilo que está de acordo com a vontade de Deus; e errado, o que está em desacordo com a sua vontade. Para essa pessoa, a moral se resolve na obediência a ordens absolutas, em cuja origem está uma autoridade transcendente, chamada de Deus.
Estou consciente de que a moralidade cristã é mais complexa do que deixa entrever essa descrição que dela fiz. Não obstante, o essencial não se perdeu: ela é um sistema do que é permitido e do que é proibido. Isso é extensivo a outras morais de base religiosa, que não a cristã.
Pontuarei, a seguir, algumas dificuldades suscitadas pela moral cristã, sem pretender, contudo, me estender sobre elas. A primeira dificuldade diz respeito à questão de como saber qual é, na verdade, a vontade de Deus. Os cristãos podem tentar dar conta dessa questão recomendando a leitura da Bíblia, mas a Bíblia dá margem a interpretações conflitantes e está eivada de incoerências. A segunda dificuldade toca ao que ficou conhecido em Eutífro, de Platão, como Dilema de Eutífro. Consiste esse dilema na questão de decidir se o que Deus ordena ou ama é moralmente bom ou se o fato de Deus ordenar ou amar é que torna as coisas moralmente boas. Se aceitamos a primeira via da questão, a saber, aquilo que Deus ordena é moralmente bom, então a moralidade se torna independente de Deus. Nesse caso, os valores morais preexistiriam no mundo e Deus amaria ou ordenaria aqueles que já são bons previamente. Deus não os criaria, mas os descobriria. Se admitirmos a segunda via da questão, então a moralidade fica ao abrigo da arbitrariedade de Deus, o qual poderia, em virtude de seu poder absoluto, decidir que o assassinato é moralmente bom. É claro que um cristão poderia objetar que Deus nunca aprovaria o assassinato porque Deus é bom. Mas, nesse caso, se com “bom” quer-se dizer “moralmente bom”, segue-se daí que Deus estaria aprovando a si mesmo. De qualquer modo, se Deus nunca pudesse aprovar o assassinato porque Deus é bom, segue-se que, de algum modo, o valor moralmente negativo do assassinato está prefixado em contraste com a bondade inerente de Deus.
Há, decerto, problemas mais graves quando se pretende tomar o Deus judaico-cristão, o Deus pessoal bíblico, para fundamento da moral. A ideia de direitos humanos naturais não se encontra na Bíblia, muito embora, em seu germe, ela se encontrasse na profissão cristã. Mas sua versão laica, que suprime a referência à supremacia da lei divina, só se formalizaria na modernidade, com os racionalistas dos séculos XVII e XVIII.
Basta lermos a Bíblia para nos apercebermos de que Deus, mormente a representação que dele se acha na Bíblia hebraica, é uma entidade que aprova a escravidão e a inferioridade das mulheres. Deus também ordenava a matança indiscriminada de crianças, homens e mulheres inocentes, como na destruição de Jericó e Ai (Josué 6-8).

“Depois incendiaram a cidade inteira e tudo o que nela havia, mas entregaram a prata, o ouro e os utensílios de bronze e de ferro ao tesouro do santuário do Senhor” (Josué 6:24).


No relato do Êxodo (3:19-22), Deus instrui os hebreus a roubarem os egípcios. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo envia um escravo fugidio de volta para o seu senhor e declara que os escravos devem obedecer a seus senhores e as esposas a seus maridos. Encontramos em Efésios (6:5-6) – uma carta que muito provavelmente não foi de autoria de Paulo – a recomendação de que os escravos obedeçam aos seus senhores.
Essa rejeição de Deus como fundamento da moral deve ser entendida à luz da crítica materialista que faz ver Deus como dispositivo ideológico a serviço da construção da história de um povo, de sua identidade nacional. No mundo antigo, era comum a escravidão, e Deus surge no registro bíblico como um dispositivo ideológico, discursivamente acionado, para legitimá-la.


4. O argumento moral de Kant

Com a teoria moral de Kant – que aqui será apresentada de modo bastante esquemático -, em cujo desenvolvimento se acha a influência decisiva do pensamento de Rousseau, a ideia de virtude reside na ação ao mesmo tempo desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem comum e “universal”. O desinteresse e a universalidade passariam a constituir os dois pilares principais do que podemos chamar de a moral moderna.
Daí que a ação verdadeiramente moral, a ação verdadeiramente humana será, antes de tudo, ação desinteressada, a saber, aquela que expressa o que é próprio do homem – liberdade. A liberdade é, portanto, entendida como a faculdade de se libertar do programa codificado pela natureza. O reino da liberdade é o do próprio arrancamento do homem em relação à sua herança de instintos naturalmente codificada.
Não se nega que o homem é também um animal, e, portanto, que é um organismo natural, mas se afirma, fundamentalmente, pelo menos enquanto hipótese, a possibilidade de ele escapar às pressões do programa nele instalado pela natureza. Pela liberdade e graças a ela, nós nos distanciamos do particular para nos ocupar e nos preocupar com os outros. A liberdade nos faz reconhecê-los como seres racionais dotados de direitos, porque igualmente livres.
O homem é, por conseguinte, um ser moral, porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante.  A liberdade é independência de determinações empíricas ou estranhas; é autodeterminação. Para Kant, a liberdade não só é o fundamento da prática, mas também de todo o seu sistema crítico. Não há ação sem liberdade.
O que me interessa, no entanto, não é discorrer, com pormenores, sobre a teoria moral kantiana. Pretendo insistir em que ela culmina com o argumento segundo o qual, para crer em valores morais objetivos, é necessário supor a existência de Deus, o que equivale a dizer tomá-lo como fundamento último da ordem moral objetiva. Kant crê ser razoável acreditar que a melhor explicação para a ordem moral objetiva é que ela foi planejada por Deus e posta em prática durante a criação.
Urge pontuar, contudo, que a Ideia de Deus, após o trabalho de desconstrução levado a efeito pela primeira Crítica (a da Razão Pura), foi destituída de conteúdo objetivo. A Ideia de Deus passou a ser entendida como uma Ideia da Razão, como um princípio regulador da pesquisa científica. Na teoria do conhecimento de Kant, a ideia de Deus sofreu uma secularização. Para Kant, a Ideia de Deus é uma ideia necessária da razão. A existência que atribuímos, necessariamente, a Deus não deixa de permanecer como uma existência ideal, uma existência apenas em pensamento, e não como uma existência real. Na Crítica da Razão Pura, o divino se reduz a uma Ideia da razão humana.
É preciso, contudo, lembrar que Kant fora cristão e permaneceu cristão, sem embargo de ter colocado entre parênteses a religião quando se debruçou sobre o problema, eminentemente filosófico, da fundação da ética humanista.



5. Um punhado de História: a materialidade histórica da ideia de Deus

Ao revisitar o que chamo de materialidade histórica da ideia de Deus, proponho que se pense que, ao se pretender estabelecer Deus como fundamento da moral, está-se sustentando, ainda que implicitamente, uma visão etnocêntrica que torna a moral das sociedades ocidentais superior à de outras comunidades, inclusive à de uma comunidade indígena como a dos Piarrãs que habitam regiões do estado do Amazonas e que não acreditam em nada que não possam tocar, ver, enfim, sentir.  Outrossim, ao retornar às raízes históricas da ideia de Deus, pretendo, no quadro da discussão aqui empreendida, argumentar que só se pode conferir a Deus o estatuto de fundamento da moral pelo esquecimento das condições sócio-históricas em que a ideia de Deus se desenvolveu e entrou a fazer parte da estrutura da consciência religiosa, historicamente determinada, como ente superior e universal, transcendente ao homem e ao mundo.
Aqui, orquestro a perspectiva com a qual me alinho, ao retomar o conceito de materialidade histórica da ideia de Deus. É com base na perspectiva materialista que sustento ser o homem quem cria os valores. O materialismo, de que é um exemplo a biossociologia contemporânea, reza que os valores são radicalmente imanentes à realidade material do ser humano. O homem não descobre os valores; ele os inventa, é seu criador, seu fundamento último, conquanto não se dê conta disso e creia, de modo fetichista, que os valores tenham uma existência independentes dele. Portanto, no cerne da atitude moderna da suspeita ou da desconstrução, repousa a crítica ao fetichismo que desembocará no postulado segundo a qual os valores são relativos ao humano, visto que é o ser humano, no trabalho histórico, que os produz.



5.1. A Bíblia é uma obra humana, demasiado humana

Toda vez que se afirma Deus existe, pelo menos nas sociedades de tradição monoteísta, particularmente cristã, essa elocução faz falar um esquecimento que resulta da combinação de três operações mistificadoras: 1) conversão; 2) descolamento; e 3) inversão. Por conversão, entendo a transformação, operada pela consciência, da ideia de Deus em um ente objetivamente existente, ainda que sua existência não seja acessível à experiência sensorial humana. Pela conversão, portanto, a ideia, produto do pensamento, se converte em ente, que existe independentemente do pensamento. Por descolamento, entendo o ato de descolar a ideia de Deus, já concebida como ente objetivamente existente, das condições sócio-históricas reais em que ela foi gestada e convertida em ente. Finalmente, por inversão, entendo o ato de pensar tal ente como causa, origem, princípio primeiro da existência do homem, delegando a este o lugar de criatura. Essas três operações da consciência mistificada são historicamente determinadas, porque a própria consciência é produto sócio-ideológico. A própria consciência humana se constrói e se desenvolve nas práticas sociais e históricas concretas.
Um fato que pode ter sido decisivo para a realização na consciência dessas três operações, mormente da operação que chamei de descolamento, foi o surgimento da escrita e o domínio dela pelas autoridades hebraicas. Consoante assinala o filósofo Régis Debray, em seu Deus: um itinerário (2004),

“Só um texto, paradoxalmente, pode descontextualizar e, dessa maneira, engendrar uma crença desembaraçada de sua inscrição espaço-temporal [histórica]. Enquanto houver somente troca verbal “em situação”, entre coexistentes, uma entidade não tem como isolar-se do seu meio de nascimento, nem como transmitir-se sem sofrer alteração. Em contrapartida, a transcrição corta a palavra de quem fala e a põe do lado de fora. Desprendida de seu emissor, ela pode voar com as próprias asas. Autonomiza-se. Absolutiza-se ( grifos meus, p. 121-122).


Quando consideramos a Bíblia, aprendemos que o povo que ficou conhecido como os antigos israelitas era uma confederação de vários grupos étnicos, ligados, sobretudo, por sua lealdade a Javé, o Deus de Moisés. Ocorre, contudo, que a história bíblica foi escrita por volta do século VIII a.C., embora, sem dúvida, inclua fontes narrativas de períodos precedentes. No século XIX d.C, estudiosos bíblicos alemães cunharam um método crítico que discerne quatro fontes diferentes nos cinco primeiros livros da Bíblia – que, reunidos no século V a.C., formam o Pentateuco. Esse método foi alvo de ataques, mas permanece, ainda hoje, como o dispositivo de investigação mais satisfatório para explicar por que há duas versões bastante diferentes de acontecimentos bíblicos extremamente importantes como a Criação e o Dilúvio, e por que a Bíblia, às vezes, se contradiz.
Os dois primeiros autores bíblicos, responsáveis pelo Gênesis e pelo Êxodo, escreveram, provavelmente, no século VIII a.C., embora alguns estudiosos pensem que o período em que escreveram é anterior ao século VIII.
Um desses autores ficou conhecido como J, porquanto chama seu Deus de Javé; e o outro, como E, porquanto preferiu chamar seu Deus de Elohim. No século VIII a.C, os israelitas haviam dividido Canaã em dois reinos separados. J escrevia no reino de Judá, localizado ao sul; e E era do reino de Israel, ao norte.
É interessante observar que, em Israel, foi somente no século VI a.C., que houve um verdadeiro interesse pela Criação, no momento em que o autor P  (Pentateuco) escreveu sua grandiosa narrativa conhecida como Gênesis. J, por seu turno, não estava absolutamente certo de que Javé era o único criador do céu e da terra. J percebia como distintos o homem e o divino. O homem (adam) não se constitui do material divino de seu deus, mas pertence à terra (adamab).
É suficiente dizer que J, contrariamente ao que criam seus vizinhos pagãos, não tomou a história secular como profana, frágil em comparação com o tempo sagrado, primordial dos deuses. É no momento em que relata o chamado de Abraão que J estabeleceu a cadência da futura história do Deus, chamado Javé. Esse Deus, na época em que vivera J, era o Deus de Israel.
A religião israelita era pragmática e não tinha maior interesse no tipo de detalhe que nos preocupa hoje. Não devemos supor que Abraão ou Moisés acreditassem em seu Deus como muitos de nós acreditam. Muitos de nós acreditamos que os três patriarcas de Israel – Abraão, Isaac e Jacó – eram monoteístas, acreditavam num único Deus. Não parece ter sido este o caso. Na verdade, é mais provável que esses hebreus fossem pagãos que partilhavam muitas das crenças religiosas de seus vizinhos. Decerto, eles acreditavam na existência de deuses como Marduc, Baal e Anat. É possível que não adorassem o mesmo Deus. O Deus de Abraão, chamado Temor, ou o Deus de Isaac, conhecido como Parente, ou ainda o Deus de Jacó, chamado o Poderoso, talvez fossem três deuses distintos.


5.2. O Antigo Israel


Israel nasceu num mundo já antigo. Quando os primeiros israelitas se organizaram em clãs familiares, na região de Canaã, entre o Mediterrâneo e o rio Jordão (cerca de 2000-1500 a.C.), duas grandes civilizações já floresciam no chamado Oriente Médio: o Egito, ao ocidente, e as civilizações da Mesopotâmia, ao oriente.
A Bíblia, que não pode servir de fonte histórica fidedigna, relata que a formação de Israel se iniciou com a migração dos patriarcas hebreus da Mesopotâmia para Canaã. Essa migração, que se deu aproximadamente na primeira metade de 2.000 a.C.,foi determinante do início da história de Israel.
O Gênesis, do capítulo 12 ao 50, narra a odisseia da saída de Abraão da Mesopotâmia em direção a Canaã, a formação das tribos de Israel e o crescimento de seu povo no Egito. Tais narrativas não constituem documentos históricos contemporâneos aos acontecimentos narrados. Essa é a visão já bem estabelecida pela crítica bíblica desde a última metade do século XIX, quando a Bíblia deixou de ser vista pelos estudiosos como verdade pronta e revelada e foi submetida aos métodos crítico-históricos modernos.
Com base no método crítico-histórico, os estudiosos bíblicos passaram a encarar os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó não mais como figuras históricas, mas como antepassados epônimos de clãs, ou ainda figuras mitológicas. Há historiadores que chegam a afirmar a inexistência desses patriarcas.
Saliente-se, de passagem, visto se tratar de um aspecto importante recoberto pelo que tenho chamado de materialidade histórica da ideia de Deus, conceito que recobre todos os acontecimentos políticos, econômicos, sociais, ideológicos, em suma, históricos que tornaram possível o surgimento e o desenvolvimento da ideia de Deus no Antigo Oriente Próximo, que o relato do texto bíblico abriga grandes migrações de clãs em toda a região canaanita, invasões de povos e guerras sangrentas.
É certo que nem tudo que há na Bíblia é história, mas uma porção significativa de seu texto refere-se a eventos e pessoas reais, que precederam o desenvolvimento da literatura bíblica.
A base da sociedade israelita é nômade e consanguínea. Jacó, neto de Abraão, tem seu nome mudado para Israel (“guerreiro de Deus”) e seus filhos formaram as doze tribos israelitas, cada um dos quais ficou encarregado de administrar um território após a conquista de Canaã. Apenas a tribo de Levi foi designada para os serviços religiosos na nação.


5.3. O Deus supremo

A última subseção deste texto deriva sua importância do fato de trazer à cena da argumentação um recorte do desenvolvimento da ideia de Deus, patenteando seus contornos semânticos e articulando-os com dois acontecimentos que foram fundamentais na sua consolidação.
Começo, pois, por notar que a religião israelita assenta na ideia de que Deus é supremo. Sendo Deus supremo,  não há nenhum reino acima ou além dele que ponha limite a sua soberania. Esse Deus é um Deus absoluto e transcendente. É completamente distinto e diverso do mundo. Essa ideia, segundo o teólogo Yehezkel Kaufmann, surge de uma intuição original, e não foi produzida por uma especulação intelectual, à moda grega, ou por uma meditação mística, à maneira indiana.
Se é verdade que a Bíblia enfatiza a unicidade e supremacia de Deus, é igualmente verdadeiro que ela sublinha o contraste entre o seu novo conceito de divino e a essência mitológica do paganismo. O monoteísmo jamais recebeu uma formulação sistemática e abstrata entre os israelitas. A religião, entre eles, formou-se por símbolos, dentre os quais o mais importante era a imagem de um Deus supremo e onipotente, sagrado, aterrador e ciumento, cuja vontade era a lei maior.
Não se pode esquecer que essa nova ideia de Deus firmou-se, sob seus vários aspectos, com a contribuição da criatividade da população. O Deus de Israel – que nada tinha do caráter universalizante que assumiria com o advento e o desenvolvimento do cristianismo, muito tempo depois – não tinha nenhuma linhagem, pais ou gerações. Isso explica o fato de o repertório de lendas bíblicas carecer do mito da teogonia pagã. Por outro lado, ajunte-se que o relato bíblico é abundante de lendas a respeito de Deus, ainda que diferente, em gênero, dos mitos pagãos.
É bastante, para os meus propósitos, destacar os dois acontecimentos que contribuíram decisivamente para a consolidação da ideia de Deus. Esses acontecimentos estão, naturalmente, recobertos pelo conceito de materialidade histórica da ideia de Deus. O primeiro acontecimento diz respeito à experiência israelita de seu Deus. Viver em conformidade com a vontade de Deus era a aspiração mais profunda dos hebreus. Javé ou Elohim habita seu povo, onde tem uma casa (o tabernáculo, na época nômade) e depois o templo de Jerusalém.
O segundo acontecimento toca ao advento da monarquia de Israel (1.000 a.C), acontecimento este que constituiu um marco na vida dos israelitas. Suas consequências não foram só políticas, nacionais, culturais, militares e econômicas, mas também foram significativas na história do Javismo. O reinado de Saul, primeiro rei, constituiu um estágio de transição entre a forma de governo tribal do período dos Juízes e o estabelecimento de um Estado verdadeiro, com os reinados de Davi e Salomão.
Em suma, quando insisto em que é necessário reconhecer as raízes históricas de Deus, estou interessado em contribuir para o trabalho de desmitificação da consciência religiosa. Entendo que é parte desse trabalho recordar os acontecimentos históricos que estão na base do desenvolvimento da ideia de Deus.
Por fim, oportuno é aqui referir um excerto da crítica antropológica da ideia de Deus, levada  a efeito por Feuerbach, em seu Preleções sobre a essência da religião (2009):


“Já observei que a meta de meu tratado sobre a essência da religião, e consequentemente, também destas preleções, não é outra senão mostrar que o Deus da natureza ou o Deus que o homem distingue de sua essência e que pressupõe esta como a causa ou origem nada mais é do que a própria natureza, e que o Deus humano ou o Deus espiritual ao qual atribui predicados como consciência e vontade que ele imagina como um ser semelhante a si, distinto da natureza enquanto entidade destituída de vontade e consciência, nada mais é do que o próprio homem ( grifo meu, p. 180)



Feuerbach, fiel à crítica desmitificadora do materialismo moderno, denuncia o antropomofismo que está na base da ideia do Deus judaico-cristão, bem como desmonta aquilo que a consciência religiosa dicotomizou, no momento em que ele, Feuerbach, viu em Deus a hipóstase da própria essência do homem. Deus é o próprio homem, e não um ente radicalmente distinto como aparece para a consciência mistificada dos crentes. Trata-se – eu acrescentaria – de reposicionar na origem o homem, de ver a história como trabalho e realidade humana, e Deus como um produto imaginário da consciência humana historicamente constituída nas práticas reais e concretas das quais os seres humanos são os únicos e verdadeiros agentes (embora também se insiram, no processo histórico, como produtos). A ideia de Deus é, portanto, produto de determinadas condições históricas da existência humana. Feuerbach não cansou de insistir em que suas ideias tomam corpo na consideração de “fenômenos históricos e empíricos” (ib.id.), razão por que conseguiu repor no lugar próprio aquilo que a consciência religiosa tratou de mudar de lugar, na medida em que estabeleceu para Deus o lugar de causa, de criador; e ao homem, o de resultado, produto ou criatura, na invenção recontada ad nauseam da Criação.