Mostrando postagens com marcador Confessionário. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Confessionário. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Era uma vez...

                                     

                                           Confessionário


Num átimo de coragem, ousou o diabo romper os portões do Céu e lançar sobre Deus um temporal de questões:

- Você precisa me ouvir e o fará agora, de uma vez por todas! – vociferou o diabo, muito íntimo de Deus.
- Fale-me que te ouço!
- Pois bem. A situação lá embaixo tá feia. Há uma rapaziada lá que tá querendo fazer política a qualquer preço. Lançam mão do seu nome para perpetrar e justificar os atos mais abomináveis! Recentemente, surgiram os homens-bomba dispostos a matar a si mesmos e a quem quer que esteja nas mediações. Eles acreditam cumprir o que ensinam suas Escrituras.
- Ouvi alguma coisa a respeito!
- E o que está disposto a fazer? Não vê que estão usando seu nome para deflagrar violência? Há uma rapaziada lá que nega ferrenhamente sua existência. Também pudera, já que você não dá sinais de que está no comando. Aliás, se não sabe, até escreveram um livro, que chamam de Escrituras Sagradas. Nele, conta-se que o senhor delegou a mim o comando do mundo e isso explica o sofrimento que assola as criaturas que lá vivem. Eu sou sempre o culpado! Estou farto disso!
- Alguém tem de ser o bode expiatório. Afinal, eu sou bom, excessivamente bom, lembra? É assim que me concebem.
- O senhor é bom? Se o senhor delegou a mim, como acreditam, o controle sobre o mundo e se sou eu mau tal como me representam, então o senhor é mau também. Se fosse bom, assumiria o comando. Mas devo dizer que nada tenho a ver com isso. Sou inocente de qualquer acusação. É você que é todo-poderoso e nada faz por merecer tamanho prestígio.
- Assim me chamam?
- Sim, há milhões de criaturas que creem ser você o Senhor do Universo, o Poder absoluto, irrevogável. Para esses milhões, você pode tudo. Só não pode evitar que terremotos, tsunamis arrasem países e matem milhares de pessoas, nem que epidemias ceifem milhões de vidas.
- Não sabia disso. Então, sou muito adorado?
- Sim, erigem até templos em seu nome. Estranhamente, alguns ruem com um terremoto. E muitos fretam ônibus em viagens longas para visitar igrejas e participar de romarias. Às vezes, nessas ocasiões, morrem muitos em acidente. Ah! É claro que o senhor tem muitos nomes e não há um consenso sobre a sua verdadeira identidade. Por vezes, o senhor é um Pai misericordioso, mas punitivo, irado, rabugento. Suas imagens são conflitantes. Há também criaturas que creem em outros deuses!
- Em outros deuses? Como ousam!?
- Ué, o senhor é que as fez assim! Elas são muito criativas!
- Mas eu sou o único Deus, só existe um Deus. Sou Eu! Revelei isso!
- Pois é, mas parece que falsificaram as escrituras!
- Pérfidos!
- Você deveria sabê-lo. Vamos lá. Raciocine comigo. Você criou o universo, pelo menos é isso que ouço lá embaixo. O senhor criou o mundo, o planeta Terra, por quem parece ter certa predileção. Lá o senhor permitiu a vida. Criou a água, elemento primordial, o fogo, o ar, e a terra. Colocou lá uma flora rica e exuberante, uma fauna igualmente rica e diversificada. Há coisas boas lá embaixo, eu reconheço. Mas você também não aliviou a mão, né?. Em contrapartida, criou vírus, bactérias, parasitas, o mosquito da dengue (que aliás tem causado epidemias no Rio de Janeiro (e olha que lá tem muita gente de fé!). Você sabe onde fica essa cidade, né? No Brasil, um país onde vivem muitas pessoas religiosas! Bem, daí você, não satisfeito, criou terremotos, vulcões, furacões, tsunamis, asteróides, meteoros e, claro, o ser humano. Dizem que foi sua melhor obra! Eu discordo. Um ser tão bom quanto o senhor bem que podia ter feito um pouco melhor. Essas criaturas, se abandonadas a si mesmas, tendem a se matar umas as outras. Parece que a Natureza as pré-dispôs a atender ao imperativo da sobrevivência. Você devia sabê-lo. Os genes são egoístas!
- A maldade humana é fruto do pecado!
- Ora, faça-me o favor! Deixa disso! Balela! Pecado é uma criação daquelas criaturas para explicar a contradição insuperável: como poderia haver um deus bondoso e interessado na sorte de suas criaturas, dotado de poder infinito de atuar em favor delas, diante da existência de tanto sofrimento, de tanta maldade... daí criaram o pecado, para explicar por que aquelas criaturas sofrem! O senhor não poderia criar o pecado, isso seria contra-senso. Mas são os contra-sensos que sustentam aquelas criaturas na fé em você.
- Decerto, eu não criei o pecado. Eu criei os homens bons!
- Vejo logo que o senhor não entende nada de genética, de cultura. O que me parece é que o senhor fez uma grande merda e não quer admitir. Diz logo que a criação saiu do controle, só isso pode explicar os terremotos, os vulcões, as imperfeições tão evidentes na Natureza! Confessa... você não fez o melhor, algo saiu errado. A matéria resistiu ao seu poder e tomou forma por si mesma. Sua credibilidade está sendo questionada!
- Como pode questionar-me?
- Ora, depois do Holocausto, duas Guerras Mundiais, do 11 de Setembro, de Hitler e Osama Bin Laden, de epidemias que dizimam milhões de criaturas, não me surpreende que os mais esclarecidos e críticos julguem não existir deus nenhum. Você deu motivos! Se quisesse que realmente levassem-no a sério, teria dado sinais claros, a começar por eliminar a grande quantidade de microorganismos nocivos à vida das demais espécies. Eu sei que algumas bactérias são úteis, mas você poderia ter feito diferente. Sabia que as criaturas morrem de infecção por bactérias?  Você sabia que o câncer atinge não só os seres humanos, mas também plantas e vários animais? Para certa classe de homens você é o pior erro da História, uma invenção que insulta a dignidade de muita gente que luta por uma sociedade mais justa. Seu nome cingiu a humanidade. Eles discriminam, segregam em seu nome.

Deus, em silêncio...

- Por que você criou tudo que há?
- Porque eu não existiria sem que houvesse quem pudesse dar testemunho de mim!
- Então, você está me dizendo que sua existência depende da existência daquelas criaturas que chamamos “homens”. Sem elas, você não teria razão de ser. Continuaria vivendo em sua solidão cósmica e infinita. Você não deu aos demais animais a capacidade de professar fé em seu nome. Só os homens o fazem. Deles depende sua memória. Você só tem força na consciência dessas criaturas. Se o mundo fosse habitado apenas pelos animais de consciência pouco desenvolvida, você não existiria. A menos, é claro, que lhes desse a capacidade de pensar e lhes tivesse dotado da capacidade para professar crença em você. Você teria de lhes dotar de um cérebro com dimensão e propriedades específicas, como o cérebro humano. Qual é o propósito da criação? O que pretendeu ao criar os homens, o mundo?
- Para que vivam junto a mim, quando morrerem!
- Só?
- É. O propósito da vida é obter a vida eterna obedecendo a minha Vontade.
- Tá bom. Mas para isso seria necessário criar um mundo repleto de tanto sofrimento, seria necessário fazer que suas criaturas suportassem males, vivessem vidas de privação, ou morressem em tenra idade, para poder gozar da eternidade ao seu lado? Por que não as criou prontas para viver ao seu lado? Por que não criou um mundo em que você se faria visível, verdadeiramente pessoal e atuante? Essa lógica do “sacrifício leva à salvação” soa pedagogicamente repugnante. Isso parece coisa de certa classe de homens antigos, que educavam através da punição. Suspeito que você é uma invenção dos homens!

E não obtendo resposta de Deus, o diabo anuncia, em desfecho.

- Não me sendo apresentado argumento contrário, declaro que sou ATEU. E não sou responsável por mal nenhum. Você poderia ter dado cabo de mim, evitando assim que homens atribuíssem a mim supostas possessões, perdição e males através de muitas gerações. Somos cúmplices de um delírio. Agora, estou indo...
- Para onde?
- Para os confins do Universo, onde ficarei em paz!
- Espere! Eu vou com você. – bradou Deus.