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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

René Descartes é considerado o fundador da filosofia moderna e maior representante da racionalidade


Como nos tornamos humanos?


Este texto resulta de um sentimento de perplexidade que se sintetizou num maravilhamento que cuidei deveria partilhar com vocês, leitores. Esse estado de alma é decorrência da leitura do primeiro capítulo do livro As paixões ordinárias, de David Le Breton, intitulado de Corpo e simbolismo social. A questão fundamental sobre a qual o autor se debruça é a emergência das emoções como produtos culturais. A tese basilar se exprime com as seguintes palavras:



“As percepções sensoriais, ou a experiência, e a expressão das emoções parecem emanar da intimidade mais secreta do sujeito; entretanto, elas também são social e culturalmente modeladas. Os gestos que sustentam a relação com o mundo e que colorem a presença não provêm nem de uma pura e simples fisiologia, nem unicamente da psicologia: ambas se incrustam a um simbolismo corporal que lhes confere sentido, nutrindo-se, ainda, da cultura afetiva que o sujeito vive à sua maneira”.
(p. 9)

O excerto leva-nos à conclusão de que não existe uma origem fisiológica absoluta, tampouco psicológica, para as nossas emoções. Raiva, rancor, amor, ciúme, etc. são emoções que aprendemos a manifestar por força da nossa socialização. Tal proposição ficará elucidada ao longo do desenvolvimento deste texto.


1. O animal humano


          A razão, a linguagem e a cultura são instâncias da realidade responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies de animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele; sua inserção na realidade do mundo depende de um processo de socialização que é ininterrupto. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real. Ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por um consistente processo de aprendizagem ao longo da vida. Os animais, no entanto, estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para a sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc., mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de contar com a ajuda de outros significativos que o acolhem (particularmente, seus pais).
A criança aprende a sobreviver em contato com as normas de sua sociedade que, através de processos formativos, vai criando as condições necessárias para que ela “descubra” o mundo, se relacione com ele de modo ativo e construtivo. Evidentemente, a aprendizagem, que é um processo de modificação do comportamento na experiência, serve para a adaptação do homem à estrutura de sua sociedade. Para ilustrar a atuação dos agentes sociais na formação da consciência da criança, convém atentar para as palavras da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles (1989: 21):
“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
A vida em sociedade requer que cada indivíduo tome parte da dialética social; para tanto, constitui um processo importante da imersão do indivíduo na estrutura social a interiorização. Ela constitui a base primária de compreensão de nossos semelhantes e do mundo enquanto realidade social dotada de sentido. Na interiorização, a sociedade se interioriza em nós, ou seja, apreendemos os processos subjetivos do outro, tornando-o subjetivamente significativo para nós. A subjetividade do outro torna-se significativa para nós. Note-se bem que, na interiorização, um indivíduo assume o mundo em que os outros vivem. O mundo dos outros, uma vez compreendido por um indivíduo, passa a ser o seu mundo também. Cada um passa a fazer parte do ser do outro. É por meio da socialização, que é o processo pelo qual o indivíduo é amplamente e consistentemente introduzido no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela, que o indivíduo torna-se sujeito e, portanto, capaz de viver em sociedade. Essa socialização é gradativa: primária na infância, tendendo a ampliar-se, à medida que a criança cresce e se desenvolve.


2. Natureza e Cultura


O termo cultura será entendido aqui como a totalidade das características de uma realidade cultural (Santos, 2006), e não como sinônimo de acervo de conhecimentos que um indivíduo acumulou. Cultura é uma dimensão do processo social, é uma construção histórica, portanto, humana; é produto, pois, de uma coletividade humana.
Creio ser assaz esclarecedora a definição de cultura oferecida pelo eminente antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que transcrevo abaixo:
Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações”.
A cultura é o campo da ação e da vontade humanas; a natureza é o reino da necessidade e da causalidade. Na natureza, as coisas estão organizadas segundo uma ordem necessária, segundo leis sobre as quais os homens não têm domínio; na cultura, os homens agem segundo sua vontade, a fim de atingir determinados objetivos; é nesse domínio que se instituem os valores de bom e mau, de verdadeiro e falso, de útil ou nocivo, de belo e feio, etc.
Gostaria de destacar dois aspectos importantes na definição de cultura: o primeiro afeta à sua dimensão simbólica e essa característica leva-nos a reconhecer que a relação entre os homens com a realidade que os envolve é uma relação fundada em significações, dependente, portanto, da linguagem. O segundo toca ao fato de a cultura servir como uma espécie de “lente” através da qual o homem percebe, interpreta e compreende a realidade. Esta não pré-existe às suas experiências culturais, mas é uma construção da interação entre a sua cognição, percepção, linguagem e cultura.
A cultura surge no momento em que os homens estabelecem um sistema de regras e conduta, que visam a assegurar a sobrevivência da comunidade. Essas regras não podem ser transgredidas sob pena de alguma forma de punição. Os homens, ao criarem a Lei, organizam toda a vida da comunidade; determinam-se, assim, os modos de transmissão de costumes às gerações posteriores e preside-se a ações que serão responsáveis pelas instituições tais, como a família, a religião, as formas de trabalho, as formas de poder, guerra e paz, etc. Com a Lei, os homens dão a sua existência, que não é simplesmente biológica, uma concretude simbólica. É pelo poder simbólico da linguagem que os homens atribuem às coisas, aos objetos, ao entorno biossocial em que vivem significações ou sentidos. As relações do homem com o mundo são relações essencialmente simbólicas. Por exemplo, costumamos atribuir valor ou significado a objetos (imagens religiosas, patuás, vestimentas usadas em rituais, etc.). A dimensão simbólica é responsável pelo estabelecimento dos valores, tais como “bem”e “mal”, “bonito” e “feio”, “verdade” e “falsidade”, etc. Lembro que tais palavras designam valores que atribuímos às coisas.
Foi a proibição do incesto e o costume de comer alimentos cozidos que nos distanciaram do universo natural. Disso se conclui que a sexualidade e a culinária foram responsáveis por introduzir a dimensão simbólica na vida humana. Graças a essa dimensão, que inclui também o trabalho, os seres humanos tomaram consciência do tempo e de diferenças temporais, como passado, presente e futuro. Ademais, tomaram consciência da morte e lhe atribuiu sentidos; organizaram o espaço, significando-o com as noções de perto, distante, abaixo, acima, ao lado, etc. Os homens passaram, graças à diferenciação do tempo e do espaço, a se relacionar com o ausente, distinguindo, por exemplo, o sagrado do profano, os deuses e os homens.
Podemos destacar, abaixo, em síntese, a importância da dimensão cultural na vida humana nos seguintes itens:

a) A cultura determina o comportamento humano e fornece justificações para as suas realizações;
b) Os padrões culturais, subtraindo, ainda que parcialmente, dos homens os instintos, os orientam em seus atos;
c) A cultura permite ao homem adaptar-se aos diferentes ambientes naturais;
d) A cultura permite ao homem modificar o ambiente em que vive, transformar o mundo;
e) A cultura torna o homem dependente da aprendizagem, libertando-o de um condicionamento genético, ou seja, de uma relação imediata com o meio determinada geneticamente.
f) A cultura, porque é um processo acumulativo de experiências históricas de gerações anteriores, estimula e, ao mesmo tempo, limita a atuação dos indivíduos.

Para encerrar esta seção, gostaria de referir o passo do antropólogo Roque de Barros, em seu livro Cultura – um conceito antropológico (2008), em que podemos compreender melhor a ideia de que a cultura fornece-nos uma moldura ou um quadro referencial pelo qual “vemos” o mundo:


“O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”.
(p. 68)


O exemplo mais interessante oferecido pelo antropólogo, com o qual abro caminho para a próxima etapa de minha discussão, que se desenvolverá sobre o processo de humanização do homo sapiens pela cultura, é o do riso. O riso, que é uma propriedade dos homens e de primatas superiores, é primariamente um fenômeno biológico, resultante da contração de certos músculos da face e da emissão de um dado som vocal. Em geral, o riso exprime estado de alegria. Não obstante a natureza biológica do fenômeno, os homens riem diferentemente. Conta o autor que um índio Kaapor, ao rir, emite um som profundamente alto, de modo que sua risada assemelha-se a gritos de guerra; ademais, a expressão facial em nada parece com a que estamos acostumados. Um observador de fora, ao ver um japonês rindo, poderia concluir que todos os japoneses riem da mesma maneira, muito embora os japoneses concordem em que o riso varie de uma pessoa para outra em sua cultura. Os japoneses percebem uma variação de um mesmo padrão cultural, que não é percebida por um brasileiro, por exemplo.
Do exposto, devemos reconhecer que gestos, comportamentos que, aparentemente, parecem ser reflexos de disposições biológicas são, na realidade, modelados culturalmente. É da influência da cultura sobre o corpo que vou me ocupar na próxima seção.



3. As crianças selvagens


Em Paixões Ordinárias – livro já referido no limiar desta exposição -, David Le Breton apresentará casos impressionantes, bem documentados, de cuja veracidade o próprio autor diz não ser possível duvidar, de crianças que foram abandonadas e acolhidas por certos animais, entre os quais lobos. Evidentemente, nos dirá o autor, que muitas delas foram devoradas por esses animais; outras, no entanto, foram livradas da morte e acolhidas por eles. Dou lugar à voz do autor, que nos conta:
“(...) dispomos de informações precisas a respeito de uma dezena de casos de crianças-lobos, evocados por R. M. Zingg, na obra que este autor dedicou ao tema. A história de Amala e Kamala é, particularmente, a mais rica em documentação, em virtude da publicação do diário do pastor Singjh que, juntamente com sua esposa, acolheu as meninas durante toda a vida das mesmas”.
(p. 19)
E prossegue:
“No ano de 1920, durante uma viagem à região de Midnapore, o pastor é advertido pelos indígenas da presença de “homens fantásticos” na floresta. Em companhia de alguns homens, ele vai até o local e, ao crepúsculo, avista três lobos adultos, dois filhotes de lobos e duas crianças – de aspecto irreconhecível – saírem de seu covil. Essas últimas se comportam exatamente como os lobos, primeiro mostrando suas cabeças, com alguma precaução, farejando e observando de todos os lados, antes de deixar o esconderijo. As duas meninas foram capturadas, adotadas pela família do pastor e receberam os nomes de Amala e Kamala. A constituição física das crianças verificou-se rica em ensinamentos: maxilares proeminentes, dentes comprimidos e cortantes, caninos longos e pontiagudos, olhos estranhamente brilhantes na penumbra, articulações inflexíveis nos joelhos e quadris. Espessas calosidades marcavam as palmas de suas mãos, cotovelos, joelhos e as plantas dos pés. Suas línguas pendiam de lábios grossos e escarlates. Elas imitam a respiração ofegante e o bocejar dos lobos, abrindo amplamente os maxilares. Elas enxergavam no escuro sem dificuldade.”
(idem)
O autor relata também que as meninas bebiam leite e água como os gatinhos. Como se vê, o comportamento delas foi adaptado ao comportamento dos lobos. Isso implica o reconhecimento de que o corpo humano é maleável, adaptável às condições naturais em que vive.
Ensinará o autor:
“Nesse período da vida, durante o qual a criança socialmente integra e assimila a função simbólica do seu grupo; aquele que foi isolado pelas circunstâncias e posto na situação excepcional de “adoção” por um desses animais hospitaleiros ao homem, não tem alternativa senão calcar sua relação com o mundo sobre aquilo que ele observa no cotidiano. Nos primeiros anos de vida, a criança revela uma imagem fidedigna, posto que amiúde desairosa, dos comportamentos daqueles que a entornam. Neste caso, o animal vem preencher, com suas representações específicas, as potencialidades incultas em consequência do rapto do meio humano”.
(pp. 20-21)
É interessante notar que os animais cumpriram o papel do outro significativo para essas crianças. A experiência corporal delas é modelada pelo comportamento dos lobos. Um sentimento como o de alegria era desconhecido delas, pois, como relata o pastor que as acolheu, elas nunca riam. As únicas emoções que pareciam conhecer eram a cólera ou a impaciência. Sentimentos como o de vergonha, o de pudor também eram ignorados por elas. Acostumadas a viver em ambientes gélidos, não tinham sensibilidade ao frio. O processo de aculturação em casos como esse, em geral, não é completamente bem-sucedido; casos há em que a morte é inevitável.
“No caso das meninas de Midnapore, Amala não sobreviveu a alguns meses de captura; Kamala, ao revés, assimilou um princípio de socialização graças aos esforços do Pastor Singh e de sua esposa. Ela aprendeu a ficar na posição ereta, conheceu o sentimento de pudor, o riso, a sensibilidade ao frio, um princípio de linguagem, adquiriu o controle esfincteriano e fecal, modificou os seus gestos, etc.. Lentamente, cercada da afeição do pastor e de sua esposa, ela adquiriu uma atitude receptiva à ritualidade social”.
(p. 22)
A história das meninas Kamala e Amala patenteia-nos que o homem é um ser dotado de potencialidade, ou seja, de uma disposição impressionante à sobrevivência em quaisquer condições a que se veja entregue. Novamente, lançam luzes as palavras do autor, que observa:

“Experimentando tais fronteiras como uma evidência, as crianças que dividem alguns anos de sua existência com animais interpelam-nos profundamente sobre o sentido do vínculo social, e, paralelamente, sobre os limites do corpo. Suas histórias fendem um abismo em certezas aparentemente inquebrantáveis. Talvez seja por esse motivo que os debates sobre o tema raramente evitam apaixonadas manifestações. Após o retorno à comunidade humana é difícil afastar a impressão de que suas histórias revelam campos e suas inteligências às dimensões aceitáveis socialmente. A maioria das crianças “selvagens” abduzidas de seu meio de adoção morre precocemente”.
(p. 23)
O caso de Victor do Aveyron é, igualmente, impressionante, mas um pouco diferente das meninas de Midnapore. Victor, antes de ser abandonado - condição em que permaneceu por longo tempo - viveu um curto período de socialização, o que lhe permitiu sobreviver em tal condição. Foi capturado por camponeses, em 1800, depois de ter sido visto pela primeira vez em 1797. O menino ficou sob a tutela de um pedagogo, Jean Itard. Lemos o seguinte a respeito de um acontecimento da vida do garoto:

“Em pleno inverno, Itard, por vezes, avistara Victor nu, rolando sobre a neve. As temperaturas mais baixas não causam incômodo ao seu corpo. Itard admiravas-se com a resistência térmica da criança e com a sua jubilação em face do rigor dos elementos. (...) O pedagogo então submeteu Victor a uma série de ações enérgicas visando a perturbar as percepções térmicas que esse último havia inventado para si quando vivia nos planaltos do Aveyron. Ele relatou no seu diário com qual rigor infligia a Victor, diariamente, demorados banhos quentes, sucedidos por banhos gélidos, vestindo e em seguida abrigando a criança calorosamente. Um lento trabalho de erosão, de supressão e de fragilização modificou as atitudes primárias da criança, que se tornou sensível às variações climáticas”.
(p. 27)
Percebe-se, claramente, que o menino foi submetido a um longo processo de “lapidação”, cuja consequência imediata foi a redução de sua imunidade a doenças, fato que o tornou frágil. Nesse caso, o menino não tinha alternativas. Tendo sido interrompida a sua socialização, não dispunha de meios para exercer um papel ativo em face do processo de “aculturação” que sofria. Ao contrário, a criança que se beneficia de uma socialização normal e continuada, embora não esteja completamente livre de processos condicionantes, de ações modeladoras, tem relativa liberdade para agir (dependendo do contexto sócio-histórico, é claro). Com amadurecimento, ela tenderá a ganhar maior autonomia. Isso não era possível no caso de Victor.
É interessante notar que seu corpo era adaptado ao meio ambiente em que viveu durante anos, isolado da civilização. Consoante nos conta o autor,

“A sensibilidade térmica de Victor era adaptada às condições ecológicas de sua existência num ambiente adverso. Outras manifestações corporais de Victor suscitaram alguma surpresa: sentado ao lado do fogo, ele tomava, sem nenhuma pressa, os pedaços de carvão ardentes que caíam da lareira e nela os recolocava. Na cozinha, ele frequentemente tirava com as mãos as batatas da água fervente onde elas cozinhavam para em seguida comê-las”
(p. 28)

Victor, a despeito dos esforços do pedagogo, jamais conseguira falar. Com a deficiência linguística, o menino tinha carência na elaboração de pensamentos, o que confirma a ideia de que sem linguagem verbal não há possibilidade de pensamento.


4. O que concluir?
Os casos das crianças selvagens levam-nos ao reconhecimento do papel fundamental que cumpre o outro na vida de um ser humano. Esse outro é responsável por induzir a sociabilidade daquele com quem estabelece relação. O corpo humano é investido de significado quando do relacionamento com o mundo, para o qual é necessário o concurso de outras pessoas.
O domínio da linguagem é um meio de inserir-se num universo humanamente construído; desprovida dela, o ser humano não é capaz de organizar a realidade segundo os padrões da sociedade. A linguagem é um fator determinante da humanização do homem.
A organização da realidade se dá na relação com o outro através da linguagem. O outro não é apenas um estruturador do mundo para mim, é também quem avalia, pondera, afeta-me enquanto ser. Ensina-nos o autor:
“Estamos em nosso corpo “como numa encruzilhada habitada por todos”, escreve raivosamente Artaud, que viveu, numa forma de despojamento e de alienação, a fidelidade do seu corpo contra todo o simbolismo exterior. Meu corpo é meu por carregar traços de minha história pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas contém igualmente uma dimensão que em parte me escapa, remetendo aos simbolismos que conferem substância ao elo social, sem os quais eu não seria”.
(p. 37)
A moral, o sentimento de justiça e injustiça é consequência da socialização. Nenhum homem nasce com senso de moralidade; ele desconhece, completamente, o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim, o que pode ou não pode fazer. A sociedade é que lhe fornecerá tais referenciais.
Estar com Sartre a razão ao advogar que o homem se faz a si mesmo ao existir. E a existência humana – reitero essa ideia – depende da presença, do reconhecimento do outro. Somos na medida de nossas relações significativas com o nosso entorno social. Nossos hábitos, nossos comportamentos, nossos traços biológicos são resultado da relação com o meio ambiente, condicionada pela cultura.
Descartes estava errado, ao sugerir que a ideia de Deus era inata ao homem. A criança selvagem não tem religião, não é capaz de conceber qualquer entidade de semelhante natureza.
Espero que tenha sido avivada no leitor a ideia de que, se, por um lado, a cultura é responsável por nos afastar da condição de imanência à natureza, de afrouxar os laços que, em virtude de uma pré-disposição biológica, podemos manter com ela; por outro lado, a ausência de sua atuação e penetração põe em evidência a capacidade impressionante de o organismo humano adaptar-se à vida animal.
Devemos, humildemente, reconhecer que, para além de nosso garbo racional de homens civilizados, somos animais humanizados.


Para pensar...


a) A cultura penetra no ser do homem domando-o e contendo a força de seus instintos. Mas ela não consegue suprimi-los. Em que situações agimos instintivamente?
b) Os homens são seres cuja existência é destinada a ser social? A vida em sociedade é a única forma de existência para o homem? Se houver outra, qual seria?
c) A criança, embora leve desvantagem, nos seus primeiros anos de vida, em relação aos filhotes de animais, tem uma admirável capacidade para a aprendizagem e desenvolvimento cognitivo. Isso tornaria a condição social do homem inevitável?