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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Por um ensino de língua em favor dos oprimidos!




                       
                                  Nós não aguenta mais essa bazófia! 



Eu detesto admitir, mas tenho de fazê-lo: foge ao meu poder pôr em derrocada uma longa tradição de ensino de língua portuguesa de cunho prescritivista-normativo calcada sobre a noção equivocada de “erro linguístico”. Mesmo eu, que estudei durante quase 10 anos, que desenvolvi estudos de pós-graduação (mestrado, especialização e doutorado) em Letras, que aprendi a desenvolver um pensamento científico sobre a linguagem, mesmo eu, junto aos demais especialistas, mais experientes e capacitados do que eu, tenho de reconhecer a força insuperável dessa tradição que reforça a baixa auto-estima linguística do brasileiro, ensinando a “evitar os deslizes da gramática”.
O que essa tradição, que se funda numa concepção ideológica da complexa relação entre língua e sociedade, não revela são os mecanismos de poder envolvidos na prática de prescrição e censura dos usos linguísticos. O que ela não revela é o preconceito linguístico, é o sentimento de estratificação social que subjaz às práticas linguísticas. O que ela não revela, mas esconde, é que a rejeição da fala do outro, com base no uso de alguma forma ou estrutura que não é agasalhada pela norma culta, estabelecida esta, por sua vez, com base no poder dominante, quer sócio-político, quer cultural, quer econômico, contribui para excluir ainda mais as camadas populares a que esse outro pertence. Ela não mostra que essa rejeição demarca com mais nitidez as exclusões que já existem nos domínios sócio-político e econômico. Ao contrário, esta tradição e seus continuadores insistem em tratar de modo superficial os usos da língua, insistem em asfixiá-los numa roupa doutrinária, dogmática, em cujo alicerce se acham critérios que sequer reconhecem. Essa tradição e seus continuadores supõem que os erros são imanentes à língua, continuam a ensinar, por exemplo, que uma frase como “Vi ele no banheiro” está “errada” simplesmente porque NÃO DEVEMOS usar pronome reto na função de complemento verbal (objeto direto). Mas qual é a voz que diz NÃO DEVEMOS? Quem é que proibiu esse uso? E qual seria a outra razão senão o da proibição por quem quer que seja pela qual essa frase está “errada”? Gramaticalmente, não há nada de anormal com a frase. Sua estrutura se formou na base dos padrões previstos na gramática (sistema de regras e unidades) da língua portuguesa. Nela encontramos articulados: um sujeito implícito ou zero (marcado na desinência do verbo “ver” (vi)), um objeto direto ou complemento do verbo “ver” (ele) e depois um adverbial locativo, constituído da preposição “em” combinada com substantivo que denota ‘lugar’. Não há nada de “errado” nessa estruturação. Onde está o “erro” então? Onde devemos buscar o “erro” então?
Ora, claro está que o “erro” se desloca do plano linguístico ou gramatical, para o plano social, ou sociocultural. Definitivamente, o “erro” é uma valoração que as pessoas fazem das coisas, situações, condutas, práticas, etc. A cultura é um sistema de valores e nossas relações com o mundo e com os outros se organizam na base de valores.  A língua é uma prática social e suas expressões estão sujeitas à valoração baseada em conceitos do tipo “certo” e “errado”. É no social que devemos buscar compreender de que modo e por que os usos linguísticos são submetidos a avaliações como “é certo”, “é errado”, “é bom”, “é ruim”, etc.
Considerado o cenário dessa maneira, não se pretende defender o “vale tudo” em matéria de uso da língua. NENHUM LINGUISTA PREGA ISSO. Nenhuma autoridade séria que estuda a linguagem ou a língua portuguesa defende isso, simplesmente porque reconhece que há uma norma culta e que seu domínio é sinal de prestígio social e importante para a emancipação socio-política dos sujeitos sociais. Além disso, é pelo domínio dessa norma que os sujeitos terão mais possibilidades de acesso aos bens culturais e mais participação nas esferas do poder.
A tradição a que venho me referindo quer fazer crer à grande maioria leiga que o uso da variedade de prestígio da língua deve predominar sobre as demais variedades e que essa variedade de prestígio deve ser extensiva a todas as situações de interação. Agora, experimente falar difícil com o seu amigo enquanto tomam uma cervejinha no bar. Muito provavelmente ele o tomará por pedante e antipático. Simplesmente, porque, naquele contexto, espera-se uma forma de linguagem informal, coloquial, um comportamento linguístico não-monitorado, livre dos padrões da norma culta.
Um falante de português suficientemente competente em sua língua materna é aquele que domina o maior número de variedades possível e que lança mão delas de modo adequado às mais variadas situações de interação. Em suma, é aquele que, dominando as variedades de prestígio, sabe também usar as demais variedades sempre que as condições contextuais (socioculturais) as demandam. O falante nativo competente não é aquele chato que segue religiosamente as regras da norma culta em todas as situações de interação. Esse chato provavelmente vai ser mal visto e excluído dos círculos de amizade.

Acordem, professores de português! Ainda é tempo de construir uma consciência crítico-emancipatória dessa tradição que engessa a língua e continua a reproduzir a exclusão daS maioria.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


                        

                               O retorno do mesmo
Abro a seção Boa Chance do Jornal O Globo, de 22 de abril de 2012 e depara-se-me uma reportagem sobre “erros” de português numa questão de prova de concurso público. No cabeçalho, lê-se Nenhuma das repostas abaixo. Subscrito, topa-se Erro de português em questão de prova de concurso público é mais frequente do que se imagina.
Para muitos, o fato é alarmante (isso deve ter sido um prato cheio para os gramáticos de plantão repisar seus chavões). E os que apreciam o patrulhamento linguístico e creem-se integrados à Guarda de Salvação da Língua Portuguesa devem ter engrossado mais suas opiniões preconceituosas sobre o modo como “a língua de Camões” tem sido tratada aqui nessas terras tupiniquins. E o que dizer dos “erros”?
Os desvios de norma culta se verificaram nos âmbitos da ortografia (grafou-se “exige” com “j” (exije), esqueceu-se o acento agudo em “publico” (“interesse publico”); além disso, grafou-se “senhoragem”, ao invés de “senhoriagem”); da concordância verbal (aqui justificável, como veremos), caso em que o verbo “ser” é pluralizado, ainda que o sujeito, oracional, na variedade padrão, exija o verbo na terceira pessoa do singular (“Ter boas práticas de higiene pessoal são fundamentais”), da concordância nominal (dez pagamento mensais - a presença do numeral na posição pré-nuclear leva à não marcação do plural no núcleo do SN; ademais, a marca de plural, em SN com pré-determinante, ocorre sistematicamente neste elemento e tão-só nele, o que nos leva a conjecturar que houve um lapso quando da não-marcação do plural no nominal, já que o adjetivo subsequente está no plural, sugerindo  que todo o SN deve ser entendido no plural. (cf. Os menino levado / Aqueles barco grande, comuns nas variedades populares.); e, finalmente, de regência, caso em que faltou o emprego da crase, em “Os estados e municípios poderão conceder incentivos as  MPEs...”).
Fazendo eco a Nietzsche, sem pretender, contudo, subverter seu conceito de “eterno retorno”, que, há de se frisar, deve ser entendido dentro dos limites de sua obra, e que tem caráter metafísico - quase místico - sucede que a sociedade nos dá fartos exemplos de práticas, eventos e circunstâncias que retornam incessantemente, a despeito das medidas políticas e/ou científicas para evitar que se repitam. Trata-se do retorno do mesmo. Em matéria de linguagem, o mesmo retorna em forma de discursos que insistem em acentuar a crença equivocada no empobrecimento do idioma, na deturpação dele pelos seus usuários, como se nota no texto da jornalista Maira Amorim, que escreveu a referida reportagem. Dou a conhecer abaixo o trecho inicial:

“Tudo bem que errar é humano e
qualquer um pode se confundir
com o português. Mas, quando
estamos falando de enunciados
e questões de provas de concursos
públicos, maltratar a língua é imper-
doável. Afinal, como cobrar que os
candidatos acertem tudo se nem
mesmo as bancas são capazes
de fazê-lo?”
(grifo meu)

A crença de que a língua pode ser maltratada ou de que ela é constantemente maltratada pelos seus usuários é recorrente no universo da mídia. Ela está arraigada na consciência da maioria esmagadora de indivíduos em nossa sociedade, entre os quais estão aqueles que gozam de maior grau de escolarização e prestígio sócio-cultural. Essa maneira equivocada de entender as complexas relações entre língua e sociedade é ideológica, na medida em que mascara tais relações, legitimando uma dada visão sobre a língua, a saber, a de que ela tem de ser preservada do mau uso feito pelos seus usuários, especialmente se estes proveem das classes menos favorecidas socioeconomicamente. A crença segundo a qual a língua deve ser preservada da corrupção perpetrada por aqueles que são, supostamente, incapazes de se expressar nela é muito velha, pois que remonta ao século III a.C.
Também aquela visão revela as formas como o poder se expressa no âmbito sociolingüístico. Para compreender adequadamente avaliações como aquela, é necessário ter em conta a dinâmica do poder que a elas subjaz: quem o faz ocupa uma posição de prestígio e tem o poder de o fazer. Ao declarar que a língua é maltratada em questões de provas de concurso, a jornalista pressupõe haver indivíduos que a maltratam e supõe não estar entre os “incompetentes”, que usam mal o português. Ademais, atribui a toda uma classe de profissionais responsáveis pela elaboração dos exames a culpa pelos maus tratos à sua língua materna.
Vale notar que, quando falamos de poder, não devemos restringi-lo à esfera do Estado. O poder se imiscui nas práticas dos sujeitos no cotidiano. Nossas relações sociais rotineiras são atravessadas por formas de poder, sutis ou patentes. Pense-se na situação em que um pai se aposse do controle remoto da televisão, enquanto o filho, que estava assistindo a um programa de que gosta, foi atender ao telefone. Ao retornar, a criança pode reivindicar o direito ao acesso ao aparelho, para poder continuar vendo o seu programa, mas sabe que terá de defrontar-se com uma autoridade, com alguém que ocupa uma posição de poder. É claro que o laço amoroso pode sobrepujar a relação de poder, mas, em todo caso, nessa imagem comum do cotidiano, clara está a forma como o poder se manifesta.
Comentarei, brevemente, os casos assinalados como “erros de português” (lembrando sempre que a noção de “erro” em matéria de língua é muito simplista no senso-comum, e mascara uma realidade socio-histórica, marcada por forças ideológicas, que persistem ainda hoje). Dispensando-se o desvio da norma ortográfica, que prevê a grafia “exige” para o verbo “exigir”, particularmente interessante é o caso da concordância verbal. Nesse caso, o sujeito é oracional, ou seja, constituído por uma oração reduzida de infinitivo, como em “Acordar cedo na segunda-feira é muito difícil”, “Trabalhar até às oito da noite me cansa”.  Sucede, contudo, que casos como o do exemplo assinalado pelo jornal são perfeitamente explicáveis pela linguística. Os especialistas mostram que o verbo pode ser flexionado no plural, quando o sujeito, mesmo no singular, sendo extenso, inclui elementos que estejam no plural próximos ao verbo. A concordância se faz por atração, ou seja, o elemento mais próximo, no plural, influencia a relação de concordância, levando o verbo a assumir a forma de plural. Isso explica o emprego de “são”, no enunciado assinalado pelo jornal, já que o núcleo do SN (objeto direto) está no plural - “práticas”. Ao contrário do que se possa imaginar, casos como este são muito frequentes na língua escrita (ocorrências como "um deles saíram", "cada um de vocês falem..." são comuníssimas na escrita de alunos em nível escolar). Essa concordância por “atração” não deveria surpreender os defensores ferrenhos da norma padrão, visto que casos como “a maioria dos deputados foram cassados”, “A grande parte dos funcionários estão demitidos” são abonadas pela gramática normativa. Salta à vista a semelhança entre os casos, nos quais a concordância se dá, por atração, com o elemento no plural, que é o determinante. Mas, note-se bem, que o núcleo sujeito (maioria, parte) está no singular. A despeito disso, o plural também é aceitável na variedade padrão do português.
Finalmente, considere-se o seguinte excerto da reportagem:

“A falta da letra “i” [caso de senhoragem]
pode confundir um candidato, assim como
a ausência de um acento. Entre “publico”
e “público” a diferença vai além do acento
agudo e chega ao significado”.

De fato, o acento agudo em “público” tem valor distintivo. Assim, a presença do acento indica que a palavra pertence à classe do substantivo, ao passo que sua ausência leva-nos a entendê-la como a forma da primeira conjugação do presente do indicativo do verbo “publicar”. Mas a jornalista, como qualquer pessoa leiga em estudos linguísticos, foi incapaz de atentar para um outro fato. “Público” e “publico” não tem a mesma distribuição sintática. Se ela tivesse prestado atenção no ambiente sintático em que figura a forma “publico”, talvez não lhe fosse custoso concluir que qualquer candidato conseguiria inferir se tratar de “público”. Tomemos um trecho do enunciado: “Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse publico perante a Administração”. Note-se que “publico” aparece junto ao substantivo “interesse”. E nós, falantes nativos de português, sabemos, ainda que intuitivamente, usamos adjetivos para modificar substantivos (cf. as medidas governamentais, o plano econômico, o menino travesso, o deputado corrupto, a política pública, etc.). Por outro lado, se nos deparássemos com uma frase como “Eu público mais um texto amanhã”, a despeito da ocorrência de uma forma como “público” (que poderia figurar aí por um equívoco na digitação), o ambiente sintático em que ela ocorre (após o pronome “eu” na função de sujeito e seguindo de um SN na função de complemento) nos permitiria concluir se tratar da forma verbal “publico” (eu publico artigos) e não do substantivo “público”.
A ignorância episódica da jornalista sobre os mecanismos estruturais da língua é compreensível por não ser ela instrumentalizada para analisar com acuidade os eventos de linguagem, mas, de modo algum, podemos aquiescer em sua visão elitista e preconceituosa sobre o uso da língua. 

sábado, 4 de junho de 2011

A árdua tarefa do professor de português

     

   


                                   
                             
                          Uma questão sociolinguística

 A polêmica sobre o livro didático "Para uma vida melhor" foi um tema em destaque recentemente na mídia brasileira. Trata-se de um livro didático destinado pelo MEC a mais de quatro mil escolas do nosso país, no qual havia lições sobre a possibilidade de usar variedades linguísticas menos prestigiosas socialmente, tais como “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. É importante lembrar que a autora do livro tem uma formação adequada em Linguística, de sorte que ela teve o cuidado de sinalizar para a adequação ou inadequação de uso de tais variedades.
Toda vez que uma questão linguística vem à tona, a classe intelectual de nossa sociedade, excetuando-se os linguistas profissionais, emitem suas opiniões eivadas pelas crenças, preconceitos e superstições disseminados e arraigados pela longa tradição da gramática normativa. Discriminar as diversas formas de falar/ escrever o português em “certas” e “erradas” é, infelizmente, ainda a única forma pela qual a grande maioria da sociedade trata do assunto. De uma maneira simplista e antidemocrática – melhor seria dizer, elitista -, jornalistas, professores (incluindo os de português), apresentadores de televisão, entre outros, ainda insistem em ignorar a pluralidade linguística do Brasil. Em outras palavras, ainda insistem em ignorar o fato de o português brasileiro (aliás, como toda língua no mundo) ser um balaio de variedades, não podendo ser confundido com uma única variedade apenas, a chamada variedade padrão. Infelizmente, a ignorância grassa insuspeita. Aqueles profissionais continuam a propalar a crença, então muito arraigada na mentalidade social, de que há uma forma “correta” de falar e escrever o português e outras tantas que são “erradas”. Estas últimas são as formas não agasalhadas pela norma culta prescrita pelas gramáticas normativas. É claro que as pessoas em geral se referem apenas a “gramática”, sem acompanhamento do adjetivo “normativa”. Reside aqui outro equívoco, ou melhor, outra maneira simplista de encarar a realidade linguística.
A discussão sobre as complexas e intricadas relações entre língua e sociedade demandaria muito tempo e espaço. Como eu não dispunha nem de um nem de outro, e como eu não pretenda enfadar o leitor, vou elencar duas teses cujo conhecimento é fundamental para que o professor de português desenvolva uma prática pedagógica alinhada com os princípios mais elementares de uma educação verdadeiramente democrática.

1ª TESE – ENSINAR LÍNGUA É ASSUMIR UM COMPROMISSO SÓCIO-POLÍTICO

Essa é a primeira e fundamental lição que deve ser ensinada aos graduandos em Letras. O professor de português é um agente sócio-político. É claro que, em grande medida, todo professor o é. Mas me refiro especialmente aos professores e às professoras de português e a eles me dirijo, porque são eles os responsáveis pela formação linguística dos estudantes. Para que venham a desempenhar adequada e satisfatoriamente o seu trabalho como agente sócio-político, é indispensável que eles estejam, ao menos, familiarizados com as contribuições da sociolinguística. É esta área da Linguística moderna que abrirá as portas para o ensino de lições e o debate de questões implicadas nas relações entre linguagem e sociedade. O que o professor precisa saber é que a linguagem (ou a língua) é a base fundamental de toda sociedade. Não haveria esse meio de trocas, de relações, de organização conhecido como sociedade sem um sistema de signos.
A sociolinguística está interessada na correlação entre aspectos linguísticos e sociais. Nessa perspectiva, a língua é estudada em uso no seio de uma sociedade. O postulado principal que fundamenta toda pesquisa sociolinguística é toda língua é heterogênea. Donde se segue o afirmar que toda língua varia e muda. Dizer que uma língua é heterogênea significa dizer que ela apresenta um repertório variado e rico de formas de expressão, de usos.  Cada sub-sistema que constitui um conjunto de formas de dizer/ escrever é chamado de variedade; e cada uma das alternativas de uso disponibilizada por esse sub-sistema chama-se variante.  É claro que as variedades não se nos apresentam de modo estanque e nem podem ser consideradas como pertencentes a dois pólos opostos, como “padrão x não-padrão”; ao contrário, as variedades distribuem-se num continuum.
Os estudos sociolingüísticos reconhecem que toda língua natural está sujeita a pressões que atuam em duas direções contrárias: umas no sentido da variação e mudança; e outras, no sentido da conservação; umas, no sentido da diversidade; outras, no sentido da unidade. Portanto, é claro que haverá, em toda sociedade, setores que buscam inibir ou refrear a tendência social da língua à variação e à mudança. Na verdade, mais do que uma tendência, a variação e a mudança são uma regra. Toda língua varia e muda ao longo do tempo e no espaço (neste último caso, dependendo das regiões em que é falada).
Negar as noções de “certo” e “errado” não significa negar a sua existência. Ou melhor, a prática de rotulação dos padrões linguísticos em “certos” e “errados” é uma prática real e evidente. Nega-se, na verdade, que existam usos certos e errados como realidades imanentes ao sistema da língua. Ora, não é a língua que exibe formas “corretas” e “erradas”. O rotular de “corretas” ou de “erradas” é uma prática de ordem sócio-cultural e ideológica. Os padrões linguísticos estão sujeitos à avaliação positiva ou negativa e, nessa medida,  são determinantes da inserção dos falantes na escala social.  “Certo” e “errado” são valores atribuídos socialmente e não qualidades das formas da língua em si.

2ª TESE - NENHUM LINGUISTA ENSINA O FAMIGERADO vale-tudo

Incorre em erro grosseiro, em falta de honestidade quem propala a ideia de que os linguistas advogam a prática linguística aleatória ou cega às expectativas ou às exigências sociais. Substituir as noções de certo e errado, que encontram raízes na ideologia linguística, por adequado e inadequado é mais do que uma mera substituição de conceitos. Trata-se de uma mudança de atitude em relação às práticas linguísticas. Considerar os usos linguísticos, na perspectiva de sua adequação às diferentes situações de interação, significa libertar nossa consciência da ideologia segundo a qual há formas terminantemente corretas de falar um idioma.
Ora, falar em adequação de uso é manifestar consciência e sensibilidade em relação à dinâmica social de uso da língua, às diferentes formas de manifestação de poder implicadas nas práticas linguísticas. Ao usarmos a língua, demarcamos as fronteiras socio-culturais que nos separam do outro.  É claro que a linguagem constitui um instrumento poderoso para impedir o acesso ao poder e também é ela um instrumento poderoso a serviço do poder.
Como bem observa o professor Maurizzio Gnerre, em Linguagem, Escrita e poder (2003)

“Segundo os princípios democráticos nenhuma discriminação dos indivíduos tem razão de ser, com base em critérios de raça, religião, credo político. A única brecha deixada aberta para a discriminação é aquela que se baseia nos critérios da linguagem e da educação”
(p. 25)

Ora, a sociedade se cala em face da discriminação linguística, em face do preconceito linguístico, que é, no fundo, um preconceito social. Há quem negue a existência desse tipo de preconceito.  Combater o preconceito linguístico não significa lutar contra o ensino do português padrão ou da chamada norma culta. Cabe à escola ensinar a variedade linguística de prestígio. Nenhum linguista nega isso.  Sucede, contudo, que esse ensino não deve desprivilegiar, discriminar, desqualificar as outras variedades, com as quais o aluno entra em contato muito antes de ingressar na escola. Também não pode o professor pretender que os alunos devem substituir as formas linguísticas que já dominam por outras formas que virão a aprender por força da ação pedagógica escolar. O objetivo do ensino de português a falantes nativos dessa língua é desenvolver a competência comunicativa deles, o que equivale a dizer desenvolver-lhes o domínio e a capacidade de usar adequadamente o maior número de variedades linguísticas possível, ou seja, de acordo com a situação comunicativa de que eles participam.
A discussão é interminável e o trabalho do professor de português é, sem dúvida, exaustivo e dificultoso. Não será ele o salvador da pátria, é claro. Mas, se estiver disposto a assumir verdadeiramente aquele compromisso a que me referi, ele deverá exibir uma sólida formação em Linguística e, pelo menos, estar familiarizado com os estudos sociolingüísticos. Isso significa, por exemplo, poder ele reconhecer que ensinar ao aluno que o enunciado “Os menino saiu” é uma forma de uso construída na base de uma regra que prevê a pluralização somente do primeiro elemento do sintagma nominal, ou seja, do determinante no sujeito é ensinar que toda manifestação de linguagem, todo uso linguístico é governado por algum tipo de regra. Não caberá mais dizer que formas como “pra mim fazer” e “eles chegou” são desprovidas de regras. Ora, um olhar cuidadoso nos mostrará que nesses - como em outros inúmeros casos de “desvio”, segundo um padrão de uso prestigiado - opera-se com outras regras. A título de esclarecimento, cabe notar que em “pra mim fazer”, o falante segue a regra que prevê o uso do pronome oblíquo depois de preposição, como em “falar de mim”, “contar pra/ a mim”, etc. De um ponto de vista científico, ou seja, da Linguística, o falante tem, nesse caso, duas alternativas de uso: “eu” ou “mim”. Isso se deve ao aparecimento do infinitivo. A estrutura ‘prep_____inf.’ admite o uso tanto de “mim” quanto de “eu”. A escolha será determinada por fatores socio-pragmáticos e não gramaticais.   Importa considerar o contexto comunicativo: a quem eu falo (grau de hierarquia e intimidade) e em que circunstância eu falo (numa palestra, numa entrevista de emprego ou num barzinho).



* Seguem-se os links dos vídeos com entrevistas sobre a polêmica do livro didático: