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quinta-feira, 5 de março de 2020

"A vida só tem um charme verdadeiro, é o charme do Jogo. Mas se nos é indiferente ganhar ou perder?" (Baudelaire)


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                                     Inquietações empedernidas


Eu tenho horror à mediocridade. Do latim mediocritas.atis, “mediocridade” quer dizer meio, medida e diz-se das pessoas que carecem de talento ou têm pouco valor. Se restava algum receio de que um dia os idiotas viriam a dominar o mundo por se sobressaírem aos demais homo sapiens em quantidade, me parece inegável admitir que os medíocres são suficientemente numerosos para constituírem verdadeiros impérios. A maior parte da humanidade é medíocre – isso me parece estar fora de questão! E os 7,7 bilhões de pessoas que ocupam o globo terrestre são cosmologicamente irrelevantes. Cada novo indivíduo que nasce para integrar esse quantitativo de irrelevância cosmológica é um mero acidente. No entanto, tanto os idiotas, que são, de fato, bastante numerosos, quanto os medíocres, cuja quantidade quiçá seja ainda maior, são ou ineptos demais ou covardes para atingir tal nível de lucidez.

Meu horror à mediocridade como modo de vida se deve ao fato de que o medíocre é como um camelo cuja vida é limitada a carregar carga; no caso dos medíocres, a carga é a da tradição, dos costumes, dos valores e modos de pensar com os quais se habituaram e os quais se limitam a reproduzir por força das condições socioculturais em que nasceram. Como esteja submetida às maneiras comuns como vivem e pensam os indivíduos pertencentes a um grupo ou sociedade, a vida medíocre é uma vida à qual falta uma liberdade mais fundamental: a liberdade do pensamento (e não de pensamento!). Os medíocres podem até se crer livres e podem até o ser do ponto de vista político-jurídico, mas não o são num nível mais elementar, porque vivem e se comportam como membros de rebanhos. Os medíocres são animais de rebanho. Por isso, não é de admirar que se tornem facilmente aduladores de uma personalidade carismática, como a de um líder político, e passem docilmente a defender, com unhas e dentes, essa personalidade, por mais estúpida que ela seja, acreditando estar assim exercendo seu papel como membro de uma comunidade política. Que a política seja inevitável para a garantia da coexistência dos homo sapiens não resta dúvida, mas a política traz em si um grande perigo, qual seja, o de reforçar e animar, com frequência, nossa tendência instintual e primitiva para sermos animais de rebanho. O animal politikón é, naturalmente, um grex animalis. (...)

Meus estudos sobre a obra de Cioran me permitiram compreender melhor esse pensador... Posso dizer, seguramente, que, hoje, compreendo melhor seu pensamento do que há alguns anos. E, mais do que compreender o pensamento de Cioran, encontro-me em ressonância de sentimento com o modo como Cioran sente a vida e experiencia o mundo. Esse místico sem deus recusou qualquer forma de salvação e confessou ter compreendido o Essencial. Tendo atingido tal grau de Lucidez, Cioran deu adeus à filosofia. Não porque teria se tornado sábio, mas porque a filosofia, para ele, tendo procurado dar razão, apresentar justificação, deixou de ter importância. Cioran reconheceu o Insolúvel. Sinto-me mais aparentado ao pensamento cioraniano. Também eu chego à conclusão de que compreendi o Essencial. O Essencial beira o inefável, mas vale o esforço por dar-lhe um investimento verbal. O Essencial significa reconhecer que o nada é primordial, que, por isso, no fundo, tudo é nada, ou seja, o ser é nada. Eros ou a vida se faz; a consciência é derivada.

 

(...)

O poeta que um dia ousei ser está morto. Mas me crer poeta me parece hoje exagerado... uma petulância. Nunca fui verdadeiramente um poeta. Meus poemas são sintomas de uma doença, são abortos de um tempo remoto em que eu cultivava o adoecimento. Estranhamente, porém, tenho saudade desse tempo cadavérico. Eu cultuava o sofrimento, hábito que agora me parece pueril e irrelevante. Quiçá o cultuava porque o sofrimento tinha certo gosto epifânico. O que se me revelava nesse doentio hábito? A estética da profundidade, abismos psicológicos...

Eu sempre nutri uma aversão às vidas superficiais, aos modos de viver das superfícies... Outrora, sentia-me deslocado, descompromissado com minha época, com esta forma histórica da modernidade que a tudo superficializa, que transforma o trivial em produto de consumo, que espetaculariza o cotidiano para o deleite de um rebanho espiritualmente anestesiado (hoje, em face dessa maciça espetacularização da realidade, característica marcante da modernidade tadia, experimento enfado nauseante...). Quando à lembrança me vêm como fumaça os escritos que destilavam tão impertinente lirismo, não consigo esquivar-me de me perguntar o que pretendia eu, tendo sido muito ingênuo – até mesmo ridículo – com eles? Ser compreendido... Talvez, a única pessoa que deveras me compreendeu até hoje tenha sido minha terapeuta... Mas, que importa isso agora? Já não sou mais aquele paciente padecente das misérias de um lirismo exacerbado e inapropriado, porque démodé.

Embora habituado a frequentar a orla dos abismos, embora tendo sido absorvido num tormentoso infernal abismo, consegui assomar à superfície e pôr-me a caminhar na companhia de todos os riscos...

Meu ingresso formal na vida filosófica constitui um marco em minha biografia (se é que posso chamar assim uma existência tão comum e banal que sequer foi narrada)... A filosofia operou uma transformação radical em meu modo de ser... Isso soa como um clichê, mas não deixa de expressar uma experiência subjetivamente decisiva... A filosofia me desvirginou, libertou-me da escravidão da inocência... Tornou-me mais aborrecido, mais enfastiado... Tendo sepultado o último facho de fé, expôs-me o fétido sepulcro de Deus.

Ainda não chegou o tempo em que poderei lograr o privilégio de dar adeus à filosofia, tal como o fez Cioran... Se bem que a filosofia de gabinete, a filosofia sistemática praticada com fins puramente acadêmicos não me interessa... A filosofia nasceu da mais íntima e profunda necessidade humana de fazer ruído no vasto silêncio imperturbável de um universo indiferente... A institucionalização da filosofia é sua enfermaria.

 

Pausa:

Escreve Baudelaire:

Há momentos da existência onde o tempo e o entendimento soam mais profundos, e o sentimento da existência ampliada imensamente.”

 

“Levar sua lucidez até o êxtase” – pontua Camus. Isso me parece inconveniente, terminantemente dispensável...

Ao concatenar esses apontamentos eivados de vivências impressionistas, não pretendo eu fazer-me compreender... Jamais se totaliza, se esgota o sentido; quanto mais se diz mais se silencia, mais se fazem aberturas, sulcos cavos para os mal-entendidos, para as incompreensões, para as inconsistências de toda sorte, para outros tantos sentidos imprevistos... Dizer é sempre silenciar; é pontuar silenciamentos.

Por que devo temer o fracasso? O fracasso nos humaniza, nos revela a miserabilidade de nossa condição humana... Já fracassei tantas vezes... Depois de frequentar tantos filósofos, depois de visitar e revisitar filósofos com cujo pensamento sinto-me mais aparentado, tudo me parece, em última instância, insignificante, sem importância. Há uma solidão visceral, mais íntima: a solidão da Lucidez – é preciso habitá-la; é ao que nos convida Cioran. “O deserto interior está sempre fadado à esterilidade”.

 

Eric Fromm admirou-se do fato de o número de pessoas loucas não ser maior, já que a existência é um fardo terrível – mas, se tivesse considerado a diferença entre a loucura de hospício e a loucura normal, talvez reconhecesse que a maioria esmagadora dos homens é fisiologicamente protegida contra os perigos da Lucidez e do Desespero total.

Para quem não está empregado, dizer que se manteve ocupado com os livros soa a outrem afrontoso. As pessoas, em geral, não veem o estudo como uma forma de ocupação, como uma forma de trabalho... Acontece que nunca me relacionei com os livros como quem se relaciona com meros utensílios... Nunca estabeleci com eles uma relação instrumental e esporádica. Ler não é para mim um passatempo ou uma atividade a cuja realização me obrigo para atender a certas exigências institucionais... Tampouco ler é um meio para a obtenção de conhecimentos úteis segundo os padrões de organização de nossas sociedades técnico-científico-informacionais. A leitura, tendo atingindo certa maturidade, sempre se impôs como uma necessidade existencial, isto é, uma necessidade que comporta a mesma pressão com que sobre mim recaem as necessidades básicas da sede e da fome. Receio não conseguir externar adequadamente, por meio de imagens, o que significa, para mim, a prática da leitura. Sei, no entanto, que viver privado dos livros seria, para mim, uma morte em vida. Encontrar-me-ia amputado de todos os meus membros, caso fosse privado de frequentar os livros.

Custa-me – devo confessar – compreender como podem tantas pessoas viver divorciadas dos livros... Não posso evitar de considerá-las como animais de carga a arrastar uma vida empobrecida e supérflua (ainda que, quando consideradas de uma perspectiva existencialmente radical, todas as vidas são supérfluas!). Não obstante, cuido que aqueles que vivem apartados da experiência da leitura são facilmente cativos das condições históricas que, nutrindo de sentido as suas vidas, as submetem continuamente a processos de normatização.

Certa feita escrevi, ainda num tempo em que a inocência poética se me aninhava no espírito, que há sempre um livro entre mim e o outro... Presunção de um diletante? Quiçá!

Não obstante, um testemunho de refinado gosto.  


domingo, 25 de setembro de 2016

"E que importância pode ter o fato de eu me atormentar, sofrer e pensar?" (Cioran)

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Eu e minha orientação filosófica

“Não tem que nos doer a transitoriedade das coisas terrestres ou a inexistência das celestes. Que tudo esteja destinado a perecer, que tudo seja vão e fugaz, que tudo careça absolutamente de valor e consistência, isso só pode nos provocar desgosto”.

(Cioran)


1. Primeiras palavras

“A filosofia – escreve Sponville – nada mais é do que a vida tentando se pensar”[1]. Mas que vida é esta – devemos perguntar – que se esforça por pensar a si mesma? Não se trata, naturalmente, da vida em geral, porque a vida se objetiva em organismos incapazes da experiência de pensamento. Somente uma forma de vida é capaz de se voltar reflexivamente sobre a própria vida: a vida humana. A filosofia é, então, o próprio modo de ser da vida humana que se exterioriza como questionamento sobre o que é isto: a existência. Ao afirmar que a filosofia não é outra coisa senão a vida se pensando a si mesma, Sponville nos chama a atenção para a relação intrínseca entre filosofia e vida. Por isso, mesmo que encontremos, na tradição, filósofos elaborando um pensamento que parece divorciado da vida, eles não deixaram de se ocupar, de alguma maneira, das dimensões do problema do viver. O que me interessa aqui não é tanto demonstrar a indissociabilidade entre filosofia e vida, mas elucidar o que entendo por vida à luz de minha orientação filosófica, cujas bases teóricas cumpre-me dar a conhecer ao leitor. Esclarecerei, em tempo, o que entendo por orientação filosófica.
Uma vez que este texto se destina à exposição das bases teóricas que dão corpo e sustentação a minha orientação filosófica, não estarei preocupado em justificar o conjunto de pontos de vista que a estruturam. Não estarei preocupado em examinar o conteúdo e as implicações de cada ponto de vista aduzido. Pretendo apenas lançar luzes sobre o caminho para o qual me sinto fisiologicamente arrastado na constituição de minha experiência filosófica de mundo.
Pensar filosoficamente a vida é ser tomado por uma experiência de viver que se realiza para além da ordem do viver comum. Como eu aceite a visão de filosofia de Pierre Hadot, segundo a qual a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser, de tal modo que a filosofia é ela mesma um modo de vida, uma maneira de viver (ao menos é assim que, na opinião de Hadot, a filosofia antiga era experienciada)[2], não posso recusar-me de assumir que o exercitar-se na filosofia é apropriar-se de um modo específico de ser e viver, que difere radicalmente do modo de ser e viver do homem da cotidianidade mediana. A experiência com o pensamento filosófico funda um modo próprio de ser, metamorfoseia o eu daquele que se entrega a tal experiência.
Em consonância com a visão de Michel Henri, segundo a qual “a vida se sente, se experimenta a si mesma” e “a essência da vida reside na autoafecção”, assumo que a vida é fazer uma experiência contínua de si. Ao viver, o indivíduo vive-se numa relação de afecção com o mundo. Vivendo-se, o indivíduo se experiencia num movimento de autoconstituição que será expressão de certo modo de ser afetado fisiologicamente pelo caráter deveniente da vida. Portanto, não se trata aqui de pensar a vida como mero processo biológico que partilhamos com outras formas orgânicas, mas de assumir a vida como uma experiência singular do caráter deveniente do mundo sob o modo como somos afetados por esse caráter. Vida é vida que se sente. Por conseguinte, minha orientação filosófica é consequência de certo modo como eu sou afetado pelo caráter deveniente do mundo, como eu experiencio em mim a dinâmica da vida na condição de Dasein. Minha inclinação a um ou outro filósofo, a uma ou outra questão filosófica, enfim, a uma ou outra orientação filosófica é determinada, em última instância, pelo modo como sou afetado pelo caráter deveniente da vida.
Outra maneira de compreender a vida, que toma parte da constituição de minha orientação filosófica, encontro na pena de Schopenhauer, para quem a vida pode ser vista como um grande sonho. Tanto o sonho como a vida, nota ele, começam de improviso e, muitas vezes, terminam do mesmo modo. A dinâmica do viver se representa na consciência humana como uma sucessão de presentes, cada um dos quais não sendo senão signos da impermanência de nossas experiências. Este ponto que grafo marca o fim de um instante presente que dá lugar a outro instante presente que, no entanto, findará ao terminar de escrever este parágrafo.
Entendo, pois, por orientação filosófica um sistema de compreensão do mundo que, sendo, na verdade, expressão de uma cosmovisão, que se forma pela articulação de ideias, crenças, percepções, sentimentos e valores, orienta o indivíduo que a ela adere em suas relações com os outros e com a totalidade do mundo. A orientação filosófica expressa uma percepção profunda e totalizante do real. Seu aspecto teórico é indissociável de seu aspecto prático, no sentido de que, por ser uma orientação subsidiada pela contemplação filosófica do mundo, a orientação filosófica dá forma a um modo de ser, de pensar e de agir no mundo. Ela vai influenciar decisivamente nas nossas possibilidades de poder-ser. A adesão a uma orientação filosófica tem o peso de um compromisso com nosso ser mais próprio, de tal modo que assumi-la é expor-se a possibilidades sempre já dadas de conflito com outros modos de ser dos outros Daseins com os quais nos relacionamos. Aderir a uma orientação filosófica é fazer a experiência de ser fiel a si mesmo, tão cara a Nietzsche e condição indispensável ao autêntico exercício da filosofia. Deve-se assumi-la como a um destino, mesmo sob o preço da solidão. O filósofo não deve ter a pretensão de agradar a ninguém, de dizer aquilo que os outros querem ouvir, para isso existem os padres.



        2. As três grandes perspectivas de minha orientação filosófica

Minha orientação filosófica combina entre si três grandes pontos de vista, que são, ao mesmo tempo, consequência do modo como sou afetado pelo mundo e expressão da maneira como experiencio fisiologicamente o real.

1ª perspectiva: uma filosofia do desespero, que se assenta na renúncia à crença numa instância suprassensível, à qual se atribui o estatuto de fundamento do real. Essa filosofia insta-nos a querer apenas o real, a afirmar a vida com tudo aquilo que nela há de contradição, dor e sofrimento.

2ª perspectiva: uma filosofia da crueldade do real, que mantém ser a dor e o sofrimento inerentes à dinâmica da constituição da vida.

3ª perspectiva: uma filosofia de combate, que ataca, sem concessão, todas as narrativas, as doutrinas, as ideologias, os sistemas filosóficos que, afinados com uma pretensão messiânica, criam ídolos e/ou valores transcendentes que passam a dominar os homens, tornando-os escravos de suas crenças e de seu fanatismo. Uma filosofia de combate ataca todas as formas de idolatria que estão na origem dos atos atrozes, os quais  constituem o curso da história.

Da perspectiva 1, segue-se que:

a) Tudo que existe está destinado a perecer; o ser se reduz às aparências;

b) Tudo é vão e fugaz, e carece absolutamente de valor;

c) Eu sou um ser contingente, isto é, não necessário; todos os esforços, a labuta, os empreendimentos humanos são atravessados por uma radical nulidade e insignificância;

d) A vida é desprovida de sentido absoluto ou metafísico, e só se conserva como fenômeno irracional.  “Não sei por que vivo – escreve Cioran – e por que não cesso de viver (...) a chave provavelmente reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo”.

e) O mundo e o homem existem sob o modo de uma absurdidade radical; tudo é gratuito. Tudo é desprovido de razão ou necessidade. O mundo se dá como contingência radical, e eu mesmo me apreendo como um ser igualmente contingente;

f) Nada do que existe está destinado a durar; tudo flui. O passado e o futuro não passam de abstrações da consciência; o presente é o próprio real, é a instância das aparências fugidias.

Da perspectiva 2, segue-se que:

a) viver é sofrer; nascer é começar a morrer;

b) a vida se desenvolve como um processo contínuo de geração e destruição implacável de organismos sem qualquer finalidade;

c) A felicidade positiva é uma quimera; só a dor é real (Schopenhauer);

d) A morte é constitutiva da dinâmica do viver e, no caso da vida humana, é constitutiva do modo próprio de ser do homem (finitude);

Somente a vontade cega e irracional pode explicar a razão por que a maioria dos homens preserva a sua existência. Essa vontade os impulsiona a buscar insaciavelmente o prazer que, no entanto, é débil, raro e efêmero. Por isso, estou de acordo com Schopenhauer, ao afirmar que “viver feliz somente pode ter o sentido de viver menos infeliz possível, ou, em poucas palavras, de viver de maneira suportável”.[3]

Da perspectiva 3, segue-se que a filosofia hoje deve se afirmar como filosofia da suspeita, dando novo vigor a um ceticismo engajado que se preocupe em questionar as bases sobre as quais se mantêm os impérios da crença que ameaçam as liberdades individuais e coletivas. À luz dessa filosofia de combate, a história é desprovida de qualquer sentido ou finalidade. Ela não é mais do que o desenrolar de acontecimentos em cujo curso os homens contendem para usufruir do poder e para perpetuar-se nele. A história não é mais do que a luta incessante entre os homens pela dominação sobre o próprio destino da humanidade. O homem é um fantoche daquilo que criou. Ele é um ser delirante: há nele uma força obscura que o impulsiona a aderir a uma verdade que se impõe pelo desejo de poder e de dominação.
Uma filosofia de combate se insurge contra toda pretensão (política, ideológica, filosófica, teológica) de melhoramento do homem; pretensão esta em cujo cerne repousa a crença no sentido da história e na possibilidade de progresso de toda a humanidade. Como advoga Cioran, a história não passa de uma sucessão de massacres. A história se desdobra na forma de enredos que abrigam promessas de felicidade e crimes inevitáveis. O homem, assim, ilude-se ao acreditar que ele é autor da história. Na verdade, é a história que o domina, que o abala, que faz dele um joguete do insolúvel e do intolerável. À proporção que se vão tramando os acontecimentos históricos, os homens vão-se neles enredando como uma presa que em vão tenta escapar da teia onde se encontra e onde seu destino será decidido.
Uma filosofia do desespero mantém que a morte é o nada absoluto ao qual o homem está destinado tão logo nasce. Mas, acompanhando de perto a lição de Heidegger, não precisa ela reduzir a morte ao estado definitivo e irremediável do homem. A morte deve ser pensada relativamente à finitude do Dasein. A finitude do Dasein recobre tanto a morte quanto a destinação do ser em sua abertura constitutiva. No horizonte da morte, a finitude diz respeito ao poder não mais ser do Dasein. Sendo a possibilidade mais própria do Dasein, a morte é um acontecimento sempre iminente em sua existência. Na medida em que o Dasein é um ser-para-a-morte, ele precisa lidar com a transitoriedade própria de suas possibilidades de ser. Nessa lida com suas possibilidades de ser, o real nunca se dá ao Dasein definitivamente, mas sempre limitado pelas suas possibilidades de ser e pelo movimento intrínseco de realização dessas possibilidades de ser. A morte é constitutiva do poder ser que o Dasein sempre é. A morte já está sempre dada como possível irrupção na vida fática do Dasein. Ela é seu poder não mais ser sempre iminente em sua existência.



          3. Uma filosofia ateísta
3.1. O acontecimento da morte de Deus

Uma filosofia do desespero é, necessariamente, uma filosofia ateísta. Ela deve assumir as consequências do acontecimento histórico da morte de Deus.
Para que se compreenda a semanticidade do acontecimento da morte de Deus, sem incorrer no equívoco de lê-la restritivamente como o anúncio da ruína da crença na existência do Deus cristão, devemos ter em conta o que nos diz Nietzsche sobre o conceito de Deus cristão, em Crepúsculo dos Ídolos (2006, p. 27). Escreve Nietzsche: “Todos os valores mais altos são de primeira ordem, todos os conceitos mais elevados, o ser, o incondicionado, o bem, o verdadeiro, o perfeito (...) são subsumidos “pelo estupendo conceito de Deus”. Portanto, Deus é o conceito que abarca todos os conceitos que, forjados na tradição ocidental, dizem respeito ao mundo suprassensível ou meta-empírico. Destarte, a morte de Deus significa, em suma, que o mundo supra-sensível esvaziou-se de sua força e poder de atuação sobre a vida e sobre as formas como o homem (pós)moderno dela se apropria enquanto autoafecção.
Deter-me-ei no esclarecimento da significatividade do acontecimento da morte de Deus anunciado por Nietzsche. Primeiramente, devemos ter em conta que, ao anunciar a morte de Deus, Nietzsche tinha vista o Deus teísta, que é o Deus metafísico cristão. Mas a morte de Deus não pretende significar que Deus não existe; trata-se, na verdade, de dessignificá-lo alijando dele sua base metafísica. A fim de que compreendamos o que significa dizer que Deus está morto, devemos, primeiramente, entender o modo como Deus foi compreendido pela tradição metafísico-cristã. Ora, Deus é o fundamento metafísico supremo do real; é fonte que legitima o comportamento humano; é a instância metafísica doadora de sentido à existência humana. Deus é o princípio de sustentação de tudo que é e, ao mesmo tempo, princípio de inteligibilidade última de todo ente. Deus é a unidade fundante da totalidade. Quais são, pois, os desdobramentos da morte de Deus? A morte de Deus significa:

1) a dissolução da metafísica e de seu poder de estruturação do pensamento e dos comportamentos do homem ocidental;

2) a crise dos sistemas dicotômicos de explicação do mundo, em cujo horizonte um dos elementos da dicotomia funcionava como princípio fundador e legitimador do outro (p. ex., ser x devir; essência x aparência, suprassensível x sensível, etc.).

3) a impossibilidade de pensar em instâncias metafísicas transcendentes como razões últimas do devir. Não há nenhuma realidade transcendente ao devir, a qual seria uma instância garantidora de sentido ao próprio devir.

Em suma, “a morte de Deus dissolve as metanarrativas metafísicas em geral”(Cabral, 2015, p. 68)[4].
O Deus cristão significa o suprassensível por excelência; é fonte criadora e fim de tudo e de todos os entes, sem, no entanto, submeter-se ao devir. O Deus cristão, na condição de criador, transcende toda a criação. Na medida em que esse Deus é uma forma monossêmica de constituição do divino, o significado cristão de Deus determinará a constituição de um corpo vital e condicionará um modo específico de ser do homem e do mundo. O acontecimento histórico da morte de Deus, exaurindo o monossemantismo do Deus metafísico-cristão, destrancará outros modos de ser possíveis. O que seria, então, sentir a vida na contemporaneidade que assiste à consumação do acontecimento da morte de Deus? É experienciar o sentimento de acosmia, ou seja, de pleno abandono num universo vasto, escuro e indiferente, onde não é possível mais encontrar qualquer fonte de sentido último para a existência humana e do próprio mundo; é também, ao menos para os que não buscam mais subterfúgios para escapar ao desespero total que se abre com a tomada de consciência de sua condição insignificante na imensidão cósmica, enfrentar o problema que consiste em explicar por que preferir uma existência absurda ao suicídio. Trata-se do maior problema que a filosofia pós-nietzscheana, ou a filosofia que se pretende ainda necessária em nossa época, deve enfrentar: o problema do suicídio, a que Camus aludiu como o único problema filosófico, deveras, sério. Este é o problema para cujo enfrentamento fui despertado à medida que se me tornava clara minha orientação filosófica. Posso dizer, tendo percorrido ainda um curto caminho da vida e da filosofia, que meu interesse pela filosofia resume-se no enfrentamento deste inquietante problema: por que preferir uma existência sem sentido e marcada profundamente por dores e sofrimentos injustificáveis, cujo início se deu sem razão e cujo fim se dará necessariamente num momento que ignoramos, ao suicídio?


           4. O amor

“Sem o amor, a existência de uma pessoa se mantém dramaticamente incompleta” (Leandro Konder)
Um dos meus temas favoritos para os quais dirijo o vigor de meu espírito é o amor. Sempre que topo com um livro que aborda seriamente – digo, filosófica, sociológica, antropológica, cientificamente – o assunto, procuro comprá-lo, com o interesse de me tornar um pouco menos vulnerável às suas ilusões. Intelectualmente, estou ciente das ilusões a que o estado de apaixonamento amoroso nos expõe, o que não significa que, na prática, eu não me deixe seduzir por elas. Tanto mais que, depois de uma decepção amorosa costumeira, dou-me conta de que me encontrava novamente como uma presa de seus tentáculos.
No que toca aos perigos a que somos expostos na experiência do amor-paixão, refiro apenas dois trechos, colhidos da obra Amor – um sentimento desordenado (2012), de Richard D. Precht. O primeiro trecho é o seguinte: “tudo que imaginamos saber sobre o amor é uma ideia sem um lugar real fora de nossa fantasia.” (p. 253). Nesse trecho, o autor nos adverte sobre o fato de que muitas de nossas representações da experiência amorosa são produtos da fantasia. Por exemplo, a ideia de que o amor é uma experiência de fusão com o outro, de unidade é simplesmente sintoma do desejo, sem que ela mesma tenha algum apoio empírico. O segundo trecho é o seguinte: “o amor não pode ser refutado, apenas decepcionado”. Nesse trecho, somos instados à compreensão de que, apesar de estarmos, na maioria das vezes, enredados em ilusões que produzimos sobre o amor e o amado, quando estamos tomados de amor, a própria experiência de amor não é, necessariamente, algo irreal, passível de ser falseada. O amor nos amarra às suas ilusões, mas nem por isso deixa de ser uma experiência fisiologicamente real e que, por ser real, tende a nos decepcionar.
A experiência amorosa de nossa era líquido-moderna, objeto de reflexão do sociólogo Zygmunt Bauman, pode ser descrita resumidamente na seguinte passagem de Precht: “o amor promove hoje relacionamentos que continuamente são desfeitos de modo unilateral. Se o céu se torna o inferno, podemos romper o vínculo”. (p. 254).
Considerando o que até então já li a respeito do amor, estou convencido de 1) que a pior ameaça ao amor é o ideal e 2) que o amor é um bem tão elevado que não devemos exigir muito dele o tempo todo.
Antes de encerrar, quero, no entanto, externar minha compreensão do amor à luz da visão trágica da vida.
O pensamento trágico, porque afirmador do acaso e do não-ser, segundo Rosset (1989), pensa o real, a vida, como uma experiência dotada de todas as características da festa: “irrupções inesperadas, excepcionais, não sobrevindo senão uma vez e que não se pode apreender senão uma vez”. (p. 127).[5] As ocasiões tanto da vida quanto da festa se dão em um tempo, em um lugar, para uma pessoa. O sabor dessas ocasiões é único, jamais repetível, o que torna cada instante da vida, consoante Rosset, repleto das características da festa, do jogo e do júbilo. Fruir a vida, destarte, depende de que nos apropriemos do kairós, ou seja, que reconheçamos o momento oportuno, o único possível que devemos saber fruir, aproveitar e gozar.
Ora, se a vida se experiencia também sob a dinâmica dos encontros fortuitos, de ocasiões que se nos abrem à fruição por acaso (já que não há Providência e o curso das coisas, portanto, não está predeterminado), a experiência do amor é ela mesma marcada pela gratuidade dos encontros imprevistos, indeterminados, que se dão no próprio movimento da autoexperimentação do viver, o qual carece de uma razão de ser. O acontecimento do amor se torna, portanto, mais importante quanto mais cientes estamos de sua gratuidade, tanto mais dispostos estamos a aceitar o fato de que o amor não nos é um direito que possamos reclamar, que o amor, como todo acontecimento da dinâmica do viver, é uma experiência da ordem do acaso; que não temos, por isso, garantia nenhuma de que o fruiremos. Jogados no mundo com a única garantia de nossa morte inevitável, o encontro amoroso, quando realizado, é suficiente para dividir a humanidade em dois grupos: o dos desgraçadamente felizes e o dos desgraçadamente infelizes. Mas o amor tanto quanto o grau de desgraça que acomete os homens é questão de sorte. Ao nascerem, todos os homens se tornam merecedores de uma única coisa apenas: o túmulo.




[1] COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 129.
[2] HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações Editora, 2014.
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ser feliz.  São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 60.
[4] CABRAL, Alexandre M. Morte e ressurreição dos deuses: ensaio de crítica ao monótono-teísmo metafísico-cristão. Rio de Janeiro: Viavérita, 2015.
[5] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
                                                                                     

domingo, 31 de julho de 2016

O percurso gerativo de sentido - uma abordagem do processo de leitura



Uma proposta de leitura de dois textos de Cioran
O percurso gerativo de sentido




       1.      A questão da leitura


Qualquer tentativa de responder à questão o que é leitura? deve sua possibilidade mesma à assunção de um compromisso teórico. É que não há uma definição unívoca de leitura, tampouco há um método único através do qual se possa ler, de modo eficiente, um texto. A concepção que se possa ter de leitura é sensível a uma determinada abordagem teórica do texto, da língua/linguagem e do discurso. Desse modo, ler significará coisas distintas dependendo do modelo teórico-metodológico que subsidie o estudo do texto/discurso. Receio desencorajar aqueles que esperam encontrar um único método eficaz ou infalível para se tornar um leitor suficientemente competente na lida com o texto. Decerto, não existe tal método. Isso não significa que não seja possível ensinar a ler. Sucede que o ensino de leitura deve orientar-se por um modelo teórico-metodológico que se demonstre mais adequado aos objetivos perseguidos na prática de leitura a ser realizada. As formas de ler um texto variam segundo os objetivos do leitor e segundo os gêneros textuais. Assim, não lemos um poema do mesmo modo como lemos um ensaio filosófico ou científico. Assim também os objetivos perseguidos na leitura de um poema não são os mesmos objetivos para os quais se orienta a leitura de um jornal. O leitor de um jornal busca, de um modo geral, informar-se sobre os acontecimentos do mundo; o leitor de poemas pode pretender apenas fruir uma experiência estética, ou pode visar a resultados mais técnicos (como, por exemplo, apreender o estilo do autor, as características e/ou tendências de uma escola literária, etc.). Leitores diferentes podem ter objetivos distintos na leitura de um mesmo texto. Assim, a leitura que uma banca de doutoramento fará da tese do doutorando tem objetivos diferentes da leitura que alunos de um curso de pós-graduação possa fazer da mesma tese para fins de apresentação de um seminário sobre o conteúdo desse trabalho acadêmico.
Não obstante a inexistência de uma concepção unívoca de leitura, é necessário rechaçar a concepção de leitura como mero processo de decodificação de mensagem, muito embora a decodificação do significado das partes componentes da tessitura textual seja uma etapa prevista no processo complexo de leitura. Mas a leitura – deve-se frisar – não se reduz a uma atividade de decodificação de sinais linguísticos. O sentido de um texto não é resultado da soma das suas frases. Ler envolve muito mais do que saber o que um autor diz; deve o leitor, no processo de leitura, compreender como o autor o diz, para que o diz e o que não diz.
Na história do desenvolvimento da Linguística Textual, é possível discriminar quatro fases dos estudos do texto: 1) a das gramáticas do texto; 2) a pragmática ; 3) a cognitivista; 4) a sociocognitivo-interacionista. Essas quatro fases do desenvolvimento da Linguística Textual correspondem a quatro diferentes abordagens do texto e dos fatores implicados em seu processamento. Em cada uma dessas abordagens, a concepção de leitura será diferente, e essa diferença será, pelo menos em parte, determinada pela diferente maneira de definir o texto em cada uma delas. Farei um breve resumo dessas quatro abordagens, pontuando, em cada uma delas, o modo como a leitura é compreendida.


1.1) Gramáticas do texto

Na fase inicial da Linguística Textual, que se estende da segunda metade da década de 60 até meados da década de 70, os estudiosos preocuparam-se, basicamente, em analisar os mecanismos interfrásicos que, pertencendo ao sistema gramatical da língua, seriam responsáveis por dotar duas ou mais sequências linguísticas da qualidade de texto.O interesse pelos quais se orientavam os estudos, nessa fase, recaia sobre a descrição e explicação das relações diversas entre enunciados, as quais desempenhariam um papel fundamental na construção da textura do texto. Embora os estudiosos, porquanto definissem o texto em conformidade com o conjunto de fenômenos de que se ocupavam, pudessem divergir quanto à compreensão do que é um texto, pode-se dizer, de modo geral, que o texto era visto como uma unidade transfrásica, como uma unidade linguística hierarquicamente superior.
No tocante à concepção de leitura, era comum a suposição da existência de um sujeito predeterminado pelo sistema, a crença de que a língua é um código e instrumento de comunicação. Destarte, o leitor não seria mais do que um decodificador de informações a partir de um arranjo estrutural de unidades linguísticas. O leitor precisaria apenas apreender o sentido já dado nas palavras e construções sintagmáticas presentes no texto.
Igualmente compatível com essa abordagem estruturalista do texto é a concepção de leitura que, enfocando o autor, assenta na crença de que caberia ao leitor captar as ideias do autor. Ler seria, pois, um processo de captação das ideias do autor, sem que, nesse processo, sejam consideradas as experiências e conhecimentos de que dispõe o leitor previamente à leitura. O autor é visto como um sujeito psicológico, individual, senhor de seu dizer, centro de sua vontade e de suas ações. Ao produzir um texto, o autor construiria uma representação mental do mundo, da qual o texto é uma expressão transparente.


1.2) A virada pragmática

A virada pragmática dos estudos do texto foi consequência da percepção dos estudiosos da necessidade de ir além da abordagem sintático-semântica, se quisessem explicar satisfatoriamente a funcionalidade do texto enquanto unidade básica da interação humana.
À luz da abordagem pragmática, o texto passou a ser estudado não mais como produto acabado, como uma totalidade sintático-semântica complexa, mas como uma peça da interação social. Os textos são, então, definidos como instrumentos que servem à realização de intenções comunicativas e sociais dos interactantes.
Assim, as relações internas entre os componentes da tessitura textual são efeito da intenção do falante/autor. Ao produzir um texto, o falante realiza determinadas funções comunicativas, as quais, por sua vez, vão determinar a forma do texto, ou seja, o modo como os componentes linguísticos se estruturam para compor o texto.
O papel do interlocutor/leitor é, pois, compreendido no interior de um percurso pragmático que põe em relação falante/autor-texto-ouvinte/leitor. Esse percurso pragmático pode ser descrito como se segue: o autor tem um plano textual prévio, que se manifestará por meio de instruções ao leitor para que este realize as operações cognitivas necessárias à compreensão do texto. A compreensão do texto, por seu turno, depende de que o leitor apreenda não apenas o conteúdo semântico do texto, mas também o seu plano global.
Ler é, então, uma atividade linguístico-cognitiva de reconstrução dos propósitos sociocomunicativos que tinha o autor por ocasião da produção de seu texto. Ao ler, o leitor precisa descobrir o “para quê” do texto, ou seja, as funções sociocomunicativas das quais o texto constitui uma realização. O modo como o texto se estrutura, as escolhas lexicais, sintático-semânticas operadas pelo autor são determinados pelas funções sociocomunicativas cujo cumprimento o texto pretende atender. Em outras palavras, são meus propósitos comunicativos que vão determinar o modo como vou estruturar o meu texto. A forma (estrutura) do texto é determinada pelas funções sociocomunicativas a cuja realização visa o produtor do texto. Em suma, na visão pragmática, a produção de textos é presidida pelas funções comunicativas às quais o texto deve atender. Comunicamo-nos através de textos e os produzimos para que nossos propósitos sociocomunicativos sejam realizados. A forma como organizarei a estrutura sintático-semântica do meu texto será determinada pelos propósitos comunicativos que eu tenho em vista.


1.3) A visão cognitivista


Na década de 80, vem à cena dos estudos do texto uma nova orientação teórico-metodológica: a cognitivista. Essa abordagem se desenvolveu a partir do momento em que os estudiosos se aperceberam de que toda ação humana se acompanha de processos de ordem cognitiva. Ao agir, o indivíduo dispõe de modelos mentais das operações e dos tipos de operações. O texto passa, assim, a ser visto como resultado de processos cognitivos que acontecem na mente do falante.
Os textos se produzem em função de uma multiplicidade de operações cognitivas interligadas. Por ocasião tanto da produção quanto da recepção de textos, autor e leitor dispõem de uma série de saberes representados em sua memória. Esses saberes são mobilizados pelo autor no momento da produção do texto e pelo leitor no momento de sua interpretação/compreensão.
A leitura é vista como uma atividade linguístico-cognitiva extremamente complexa que se desenvolve num movimento contínuo de construção e reconstrução de sentido, o qual, conquanto ativado pelos elementos componentes da superfície textual, é dependente da conexão entre esses elementos e os saberes representados na memória do leitor, e que são supostos como partilhados com o autor. A leitura é vista como uma atividade estratégica. Ao ler um texto, o leitor acessa on-line os diversos sistemas de conhecimento representado em sua memória e faz uso deles segundo estratégias que se dividem em cognitivas, sociocognitivas e textualizadoras. A leitura é, portanto, um processo complexo ao longo do qual o leitor atua estrategicamente, mobilizando um conjunto de saberes que lhe estão previamente disponíveis com vistas a (re)construir a coerência do texto. Mas a coerência não é uma propriedade do texto em si, mas algo que se constrói para o texto. A construção da coerência é dependente da capacidade de o leitor estabelecer uma continuidade de sentido entre os elementos presentes na superfície textual e os saberes indispensáveis à compreensão do texto. Assim, um texto pode ser incoerente para um leitor que não disponha de alguns saberes cuja mobilização é prevista pelo próprio texto.
A inferenciação constitui uma estratégia cognitiva que desempenha um papel fundamental na construção da coerência para o texto, pois ela permite ao leitor estabelecer uma relação entre os segmentos textuais, ou entre informações explícitas e informações implícitas no texto.


1.4) A visão sociocognitivo-interacionista


A perspectiva sociocognitiva-interacionista rejeita a separação nas ciências cognitivas clássicas entre fenômenos mentais e sociais. A partir de então, a cognição é compreendida como um fenômeno situado, o que significa dizer que ela não é simplesmente um processo que se dá na mente das pessoas, mas compreende processos que acontecem entre os indivíduos em sociedade. Nossa cognição é resultado das nossas ações e das nossas capacidades sensório-motoras.
Os conceitos emergem e se desenvolvem como parte das atividades nas quais as pessoas se engajam. Em suma, à luz da perspectiva sociocognitivo-interacionista, a cognição é resultado da interação de diversas ações conjuntas praticadas pelas pessoas, nas mais diversas situações de interação social.
A compreensão da língua/linguagem também se modifica. Trata-se de ver a língua/linguagem como uma forma de ação social, lugar de interação, e as ações verbais são ações que se realizam conjuntamente com os outros. Portanto, não cabe mais ver as ações verbais como simples realizações de sujeitos livres e iguais. Essas ações se realizam em contextos sociais, com finalidades sociais, e os sujeitos que as realizam assumem papéis socialmente fixados.
A perspectiva sociocognitivo-interacionista não deve ser vista como um modelo em ruptura com a abordagem cognitivista. Ao contrário, é um desdobramento ainda mais complexo e descritivamente mais preciso desta, já que busca pensar os processos cognitivos como processos emergentes da dinâmica da interação social. A diferença fundamental entre os dois modelos teóricos é que o sentido, na perspectiva sociocognitivo-interacionista, é produto de uma construção interacional que relaciona dinamicamente texto e sujeitos. Os sujeitos e, em particular, o autor e leitor, são vistos como sujeitos ativos que dialogicamente se constroem e são construídos no texto.
A leitura é, portanto, uma atividade interativa extremamente complexa de produção de sentidos, que se realiza com base nos elementos componentes da superfície textual e na forma como eles se estruturam, mas que exige também a mobilização de um vasto conjunto de saberes num dado evento sociocomunicativo. A perspectiva sociocognitivo-interacional enfoca os sujeitos e seus saberes em processos de interação social. O sentido não está no texto em si, mas é construído na interação entre texto e sujeitos, ou entre autor, texto e leitor.

Vale ainda tecer algumas considerações sobre o que é leitura na perspectiva da Análise do Discurso. Há, na verdade, muitas análises do discurso; por isso, é necessário dizer que o que se seguirá diz respeito à tradição francesa da Análise do Discurso, à qual se filiam, entre nós, as pesquisas da linguista Eni P. Orlandi.


2. A leitura na visão da Análise do Discurso

A Análise do Discurso toma o texto como unidade constitutiva da materialidade do discurso. O texto é enfocado em sua discursividade, isto é, enfocado tendo em vista o modo como ele, em seu funcionamento, produz sentido. A análise do discurso preocupa-se em compreender como o texto se constitui em discurso e como o discurso se produz em função das formações discursivas, as quais, por seu turno, se constituem em função da formação ideológica que as determina.
Quando os analistas do discurso se debruçam sobre o texto em funcionamento, eles buscam pensá-lo relativamente às suas condições de produção. Assim, a análise do discurso trabalha o texto em relação com sua exterioridade. Mas essa exterioridade se inscreve na historicidade da textualidade, de modo que essa exterioridade se deixa apreender como discursividade. A exterioridade não é o “fora” empírico da linguagem, mas se deve apreender na forma de interdiscurso. Como interdiscurso (memória discursiva), a exterioridade constitutiva revela que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. A exterioridade constitutiva patenteia o fato de que o processo de constituição do discurso faz intervir a memória (memória discursiva), o domínio do saber, os outros dizeres já ditos ou possíveis que garantem a formulação do dizer e sua sustentação. Exterioridade constitutiva é memória discursiva.
Mas o que é leitura à luz da Análise do Discurso? Resumidamente, podemos dizer que ela é um trabalho sócio-histórico que tem de levar em conta a incompletude da linguagem. Da noção de incompletude deduz-se duas outras: o implícito e a intertextualidade. Destarte, ler não é apenas levar em conta o que é dito, mas também, principalmente, o que está implícito, o que não está dito, mas está significando.
O leitor, assim, precisa compreender que o que não está dito pode estar sustentando o que está sendo dito; ele precisa ser capaz de apreender o suposto para entender o que está dito; ele precisa reconhecer aquilo a que o dito se opõe. Destarte, há relações de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações de sentido evidenciam a intertextualidade.
Saber ler envolve a capacidade de perceber que os sentidos em um texto não estão necessariamente nele, mas resultam da relação desse texto com outros textos. Segundo Orlandi (2012, p. 13), “saber ler é saber o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente”. A leitura deve evidenciar o modo como um objeto simbólico produz sentidos. Isso implica a compreensão de que o sentido sempre pode ser outro. Portanto, ler não é atribuir sentido, muito embora o sujeito, em face de um objeto simbólico, seja sempre instado a interpretar, a “dar” sentido. Sucede, contudo, que, ao falar ou escrever, o sujeito atribui sentido às suas próprias palavras em condições sócio-históricas específicas. Um dos efeitos da ideologia é assegurar a crença de que o sentido já está dado nas palavras – e não na inscrição das palavras em formações discursivas. É a própria historicidade dos sentidos e as condições de sua produção que se apagam, fazendo desaparecer a exterioridade que os constitui.
O sentido é produzido na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
Em Análise do Discurso, o sujeito-leitor se constitui a partir da conjunção de duas historicidades: 1) a história de suas leituras e 2) a história das leituras do texto. Estas é que vão atuar dinamicamente na constituição da leitura específica de um leitor em um dado momento. Consoante ensina Orlandi (2008, p. 43), “o conjunto de leituras feitas configuram, em parte, a compreensibilidade de cada leitor específico”. Desse modo, toda leitura tem sua história, assim como a têm os sentidos, já que estes são sedimentados segundo as condições de produção da linguagem.
A leitura é vista como uma atividade sócio-histórica através da qual o leitor se expõe à opacidade do texto, ou seja, opera relações do dito com o não-dito, com o dito em outro lugar, de outras maneiras. A história de leituras se prende à historicidade que rege a relação dos sujeitos com os textos. Há, pois, uma história de leituras que afeta o texto. Por isso, o mesmo leitor não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos, assim também o mesmo texto é lido de modos diversos, em diferentes épocas, por leitores diferentes.



            3. A semiótica textual: o percurso gerativo de sentido



A semiótica tem por objetivo de estudo a significação. Consiste sua tarefa na construção de uma teoria geral da significação. Nesse sentido, ela não se confunde com a semiologia, cujo interesse fundamental recai sobre a descrição dos sistemas de signos não verbais.
Os semioticistas estão interessados em construir modelos teóricos que deem conta das condições de produção e da compreensão do sentido, sejam quais forem os lugares e as formas de sua manifestação. Inspirada na concepção de signo de Hjelmslev e tendo uma reconhecida dívida para com Saussure, a semiótica se propõe elaborar uma teoria que explique o sentido das formas. Assentada no isomorfismo entre os planos do conteúdo e o da expressão, a semiótica procura dar conta da articulação da significação.
Embora a semiótica se ocupe de uma gama ampla de objetos sígnicos, entre os quais se incluem uma imagem, um ritual, uma música, etc., para fins desta exposição, interessar-nos-á a descrição da estrutura teórica que examina o funcionamento textual da significação. Esse funcionamento é observado do ponto de vista da estrutura interna do texto e não a partir das relações do texto com um referente externo. Destarte, à luz da teoria semiótica da significação textual, o sentido resulta de um jogo de relações sistêmicas entre elementos significantes do texto. Os semioticistas estão preocupados, portanto, com o exame da forma do sentido, a saber, do modo como este se constrói.


3.1. Texto e discurso

Cabe à semiótica a tarefa de construir a organização e a produção dos discursos e dos textos; em uma palavra, a competência discursiva. Num primeiro momento, é lícito dizer que o texto e o discurso não se distinguem no contexto semiótico de análise. Assim, texto ou discurso recobre tanto as manifestações semióticas linguísticas quanto as não linguísticas. Como se vê, a semiótica tem uma concepção bastante ampla do que seja um texto e/ou discurso. Por exemplo, um filme deve ser considerado um texto ou discurso, já que também um filme se constitui de uma organização sintagmática subjacente. Para os propósitos deste texto, no entanto, vou-me cingir ao conceito de texto como resultado de um dispositivo estruturado de regras e de relações, que recobrem o plano da expressão e o plano do conteúdo. Esses dois planos são contemplados em dois diferentes níveis de análise: o superficial e o profundo.
Ao postular os níveis superficial e profundo no tratamento da produção e compreensão da significação, a semiótica evidencia sua dívida para com a teoria gerativa chomskyana, o que não significa que não estabeleça pontos de divergência relativamente ao modelo gerativista. Um dos aspectos que distinguem o modelo semiótico do modelo gerativista padrão repousa no fato de que o primeiro pretende elaborar uma teoria que permite gerar discursos, ao passo que o modelo gerativista preocupa-se em elaborar uma teoria que permita que se gerem frases. Ademais, a linguística gerativa ocupa-se com a forma; a semiótica, por sua vez, tem em vista a produção de um modelo que dê conta do percurso gerativo do sentido de diferentes textos. Malgrado essas diferenças, não devemos subestimar o peso da influência do gerativismo chomskyano, sobretudo quando atentamos para o fato de que o modelo gerativo de sentido proposto pela semiótica circunscreve-se ao texto em si e às relações internas entre suas formas.
Cumpre enfatizar ainda que a análise semiótica não tem como escopo a superfície textual; seu objetivo é explicitar o funcionamento do sentido do texto, funcionamento que se concebe como fato do nível profundo. O interesse pela superfície textual só terá lugar na análise na medida em que ela se torna um meio pelo qual se pode compreender a arquitetura do sentido, que é um fato concernente ao nível profundo do fenômeno textual.


3.2. O percurso gerativo de sentido


O percurso gerativo de sentido é uma sucessão de níveis, cada um dos quais passível de receber uma descrição adequada (Fiorin, 2005, p. 20). O percurso gerativo de sentido, estruturando-se em níveis, torna possível a explicitação da produção e interpretação do sentido. Essa explicitação se faz num movimento que vai do mais simples ao mais complexo. Os três níveis do percurso gerativo de sentido são os seguintes: o profundo (ou fundamental), o narrativo e o discursivo. Em cada um deles, devem-se discriminar um componente sintático e um componente semântico.
Vale dizer que, numa teoria do discurso, a sintaxe contrapõe-se à semântica. A sintaxe dos diferentes níveis do percurso gerativo é de natureza relacional, compreendendo, assim, “um conjunto de regras que rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso”. (ib.id., p. 21).
O aspecto relacional da sintaxe não exclui seu aspecto conceptual. Assim, quando queremos construir uma oração, combinamos um predicador com certo número de argumentos. Se articulamos um predicador de ação a um sujeito [ AGENTE], teremos como resultado uma estrutura predicativa de ação-processo. Ora, esse esquema relacional é já dotado de conteúdo, atualizado nas noções de “ação”, “agente” e “paciente” Veja-se o exemplo abaixo:




(1)                                 X                  LAVAR              Y
          Argumento 1    predicador     Argumento 2
            AGENTE                                PACIENTE

              A senhora          lavou               o tapete


Esse esquema sintático – AGENTE-PREDICADOR-PACIENTE -  pode ainda receber diferentes investimentos, tais como: o menino quebrou o vaso de flores, a cozinheira assou o frango, o policial prendeu o ladrão, etc. Esses exemplos são suficientes para patentear o fato de que a sintaxe dos diversos níveis do percurso gerativo também tem um caráter conceptual, de sorte que a distinção entre sintaxe e semântica não consiste na suposição de que esta encerre significado e aquela, não. A distinção baseia-se no fato de que a sintaxe é mais autônoma do que a semântica, e essa autonomia da sintaxe deve ser entendida como um efeito do fato de que esse domínio da gramática é suscetível de receber uma grande variedade de investimentos semânticos.
Passo, doravante, a apresentar e descrever, separadamente, os três níveis constitutivos do percurso gerativo de sentido.


1) Nível Profundo

Conforme disse, cada nível do percurso gerativo de sentido abrigará um componente sintático e um componente semântico. Esses dois componentes serão contemplados separadamente na descrição de cada nível do percurso. Começo, pois, pelo tratamento do componente semântico do nível profundo ou fundamental. A semântica do nível profundo inclui as categorias semânticas que entram na constituição da base de um texto.
Uma categoria semântica estriba-se numa oposição; seja, por exemplo, / natureza/ versus /cultura/. É claro que só podemos estabelecer uma diferença entre dois termos tomados conjuntamente, se eles tiverem um traço em comum. Por isso, opomos /verticalidade/ a /horizontalidade com base no traço comum /espacialidade/; mas não faz sentido opor /sensibilidade/ a /horizontalidade/, visto que esses elementos não têm qualquer traço em comum.
Cumpre também distinguir entre dois tipos de relação entre os termos de uma categoria semântica: 1) contrariedade e 2) contraditoriedade. São contrários os termos de uma oposição que se relacionam por uma pressuposição recíproca. Assim, o termo /masculinidade/ é o contrário de /feminilidade/, dado que aquele pressupõe este para ter sentido, e vice-versa. Quando aplicamos uma negação a cada um dos contrários, obtemos dois termos contraditórios. Assim, /não masculinidade/ é o contraditório de /masculinidade/, e /não feminilidade/ é o contraditório de /feminilidade/. Cada um dos contraditórios implica o termo contrário daquele do qual é o contraditório. Assim é que /não masculinidade/ implica o contrário /feminilidade/ e /não feminilidade/ implica o contrário /masculinidade/. Os dois termos contraditórios - /não masculinidade/ e /não feminilidade/ - são contrários entre si. Evitando-se confundi-los com os contrários /masculinidade/ e /feminilidade/, chamemos os contraditórios que são contrários entre si de subcontrários.
Mas por que é necessário distinguir a contrariedade da contraditoriedade? É que, na relação de contrariedade, cada um dos termos apresenta um conteúdo positivo, ao passo que, na relação de contraditoriedade, um dos termos se caracteriza pela presença de um dado traço, e o outro termo se caracteriza pela ausência desse mesmo traço. Assim, a feminilidade não é a ausência de masculinidade, mas é uma marca semântica específica.
No discurso, os termos contrários ou subcontrários podem aparecer reunidos. Quando se observam termos contrários reunidos, há termos complexos; quando se verifica conjunção de subcontrários, há termos neutros. Ajunte-se que cada um dos elementos da categoria semântica de base de um texto recebe as qualificações semânticas /euforia/ e /disforia/. A marca euforia indica que o termo é considerado um valor positivo; por outro lado, a marca disforia indica que o termo é avaliado de modo negativo. Euforia e disforia são valores determinados na construção do texto, e independem do sistema axiológico do leitor. Cabe ao leitor a tarefa de identificar a qual dos termos da categoria semântica de base é atribuída a qualificação euforia e qual recebe a qualificação disforia. O termo que recebe a qualificação euforia é chamado eufórico; o que recebe a qualificação disforia é chamado disfórico.
A categoria semântica do nível profundo é responsável por dotar de sentido o conjunto de elementos do nível superficial.
Consideremos, agora, a sintaxe do nível profundo. A sintaxe do nível profundo compreende duas operações, quais sejam: a negação e a asserção. Na linearidade de um texto, essas operações se aplicam a uma dada categoria a versus b. Destarte, devem-se discriminar entre duas relações:

a) afirmação de a, negação de a, afirmação de b;

b) afirmação de b, negação de b, afirmação de a.


Da consideração dessas duas relações depreende-se que, no domínio da sintaxe do nível profundo, importa determinar a organização sintática fundamental do texto. Finalmente, não devemos perder de vista o fato de que a semântica e a sintaxe do nível profundo representam a instância inicial do percurso gerativo e que através delas busca-se explicitar os níveis abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso (Fiorin, 2005, p. 24).



2) Nível Narrativo


A compreensão do modo como se constitui o nível narrativo supõe que se distingam entre si narração e narratividade. Essa distinção é importante também, pois que nos previne contra a crença de que o nível narrativo não pode ser determinado em textos não narrativos. A narração é um modo de organização do discurso, que caracteriza determinados gêneros discursivos, como contos, crônicas e romances. Todavia, a narratividade tem uma aplicação universal, constituindo, assim, “um componente da teoria do discurso” (ib.id., p. 28). A narratividade consiste numa transformação que se verifica entre dois estados sucessivos e diferentes. A narratividade é uma transformação de conteúdo, na qual estão implicados três momentos: 1) um estado inicial; 2) a transformação; 3) um estado final.
Na narração, por outro lado, os estados e as transformações que se verificam no curso do discurso se ligam a personagens individualizados. Essa relação dos estados e transformações com personagens individualizadas não é o que está sob o foco do conceito de narratividade, o qual descreve o conteúdo em termos de transformação de estados sucessivos e diferentes.
A sintaxe do nível narrativo abriga, pois, dois tipos de enunciados elementares: a) enunciados de estado e b) enunciados de fazer. Nos enunciados de estado, se estabelece uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto, como em “Camila é pobre” (conjunção entre o sujeito Camila e o objeto pobreza) e “Camila não é pobre” (disjunção entre o sujeito Camila e o objeto pobreza). Nos enunciados de fazer, evidenciam-se as transformações. Nesses tipos de enunciados, dá-se a passagem de um enunciado de estado a outro. Assim, por exemplo, em “Camila ficou rica”, há uma transformação de um estado inicial “não rica” num estado final “rica”.
Aos dois tipos de enunciados de estado correspondem duas espécies de narrativas mínimas: a de privação e a de liquidação de privação. Na privação, ocorre um estado inicial conjunto e um estado final disjunto. Por exemplo, uma família rica que, no decurso da história, perde toda a riqueza. Na liquidação da privação, dá-se o contrário: um estado inicial disjunto é sucedido de um estado final conjunto. Por exemplo, Camila que, sendo inicialmente uma pessoa pobre, torna-se rica.
É necessário enfatizar que não se deve confundir sujeito com pessoas, nem objeto com coisa. Quando disse que, em “Camila é pobre”, há uma conjunção entre o sujeito (Camila) e o objeto (pobre), faço uso dos termos ‘sujeito’ e ‘objeto’ como papéis narrativos que podem ser representados num nível mais superficial por coisas, pessoas ou animais.
Os textos são narrativas complexas, nas quais uma série de enunciados de fazer e de ser se organizam hierarquicamente. Uma narrativa complexa estrutura-se numa sequência canônica, que compreende quatro fases: 1) manipulação; 2) competência; 3) performance; 4) sanção.
Na fase de manipulação, um sujeito age sobre outro a fim de levá-lo a querer ou a fazer alguma coisa. Há inúmeros tipos de manipulação, tais como “pedido”, “ordem”, “intimação”, “chantagem”, etc. Vou definir aqui apenas quatro tipos de manipulação que se verificam com maior frequência nas narrativas:

1) tentação: o manipulador propõe ao manipulado uma recompensa, ou seja, um objeto de valor positivo, com o propósito de levá-lo a fazer alguma coisa;

2) intimidação: ocorre quando o manipulador obriga o manipulado a fazer alguma coisa mediante ameaças;

3) sedução: ocorre quando o manipulador leva o manipulado a fazer algo por meio de um juízo de valor positivo sobre a competência deste;

4) provocação: o manipulador impele o manipulado à ação expressando um juízo de valor negativo sobre a competência do manipulado.

Na fase da competência, o sujeito responsável pela transformação central da narrativa é dotado de um saber e/ou poder fazer. Na fase da performance, dá-se a transformação (mudança de um estado a outro) central da narrativa. Na fase da sanção, ocorre a constatação de que a performance se realizou. Nessa fase, o sujeito reconhece que realizou a transformação.

Nas narrativas efetivas, as fases da sequência canônica não aparecem sempre bem organizadas. Sucede, por vezes, que muitas fases ficam ocultas; outras vezes, se constata que as narrativas não as realizam completamente. Demais, as narrativas efetivas podem manifestar preferencialmente uma das fases. As narrativas reais contêm um conjunto de sequências canônicas e as diversas fases da sequência canônica podem ser organizadas pelo autor de maneiras diferentes.
Tomando-se, agora,  para descrição a semântica do nível narrativo, cumpre dizer que ela recobre os valores inscritos nos objetos. Há, nas narrativas, dois tipos de objetos: 1) objetos modais; 2) objetos de valor. Os objetos modais compreendem: o querer, o dever, o saber e o poder fazer. Esses objetos constituem os elementos cuja aquisição é indispensável para realizar a performance principal. Os objetos de valor, por seu turno, são objetos com os quais a performance principal mantém relação de conjunção ou disjunção.
Importa esclarecer que o valor do nível narrativo não é idêntico ao objeto concreto manifesto no nível mais superficial do percurso gerativo. O objeto do nível narrativo é o significado que tem um objeto concreto para o sujeito que entra em conjunção com ele. Assim, por exemplo, a espada concretiza, no plano superficial de uma fábula, o objeto modal /poder vencer/. Portanto, objeto-valor e objeto modal são posições na sequência narrativa. Os objetos concretos ( veja-se a “espada”) manifestam diversos valores de acordo com a narrativa.


3) Nível Discursivo

Neste nível, as formas abstratas do nível narrativo se atualizam com termos que lhes dão concretude. Assim, a conjunção com a riqueza pode se atualizar no nível discursivo como “roubo de jóias”. Segundo Fiorin (p. 41), “o nível discursivo produz as variações de conteúdos narrativos invariantes”.



Nível da manifestação

O percurso gerativo de sentido consiste no processo de constituição do plano do conteúdo. Não obstante, não se deve ignorar o plano da expressão, uma vez que não há plano de conteúdo desvinculado do plano de expressão. O plano de expressão pode ser de diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc. O percurso gerativo de sentido é um modelo que simula a produção e a interpretação do significado. Consoante ensina Fiorin (2005, p. 47):

“Esse modelo mostra aquilo que sabemos de forma intuitiva: que o sentido do texto não é redutível à soma dos sentidos das palavras que o compõem nem de enunciados em que os vocábulos se encadeiam, mas que decorre de uma articulação dos elementos que o formam – que existem uma sintaxe e uma semântica do discurso”.


Por manifestação, deve-se entender a união de um plano de conteúdo com um plano de expressão. Importa salientar que o texto é, então, o resultado da manifestação do plano de conteúdo através de um plano de expressão. Nesse sentido, texto e discurso se diferenciam. O discurso, por sua vez, será uma unidade do plano de conteúdo, ou “o nível do percurso gerativo de sentido em que as formas narrativas abstratas são revestidas por elementos concretos” (Ib.id. p. 45).
Ainda que não exista plano de conteúdo sem plano da expressão, e vice-versa, a distinção que se costuma fazer entre os planos é de ordem metodológica e serve para expressar o fato de que um mesmo conteúdo pode ser expresso por diferentes planos de expressão. É claro – deve-se frisar – que a realização de um mesmo conteúdo por planos de expressão distintos acarretará certas modificações ao conteúdo. Essas alterações sofridas pelo conteúdo decorrem basicamente de dois fatores: efeitos estilísticos de expressão e coerções do material.
Entre os efeitos estilísticos, podemos citar, entre outros, o ritmo, a aliteração, a assonância, as figuras retóricas de construção (ironia, prosopopéia, etc.), etc. Entre as coerções do material, cite-se a linearidade do plano de expressão verbal. Nesse caso, a linearidade expressa-se no fato de que um fonema vem depois do outro, uma palavra vem após a outra e assim sucessivamente. Um plano de expressão gestual, por seu turno, não conhece a coerção por linearidade, que impõe que seus elementos apareçam sempre numa cadeia de sucessividades. O  plano de expressão gestual se caracteriza pela simultaneidade de seus elementos. Assim, se não podemos, no plano de expressão verbal, pronunciar dois fonemas ao mesmo tempo, no plano de expressão gestual, podemos realizar dois gestos simultaneamente.
Ajunte-se que cada desses planos de expressão trabalha com um tipo de material diferente: no verbal, sons, palavras, etc.; no gestual, o corpo e suas partes.  Vale ressaltar que línguas naturais diferentes, embora funcionem com o mesmo material (os sons), não selecionam nem estruturam os elementos da expressão, isto é, os sons, do mesmo modo. Uma língua natural também não usa exatamente os mesmos sons que a outra. Por força da coerção do material, é fato que certos sentidos são mais bem veiculados por um plano de expressão que por outro. Ademais, essa mesma coerção explica a dificuldade de tradução de textos poéticos. Cabe aqui assinalar a lição de Fiorin (p. 50): “quando se traduz de uma língua para outra, a coerção do material leva à perda dos efeitos estilísticos de expressão que estão presentes na língua de partida”.


Semântica Discursiva

O percurso gerativo de sentido inclui, entre as estruturas discursivas, uma sintaxe discursiva, que se expressa pelo fenômeno da discursivização, o qual, por sua vez, se subdivide nos processos de actorialização, temporalização e espacialização, e uma semântica discursiva, que abriga a tematização e a figuratização.
Actorialização, temporalização, e espacialização são os três procedimentos de discursivização. Na actorialização, instalam-se as pessoas; na temporalização, instalam-se os tempos; na espacialização, instalam-se os espaços do discurso.
A análise dos textos cioranianos será feita segundo um recorte que não tem a pretensão de dar conta de todas as dimensões previstas pela teoria que a embasa. Portanto, cingir-me-ei a elucidar a semântica discursiva, descrevendo três grupos  de elementos que lhe são constitutivos: 1) temas e figuras; 2) percursos figurativos e percursos temáticos; 3) isotopia.
Tendo apresentado e descrito esses grupos, penso dispor de subsídios teórico-metodológicos suficientes para a elaboração de uma – entre as leituras possíveis – dos textos de Cioran cuja interpretação e compreensão são os objetivos perseguidos neste texto.

Temas e Figuras

Tematização e figurativização são dois níveis de concretização do sentido. Todos os textos tematizam o nível narrativo. O nível temático poderá ou não ser figurativizado. A oposição figura e tema refere-se, a princípio, à oposição entre abstrato e concreto. Mas abstrato e concreto não devem ser tomados como noções que se opõem de maneira absoluta. Na verdade, elas constituem um continuum ao longo do qual se passa gradualmente do mais abstrato ao mais concreto.
A figura é o termo que se refere a algo que existe no mundo natural (p. ex. árvore, vagalume, sol, correr, brincar, etc.). Destarte, a figura é todo conteúdo que tem um referente que é acessível à nossa experiência sensorial. Esse mundo natural a que remete a figura pode ser um mundo construído, como, por exemplo, nos textos ficcionais. O tema, por sua vez, é um conteúdo puramente conceitual, isto é, que não remete ao mundo natural. Temas servem à organização, à categorização, à ordenação dos elementos do mundo natural. São termos mais abstratos, tais como elegância, vergonha, felicidade, racional, calcular, etc.
Há que distinguir, portanto, dois tipos de textos, conforme o grau de concretude dos elementos semânticos que revestem os esquemas narrativos: os figurativos e os temáticos. Os textos figurativos “criam um efeito de realidade, pois constroem um simulacro da realidade” (ib.id., p. 91). Os textos temáticos “tem uma função predicativa ou interpretativa” (ib.id.). Os textos figurativos cumprem uma função descritiva ou representativa. Os textos temáticos servem para explicar o mundo; os textos figurativos, para simulá-lo. Não há textos exclusivamente temáticos ou exclusivamente figurativos, por isso devemos atentar para o que nos ensina Fiorin:


“É importante ressaltar que, quando se fala em textos figurativos e temáticos, fala-se, respectivamente, em textos predominantemente, e não exclusivamente figurativos e temáticos”. (Fiorin, 2005, p. 92).



Todo texto exibe uma organização narrativa que será tematizada. Posteriormente, o nível de organização temática poderá ou não ser figurativizado. É o nível temático que atribui sentido ao figurativo. Pode suceder que a tematização se manifeste diretamente, sem a cobertura figurativa. Nesse caso, há apenas textos temáticos. Mas não há textos figurativos que não exibam um nível temático, “pois este é um patamar de concretização do sentido anterior à figurativização” (ib.id., p. 94). O processo de simbolização é resultado da relação entre temas e figuras. Nesse processo, a uma dada figura fixa-se uma interpretação temática.


Percursos figurativos e Percursos temáticos

Todo lexema possui um núcleo significativo. Esse núcleo não impede, no entanto, as múltiplas possibilidades significativas de um lexema. É claro, porém, que essas possibilidades de significação são bem delimitadas, já que se relacionam, de alguma maneira, com o núcleo significativo. A relação entre o núcleo significativo e as possibilidades de significação faz do lexema uma organização virtual de sentido. Assim, embora constituído de um núcleo significativo - “cada um dos glóbulos situados na parte anterior da cabeça que permitem a visão, o lexema olho”. (ib.id.) -, o lexema olho realiza-se de diferentes maneiras nos variados contextos de uso.

(1) Analisa tudo com olho crítico.

(2) Interroguei-o com os olhos fixos no seu rosto.

(3) O chamado olho do furacão é uma região localizada no centro dos ciclones tropicais fortes.


O percurso figurativo designa o encadeamento de figuras, a rede relacional das figuras. Assim, quando lemos um texto, não apreendemos figuras isoladas. A análise textual supõe nossa capacidade de operar recortes sobre o tecido figurativo, já que o texto quer dizer tecido. Um conjunto de figuras só ganha sentido com a concretização de um tema, o qual, por seu turno, é o revestimento de enunciados narrativos. Por conseguinte, apreender um percurso figurativo é descobrir o tema subjacente a ele.
O texto pode ter mais de um percurso figurativo. Por isso, um texto só é compreensível se houver coerência entre os diferentes percursos figurativos que o constituem. Por vezes, o narrador pode operar uma quebra da coerência, com vistas a obter determinados efeitos de sentido.
O percurso temático designa o encadeamento de temas. Esses percursos se verificam nos textos temáticos. Também os percursos temáticos exigem uma coerência interna. Identificamos um percurso temático sempre que o texto exibe um conjunto de lexemas abstratos. Só conseguimos encontrar o tema geral que dá sentido às figuras ou o tema geral que relaciona os demais temas, quando apreendemos os encadeamentos das figuras ou dos temas, o que quer dizer quando apreendemos os percursos figurativos ou temáticos.


Configurações Discursivas

A configuração discursiva pretende explicar o fato de que, muitas vezes, quando tomamos diferentes textos, apercebemo-nos de que eles tratam do mesmo tema. Ocorre que, examinando-os com cuidado, descobrimos que eles abordam esse tema de maneira distinta. Quando diferentes textos, embora versem sobre o mesmo tema, fazem-no com um enfoque distinto, o que ocorre é que os percursos temáticos que explicam o tema geral são diferentes, assim como diferentes são os percursos figurativos. O que é, então, uma configuração discursiva? Segundo Fiorin (2005, p. 107), “é um lexema do discurso que engloba várias transformações narrativas, diversos percursos temáticos e diferentes percursos figurativos”.
Só é possível inferir a configuração discursiva a partir do cotejo entre vários discursos. Uma configuração discursiva associa a um núcleo comum de sentido variações figurativas, variações temáticas, variações narrativas, sendo essas variações os diferentes percursos figurativos, temáticos e narrativos.


Isotopia

A isotopia é responsável por conferir coerência semântica ao texto, porquanto ela designa a reiteração, a repetição, a recorrência de traços semânticos ao longo do discurso. A isotopia é a recorrência de um dado traço semântico ao longo do discurso (ib.id., p. 112-113). Segundo Fiorin (ib.id.), “a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto”. A isotopia procura explicar o fato de um texto prestar-se a várias interpretações, mas não a toda e qualquer interpretação. O conceito de isotopia, por um lado, garante a validade do princípio segundo o qual todo texto admite diversas leituras; por outro lado, ela explica por que nem toda e qualquer leitura é possível. As diversas possibilidades de interpretar um texto estão previstas no próprio texto; são virtualidades significativas inscritas no texto. Essas possibilidades várias de interpretar um texto acenam com o caráter polissêmico do texto.
É a isotopia que filtra as leituras possíveis para um dado texto. A pluri-isotopia está inscrita no texto por meio de conectores de isotopias. Um conector de isotopias “é um termo que possui dois ou mais significados, isto é, um termo polissêmico, presente no texto (...) que permite a passagem de uma isotopia a outra”. (ib.id., p. 115).

“O conceito de isotopia é extremamente importante para a análise do discurso, pois permite determinar o(s) plano(s) de leitura dos textos, controlar a interpretação dos textos pluri-significativos e definir os mecanismos de construção de certos tipos de discurso, como, por exemplo, o humorístico. Na análise dos textos pluri-isotópicos, é essencial, a partir da observação dos conectores e dos desencadeadores de isotopia, depreender as distintas isotopias que se superpõem, para que nenhum plano de leitura seja deixado de lado”. (ib.id., p. 117-118).


Na próxima seção, faço uma breve apresentação de Cioran e de sua filosoifa.



4. Cioran: o mais pessimista dos filósofos


O filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995), tendo sido leitor de Schopenhauer, endossa, de bom grado, as teses que estruturam a filosofia deste filósofo alemão: 1) para cada indivíduo teria sido melhor não existir; 2) o mundo como um todo é o pior dos mundos possíveis.
Quem deseje saber qual foi a orientação filosófica assumida pelo pensamento de Cioran terá nos títulos de suas obras boas pistas. Dois livros, em especial, parecem-me bastante emblemáticos da visão cioraniana de mundo – Nos Cumes do Desespero (1933), obra de juventude, impregnada de expressões de angústia e lirismo, e Do inconveniente de ter nascido (1973), obra de maturidade e escrita em estilo aforístico. Nos Cumes, Cioran postula a inutilidade da filosofia. Desde então, ainda com vinte e dois anos, Cioran passa a viver à margem das universidades. Nos Cumes é resultado de sua experiência com a insônia,  com a vigília incessante. Essa obra é fruto das leituras que o autor faz de Schopenhauer, Nietzsche, Bergson, Pascal e Dotoiévski. Escrito em romeno, esta obra antecipa os temas que marcarão profundamente o seu pensamento filosófico: o niilismo cósmico, o ceticismo e a lucidez radical sobre o inconveniente de ter nascido”.
Cioran foi um ávido leitor de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Max Stiner. Em Do inconveniente de ter nascido, o filósofo romeno constrói um libelo contra a catástrofe do nascimento. Num dos aforismos da obra, escreve: “Perdemos tanto ao nascer como perderemos ao morrer – Tudo”. O pensamento cioraniano não é o tipo de pensamento que angaria o interesse de todo e qualquer leitor. Nem todo leitor, por mais versado em filosofia que seja, está preparado para ser um leitor de Cioran. A compreensão do pensamento desse filósofo exige mais do que a capacidade intelectiva e a erudição filosófica; exige uma cumplicidade afetiva, uma experimentação fisiológica, um modo de ser obcecado pelo pior. A obra cioraniana destina-se a um tipo de leitor familiarizado com os tormentos do espírito e do corpo.
Os escritos cioranianos são produto de um exercício de pensamento que faz da filosofia, ao mesmo tempo, meio de cunhagem e de expressão de um modo de ser que é a antípoda do modo de ser que caracteriza o homem contemporâneo, facilmente seduzido pelas ofertas de felicidade das sociedades de consumo. A filosofia cioraniana renuncia ao pensar sistemático, ao pensar atrelado a desenvolvimentos lógicos. O pessimismo de Cioran, influenciado, em parte, pelo budismo, expressa-se na forma de uma teoria do sofrimento do mundo, à luz da qual o mundo não é bom e nada nele pode tornar-se melhor. Para Cioran, o mundo é desprovido de sentido, é mau e inaceitável.


Seguem-se os dois textos de Cioran que serão submetidos à análise com base no modelo do percurso gerativo de sentido.


TEXTO 1

NADA TEM IMPORTÂNCIA ALGUMA[1]


E que importância pode ter o fato de eu me atormentar, sofrer ou pensar? Minha presença no mundo sacudirá para o meu grande pesar – a tranquila existência de uns e perturbará a ingenuidade inconsciente e prazerosa de outros, para o meu ainda maior pesar. Embora sinta que minha tragédia seja para mim a maior tragédia da História – maior que as quedas de impérios ou de quem sabe que desabamentos no fundo de uma mina – carrego implicitamente a sensação de minha total nulidade e insignificância. Estou convencido de que não sou absolutamente nada no universo, embora sinta que a única existência real seja a minha. Ademais, se eu fosse obrigado a escolher entre a existência do mundo e a minha existência, eu recusaria a outra, com todas as suas luzes e suas leis, a fim de planar sozinho no Nada absoluto. Embora para mim a vida seja um suplício, não acredito no caráter absoluto dos valores transvitais pelos quais me sacrificaria. Para ser sincero, diria que não sei por que vivo e por que não cesso de viver. A chave, provavelmente reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo. E se não houver senão motivos absurdos para viver? Mas então eles ainda poderiam se chamar motivos? O mundo não merece o nosso sacrifício por uma ideia ou uma crença. Somos hoje mais felizes graças ao sacrifício dos outros pelo nosso bem e nossa iluminação? Que bem e que iluminação? Se alguém se sacrificou para que eu fosse feliz agora, sou então mais infeliz que ele, pois não entendo por que erguer minha existência por cima de um cemitério. Há momentos em que me sinto responsável por toda a miséria da História, em que não compreendo por que alguém derramou sangue por nós. A maior ironia será então quando se provar que eles foram mais felizes  do que nós. Maldita seja a História toda. Nada mais neste mundo me interessa; a própria questão da morte me parece ridícula; o sofrimento, limitado e não revelador; o entusiasmo, impuro; a vida, racional; a dialética da vida, lógica e não demoníaca; o desespero, menor e parcial; a eternidade, uma conversa fiada; a experiência do Nada, uma ilusão; a fatalidade, uma piada... Pois, levando a sério, que sentido tem tudo isso? Para que problematizar, para que atirar luzes ou aceitar sombras? Não seria melhor enterrar minhas lágrimas na areia às margens do mar, na mais completa solidão? Nunca chorei, porém, pois as lágrimas se transformaram em pensamentos. E não seriam esses pensamentos tão amargos quanto as lágrimas?


TEXTO 2[2]

Tem sentido por acaso que alguém continue sofrendo depois de mim? Podem existir ainda angústias depois de minhas angústias e dores? Há gente que nasceu para suportar as dores dos que não sofrem. O demoníaco da vida derrama sobre eles todos os venenos que os outros não conhecem, todos os sofrimentos que os outros não suspeitaram. Quem dera pudessem estes, por obra e graça de um milagre, repartir seus venenos, suas dores e desesperos! Bastaria para tornar insuportável a existência dos outros. Pois os homens só conhecem as dores aproximativas, as dores que vêm de fora e que são inexistentes em comparação às dores ligadas à individuação, à estrutura da existência, porque esta é individual. Só são fecundas e duradouras as dores nascidas no centro de nossa existência, que irradiam em uma existência e crescem de forma imanente na essência dessa existência. Há dores que teriam que deter a História, assim como há homens depois dos quais a História não tem sentido algum. E me pergunto: minha existência não torna inútil a existência futura do mundo?
Não tem que nos doer a transitoriedade das coisas terrestres ou a inexistência das celestes. Que tudo esteja destinado a perecer, que tudo seja vão e fugaz, que tudo careça absolutamente d de valor e consciência, isso só pode provocar desgosto... Mas não pode provocá-lo quando se pensa como em uma existência tão reduzida no tempo e tão limitada no espaço pode caber tantas dores, podem se consumar tantas tragédias e pode surgir tanto desespero. Se a existência individual é tão evanescente como uma ilusão, por que então tantas tristezas, tantas renúncias e tantas lágrimas? Diante desta perplexidade que nos conduz ao desespero, nos vemos forçados a aceitar a irracionalidade da vida sem poder pensar mais além. Também não tem sentido continuar pensando porque não há explicação alguma. Tudo é tão inexplicável que me dói a inutilidade das ideias. A futilidade deste mundo no qual a dor se afirma como uma realidade, transforma o negativo em lei. Quanto mais ilusória parece a existência do mundo, mais real se torna o sofrimento como compensação. Não há escapatória para o sofrimento enquanto vivamos; mas a morte não é uma solução, porque, resolvendo tudo, não resolve absolutamente nada. Não é possível encontrar para o mundo explicação nem justificação alguma. Que sua fugacidade, sua futilidade e sua inutilidade nos deixem tão insensíveis quanto o fato de que a vida nos tenha sido dada para morrer. Mas saber a cada instante de nossa vida que vamos morrer é o que nos faz mais mal. Quando não se tem consciência da morte, a vida, sem ser uma delícia, tampouco seria um fardo. E passar toda a vida infestado pelo medo da morte é um fardo. Então nos damos conta e nos horrorizamos de que, em uma existência tão reduzida no tempo e tão limitada no espaço possam caber medos tão profundos e tão perigosos. Por que ao homem se deu a vida para temer a morte e por que a vida é tão impura nos homens? Por que vivemos para saber que morreremos?
Vejo no homem um tremor de individuação: a insegurança e o medo inerentes à vida que ficou vulnerável através da individuação, uma insegurança e um medo próprios a uma vida que se isola cada vez que se realiza no indivíduo.
Que grande alegria ter vencido por um instante a tristeza, sentir-me vazio até a imaterialidade! Mas não de um vazio vertiginoso e alucinatório, mas de uma vacuidade que me eleve, que me impulsione e me torne tão leve quanto pesado me fez a tristeza.



                                                                  §§

Apresentarei, pois, uma proposta de leitura desses dois textos cioranianos calcada sobre o modelo semiótico do Percurso Gerativo do Sentido. Inicialmente, é possível identificar três temas que funcionam como índices de três campos relacionais de sentido, os quais serão apresentados separadamente, se bem que eles não sejam estanques, mas se relacionam entre si. Um campo relacional de sentido é um conjunto de itens lexicais ou construções sintáticas que compartilham entre si um ou mais traços semânticos ou entre os quais podemos reconhecer alguma relação de sentido discursivamente construída. Esses itens ou construções sintáticas formam uma rede de relações de sentido. O campo relacional de sentido é sempre um campo conceitual. Assim, por exemplo, os lexemas pai, mãe, filho, tia, avó, avô pertencem ao campo relacional caracterizado pelo traço parentesco.[3] Em outras palavras, eles se reúnem num mesmo conjunto em virtude de terem em comum a propriedade semântica parentesco.  Temos um campo relacional de sentido sempre que podemos reunir num conjunto vocábulos ou construções sintagmáticas segundo algum tipo relação de sentido entre eles. Seguem-se os campos relacionais de sentido para cada um dos textos que serão submetidos à análise:

TEXTO 1

Sofrimentopesar, tragédia, sacrifício, miséria, morte, desespero, lágrimas, solidão, chorar, amargura.

Individuação < existência, mundo, iluminação, História, lágrimas, pensamentos, chorar, morte.

Insignificância < nulidade, Nada absoluto, irracionalidade da vida, experiência do Nada, ilusão, fatalidade.


Convém fazer alguns esclarecimentos sobre a constituição dos campos relacionais de sentido acima apresentados. O item lexical “lágrimas” não necessariamente associa-se a sofrimento, já que podemos derramar lágrimas como consequência de uma emoção de alegria. Mas os campos relacionais de sentido são construídos discursivamente; portanto, no texto, o lexema “lágrimas” pertence ao campo relacional cujo núcleo é o vocábulo “sofrimento” (cf. sofrer). Ajunte-se que diferentes campos relacionais de sentido podem compartilhar um ou mais itens lexicais. Assim, “morte” pode pertencer ao campo relacional de sofrimento e também ao campo relacional de individuação, já que a morte é um acontecimento que atinge um indivíduo ou cada indivíduo, não havendo a possibilidade de que outro morra em meu lugar[4]. Como os campos relacionais de sentido são construídos discursivamente, cabe ao leitor reconhecer quais são os itens lexicais que se prendem a um mesmo núcleo do campo relacional. É possível que as relações entre os itens lexicais e o núcleo se dê por oposição. Por exemplo, “História” foi incluído no campo relacional da individuação, muito embora “História” não designe a história individual, mas envolva a relação com a alteridade, ou seja, História recobre práticas humanas que se fazem conjuntamente com os outros. No texto, a relação entre individuação e História é uma relação de contraste, de oposição.
A importância do reconhecimento dos campos relacionais de sentido se deve ao fato de o leitor poder, através deles, apreender como se estrutura o mundo textual construído pelo autor. Esse mundo textual não é uma cópia do mundo real, mas um modelo de mundo construído pelo texto. Nessa versão do mundo textualmente construída, o leitor deve ser capaz de reconhecer, com base nos campos relacionais de sentido, que se representa a experiência da insignificância do mundo feita por um ‘eu’ que se apercebe como igualmente insignificante. Sabemos que os textos 1 e 2 buscam desenvolver três temas: o sofrimento, a individuação e a insignificância de tudo. O próprio título do texto 1 – Nada tem importância alguma – serve de pista para o reconhecimento do assunto sobre o qual versa o autor.
Vejamos, agora, os campos relacionais de sentido do texto 2. O texto 2 nos permite identificar também três temas: 1) sofrimento/dor; 2) individuação; 3) insignificância.

TEXTO 2

Sofrimento < angústia, demoníaco da vida, venenos, desesperos, tristezas, renúncias, lágrimas, desgosto, medos
Individuação < dores, estrutura da existência, centro da existência, História, consciência da morte, medo da morte, horror, medo, tremor da individuação, insegurança

Insignificância < futilidade do mundo, transitoriedade, carência de valor e coerência, ilusão, evanescência, irracionalidade da vida, morte, falta de explicação e justificação, fugacidade, inutilidade das ideias.


Como se vê, nessa primeira etapa da produção da leitura, importa que o leitor consiga reconhecer as relações de sentido entre o núcleo do campo e os seus componentes. Esses dois textos de Cioran são predominantemente temáticos. Assim, os dois textos buscam fornecer uma explicação do mundo, do real. Estabelecidos os campos relacionais de sentido, podemos agora proceder a nossa leitura em conformidade com os três níveis do percurso gerativo de sentido. Vimos que esses três níveis são: 1) o profundo (ou fundamental), 2) o narrativo e o 3) discursivo.



1)     NÍVEL PROFUNDO

No nível profundo, há, como vimos, dois componentes: um semântico e um sintático. Na semântica do nível profundo, precisamos buscar reconhecer a categoria semântica de base, que se assenta numa oposição. Tanto no texto 1 quanto no texto 2, essa oposição se estabelece entre as categorias semânticas /individuação/ vs. /alteridade/. Os dois textos se estruturam com base na relação de contrariedade entre /individuação/ e /alteridade/. A individuação é, particularmente, marcada, no texto 1, pela presença do pronome de primeira pessoa “eu”, ao passo que a alteridade é marcada pela ocorrência de termos como “mundo”, “existência de uns”, “ingenuidade inconsciente e prazerosa de outros”, etc. Todos os elementos relacionados à categoria da /individuação/ recebem a qualificação semântica /disforia/ . Isso significa dizer que o autor interpreta de modo negativo a individuação. A individuação é fonte de dor e sofrimento (cf. “embora para mim a vida seja um suplício, não acredito no caráter absoluto dos valores transvitais...”). Também a categoria da /alteridade/ recebe um valor disfórico, pois que o autor considera o mundo sem sentido algum, a História maldita e repleta de miséria.
Considerando, agora, a sintaxe do nível profundo, reconhecemos, para o texto 1, a seguinte operação: afirmação da alteridade, negação da alteridade,  afirmação da individuação.  A individuação é negada em vários momentos no texto. Por exemplo, quando o autor afirma “carrego implicitamente a sensação de minha total nulidade e insignificância”, ele nega a individuação. A negação da individuação implica a afirmação da alteridade: há o mundo, o universo, embora o “eu” não seja “absolutamente nada no universo”.  O texto termina com a afirmação dramática da individuação, quando o autor diz que “as lágrimas se transformaram em pensamentos”. Se nos lembrarmos de que, no início do texto, o autor questiona a significância de atormentar-se, de sofrer e de pensar, devemos concluir que o autor, mesmo reconhecendo a insignificância de tudo, escolheu transformar sua dor em pensamentos.  Transformando suas lágrimas em pensamentos, o autor escapa à tentação do suicídio, a única saída possível para o desespero total em face da insignificância de tudo.
No texto 2, podemos reconhecer a seguinte operação: 1) afirmação da individuação, negação da individuação, afirmação da alteridade. A afirmação da individuação se verifica, por exemplo, na passagem em que o autor escreve: “não há escapatória para o sofrimento enquanto vivamos; mas a morte não é uma solução, porque resolvendo tudo, não resolve nada” (linhas 24-26). No fim do texto, quando se dá a transformação de um estado caracterizado pela superação da tristeza, lemos sobre o sentir-se vazio até a imaterialidade. A fuga numa “vacuidade que me eleve” é a própria negação da individuação. A afirmação da alteridade se dá nessa transformação: não ser mais quem eu sou; ser outra coisa, assumir outra natureza, transfigurar-se. Fuga de si mesmo – eis a afirmação da alteridade. Pois o fato de ser um eu é fonte de pesar e tristeza, a insignificância do ser “eu” torna a vida um grande tormento. Ser um “eu” consciente, a cada instante, de que, irá morrer é que faz a vida absurda e intolerável.


2) NÍVEL NARRATIVO

No nível narrativo, cumpre ver que, no texto 1, há uma relação de conjunção entre ser e eu. Essa relação de conjunção entre “ser” e “eu” pode ser depreendida na fase da performance, na qual se dá a transformação. Ao transformar suas lágrimas em pensamentos, o sujeito assume-se como “eu” que, para manter-se vivo, escolheu pensar, externar sua dor em pensamentos. Enquanto pensa, enquanto verte suas lágrimas na forma de pensamentos, permanece vivo.
No texto 2, o que verificamos é uma relação de disjunção entre “ser” e “eu”, que também pode ser depreendida na fase da performance. Nessa fase, o “eu”  é invadido de uma vacuidade que o eleva, que o torna leve. Essa vacuidade é a experiência de supressão do próprio “eu” e do próprio corpo, que guarda alguma semelhança com a experiência budista do parinirvana, a forma última e definitiva do nirvana que só se alcança com a morte. Na experiência de vacuidade, o sujeito é aliviado do peso do ser um “eu”.


3) NÍVEL DISCURSIVO

No nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo se atualizam com termos que lhes dão concretude. No texto 1, a conjunção entre “ser” e “eu” se dá como “conversão de lágrimas em pensamentos”. Em outros termos, entre a tristeza paralisante, o desespero total e a manifestação de pensamentos na escrita, o sujeito escolheu esta última opção.
No texto 2, a disjunção entre “ser” e “eu” se dá na forma de uma experiência metafísica ou quase mística, a saber, ‘sentir-se vazio até a imaterialidade’.


 4) TEMAS E FIGURAS

Já observei que os dois textos cioranianos aqui contemplados são predominantemente temáticos. É larga a ocorrência de temas. No texto 1, por exemplo, temos, entre outros, os temas pesar, sacrifício, desespero, solidão, amargura, existência, iluminação, nulidade, Nada absoluto, irracionalidade da vida, fatalidade, total nulidade, insignificância. No texto 2, topam-se os seguintes temas: angústia, demoníaco da vida, desespero, veneno, tristeza, desgosto, futilidade do mundo, transitoriedade, carência de valor e consciência, ilusão, evanescência, etc. É possível, no entanto, identificar algumas figuras em ambos os textos. No texto 1, topam-se as seguintes: tragédia da História, quedas de impérios, desabamentos no fundo de uma mina, cemitério, na areia às margens do mar, enterrar, lágrimas derramar sangue. No texto 2, encontramos: gente, homens, coisas terrestres, História. As figuras, conforme vimos, respondem pela descrição do mundo e se representam por itens lexicais ou construções sintagmáticas marcados pelo traço sêmico [+ concreto].
Uma vez tenhamos identificado os temas e as figuras, podemos reconhecer os percursos temático e figurativo. Esses percursos resultam do encadeamento dos temas e/ou das figuras entre si. O tema geral do texto, que dá sentido às figuras, só se apreende quando reconhecemos os encadeamentos das figuras ou dos temas. Somente quando identificamos os percursos temático ou figurativo é que podemos determinar o tema sobre o qual versa o texto. Como os dois textos analisados são predominantemente temáticos, é na ligação entre os temas que devemos buscar determinar o tema geral dos dois textos.  Vou ilustrar o percurso temático do texto 1, a seguir:

1. sensação de minha total nulidade e insignificância < 2. não ser nada no universo < 3) planar sozinho no Nada absoluto <  3) vida como suplício <  4) irracionalidade da vida.

Todos esses temas permitem-nos inferir o tema geral, a saber, tudo é desprovido de significação ou importância. É importante notar que esse tema geral – “a insignificância de tudo” – é enfocado de modo diferente nos dois textos. Essa diferença de enfoque nos leva à noção de configurações discursivas. Só podemos depreender uma configuração discursiva a partir do cotejo entre dois ou mais textos. Cumpre dizer, a esta altura, que “a insignificância de tudo” é tratada relativamente ao fenômeno da individuação. Isso significa que essa insignificância de tudo é uma experiência feita pelo próprio “eu”. O próprio “eu” se apreende como insignificante na total insignificância de tudo.
Há um lexema que ocorre nos dois textos, sob formas diferentes, a partir do qual é possível estabelecer relações de sentido entre os percursos figurativos, temáticos e narrativos. Este lexema é representado pela forma “sofrer” (cf. sofrimento, sofrendo). No texto 1, a insignificância de tudo é pensada a partir da insignificância do sofrer. O próprio sofrimento é insignificante. No texto 2, a insignificância de tudo é enfocada a partir do sofrimento que existe no fato da individuação. Em outros termos, no texto 2, a insignificância de tudo é tematizada a partir da dor que há em ser um “eu”.


 5) MARCADORES DE ISOTOPIA


É possível reconhecer nos dois textos três conectores de isotopia: 1) dor/sofrimento; 2) futilidade do mundo; 3) individuação. Esses três marcadores acenam com as diversas possibilidades de interpretar o texto. Essas possibilidades de interpretação estão previstas no texto por força desses marcadores. Não se trata de dizer que os textos tratam de três temas, já que o tema geral dos dois textos é “a insignificância de tudo”. Mas os marcadores de isotopia acenam para o fato de que esse tema geral pode ser perspectivizado de três formas, pelo menos: 1) a partir da dor e sofrimento (dor de ser eu, insignificância do sofrimento); 2) futilidade do mundo (o mundo em si é desprovido de todo sentido, a vida é irracional); 3) individuação (as dores ligadas à estrutura da existência, a minha total nulidade e insignificância).
Assumindo-se que não existe uma leitura correta ou errada de um texto, sucede, em vez disso, que o leitor pode produzir uma leitura superficial ou parcial do texto. Um leitor que procurasse ler o texto 1 a partir da figura “tragédia da História” passaria ao largo da questão central que diz respeito à insignificância de tudo. Ele não compreenderia o estatuto discursivo da figura “tragédia da História”. O sintagma “tragédia da História” é parte de uma construção superlativa: “... sinta que minha tragédia seja para mim a maior tragédia da História” (linha 4). Esse sintagma ocupa a posição remática na oração, logo não encerra a informação mais relevante. O que é mais relevante é o fato de a minha tragédia ser a maior dentre as tragédias que desfilaram na História da humanidade. Seu estatuto discursivo secundário impede que pensemos a “tragédia da História” como o tema (assunto) do texto 1. Ora, se o autor diz sentir que a sua tragédia é a maior tragédia da História, então é a partir da individuação que se deve considerar a insignificância de tudo. Será a minha tragédia igualmente insignificante? Essa é uma questão que o leitor deve-se colocar durante a leitura. Se tudo é desprovido de significado, devo forçosamente concluir que a minha tragédia, os meus sofrimentos são também insignificantes? Essas questões acenam para a problemática do texto: a da experiência individual da insignificância de tudo.


Considerações finais

Não tive a intenção de exemplificar, em pormenores, a relevância do modelo teórico-metodológico do percurso gerativo de sentido, fato que pode ser atestado na forma superficial como abordei o nível narrativo e no meu silêncio acerca do nível da manifestação quando da análise dos dois textos cioranianos. Ao menos, em parte, isso se deveu à crença de que esse modelo teórico-metodológico de leitura tem sua aplicabilidade reduzida a depender do gênero e/ou tipo textual. Em textos em que predominam tipos dissertativos as formas de manipulação previstas pelo nível narrativo são parecem facilmente atualizáveis. Por exemplo, é difícil ver como os quatro tipos de manipulação previstos no nível narrativo podem ser identificados nos dois textos de Cioran. Assim, a tentação, a intimidação, a sedução, a provocação são tipos de manipulação que se deixam apreender claramente em textos narrativos, como contos, romances e até mesmo poemas. Não estou assumindo que esses quatro tipos de manipulação não possam ser nunca encontrados em textos dissertativos; estou, na verdade, dizendo que não foram encontrados nos textos de Cioran por mim analisados e que esses tipos de manipulação devem ser pouco frequentes em textos dissertativo-argumentativos.
Finalmente, o modelo teórico-metodológico explicitado não constitui o único método de leitura, tampouco é o mais eficaz para fins de compreensão de um texto. Ele não pode excluir outras formas de ler o texto. O modelo semiótico de leitura enfoca aspectos internos ao texto. Ainda que tenha a pretensão de levar o leitor a acessar cognitivamente a estrutura profunda do texto, esse modelo de leitura ignora aspectos do processo da leitura que não se circunscrevem à materialidade do texto. Por exemplo, o modelo semiótico ignora a exterioridade constitutiva (memória discursiva) que é valorizada na Análise do Discurso. Também silencia sobre o conjunto de saberes de que dispõe o leitor e que são relevantes na construção do sentido do texto. Malgrado essas lacunas, o modelo semiótico de leitura ensina-nos que o sentido é resultado de uma construção semântica em níveis. Ao produzir um texto, o autor/locutor gera um determinado sentido numa sucessão de camadas de concretização. Da mesma forma, a interpretação por parte do leitor se dá no trabalho de reconstrução do percurso gerativo de sentido, isto é, reconstruindo as camadas de concretização do sentido pretendido pelo autor.
Na medida em que é tributário do gerativismo chomskyano, o modelo gerativo do sentido assenta na oposição entre dois níveis: o da estrutura profunda e o da estrutura superficial. Esses dois níveis são deslocados do âmbito da sentença para o domínio do discurso. Assim, o nível profundo é o mais abstrato e o menos imediatamente acessível. O nível narrativo tem um grau de abstração menor, embora ainda inclua formas abstratas. O nível narrativo é uma etapa intermediária de concretização das formas abstratas do nível profundo. O nível discursivo constitui o nível máximo da concretização das formas abstratas do nível narrativo.  Dessa forma, o plano de conteúdo se realiza segundo três níveis: do mais abstrato, o nível profundo, passando pelo nível intermediário de concretização, o nível narrativo, ao mais concreto, o nível discursivo.
A proposta de leitura dos textos cioranianos não chegou a discutir a profundidade das teses e proposições filosóficas assumidas pelo autor. A discussão sobre a visão filosófica de mundo do autor, sobre a problematicidade do drama existencial contemplado nos textos teve de ser preterida em função do objetivo geral a que esta exposição visava: oferecer um método de leitura. Fica aqui meu compromisso com a discussão sobre a trama filosófica dois textos de Cioran por mim aqui considerados em outra ocasião.





[1] CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011, p. 49-50.
[2] CIORAN, Emil. O livro das ilusões. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 19-21.
[3] O conceito de campo relacional de sentido, cunhado por mim, é mais abrangente que o conceito de campo semântico ou lexical. O campo semântico supõe relações entre itens lexicais que tenham algum traço sêmico em comum. Na determinação de um campo semântico, dois critérios são comumente utilizados: 1) análise componencial do significado; 2) análise por protótipos. De acordo com o primeiro critério, assume-se que um campo semântico se constitui sempre que o significado de seus componentes, quando submetido à divisão pela análise, exibe traços em comum. Por exemplo, o campo semântico [FIGURA GEOMÉTRICA] se compõe de itens lexicais como quadrado, retângulo, triângulo, pentágono, etc, já que todos esses itens compartilham, pelo menos, o traço sêmico [+ figura geométrica]. De acordo com o segundo critério, o campo semântico se constitui a partir da identificação de indivíduos que representam mais adequadamente uma categoria. Nesse caso, nossa experiência com esses indivíduos será relevante na determinação do campo semântico. Por exemplo, o campo semântico [AVE] inclui itens como pardal, andorinha, beija-flor, bem-te-vi, arara, etc., já que estes são os membros mais prototípicos da categoria [AVE]. São menos prototípicos, por exemplo, avestruz e pavão, que podem ficar excluídos do campo semântico, segundo o traço mais relevante que utilizarmos para a caracterização da categoria [AVE]. Assim, se o traço sêmico for [+ voar], naturalmente, deixaremos de fora a avestruz e o pavão. A análise da categorização pela prototipicidade patenteia que os limites entre as categorias são fluidos, jamais rigorosos. Assim, incluímos o pavão e a avestruz na categoria [AVE] já que, embora não voem, compartilham com as aves prototípicas outras características; e excluímos dessa mesma categoria, por força de nossa formação científica, o morcego, muito embora este animal voe. Mas a exclusão do morcego da categoria [AVE] contraria nossa intuição natural a respeito de qual deve ser o traço necessário para que um animal seja considerado uma ave.
[4] É claro que é possível  uma pessoa se sacrificar por outra, morrendo para salvar a vida dessa outra pessoa. Mas o sentido que se deve atribuir à impossibilidade de que outra pessoa morra em meu lugar deve ser o da impossibilidade de cada um escapar de sua própria morte em algum momento. A morte já é sempre a minha possibilidade mais própria (Heidegger).



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
_______________. O livro das Ilusões. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.

KOCH, Ingedore V. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.

ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso. In: ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES (orgs.). Discurso e Textualidade: Campinas, SP: Pontes, 2010, p. 13-31.

_______________. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 2012.