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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

"Para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso" (Camus).

 




Pensamentos dispersos e outras impertinências

 

Os gregos denominavam Kairós a boa ocasião, o momento oportuno, a circunstância favorável; kairós é o tempo fugaz que deve ser aproveitado no momento certo, porque, senão, a ação pode não lograr êxito ou pode fracassar. Será este o momento oportuno, pois, para escrever? Hesito... O que é certo é que adiei, protelei, posterguei, procrastinei o início da escritura deste texto. Por alguns dias, me deixei arrastar por minhas obsessões, ou por uma delas, a saber, meu apego irrestrito à verbosidade, à pretensão ilusória de dizer “tudo” rompendo com a incompletude da linguagem (o que sei ser impossível!); essa obsessão pelo “cheio”, pelo “excesso”, que pretensiosamente saturaria as possibilidades de dizer (o que é uma ilusão!), me leva a consumir horas e dias a garimpar os livros, a encher folhas de papéis com excertos alheios, com comentários pessoais, a anotar tudo que me parece relevante, a transcrever trechos de livros diversos. Só este trabalho obsessivo-compulsivo é suficiente para tornar o resultado, para o qual aquele trabalho é um simples meio, uma empreitada hercúlea e desestimulante. Minha obsessão com a precisão da forma, com a fecundidade e a profundidade do conteúdo e com o refinamento do estilo é infensa aos sentimentos iniciais que me incitavam a escrever. O presente texto deve ser um sintoma de leveza na expressão e de intensidades anímicas, de tremores e terrores fisiológicos, de inquietações de meu espírito filosófico, de cumplicidade intelectual-afetiva com autores e seus pensamentos. A leveza na expressão significa renúncia ao academicismo estilístico. Basta! São desnecessárias mais justificativas! Apenas acrescento que este texto não versa sobre um assunto definido, não tem sequer uma ideia geral em que se pudessem apoiar seus arranjos sintáticos. Escreverei como um navegante à deriva no mar, que não sabe aonde chegará e ignora os reveses que o espreitam ao longo de um curso onduloso, tortuoso, tormentoso. O perigo do naufrágio é inevitável, inelutável. Não há rotas, não há qualquer sinalização de um começo. Escrevo para apascentar meu desespero congênito, que tem, ultimamente, se tornado mais agressivo, mais fustigante, mais espinhoso, mais insurreto. Aqui é necessário um esclarecimento: não me refiro ao desespero apenas no sentido de “desorientação perturbadora, grande aflição em face da perda de uma rede de referências, afetiva e axiológica, que dava sustentação à existência”; refiro-me, sobretudo, ao desespero como disposição afetiva que nos reconcilia com a crueldade do real. O desespero a que me refiro é renúncia a qualquer fé num sentido metafísico da existência, é também dispor-se para o viver reconciliado com o real, com o caráter trágico, ou absurdo da existência (como prefeririam os filósofos pessimistas, dos quais me sinto mais próximo intelectual e afetivamente). Como escreveu o poeta estadunidense David Thoreau, “a maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”. Esta é a minha primeira citação; e preciso dizer que não será a única; na verdade, por não ser um produto de um plano global de escrita, este texto se constituirá, predominantemente, como um tecido dialógico explícito e repleto de uma série de costuras polifônicas; citando autores e seus pensamentos, pretendo confrontá-los, alinhá-los, para compor minha fala como uma fala constitucionalmente polifônica. Meu discurso não tem em mim a sua origem – anotem isso!

É justamente esse “tranquilo desespero”, do qual está impregnada a existência da maioria dos seres humanos, que só conquisto, talvez, em alguns breves momentos em que me deixo estar fora do alcance do vigilante pensamento para entreter-me com a futilidade do mundo. Mas, na maior parte do tempo inutilizável de minha vida inempregável e ociosa – Baudelaire, aliás, escreveu, em seus Diários Íntimos, “ser um homem útil sempre me pareceu algo muito horrendo” - , tal “tranquilo desespero” me é tão estranho e desconhecido quanto estranhos são os rostos que se apinham e se confundem na multidão de indivíduos que, ignorando-se mutuamente, atravessam, cotidianamente, as  grandes avenidas de nossas metrópoles. O meu desespero é de outra natureza; é congênito, é efeito de um estado de crise permanente e parturejante (em grego, aliás, krisis se diz do momento decisivo, de súbita mudança); é, em suma, efeito de uma implacável indisposição para a existência comum e sua banalidade assombrosa. O romancista russo Vladimir Nabokov expressou aquilo de que o “tranquilo desespero” da maioria a protege: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades”. Como eu entendo esse “tranquilo desespero”? Como uma espécie de mecanismo de defesa narcotizante que foi implantado em nós pela seleção natural como parte de nossa herança filogênica. A natureza trabalha no sentido de garantir a sobrevivência da espécie. Como ensina Schopenhauer, ela é indiferente à sorte dos indivíduos; mas precisa garantir que eles funcionem bem, para que dediquem sua vida à preservação da espécie. Não haveria vantagem evolutiva alguma se fosse grande o número de indivíduos que, existencialmente atormentados, aturdidos com a insignificância radical da existência, vindo a se encontrar, frequentemente, em condições de extrema tensão de seu mundo afetivo, pulsional, pusessem fim aos seus dias suicidando-se. Como observa bem Nietzsche, “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é essencialmente a linhagem e rebanho que somos”. Schopenhauer vem aqui fazer coro a Nietzsche: a maioria dos animais humanos se esforça diariamente em vista senão da “manutenção da existência mesma, manutenção obtida diariamente às custas de fardo incessante e cuidado constante, numa luta contra a necessidade e tendo a morte em perspectiva”. Ou ainda: “a vida individual transcorre numa luta incessante pela existência mesma; porém, a cada passo é esta ameaçada pela queda no abismo”.

 E por falar em suicídio, Nietzsche nos diz, em A Gaia Ciência, que “(...) o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio”. E é também Nietzsche que sentencia: “Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer”. “As religiõesainda é Nietzsche quem ensinasão ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida”. Em geral e comumente, as pessoas se apiedam de um suicida; julgam-no um fracassado, um covarde, ou até mesmo um egoísta. Não o tenho nessa conta; se o suicida é egoísta por querer pôr fim a um sofrimento que se  lhe tornou intolerável e por não se preocupar com a dor que sentirão aqueles que o amam, após sua morte, são igualmente egoístas aqueles que, não querendo sofrer a dor da morte voluntária do amado, insistem em desejá-lo vivo de qualquer jeito. Na verdade, o suicídio é um ato que desperta em mim profunda admiração e respeito. O suicida rompeu, mediante um ato que Schopenhauer deveras não recomenda (mas isso não vem ao caso), a tirania da vontade de vida; isso sobre o qual Cioran, fazendo eco tacitamente ao próprio Schopenhauer, soube bem se interrogar: o apego irracional à vida que nos leva a prolongá-la a despeito da pressão das razões que nos convenceriam a pôr fim a ela. O suicídio é-me tentador; chego a flertar com ele em imaginação; mas sinto-me dilacerado por um congênito esgotamento que me demove de realizá-lo. Preferi, por fraqueza, escrever um livro em coautoria (ainda não publicado), para aproximar-me do ato sob um modo sublimado. Tornando-o tema filosófico, convertendo-o em objeto de reflexão filosófica, libertei-me de sua sedução, resisti às suas falsas promessas. Sem condenar o suicídio, estou convencido de que ele é bastante razoável como meio de nos libertar de um sofrimento intolerável, como um meio de nos aliviar de um sofrimento pesado e pungente que decorra de condições existenciais tão precárias, que tornam o viver irrespirável, insuportável. Por isso, a eutanásia é um ato de amor, de misericórdia, a despeito do que pensa a Igreja e seus prosélitos cagadores de regra. É verdade, no entanto, que “as religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida (Nietzche). Os que se dizem enamorados da vida me parecem ou descaradamente ingênuos, ou são indecentemente hipócritas, mas também podem sofrer de uma imbecilidade crônica e irreversível (Tamanho fastio sinto só de lembrar que, neste país, a cada dia, se multiplicam aos borbotões, por outras razões, esses tipos humanos doentes, idólatras da imbecilidade oficial!). Mas o suicídio não pode ser e não é a salvação. É que não há Salvação. Não a creio possível! Como diz Bataille, “nada de salvação: ela é o mais odioso dos subterfúgios”. O que nos resta então? – perguntar-me-iam aqueles que resistem a dobrar-se diante dos sonoros apelos da experiência. Respondo: resta-nos ou viver como a maioria num tranquilo desespero, ou viver como combatentes de um desespero que se quer lúcido e controlado. Viver um desespero controlado é reconhecer que “a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem resposta(Bataille). De fato, tem razão Bataille: “não somos tudo. Aliás, só temos duas certezas neste mundo: esta e a de morrer”.

Não me apetece muito o curso que tomaram estes desalinhos verbais. Acabei por me desviar assaz do que tinha em vista antes de pôr-me a escrever. Este texto carece de uma densidade lírica; não pretendo com ele elaborar um arrazoado filosófico. Estou de acordo, pelo menos em parte, com Nietzsche, quando diz "não quero converter ninguém à filosofia: é necessário, é talvez também desejável, que o filósofo seja uma planta rara. Nada me é mais repugnante do que a propaganda doutrinal da filosofia, como em Sêneca ou mesmo em Cícero. Filosofia tem pouco a ver com virtude.". Digo, em parte, porque não me repugna a filosofia helenística e seu ideal de sabedoria libertadora. Como sentir aversão às lições preciosas que podemos colher da pena de Sêneca, quando escreve ao amigo Lucílio: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte”? Novamente o tema da morte aparece como se me solicitasse que dele me ocupe. Da morte falarei depois. Estou em consonância com Nietzsche no tocante à crença de que ninguém pode ser convertido à filosofia; ensinar filosofia é tão sem sentido quanto ensinar língua materna. Mas Sêneca, como Epicuro, a quem aquele reconhece como um mestre, se fez tanto apelo à superioridade da vida filosófica, é porque sabia que a maioria dos homens, vivendo apartados da filosofia, vive na condição de escravos, sem o saber. Por isso, Sêneca evocava a injunção de Epicuro: “Consagra-te à filosofia se desejas ser verdadeiramente livres”.

A esta altura, sinto-me como um escritor que fracassou. Não consegui cumprir com o que prometi, se bem que nada prometi. Melhor será dizer que descumpri o intento que tinha de escrever pouco, de tornar o texto mais fluido, de expurgar sentimentos corrosivos, de me liberar dos efeitos nocivos de meus desertos. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, “na vida, o importante é fracassar”. Ou como escreveu Cioran, “apenas uma coisa importa: aprender a ser um perdedor”. Sinto-me, portanto, coagido pela necessidade de ir até as últimas consequências de meu fracasso. Só levarei a termo este texto quando tudo que se assemelha a entulho represado puder ser escoado. Se o texto terminasse aqui, estaria amputado. Prossigo, então... E espero que, antes do término, eu consiga dar a este texto uma nervura mais sentimental, sem sentimentalismo piegas.

Não é nem de liberdade nem da morte que pretendo tratar. Limito-me a evocar, por meio do testemunho de autores, a pertinência desses temas. Camus, por exemplo, escreveu, em seus Cadernos: “a única liberdade possível é uma liberdade em face da morte. O homem verdadeiramente livre é aquele que, aceitando a morte como é, aceita ao mesmo tempo as consequências – isto é, a inversão de todos os valores tradicionais da vida. O “Tudo é permitido” de Ivan Karamozov é a única expressão de uma liberdade coerente. Mas é preciso ir até o fim da fórmula”. Mas uma liberdade total e irrestrita, se fosse possível ao homem, significaria sua autodestruição ou sua loucura derradeira e insuperável. A cultura, que é o lugar onde os hominídeos se fizeram “homens”, nasce de um interdito: a proibição do incesto. Daí em diante, a cultura tratou de colocar o homem sob a mira de um arsenal de interdições, de proibições e de valores falsificadores, a fim de educá-lo, moldá-lo, domesticá-lo, com o pretexto de “civilizá-lo” e protegê-lo, alimentando seu narcisismo ontológico, de algumas verdades aterradoras. E assim se fabricaram as ficções mais danosas, as mentiras que, em vez de libertar o animal humano, o tornou escravo, doentio, iludido; o homem tornou-se um animal fabulador e mentiroso; e em nome de suas mentiras, das mentiras que lhes foram inculcadas, o homem tornou-se o animal “mais periclitante” e cruel. Tem razão Schopenhauer: “Pois o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem dera a experiência não tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel”. E pior: surpreendentemente, o homem se tornou um animal otimista! Não raro seu otimismo beira à completa falta de bom senso, a ponto de ignorar como sonâmbulos que ignoram, quando despertos, que vagueavam repetindo ações rotineiras, o que nos ensina Schopenhauer: “as pessoas comparativamente felizes o são na maioria das vezes apenas aparentemente, ou são, como ocorre no caso das pessoas de vida longa, raras exceções, cuja possibilidade teria de existir – ao modo da isca. A vida apresenta-se como um engodo constante, tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas” Opondo-se veementemente ao otimismo, Schopenhauer notou que ele é “não apenas falso, mas também uma doutrina perniciosa. Pois ele nos apresenta a vida como um estado desejável e a felicidade do ser humano como a meta do mundo”. Mas como poderia ser desejável algo que, como notara Heráclito, aporta o nome de vida, mas sua obra é a morte?” É assim que se comporta a maioria dos seres humanos, diariamente: “a grande maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e acreditar então no valor da existência, mas precisamente porque cada um quer e afirma somente a si mesmo (...). Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de ele se tomar por mais importante no mundo”. (Nietzsche).

Sinto-me, devo confessar, bastante indisposto para entabular qualquer conversa com quem se habitou a viver num autoengano relativamente à morte. Enfada-me o simples fato de ter de lhe chamar a atenção para o caráter banal e absurdo da morte (e da vida!). Para compor este texto, busquei fazer encontros fugidios com livros que li, pela primeira vez, no tempo em que ainda era graduando em Letras. Já se vão quase 20 anos... Dois, em especial, me comoveram por dar voz lírica à precariedade da condição humana e ao absurdo da existência. Trata-se dos livros A Hora da Estrela e A paixão segundo GH., ambos de Clarice Lispector. A Hora da Estrela é um livro sobre o desamparo característico da condição humana. Nele, descobrimos que contamos apenas com o consolo da linguagem para dar a ela algum sentido, frágil, para nutrir esse desamparo de uma dignidade sombria e indefinível. A narradora nos fala da banalidade da morte, depois que a protagonista Macabéa morre: “a morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Noutro lugar, a narradora, como se saísse de um sono letárgico comum à vida diária, dá-se conta de que “só agora me lembrei que a gente morre”. Assim, vive o homem do cotidiano, o homem comum: vive sob o domínio do esquecimento de que pode morrer. Ele, definitivamente, é incapaz de uma experiência filosoficamente decisiva, que se formula nestes termos, para Clarice Lispector, em seu A paixão segundo GH: “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão”. Revisitar, mesmo que de modo apressado e disperso, as páginas desses dois livros de Clarice Lispector trouxe-me lembranças aveludadas de um tempo passado prenhe de promessas de um futuro fértil de grandes colheitas. Mas o passado não é lembrado, não! Jamais! A memória tem por objetivo produzir continuamente novas experiências de pensamentos, emoções, a fim de desenvolver a personalidade e a inteligência como um todo. Engana-se quem pensa que há lembrança de informações contidas na memória. O que há é reconstrução dessas informações, de modo que o trabalho da memória não é reproduzir originalmente as experiências do passado, mas realizar uma reconstrução delas. Em outras palavras, o que é lembrado já foi interpretado pela memória. A memória é o sinal em nós de que estamos continuamente morrendo; de que o tempo vivido é um instante que sucumbe para dar lugar a um outro que, por sua vez, “morre”, para dar lugar a outro, e assim sucessivamente. O que chamamos de “presente” “morre” e se registra (se enterra) na memória – nosso primeiro cemitério, já destinado a nós em vida (daí também ter razão Fernando Pessoa: “somos defuntos adiados”). Aqui também vale a verdade: “tudo que vive tem de perecer”. Morrendo as vivências do presente, abre-se (e não “abrem-se”, como insistem impertinentemente os gramatiqueiros!) espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. Enfim, a memória é sempre repetição da diferença, e nunca reprodução do mesmo! Penso, porém, a despeito do que pensa o senso comum, que é Bergson quem tem razão: tempo como memória, tempo e memória como duração; e o passado se prolonga no presente, jamais “morre”...

Filosoficamente falando, o que me incomoda nas pessoas em geral, nas que vivem uma vida anestesiada pelo jugo da esperança, é a presunção de saber o que é o mundo, o que é a existência e qual “o sentido” de nos encontramos aqui neste mundo. Elas simplesmente não reconhecem que “este mundo é dado ao homem como um enigma a resolver”, como nota Bataille. É extremamente difícil esclarecer as pessoas sobre o papel emancipatório, sobre o caráter desmitificador e libertador do pessimismo filosófico, já que elas se acostumaram, por força de suas experiências culturais que lhes inculcam crenças e representações coletivas que lhes dizem como o mundo “é” ou deve ser, a acreditar que o pessimismo se reduz a um estado de espírito assentado no sentimento e na crença de que tudo caminha para o pior; mas ao encará-lo de modo tão rasteiro, limitado e superficial, ignoram a profundidade de sua Lucidez. Também Einstein se admirava do caráter enigmático da vida: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência”. É bem verdade que Schopenhauer teve a pretensão de decifrar o enigma do mundo, que não é uma obra de um Deus criador, mas a objetividade de uma Vontade cega e eterna: “Desperta da noite da sem-consciência para a vida, a vontade encontra-se como indivíduo num mundo sem fim e sem fronteiras, entre inumeráveis indivíduos, todos se esforçando, sofrendo, vagueando; e, como possuída por um sonho agitador, precipita-se de novo na velha sem-consciência”. Como é possível que se ignore com tamanha impassibilidade e sonolência que “a vida da maioria das pessoas é breve e calamitosa”? Ou ainda que “tudo na vida nos ensina que a felicidade terrena está destinada a desvanecer-se ou ser reconhecida como uma ilusão”? Confesso ser a morte uma dos objetos de minhas obsessões. Quem diz não temer a morte me parece um farsante, um mentiroso, só desculpável se alegar que sofre de uma estupidez crônica. Estupidez que o impede de apreender fisiologicamente, de expor-se afetivamente como um ser orgânico cosmologicamente insignificante à dramaticidade e à tragicidade de sua condição mortal e à finitude de sua condição humana. Como diz Schopenhauer, “a morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida”. Quem vive tendo sempre em seu horizonte de vivências a finitude de sua condição humana encontra na perspectiva da morte, que é um evento constitutivo da dinâmica da vida, ocasião para instruir-se. Como diz Schopenhauer, a morte nos instrui na medida em que nos esclarece sobre aquilo que a vida mesma já buscava elucidar, a saber, que ela “foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo”. Cioran comunga desse sentimento com Schopenhauer: “quanto mais vivemos, menos útil nos parece termos vivido”. Mas, por favor, não se apressem em tirar conclusões que desabonam essa perspectiva sobre as coisas. O pessimismo filosófico não é algo que se deve rejeitar sem alguma detida e paciente ponderação sobre suas lições. É preciso ruminá-las, à noite sobretudo quando os homens adormecem e a escuridão se estende sobre o mundo, silenciando-lhe o burburinho costumeiro, o falatório vazio. É na escuridão da madrugada que melhor contemplamos abismos, que as profundezas abissais da absurdidade do mundo se revelam (ah! Eu bem o sei!). Dizia Cioran que “ninguém alguma vez se persuadiu tanto como eu da futilidade de tudo, tal como ninguém terá tomado como trágicas tantas coisas fúteis”. Preciso, todavia, abandonar este ponto de minhas reflexões. Antes, contudo, vale frisar que as mentes mais lúcidas e sábias da humanidade reconheciam que a vida não vale muito, como reconhecia Sêneca, ao assinalar que “viver não é uma grande coisa (...) pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido – a vida se resume a isso”. Schopenhauer diz, por sua vez, com razão a meu ver, que “a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento”. E acrescenta com a vocação poética que o torna proficiente no trabalho com as imagens que tingem de vivacidade o mundo literário: “ a nossa vida assemelha-se antes de tudo a um pagamento que alguém recebeu centavo por centavo de cobre, pelos quais deve, no entanto, dar uma quitação: os centavos de cobre são os dias; a quitação é a morte”. Embora Schopenhauer afirme que o sofrimento é a destinação da existência humana, ele também acredita que a própria vida é um processo de purificação e que a solução purificante é a dor. Sim, para Schopenhauer que, embora ateu, não deixou de incorporar em seu pensamento elementos da tradição mística cristã (e oriental!), “o sofrimento é de fato o meio de purificação, único através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o caminho errado da Vontade de vida”.

Já que tenho procurado dar a conhecer meus agenciamentos, os autores e pensadores graças aos quais devo minha formação humana e intelectual, pois, como diz Libânio, “somos o que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que ensinamos” – no que estou de acordo -, é, para mim, extremamente difícil não anuir ao que diz Schopenhauer neste excerto que tomo como uma máxima existencial: “num mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema de vida de cada indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais tanto melhor. A convicção de que o mundo é um deserto, em que não se pode contar com companhia, deve se tornar uma sensação habitual”. Nietzsche, por seu turno, pondera que “(...) no conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum e, por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim desespero. Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens, seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício. Mas sentir-se desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo), tal como vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta, e os poetas sempre sabem se consolar”. Mas, como a maioria de nós não é poeta, talvez possamos encontrar algum consolo na sabedoria estoica de Sêneca, que nos ensina: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas”. Anotem: uma vida longa e plena não é mensurável cronologicamente, mas qualitativamente. Viver longa e plenamente é viver uma vida cujo fim é a sabedoria – é o que nos ensinou Sêneca. Reitero aqui o que já escrevi em outro lugar, porque é necessário enfatizá-lo: a brevidade é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu  realizo, eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.

Longe de acreditar que trazer sempre estampados no espírito o entendimento e o sentimento de nossa condição existencial cosmologicamente insignificante e desprovida de propósito seja um caminho descerrado para o desespero total e excruciante e para o perigo implacável do suicídio, cuido que, amparada e conduzida pela educação filosófica, tal atitude pode arrefecer, temperar nosso egoísmo habitual, nos libertar da tirania de nosso narcisismo e, mormente, nos descerrar o horizonte elucidativo à luz do qual nos podemos tornar criadores de hierarquias de valores que potencializem a vida, que nos orientem na determinação do que torna abundante e fecunda a vida, bem como nos instruam sobre como devemos evitar o desperdício do tempo de vida que temos, cujo instante do fim, sempre iminente, desconhecemos . Por isso, é preciso atender séria e demoradamente nas palavras de Hannah Arendnt: em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além – e a vida após a morte, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral -, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. (...) A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida”.

Mesmo não estando completamente satisfeito – e como poderia estar, se o estado de insatisfação permanente é constitutivo de nossa condição humana? -, preciso operar uma digressão definitiva para dizer algumas palavras sobre as atividades de escrever, ler e pensar.

 

 

Escrever constitui uma questão importante para mim em dois sentidos: 1) no sentido de que, como lembra Sponville, “escreve-se sozinho, mas é para ser lido”; e 2) no sentido de que não creio que se possa ensinar a escrever com receitas “prontas”. Aprende-se a escrever escrevendo, o que não significa dizer que sejam vãos os esforços da escola e dos professores nas práticas de letramento. Suspeite sempre quando alguém promete que você conseguirá aprender a escrever bem seguindo certo conjunto de procedimentos que o orientarão na composição de um gênero textual ou de um tipo textual, na maioria das vezes um artigo de opinião ou outro gênero textual em que predominam tipos textuais argumentativos. Mas uma atividade de escrita só se aprende e se aperfeiçoa pela conjugação de duas atividades: ler e escrever. Ler, escrever e rescrever... A leitura é importante não só porque nos permite conhecer mais sobre o mundo e adquirir, como se diz comumente, mais vocabulário, mas também e sobretudo, porque, expondo-nos aos diversos gêneros textuais, permite-nos conhecer os diversos modos como eles se estruturam. Gabriel Perissé diz que “escrever muito e sempre é o único modo de aprender a escrever, de despertar o escritor que cada um é, dentro e a partir de suas circunstâncias e limitações”. Embora não seja tão otimista quanto o autor, pois não acho que exista um escritor em cada um de nós, acolho a sugestão dele de que é escrevendo muito que se aprende a escrever. Ainda segundo Perissé, “escrever é também uma fuga, mas uma fuga para a realidade! Amar as palavras é sinal de vitalidade”.

 Mas o primeiro sentido da questão é para mim o mais grave, o que se põe como motivo de minha constante indisposição e desânimo com a prática da escrita. A questão permanece a mesma ainda hoje, para mim: por que escrever, se não há uma comunidade de leitores que realmente lerá o que escrevo? Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego, confessa que: “para mim, escrever é desprezar-me mas não posso deixar de escrever. Escrever é como uma droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo”. E ainda: “Escrever sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda”. E neste trecho seguinte encontro profunda ressonância de sentimentos: “pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me”. Eu só diria um pouco diferente: pasmo sempre quando acabo de escrever. Pasmo e desolo-me.

Concordo com Perissé, quando afirma que “escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam”. Mas dele me afasto quando mantém que escrever é conhecer-se. Não acho que somos totalmente transparentes a nós mesmos (a julgar pelo que nos dizem os psicanalistas). Talvez, melhor seria dizer que, escrevendo, vamos perturbando o desconhecido, o suposto saber (que é um não saber) sobre o qual vamos formando um sentimento de “eu” ao longo da vida. Estou, no entanto, de acordo com ele em outras afirmações interessantes que faz sobre a atividade da escrita. No entanto, não posso ignorar que escrever não é fácil, como diz Drummond: “escrever hoje para mim é mais difícil do que quando eu tinha 20 anos”. Como Perissé, também penso que escrever é libertar-se. E isso, só, bastaria para justificar a prática da escrita. Também o essencial foi dito por Perissé, quando considera a relação entre ler, pensar e escrever: “O ler conduzirá ao pensar e o pensar conduzirá ao escrever. Ler e pensar. Escrevendo, pensar. Pensar e ler. Pensando, escrever.”. Georges Picard, por sua vez, se pergunta “é preciso ter algo a dizer para escrever?” e responde: “Eu mesmo inverti o sentido da fórmula, começando por notar que é preciso, antes de mais, escrever para ter algo a dizer”.

Não é tanto a atividade da escrita como técnica ou arte que me interessa; mas a escrita como vivência – a vivência da escrita. Nesse sentido, escrever é expor-se, mas também propor-se a ser legível e interrogado. Mario Quintana, em entrevista, disse, certa feita, que “eu nunca escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando o camarada faz uma coisa cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um sentimento absolutamente sincero. Senão sentir nada, não deve escrever. Eu tenho tido períodos de deserto. Não vem nada e eu não escrevo”.

Perissé afirma que “ a leitura cura tudo se for leitura pensante. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de tudo. Exercita-nos a memória recente, a conexão entre fatos e experiências passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de interpretar, a intuição.” Schopenhauer diverge, contudo. Para ele, “a leitura não passa de um substituto do pensamento próprio”.  Para ele, “uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante frequência mesmo entre as melhores cabeças”. Deveria dizer que, por princípio teórico, estou, nessa matéria, em desacordo com Schopenhauer? A leitura não é um substituto do pensamento próprio, porque não há, a rigor, um pensamento próprio. O pensamento reflexivo, que se constitui discursivamente, é sempre dialógico. O meu pensamento é sempre pensamento de um outro, um pensamento de que me aproprio reformulando-o, ressignificando-o na diferença, fazendo falar seus silenciamentos, dando espessura verbal aos seus implícitos.

Schopenhauer considera que existem três tipos de autores: os que escrevem sem pensar; os que pensam enquanto escrevem; e os que pensaram antes de pôr-se a escrever. Os mais numerosos, segundo o autor, são os primeiros: os que escrevem sem ter pensado antes, sem ter ponderado sobre o que escreveriam. Os mais raros são os últimos: os que pensam antes de escrever. Camus, por sua vez, considera que “para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso”.

Mas, afinal, o que é pensar? Não se espante: nem todos são capazes de pensar verdadeiramente! Quando alguém, não habituado ao convívio com a filosofia, me pergunta para que serve o pensamento, eu fico tentado a lhe dizer que a pergunta em si não faz sentido, porque acompanho os gregos, para quem o pensamento tem seu fim em si mesmo. É o que nos ensinava Aristóteles. E como ensina Arendt, “todo pensar é um re-pensar”. Arendt acrescenta que “o pensamento está fora de ordem, interrompendo todas as atividades ordinárias, e sendo por elas interrompido”. E o pensamento está fora de ordem justamente porque “não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim.Mas como ousar dizer que nem todos pensam? É que o pensamento, no significado estritamente filosófico, como “contemplação do invisível, do que está para além das aparências”, “como atividade do intelecto em contraste com os sentidos”, como “visão direta do inteligível” (intuição), é de natureza diferente do pensamento que nos orienta na vida diária. Perissé tem razão quando diz que “pensar é virar a realidade do avesso, é “desrealizá-la”, recriá-la”. Pensamos para nos desabituar de nossas maneiras habituais, rasas, estereotipadas de “ver” o mundo, de significar as ocorrências do mundo. E Arendt, inspirando-se na tradição grega, observará que o pensar começa quando “dessensorializamos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos”. O pensamento tem como condição sine qua non o fato de ter um caráter niilizante, porque corrói aquilo que tomamos como evidências, nadifica as certezas, nadifica aquilo que consideramos como verdades sobre o mundo, subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justificam toda sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Como diz Libânio acertadamente, “a reflexão abala as evidências fáceis e não discutidas”.  O pensamento não se confunde com opinião de comentaristas de futebol,  tampouco com o falatório do impessoal, com os juízos de valor correntes, com a mera produção de atos de fala locucionários (proposicionais). Por isso, nem todas as ocasiões e modos de enunciação são propícias ao pensamento. As redes sociais, por exemplo, tendem a ser espaços onde colidem diversas opiniões, preconceitos, clichês, mas jamais – ou quase nunca – favorecem o exercício do pensamento. Para Arendt, o pensamento é busca do significado: “o pensamento pensa o significado. O pensamento não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe, porque sua existência é tomada como certa, mas o que significa para ela ser”. Pensar, para Arendt, é entrar no significado do acontecimento. E Deleuze diz  que “o modo do acontecimento é problemático. Não se deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições”. “O acontecimento é, por si mesmo, problemático e problematizante”. Portanto, o pensamento pondera, pensa o significado da problematicidade do acontecimento. E acontecimentos, como pensavam os estoicos, não são corpos, mas são os incorporais, são efeitos, e não coisas ou estado-de-coisas.

E uma vez que o pensamento está fora de ordem, deve-se então concluir, com os gregos e com Arendt, “que pensar significa seguir uma sequência de raciocínios que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida”. Num mundo que é caos, como acreditava Nietzsche, ou absurdo, como pensavam Schopenhauer, Camus e Cioran, não podemos  recusar um fato que torna nossa condição humana desconcertante e assombrosa. Como diz Lya Luft, “o mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. Guardarmo-nos de acreditar que o mundo tem, em si mesmo, alguma ordem, alguma finalidade, algum sentido metafísico é já  começar a libertar-se daquele “tranquilo desespero” habitual que acostumou a maioria dos homens a não reconhecer que, como diz Cioran, “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou”. E digo eu: aquele que nada pensou realmente.

 

É chegado o tempo de represar o fluxo verbal, evitando, assim, o esgotamento das forças do espírito e do corpo. Já posso sentir insinuar-se o gosto acre da desolação, da frustração por não ter conseguido externar os meus outros tantos declives e outras tantas nuances de minhas inquietudes, aflições, angústias, que tingem de nervura e coloração rubra os subterrâneos de minha alma. Este texto deveria ter sido destinado para falar de reminiscências, para acordar o poeta adormecido em mim, o poeta que um dia cuidei ser. Era para ser destinado à reflexão sobre a condição dos excluídos – condição esta da qual faço parte há oito anos-, dos que foram forçosamente postos à margem pela tirania do Capital e pela inaptidão da política para controlar a voracidade e os abusos do mercado. Como escreve Viviane Forrester, “um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.” Publicado, originalmente, em francês em 1996, este texto é bastante atual; mas quem se surpreender com sua atualidade é que não entende nada de capitalismo. Onde o capitalismo estendeu suas presas dilacerantes dificilmente nascerá igualdade e justiça. Mas fiquemos aqui com Pessoa, que nos legou esta nota de sabedoria: “Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento”. Ao que podemos acrescentar, citando Clarice Lispector: “viver é luxo”.

 

 

 

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

"O niilismo está à porta: de onde vem a nós este mais sinistro de todos os hóspedes." (Nietzsche)


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                     A filosofia na vizinhança do niilismo


Assumiremos como pressuposto tácito e inquestionável para quem quer que se ocupe da filosofia que a confiança na razão é a essência de toda empresa filosófica. Não nos parece custoso rastrear, ao longo da história da filosofia, as diferentes figuras pelas quais essa confiança na razão se expressa. Essa confiança na razão nasce com a filosofia e perdura até os dias de hoje, a despeito de a razão, em vários momentos da história do pensamento, ter sido convocada a comparecer perante o tribunal da suspeita[1]. Não resta dúvida de que a confiança na razão – entendendo-se por razão, nesse momento, a faculdade que nos habilita a produzir discursos coerentes e inteligíveis que são eles mesmos modelos de representação do mundo – não poderia sucumbir, sob pena não só de a filosofia ser condenada ao silêncio eterno dos museus da história, mas também sob pena de a totalidade da existência humana submergir num irracionalismo balbuciante[2]. Mesmo a crítica da razão levada a efeito por aqueles que Ricouer chamou “filósofos da suspeita” não deve ser vista como uma convocação à adesão ao irracionalismo, mas sim, no que diz respeito mais propriamente ao trabalho fabulador da razão, como um exame radical e desmitificador das ideologias “progressistas”, em nome da razão, da moral, da História, as quais querem subjugar a vida em favor de pretensos valores superiores.
Retornemos, então, ao momento em que sublinhávamos o fato de que a filosofia surge e se desenvolve historicamente como uma atividade discursiva em cujo cerne repousa a confiança na razão. Dissemos que essa confiança na razão pode ser mapeada pelo exame das diversas formas como ela se expressa no decurso do desenvolvimento histórico da filosofia. A filosofia nascente afirma essa confiança na razão a partir de uma série de pressupostos, dentre os quais destacamos os quatro seguintes:

1º o mundo constitui uma totalidade ordenada e inteligível, que pode ser racionalmente explicada;

2º “Nada vem do nada e nada retorna ao nada”: o mundo é um cosmo eterno e imperecível;

3º Seu princípio perene e imortal de origem e constituição é a phýsis, de onde tudo brota e para onde tudo regressa;

4º A essência do mundo ou o ser é alcançado exclusivamente pelo pensamento e, portanto, é invisível, embora seja um invisível racional e lógico.

Mesmo a preocupação (que perpassa toda a história do pensamento filosófico e constitui uma questão fundamental em torno da qual muita tinta correu) em explicar como o uno, isto é, o idêntico em si mesmo (phýsis) se transforma no múltiplo e diferente de si mesmo (kósmos); ou, em sentido inverso, mesmo a preocupação em explicar como o múltiplo e o diferente  (os entes do mundo) pode originar-se do uno e a ele retornar supõe uma confiança na razão que se expressa na crença na identidade entre o real e o racional – crença esta que encontrará longo e persistente eco na história da filosofia, sendo quiçá Hegel, no século XIX, seu mais obstinado defensor. Essa confiança na razão também se manifesta, na tradição, na concepção de razão como uma força que nos liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões arraigadas e falsas, das aparências, ou ainda como uma força que permite estabelecer um critério universal ou comum para a conduta do homem.
Parece-nos um truísmo dizer que, desde suas origens, a filosofia pautou-se pela busca de princípios capazes de conferir sentido ao conjunto da experiência humana. A experiência filosófica, que supõe a determinação de um sentido para o mundo, ancorava-se, entre os gregos, na crença de que o cosmos apresenta uma ordem eterna, divina, bela e inteligível, à qual a vida humana deveria ajustar-se. O sentido da vida humana consistia, segundo acreditavam os antigos, em ajustar-se a essa ordem. Na época de Hegel, havia uma crença disseminada de que a história humana tem um sentido e um significado – essa é, aliás, uma crença que sobrevive nos dias atuais em contextos religiosos, sobretudo porque o pensamento religioso sempre admitiu que o curso da história humana tem sentido e que esse sentido, no caso do cristianismo (para nos ater a uma experiência religiosa mais próxima), é resultado dos propósitos de um Deus pessoal e Criador, que governa todo o processo determinando-o da origem ao fim.
A partir de Platão, a filosofia deduziu do eterno o sentido e a normatividade para a vida humana. Com Platão, a filosofia passa a acalentar a esperança de alcançar o bem pela harmonia com o sumamente real, o sumamente eterno e perfeito. Evidentemente, essa ascensão ao sumamente real supõe uma confiança na razão, ou, em termos platônicos, no conhecimento inteligível, na dialética que educa a alma para que ela atinja ascensionalmente o conhecimento inteligível do incondicionado, da Verdade em si mesma, do Ser. Escapa à alçada deste estudo deslindar as formas como se afigura na filosofia platônica essa confiança na razão. Não obstante, vale dizer que a Alegoria da Caverna constitui um exemplo paradigmático dessa confiança na razão. Em síntese, da Alegoria da Caverna podemos colher a seguinte lição: só podemos conhecer a verdade quando ultrapassamos o domínio das aparências sensíveis para, num movimento ascendente, contemplar os arquétipos ou as Ideias eternas e imutáveis que constituem o mundo inteligível, este que é dotado de mais realidade que o mundo sensível, onde nós habitamos. É necessário omitir alguns pormenores da escalada de conhecimento rumo à contemplação da Forma do Bem, ponto de irradiação da luz para todo o campo das Formas Perfeitas. A confiança platônica no conhecimento inteligível, na luz da inteligência tem desdobramentos em sua ética que cumpre aqui tão-só assinalar de passagem. Platão advogará que as opiniões não conduzem ao conhecimento verdadeiro; as opiniões são aparências de um saber; não o verdadeiro saber. As opiniões pertencem ao mundo das coisas sensíveis e não nos permitem desvelar a essência das coisas. Por outro lado, o conhecimento é um processo ascendente que nos encaminha à realidade imutável, pela qual todas as coisas são o que são. A Cidade justa depende, portanto, do conhecimento do Bem em si e da Justiça em si. Os homens só serão justos e bons conhecendo o Bem e a Justiça em si, isto é, a Forma do Bem e a Forma da Justiça. Enquanto permanecem confundidos por aquilo que parece bom e justo, mudando continuamente de opinião, eles serão injustos e infelizes. Particularmente importante é lembrar que Platão via na razão a parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A razão é uma força que possibilita a libertação do homem do jugo dos apetites, das paixões pela submissão destas e daqueles ao controle e à justa medida determinada pela própria razão.
É preciso insistir em que, ao advogarmos que a filosofia se caracteriza essencialmente como uma atividade discursiva e/ou reflexiva baseada na confiança na razão como precondição para sua própria realização enquanto tal, não estamos ignorando que, ao longo de toda a história da filosofia, antes mesmo de o trabalho da desconstrução começar a solapar os fundamentos do legado da tradição, a confiança na razão foi, de algum modo, questionada. Nossa argumentação se orienta no sentido de sustentar que sempre (ou quase sempre) que essa confiança na razão encontrou-se às voltas com as vozes da suspeição, da desconfiança, a filosofia viu-se nas proximidades da sombra do niilismo. Basta pensarmos, por exemplo, na crítica vertiginosa empreendida pelo romantismo alemão de um Novalis ou Schlegel à ideia de uma arquitetônica em Kant. Todo um paradigma da racionalidade legado pela tradição se encontrou profundamente abalado; tudo se acha fraturado no romantismo alemão: o próprio paradoxo é lugar de sentido; o ser é um efeito e todo efeito é ser; sujeito e objeto se confundem; a lógica é subvertida, o rigor romântico transforma todas as coisas em coisas indiscerníveis; o sujeito é uma criação da linguagem; a linguagem não comunica nada (não há elemento fundante da linguagem); não há coisas ou mundo antes da linguagem: não há estrutura última do mundo; falta a garantia da referencialidade da verdade; os românticos recusam a evidencialidade da vinculação entre linguagem e homem. O movimento romântico, em suma, se caracterizou, fundamentalmente, como ruptura com o modelo identitário da filosofia.
 A série de abalos provocados pelo romantismo alemão não se esgota aí evidentemente. O que importa é ver que, ao subverter radicalmente toda uma série de pressupostos do paradigma tradicional da racionalidade, o romantismo alemão foi acusado de ser um movimento niilista. Niilista também, por um lado, porque celebrou unicamente o livre jogo da fantasia, a atividade espontânea de um eu que não mais reconhece o não eu, a matéria, o universo e até mesmo Deus. Niilista também, segundo seus acusadores, é a operação filosófica por meio da qual o romantismo alemão pretendeu suprimir o objeto da reflexão para mostrar que ele é produto de uma atividade invisível e inconsciente de um sujeito que é ele mesmo criação da linguagem.
A história da filosofia se caracteriza por uma tendência constante, a qual consiste na depreciação de toda forma de diferença e mudança. Em grande medida, a Metafísica, no Ocidente, se expressou como aversão a todo tipo de pensamento do devir. Nesse contexto, o que vimos chamando “confiança na razão” significa crença na existência de um mundo de identidades estáveis, de um mundo do qual as diferenças, a alteridade são ou excluídas ou relegadas à condição de possibilidade para se pensar as identidades.
Se, por um lado, um exame acurado do desenvolvimento do pensamento filosófico demonstraria, sem grande custo, a validade da tese por nós esposada, segundo a qual a filosofia nasce e se desenvolve com base numa confiança na razão; por outro lado, pode não ser imediatamente evidente a proposição segundo a qual o niilismo, enquanto uma forma de pensamento obcecado pelo nihil – o nadaé encontrado em toda a história do pensamento ocidental: de Górgias, com sua célebre fórmula “nada é, e se alguma coisa fosse, não poderia ser conhecida; e, se fosse conhecível, seria inexprimível” – à teologia negativa do poeta e filósofo Giordano Leopardi, para quem o nada é o princípio de Deus e de todas as coisas, o niilismo também impregnou o existencialismo francês de Sartre e Camus. Mas foi, sem dúvida, Nietzsche o maior profeta e teórico do niilismo. É com ele que o niilismo se erige em categoria histórica e em objeto de reflexão filosófica. Dedicaremos uma seção específica para apresentar a interpretação nietzschiana do niilismo. O niilismo já estaria suposto no cerne da doutrina paradoxal do cristianismo do Deus que assume a forma humana, do Deus que se faz homem. Nessa doutrina, Deus é situado na empiricidade dinâmica da história. O niilismo é a inesgotável nova narração da vida-morte do além imanentizado, ou seja, do Deus feito homem.
Niilismo, a despeito de seu significado multívoco, pode ser definido como uma doutrina que opera segundo uma série de reduções: os entes, as coisas, o mundo e, em particular, os valores e os princípios – são negados e reduzidos a nada. Do ponto de vista ontológico, o niilismo é a afirmação de um mundo do qual não se pode sair, de um mundo sem transcendência, sem valores superiores, sem alhures. Estar sempre de luto, reconhecer que nossa relação com o sentido originário, com os deuses, com o fundamento é uma relação marcada pela ausência, pela perda, pelo desaparecimento – eis, em suma, a essência da experiência niilista.
Parece-nos razoável dizer que toda a filosofia subsequente ao anúncio da morte de Deus constituiu um esforço de ultrapassamento do niilismo, uma busca por fazer viger alguma experiência de sentido no deserto que se tornou o mundo, após a devastação levada a cabo pelo trabalho da desconstrução. A filosofia, por razões que suponho estejam claras, não pode coexistir com o niilismo; o niilismo constitui uma ameaça à própria possibilidade da experiência filosófica. Pelo menos, nos parece ser esse o perigo que mesmo Nietzsche - a seu modo - e os filósofos que o sucederam souberam entrever. [3]
Não obstante, a par do aspecto negativo do niilismo, há nele um aspecto positivo. Num sentido positivo, o niilismo, na esteira de Nietzsche, permite uma nova posição de valores baseada na vontade de poder como caráter fundamental de tudo que é. Quando nos admiramos da insistência com que o niilismo, no seio do próprio trabalho filosófico de instituição de um horizonte de sentido vinculativo que torne possível ao homem viver neste mundo, faz ressoar seu eco, já não podemos então ignorar a questão como fazer filosofia em face da presença impregnante e perturbadora desse hóspede sinistro, que resiste a toda ordem de despejo. Em suma, o filósofo de hoje não deveria esforçar-se por responder a premente questão  - como é possível filosofar em face da presença do signo da Morte, da tentação do suicídio, da natureza emergente do Nada, que ameaça, por todos os lados, a pretensão de conferir sentido à série de esforços mobilizados pelos homens na tentativa de suportar o que eles, não raro, pressentem como um fardo, um peso, a saber, a própria existência?





[1] Não temos a pretensão de esclarecer quais são esses momentos. Basta-nos apenas observar que essa confiança na razão, embora seja uma precondição histórica para o desenvolvimento da filosofia, não passou incólume aos ruídos da vozes da suspeita, dentre as quais se destaca como a mais devastadora a de Nietzsche. É bem verdade que a crítica nietzschiana da razão não tinha em mira a razão em si, mas um modo específico de constituição da racionalidade grega: a racionalidade socrático-platônica, que, aos olhos de Nietzsche, produziu a fábula do mundo suprassensível, do mundo-verdade, cuja consequência mais evidente foi a negação da própria vida.
[2] Essa advertência não deve mascarar o fato de que posturas irracionalistas frequentaram a história do pensamento filosófico.
[3] No caso de Nietzsche, o ter entrevisto o perigo não significa que, ao fazer a crítica do niilismo, Nietzsche estivesse pretendendo “salvar” a filosofia do envenenamento niilista; sua preocupação, na verdade, era restabelecer a unidade entre a vida e o pensamento, era reconduzir o pensamento para a sua verdadeira morada – a vida -, para dela se ocupar, potencializando-a, e para que a vida, sob o cuidado potencializador do pensamento, se potencializasse. Mas foi justamente porque pretendeu liberar a vida de uma tradição de pensamento que não fazia senão enfraquecê-la que ele entreviu para que estéreis abismos caminhava o pensamento.