Pensamentos dispersos e outras impertinências
Os
gregos denominavam Kairós a boa
ocasião, o momento oportuno, a circunstância favorável; kairós é o tempo fugaz que deve ser aproveitado no momento certo,
porque, senão, a ação pode não lograr êxito ou pode fracassar. Será este o
momento oportuno, pois, para escrever? Hesito... O que é certo é que adiei,
protelei, posterguei, procrastinei o início da escritura deste texto. Por
alguns dias, me deixei arrastar por minhas obsessões, ou por uma delas, a
saber, meu apego irrestrito à verbosidade, à pretensão ilusória de dizer “tudo”
rompendo com a incompletude da linguagem (o que sei ser impossível!); essa
obsessão pelo “cheio”, pelo “excesso”, que pretensiosamente saturaria as
possibilidades de dizer (o que é uma ilusão!), me leva a consumir horas e dias
a garimpar os livros, a encher folhas de papéis com excertos alheios, com
comentários pessoais, a anotar tudo que me parece relevante, a transcrever trechos
de livros diversos. Só este trabalho obsessivo-compulsivo é suficiente para
tornar o resultado, para o qual aquele trabalho é um simples meio, uma
empreitada hercúlea e desestimulante. Minha obsessão com a precisão da forma,
com a fecundidade e a profundidade do conteúdo e com o refinamento do estilo é
infensa aos sentimentos iniciais que me incitavam a escrever. O presente texto
deve ser um sintoma de leveza na expressão e de intensidades anímicas, de
tremores e terrores fisiológicos, de inquietações de meu espírito filosófico,
de cumplicidade intelectual-afetiva com autores e seus pensamentos. A leveza na
expressão significa renúncia ao academicismo estilístico. Basta! São
desnecessárias mais justificativas! Apenas acrescento que este texto não versa
sobre um assunto definido, não tem sequer uma ideia geral em que se pudessem
apoiar seus arranjos sintáticos. Escreverei como um navegante à deriva no mar, que
não sabe aonde chegará e ignora os reveses que o espreitam ao longo de um curso
onduloso, tortuoso, tormentoso. O perigo do naufrágio é inevitável, inelutável.
Não há rotas, não há qualquer sinalização de um começo. Escrevo para apascentar
meu desespero congênito, que tem, ultimamente, se tornado mais agressivo, mais
fustigante, mais espinhoso, mais insurreto. Aqui é necessário um
esclarecimento: não me refiro ao desespero apenas no sentido de “desorientação
perturbadora, grande aflição em face da perda de uma rede de referências,
afetiva e axiológica, que dava sustentação à existência”; refiro-me, sobretudo,
ao desespero como disposição afetiva que nos reconcilia com a crueldade do
real. O desespero a que me refiro é renúncia a qualquer fé num sentido
metafísico da existência, é também dispor-se para o viver reconciliado com o
real, com o caráter trágico, ou absurdo da existência (como prefeririam os
filósofos pessimistas, dos quais me sinto mais próximo intelectual e
afetivamente). Como escreveu o poeta estadunidense David Thoreau, “a maioria dos homens vive uma
existência de tranquilo desespero”. Esta é a minha primeira citação; e
preciso dizer que não será a única; na verdade, por não ser um produto de um
plano global de escrita, este texto se constituirá, predominantemente, como um
tecido dialógico explícito e repleto de uma série de costuras polifônicas;
citando autores e seus pensamentos, pretendo confrontá-los, alinhá-los, para
compor minha fala como uma fala constitucionalmente polifônica. Meu discurso
não tem em mim a sua origem – anotem isso!
É justamente esse “tranquilo desespero”, do qual está
impregnada a existência da maioria dos seres humanos, que só conquisto, talvez,
em alguns breves momentos em que me deixo estar fora do alcance do vigilante
pensamento para entreter-me com a futilidade do mundo. Mas, na maior parte do
tempo inutilizável de minha vida inempregável e ociosa – Baudelaire, aliás,
escreveu, em seus Diários Íntimos, “ser um homem útil sempre me
pareceu algo muito horrendo” - , tal “tranquilo desespero” me é tão estranho e
desconhecido quanto estranhos são os rostos que se apinham e se confundem na
multidão de indivíduos que, ignorando-se mutuamente, atravessam,
cotidianamente, as grandes avenidas de
nossas metrópoles. O meu desespero é de outra natureza; é congênito, é efeito
de um estado de crise permanente e parturejante (em grego, aliás, krisis se diz do momento decisivo, de
súbita mudança); é, em suma, efeito de uma implacável indisposição para a
existência comum e sua banalidade assombrosa. O romancista russo Vladimir
Nabokov expressou aquilo de que o “tranquilo desespero” da maioria a protege: “nossa existência não é mais que um
curto-circuito de luz entre duas eternidades”. Como eu entendo esse “tranquilo
desespero”? Como uma espécie de mecanismo de defesa narcotizante que foi
implantado em nós pela seleção natural como parte de nossa herança filogênica.
A natureza trabalha no sentido de garantir a sobrevivência da espécie. Como
ensina Schopenhauer, ela é indiferente à sorte dos indivíduos; mas precisa
garantir que eles funcionem bem, para que dediquem sua vida à preservação da
espécie. Não haveria vantagem evolutiva alguma se fosse grande o número de
indivíduos que, existencialmente atormentados, aturdidos com a insignificância
radical da existência, vindo a se encontrar, frequentemente, em condições de
extrema tensão de seu mundo afetivo, pulsional, pusessem fim aos seus dias
suicidando-se. Como observa bem Nietzsche, “não
importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados
numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à
conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie,
mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais
inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é essencialmente
a linhagem e rebanho que somos”. Schopenhauer vem aqui fazer coro a Nietzsche: a maioria dos
animais humanos se esforça diariamente em vista senão da
“manutenção da existência mesma,
manutenção obtida diariamente às custas de fardo incessante e cuidado
constante, numa luta contra a necessidade e tendo a morte em perspectiva”. Ou ainda: “a
vida individual transcorre numa luta incessante pela existência mesma; porém, a
cada passo é esta ameaçada pela queda no abismo”.
E por falar em
suicídio, Nietzsche nos diz, em A Gaia
Ciência, que “(...)
o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória
da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos
em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos
costumavam recorrer ao suicídio”. E é também Nietzsche que sentencia: “Viver – é continuamente afastar de
si algo que quer morrer”. “As religiões – ainda é Nietzsche quem ensina
– são ricas em expedientes contra a
necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados
da vida”. Em geral e
comumente, as pessoas se apiedam de um suicida; julgam-no um fracassado, um
covarde, ou até mesmo um egoísta. Não o tenho nessa conta; se o suicida é
egoísta por querer pôr fim a um sofrimento que se lhe tornou intolerável e por não se preocupar
com a dor que sentirão aqueles que o amam, após sua morte, são igualmente
egoístas aqueles que, não querendo sofrer a dor da morte voluntária do amado,
insistem em desejá-lo vivo de qualquer jeito. Na verdade, o suicídio é um ato
que desperta em mim profunda admiração e respeito. O suicida rompeu, mediante
um ato que Schopenhauer deveras não recomenda (mas isso não vem ao caso), a
tirania da vontade de vida; isso sobre o qual Cioran, fazendo eco tacitamente ao
próprio Schopenhauer, soube bem se interrogar: o apego irracional à vida que
nos leva a prolongá-la a despeito da pressão das razões que nos convenceriam a
pôr fim a ela. O suicídio é-me tentador; chego a flertar com ele em imaginação;
mas sinto-me dilacerado por um congênito esgotamento que me demove de
realizá-lo. Preferi, por fraqueza, escrever um livro em coautoria (ainda não
publicado), para aproximar-me do ato sob um modo sublimado. Tornando-o tema
filosófico, convertendo-o em objeto de reflexão filosófica, libertei-me de sua
sedução, resisti às suas falsas promessas. Sem condenar o suicídio, estou
convencido de que ele é bastante razoável como meio de nos libertar de um
sofrimento intolerável, como um meio de nos aliviar de um sofrimento pesado e
pungente que decorra de condições existenciais tão precárias, que tornam o
viver irrespirável, insuportável. Por isso, a eutanásia é um ato de amor, de misericórdia,
a despeito do que pensa a Igreja e seus prosélitos cagadores de regra. É
verdade, no entanto, que “as
religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto
elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida” (Nietzche).
Os que se dizem enamorados da vida me
parecem ou descaradamente ingênuos, ou são indecentemente hipócritas, mas
também podem sofrer de uma imbecilidade crônica e irreversível (Tamanho fastio
sinto só de lembrar que, neste país, a cada dia, se multiplicam aos borbotões,
por outras razões, esses tipos humanos doentes, idólatras da imbecilidade
oficial!). Mas o suicídio não pode ser e não é a salvação. É que não há
Salvação. Não a creio possível! Como diz Bataille, “nada
de salvação: ela é o mais odioso dos subterfúgios”.
O que nos resta então? –
perguntar-me-iam aqueles que resistem a dobrar-se diante dos sonoros apelos da
experiência. Respondo: resta-nos ou viver como a maioria num tranquilo
desespero, ou viver como combatentes de um desespero que se quer lúcido e
controlado. Viver um desespero controlado é reconhecer que “a única verdade do homem,
finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem resposta”
(Bataille). De fato, tem razão
Bataille: “não somos tudo.
Aliás, só temos duas certezas neste mundo: esta e a de morrer”.
Não me apetece muito o curso que tomaram estes desalinhos
verbais. Acabei por me desviar assaz do que tinha em vista antes de pôr-me a
escrever. Este texto carece de uma densidade lírica; não pretendo com ele
elaborar um arrazoado filosófico. Estou de acordo, pelo menos em parte, com
Nietzsche, quando diz "não quero converter ninguém à filosofia: é
necessário, é talvez também desejável, que o filósofo seja uma planta rara.
Nada me é mais repugnante do que a propaganda doutrinal da filosofia, como em
Sêneca ou mesmo em Cícero. Filosofia tem pouco a ver com virtude.". Digo, em parte, porque não me repugna a filosofia
helenística e seu ideal de sabedoria libertadora. Como sentir aversão às lições
preciosas que podemos colher da pena de Sêneca, quando escreve ao amigo
Lucílio: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia,
entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é
coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já
passou pertence à morte”? Novamente o
tema da morte aparece como se me solicitasse que dele me ocupe. Da morte
falarei depois. Estou em consonância com Nietzsche no tocante à crença de que
ninguém pode ser convertido à filosofia; ensinar filosofia é tão sem sentido
quanto ensinar língua materna. Mas Sêneca, como Epicuro, a quem aquele
reconhece como um mestre, se fez tanto apelo à superioridade da vida
filosófica, é porque sabia que a maioria dos homens, vivendo apartados da
filosofia, vive na condição de escravos, sem o saber. Por isso, Sêneca evocava
a injunção de Epicuro: “Consagra-te à filosofia se desejas ser
verdadeiramente livres”.
A esta altura, sinto-me como um
escritor que fracassou. Não consegui cumprir com o que prometi, se bem que nada
prometi. Melhor será dizer que descumpri o intento que tinha de escrever pouco,
de tornar o texto mais fluido, de expurgar sentimentos corrosivos, de me
liberar dos efeitos nocivos de meus desertos. Mas, como dizia Nelson Rodrigues,
“na vida, o importante é fracassar”. Ou como escreveu Cioran, “apenas uma coisa importa: aprender a ser um
perdedor”. Sinto-me, portanto, coagido pela necessidade de ir
até as últimas consequências de meu fracasso. Só levarei a termo este texto
quando tudo que se assemelha a entulho represado puder ser escoado. Se o texto
terminasse aqui, estaria amputado. Prossigo, então... E espero que, antes do
término, eu consiga dar a este texto uma nervura mais sentimental, sem
sentimentalismo piegas.
Não é nem de liberdade nem da
morte que pretendo tratar. Limito-me a evocar, por meio do testemunho de
autores, a pertinência desses temas. Camus, por exemplo, escreveu, em seus Cadernos: “a única liberdade possível é uma liberdade em face
da morte. O homem verdadeiramente livre é aquele que, aceitando a morte como é,
aceita ao mesmo tempo as consequências – isto é, a inversão de todos os valores
tradicionais da vida. O “Tudo é permitido” de Ivan Karamozov é a única
expressão de uma liberdade coerente. Mas é preciso ir até o fim da fórmula”. Mas uma liberdade total e irrestrita, se fosse
possível ao homem, significaria sua autodestruição ou sua loucura derradeira e
insuperável. A cultura, que é o lugar onde os hominídeos se fizeram “homens”,
nasce de um interdito: a proibição do incesto. Daí em diante, a cultura tratou
de colocar o homem sob a mira de um arsenal de interdições, de proibições e de
valores falsificadores, a fim de educá-lo, moldá-lo, domesticá-lo, com o
pretexto de “civilizá-lo” e protegê-lo, alimentando seu narcisismo ontológico,
de algumas verdades aterradoras. E assim se fabricaram as ficções mais danosas,
as mentiras que, em vez de libertar o animal humano, o tornou escravo, doentio,
iludido; o homem tornou-se um animal fabulador e mentiroso; e em nome de suas
mentiras, das mentiras que lhes foram inculcadas, o homem tornou-se o animal
“mais periclitante” e cruel. Tem razão Schopenhauer: “Pois o
homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem
dera a experiência não tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não
continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e
cruel”. E pior:
surpreendentemente, o homem se tornou um animal otimista! Não raro seu otimismo
beira à completa falta de bom senso, a ponto de ignorar como sonâmbulos que
ignoram, quando despertos, que vagueavam repetindo ações rotineiras, o que nos
ensina Schopenhauer: “as pessoas comparativamente felizes o são na
maioria das vezes apenas aparentemente, ou são, como ocorre no caso das pessoas
de vida longa, raras exceções, cuja possibilidade teria de existir – ao modo da
isca. A vida apresenta-se como um engodo constante, tanto nas pequenas quanto
nas grandes coisas” Opondo-se veementemente ao otimismo, Schopenhauer
notou que ele é “não apenas falso, mas também uma doutrina
perniciosa. Pois ele nos apresenta a vida como um estado desejável e a
felicidade do ser humano como a meta do mundo”. Mas como
poderia ser desejável algo que, como notara Heráclito, “aporta o nome
de vida, mas sua obra é a morte?” É assim que
se comporta a maioria dos seres humanos, diariamente: “a grande
maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e acreditar então no
valor da existência, mas precisamente porque cada um quer e afirma somente a si
mesmo (...). Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se
apenas no fato de ele se tomar por mais importante no mundo”. (Nietzsche).
Sinto-me, devo confessar, bastante
indisposto para entabular qualquer conversa com quem se habitou a viver num
autoengano relativamente à morte. Enfada-me o simples fato de ter de lhe chamar
a atenção para o caráter banal e absurdo da morte (e da vida!). Para compor
este texto, busquei fazer encontros fugidios com livros que li, pela primeira
vez, no tempo em que ainda era graduando em Letras. Já se vão quase 20 anos...
Dois, em especial, me comoveram por dar voz lírica à precariedade da condição
humana e ao absurdo da existência. Trata-se dos livros A Hora da Estrela e A paixão
segundo GH., ambos de Clarice Lispector. A Hora da Estrela é um livro sobre o desamparo característico da
condição humana. Nele, descobrimos que contamos apenas com o consolo da
linguagem para dar a ela algum sentido, frágil, para nutrir esse desamparo de
uma dignidade sombria e indefinível. A narradora nos fala da banalidade da
morte, depois que a protagonista Macabéa morre: “a morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um
cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é
insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Noutro lugar, a
narradora, como se saísse de um sono letárgico comum à vida diária, dá-se conta
de que “só agora me lembrei que a gente
morre”. Assim, vive o homem do cotidiano, o homem comum: vive sob o domínio
do esquecimento de que pode morrer. Ele, definitivamente, é incapaz de uma
experiência filosoficamente decisiva, que se formula nestes termos, para
Clarice Lispector, em seu A paixão
segundo GH: “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de
uma aguda incompreensão”. Revisitar,
mesmo que de modo apressado e disperso, as páginas desses dois livros de
Clarice Lispector trouxe-me lembranças aveludadas de um tempo passado prenhe de
promessas de um futuro fértil de grandes colheitas. Mas o passado não é
lembrado, não! Jamais! A memória tem por objetivo produzir continuamente novas
experiências de pensamentos, emoções, a fim de desenvolver a personalidade e a
inteligência como um todo. Engana-se quem pensa que há lembrança de informações
contidas na memória. O que há é reconstrução dessas informações, de modo que o
trabalho da memória não é reproduzir originalmente as experiências do passado,
mas realizar uma reconstrução delas. Em outras palavras, o que é lembrado já
foi interpretado pela memória. A memória é o sinal em nós de que estamos continuamente
morrendo; de que o tempo vivido é um instante que sucumbe para dar lugar a um
outro que, por sua vez, “morre”, para dar lugar a outro, e assim
sucessivamente. O que chamamos de “presente” “morre” e se registra (se enterra)
na memória – nosso primeiro cemitério, já destinado a nós em vida (daí também
ter razão Fernando Pessoa: “somos defuntos adiados”). Aqui também vale a verdade: “tudo que vive tem de
perecer”. Morrendo as vivências do presente, abre-se (e não “abrem-se”, como
insistem impertinentemente os gramatiqueiros!) espaços para novas leituras da
memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. Enfim, a memória é
sempre repetição da diferença, e nunca reprodução do mesmo! Penso, porém, a
despeito do que pensa o senso comum, que é Bergson quem tem razão: tempo como
memória, tempo e memória como duração; e o passado se prolonga no presente,
jamais “morre”...
Filosoficamente falando, o que me
incomoda nas pessoas em geral, nas que vivem uma vida anestesiada pelo jugo da
esperança, é a presunção de saber o que é o mundo, o que é a existência e qual “o
sentido” de nos encontramos aqui neste mundo. Elas simplesmente não reconhecem
que “este mundo é dado ao homem como um
enigma a resolver”, como nota Bataille. É extremamente difícil esclarecer
as pessoas sobre o papel emancipatório, sobre o caráter desmitificador e
libertador do pessimismo filosófico, já que elas se acostumaram, por força de
suas experiências culturais que lhes inculcam crenças e representações
coletivas que lhes dizem como o mundo “é” ou deve ser, a acreditar que o
pessimismo se reduz a um estado de espírito assentado no sentimento e na crença
de que tudo caminha para o pior; mas ao encará-lo de modo tão rasteiro,
limitado e superficial, ignoram a profundidade de sua Lucidez. Também Einstein
se admirava do caráter enigmático da vida: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É
o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência”. É bem verdade que Schopenhauer teve a pretensão de
decifrar o enigma do mundo, que não é uma obra de um Deus criador, mas a
objetividade de uma Vontade cega e eterna: “Desperta da noite da sem-consciência para a vida, a
vontade encontra-se como indivíduo num mundo sem fim e sem fronteiras, entre
inumeráveis indivíduos, todos se esforçando, sofrendo, vagueando; e, como
possuída por um sonho agitador, precipita-se de novo na velha sem-consciência”. Como é possível que se ignore com tamanha
impassibilidade e sonolência que “a vida da maioria das pessoas é breve e calamitosa”? Ou ainda
que “tudo na vida nos ensina que a felicidade terrena está destinada a
desvanecer-se ou ser reconhecida como uma ilusão”? Confesso ser a morte uma dos objetos de minhas
obsessões. Quem diz não temer a morte me parece um farsante, um mentiroso, só
desculpável se alegar que sofre de uma estupidez crônica. Estupidez que o
impede de apreender fisiologicamente, de expor-se afetivamente como um ser
orgânico cosmologicamente insignificante à dramaticidade e à tragicidade de sua
condição mortal e à finitude de sua condição humana. Como diz Schopenhauer, “a morte
decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento
em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas
preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida”. Quem vive
tendo sempre em seu horizonte de vivências a finitude de sua condição humana
encontra na perspectiva da morte, que é um evento constitutivo da dinâmica da
vida, ocasião para instruir-se. Como diz Schopenhauer, a morte nos instrui na
medida em que nos esclarece sobre aquilo que a vida mesma já buscava elucidar,
a saber, que ela “foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo”. Cioran comunga desse sentimento com Schopenhauer: “quanto
mais vivemos, menos útil nos parece termos vivido”. Mas, por favor, não se apressem em tirar conclusões
que desabonam essa perspectiva sobre as coisas. O pessimismo filosófico não é
algo que se deve rejeitar sem alguma detida e paciente ponderação sobre suas
lições. É preciso ruminá-las, à noite sobretudo quando os homens adormecem e a
escuridão se estende sobre o mundo, silenciando-lhe o burburinho costumeiro, o
falatório vazio. É na escuridão da madrugada que melhor contemplamos abismos,
que as profundezas abissais da absurdidade do mundo se revelam (ah! Eu bem o
sei!). Dizia Cioran que “ninguém alguma vez se persuadiu tanto como eu da
futilidade de tudo, tal como ninguém terá tomado como trágicas tantas coisas
fúteis”. Preciso, todavia, abandonar este ponto de minhas reflexões. Antes,
contudo, vale frisar que as mentes mais lúcidas e sábias da humanidade
reconheciam que a vida não vale muito, como reconhecia Sêneca, ao assinalar que
“viver não é uma grande coisa (...) pensa que há muito tempo fazes a
mesma coisa: comida, sono, libido – a vida se resume a isso”. Schopenhauer diz, por sua vez, com razão a meu ver,
que “a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento”. E acrescenta com a vocação poética que o torna
proficiente no trabalho com as imagens que tingem de vivacidade o mundo
literário: “ a nossa vida assemelha-se antes de tudo a um
pagamento que alguém recebeu centavo por centavo de cobre, pelos quais deve, no
entanto, dar uma quitação: os centavos de cobre são os dias; a quitação é a
morte”. Embora
Schopenhauer afirme que o sofrimento é a destinação da existência humana, ele
também acredita que a própria vida é um processo de purificação e que a solução
purificante é a dor. Sim, para Schopenhauer que, embora ateu, não deixou de
incorporar em seu pensamento elementos da tradição mística cristã (e
oriental!), “o sofrimento é de fato o meio de purificação, único
através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o
caminho errado da Vontade de vida”.
Já que tenho procurado dar a
conhecer meus agenciamentos, os autores e pensadores graças aos quais devo
minha formação humana e intelectual, pois, como diz Libânio, “somos o
que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que
ensinamos” – no que estou
de acordo -, é, para mim, extremamente difícil não anuir ao que diz
Schopenhauer neste excerto que tomo como uma máxima existencial: “num
mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou
imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema de vida de cada
indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais
tanto melhor. A convicção de que o mundo é um deserto, em que não se pode
contar com companhia, deve se tornar uma sensação habitual”. Nietzsche, por seu turno, pondera que “(...) no
conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum e, por isso, considerando todo o
seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim
desespero. Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens,
seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício. Mas sentir-se
desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo), tal como
vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos os
sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta, e os poetas
sempre sabem se consolar”. Mas, como a
maioria de nós não é poeta, talvez possamos encontrar algum consolo na
sabedoria estoica de Sêneca, que nos ensina: “Não temos exatamente uma vida
curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é
suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização
de importantes tarefas”. Anotem: uma vida longa e plena não é mensurável
cronologicamente, mas qualitativamente. Viver longa e plenamente é viver uma
vida cujo fim é a sabedoria – é o que nos ensinou Sêneca. Reitero aqui o que já
escrevi em outro lugar, porque é necessário enfatizá-lo: a brevidade é um
conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo
como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter
uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma
vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa
vida desperdiçada, em tudo que eu realizo, eu não me realizo. Ora, Sêneca
censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo
sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os
outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de
tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece.
A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres
humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.
Longe de acreditar que trazer
sempre estampados no espírito o entendimento e o sentimento de nossa condição
existencial cosmologicamente insignificante e desprovida de propósito seja um
caminho descerrado para o desespero total e excruciante e para o perigo
implacável do suicídio, cuido que, amparada e conduzida pela educação
filosófica, tal atitude pode arrefecer, temperar nosso egoísmo habitual, nos
libertar da tirania de nosso narcisismo e, mormente, nos descerrar o horizonte
elucidativo à luz do qual nos podemos tornar criadores de hierarquias de
valores que potencializem a vida, que nos orientem na determinação do que torna
abundante e fecunda a vida, bem como nos instruam sobre como devemos evitar o
desperdício do tempo de vida que temos, cujo instante do fim, sempre iminente,
desconhecemos . Por isso, é preciso atender séria e demoradamente nas palavras
de Hannah Arendnt: “em
relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em
relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento
recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à
morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu
peso; se não existe nenhum além – e a vida após a morte, para Cícero, não é um
artigo de fé, mas uma hipótese moral -, não tem a menor importância o que
fazemos ou o que sofremos. (...) A filosofia é invocada para compensar as
frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida”.
Mesmo não estando completamente
satisfeito – e como poderia estar, se o estado de insatisfação permanente é
constitutivo de nossa condição humana? -, preciso operar uma digressão
definitiva para dizer algumas palavras sobre as atividades de escrever, ler e
pensar.
Escrever constitui uma questão
importante para mim em dois sentidos: 1) no sentido de que, como lembra
Sponville, “escreve-se sozinho, mas é para ser lido”; e 2) no sentido de que
não creio que se possa ensinar a escrever com receitas “prontas”. Aprende-se a
escrever escrevendo, o que não significa dizer que sejam vãos os esforços da
escola e dos professores nas práticas de letramento. Suspeite sempre quando
alguém promete que você conseguirá aprender a escrever bem seguindo certo
conjunto de procedimentos que o orientarão na composição de um gênero textual
ou de um tipo textual, na maioria das vezes um artigo de opinião ou outro
gênero textual em que predominam tipos textuais argumentativos. Mas uma
atividade de escrita só se aprende e se aperfeiçoa pela conjugação de duas
atividades: ler e escrever. Ler, escrever e rescrever... A leitura é importante
não só porque nos permite conhecer mais sobre o mundo e adquirir, como se diz
comumente, mais vocabulário, mas também e sobretudo, porque, expondo-nos aos
diversos gêneros textuais, permite-nos conhecer os diversos modos como eles se
estruturam. Gabriel Perissé diz que “escrever muito e sempre é o único modo de aprender
a escrever, de despertar o escritor que cada um é, dentro e a partir de suas
circunstâncias e limitações”. Embora não seja tão otimista
quanto o autor, pois não acho que exista um escritor em cada um de nós, acolho
a sugestão dele de que é escrevendo muito que se aprende a escrever. Ainda
segundo Perissé, “escrever é também uma fuga, mas uma fuga para a
realidade! Amar as palavras é sinal de vitalidade”.
Mas o primeiro sentido da questão é para mim o
mais grave, o que se põe como motivo de minha constante indisposição e desânimo
com a prática da escrita. A questão permanece a mesma ainda hoje, para mim: por
que escrever, se não há uma comunidade de leitores que realmente lerá o que
escrevo? Fernando Pessoa, em seu Livro do
Desassossego, confessa que: “para mim, escrever é desprezar-me mas não posso
deixar de escrever. Escrever é como uma droga que repugno e tomo, o vício que
desprezo e em que vivo”. E ainda: “Escrever
sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda”. E neste
trecho seguinte encontro profunda ressonância de sentimentos: “pasmo
sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me”. Eu só diria
um pouco diferente: pasmo sempre quando acabo de escrever. Pasmo e desolo-me.
Concordo com Perissé, quando
afirma que “escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam”. Mas dele me afasto quando mantém que escrever é
conhecer-se. Não acho que somos totalmente transparentes a nós mesmos (a julgar
pelo que nos dizem os psicanalistas). Talvez, melhor seria dizer que,
escrevendo, vamos perturbando o desconhecido, o suposto saber (que é um não
saber) sobre o qual vamos formando um sentimento de “eu” ao longo da vida.
Estou, no entanto, de acordo com ele em outras afirmações interessantes que faz
sobre a atividade da escrita. No entanto, não posso ignorar que escrever não é
fácil, como diz Drummond: “escrever hoje para mim é mais difícil do que quando eu tinha 20 anos”. Como Perissé,
também penso que escrever é libertar-se. E isso, só, bastaria para justificar a
prática da escrita. Também o essencial foi dito por Perissé, quando considera a
relação entre ler, pensar e escrever: “O ler conduzirá ao pensar e o pensar conduzirá ao
escrever. Ler e pensar. Escrevendo, pensar. Pensar e ler. Pensando, escrever.”. Georges Picard, por sua vez, se pergunta “é preciso ter algo a dizer para escrever?”
e responde: “Eu mesmo inverti o sentido
da fórmula, começando por notar que é preciso, antes de mais, escrever para ter
algo a dizer”.
Não é tanto a atividade da escrita
como técnica ou arte que me interessa; mas a escrita como vivência – a vivência
da escrita. Nesse sentido, escrever é expor-se, mas também propor-se a ser
legível e interrogado. Mario Quintana, em entrevista, disse, certa feita, que “eu nunca
escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando o camarada faz uma coisa
cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um sentimento absolutamente sincero.
Senão sentir nada, não deve escrever. Eu tenho tido períodos de deserto. Não
vem nada e eu não escrevo”.
Perissé afirma que “ a
leitura cura tudo se for leitura pensante. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de
tudo. Exercita-nos a memória recente, a conexão entre fatos e experiências
passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de
interpretar, a intuição.” Schopenhauer diverge, contudo. Para ele, “a
leitura não passa de um substituto do pensamento próprio”. Para ele, “uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus
pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante frequência mesmo entre as
melhores cabeças”. Deveria dizer que, por princípio teórico, estou,
nessa matéria, em desacordo com Schopenhauer? A leitura não é um substituto do
pensamento próprio, porque não há, a rigor, um pensamento próprio. O pensamento
reflexivo, que se constitui discursivamente, é sempre dialógico. O meu
pensamento é sempre pensamento de um outro, um pensamento de que me aproprio
reformulando-o, ressignificando-o na diferença, fazendo falar seus
silenciamentos, dando espessura verbal aos seus implícitos.
Schopenhauer considera que existem
três tipos de autores: os que escrevem sem pensar; os que pensam enquanto
escrevem; e os que pensaram antes de pôr-se a escrever. Os mais numerosos,
segundo o autor, são os primeiros: os que escrevem sem ter pensado antes, sem
ter ponderado sobre o que escreveriam. Os mais raros são os últimos: os que
pensam antes de escrever. Camus, por sua vez, considera que “para
escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice,
em todo caso”.
Mas, afinal, o que é pensar? Não
se espante: nem todos são capazes de pensar verdadeiramente! Quando alguém, não
habituado ao convívio com a filosofia, me pergunta para que serve o pensamento,
eu fico tentado a lhe dizer que a pergunta em si não faz sentido, porque
acompanho os gregos, para quem o pensamento tem seu fim em si mesmo. É o que
nos ensinava Aristóteles. E como ensina Arendt, “todo pensar é um re-pensar”. Arendt
acrescenta que “o pensamento está fora de ordem, interrompendo
todas as atividades ordinárias, e sendo por elas interrompido”. E o
pensamento está fora de ordem justamente porque “não produz qualquer resultado final que sobreviva à
atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim.” Mas como ousar dizer que nem todos pensam? É que o
pensamento, no significado estritamente filosófico, como “contemplação do
invisível, do que está para além das aparências”, “como atividade do intelecto
em contraste com os sentidos”, como “visão direta do inteligível” (intuição), é
de natureza diferente do pensamento que nos orienta na vida diária. Perissé tem
razão quando diz que “pensar é virar a realidade do avesso, é
“desrealizá-la”, recriá-la”. Pensamos para nos desabituar de nossas maneiras habituais,
rasas, estereotipadas de “ver” o mundo, de significar as ocorrências do mundo. E Arendt, inspirando-se na tradição grega, observará
que o pensar começa quando “dessensorializamos qualquer coisa que tenha
sido dada aos nossos sentidos”. O pensamento tem como condição sine qua non o fato de ter um caráter
niilizante, porque
corrói aquilo que tomamos como evidências, nadifica as certezas, nadifica aquilo
que consideramos como verdades sobre o mundo, subverte os códigos que fixam
comportamento, que promovem e justificam toda sorte de violência (sobretudo, a
violência simbólica). Como diz Libânio acertadamente, “a
reflexão abala as evidências fáceis e não discutidas”. O pensamento
não se confunde com opinião de comentaristas de futebol, tampouco com o falatório do impessoal, com os
juízos de valor correntes, com a mera produção de atos de fala locucionários (proposicionais).
Por isso, nem todas as ocasiões e modos de enunciação são propícias ao
pensamento. As redes sociais, por exemplo, tendem a ser espaços onde colidem
diversas opiniões, preconceitos, clichês, mas jamais – ou quase nunca –
favorecem o exercício do pensamento. Para Arendt, o pensamento é busca do
significado: “o pensamento pensa o significado. O pensamento não
pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe, porque sua existência
é tomada como certa, mas o que significa para ela ser”. Pensar, para
Arendt, é entrar no significado do acontecimento. E Deleuze diz que “o modo do acontecimento é problemático. Não se deve
dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem
exclusivamente aos problemas e definem suas condições”. “O
acontecimento é, por si mesmo, problemático e problematizante”. Portanto, o
pensamento pondera, pensa o significado da problematicidade do acontecimento. E
acontecimentos, como pensavam os estoicos, não são corpos, mas são os
incorporais, são efeitos, e não coisas ou estado-de-coisas.
E uma vez que o pensamento está
fora de ordem, deve-se então concluir, com os gregos e com Arendt, “que
pensar significa seguir uma sequência de raciocínios que eleva aquele que pensa
a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida”. Num mundo que
é caos, como acreditava Nietzsche, ou absurdo, como pensavam Schopenhauer,
Camus e Cioran, não podemos recusar um
fato que torna nossa condição humana desconcertante e assombrosa. Como diz Lya Luft, “o mundo não tem sentido sem o
nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere
alguma ordem”. Guardarmo-nos de acreditar que o mundo tem, em si mesmo, alguma
ordem, alguma finalidade, algum sentido metafísico é já começar a libertar-se daquele “tranquilo
desespero” habitual que acostumou a maioria dos homens a não reconhecer que,
como diz Cioran, “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou”. E digo eu: aquele
que nada pensou realmente.
É chegado o tempo de represar o
fluxo verbal, evitando, assim, o esgotamento das forças do espírito e do corpo.
Já posso sentir insinuar-se o gosto acre da desolação, da frustração por não
ter conseguido externar os meus outros tantos declives e outras tantas nuances de
minhas inquietudes, aflições, angústias, que tingem de nervura e coloração
rubra os subterrâneos de minha alma. Este texto deveria ter sido destinado para
falar de reminiscências, para acordar o poeta adormecido em mim, o poeta que um
dia cuidei ser. Era para ser destinado à reflexão sobre a condição dos
excluídos – condição esta da qual faço parte há oito anos-, dos que foram
forçosamente postos à margem pela tirania do Capital e pela inaptidão da
política para controlar a voracidade e os abusos do mercado. Como escreve
Viviane Forrester, “um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma
marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora,
ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a
tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos
quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a
supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.” Publicado, originalmente, em francês em 1996, este
texto é bastante atual; mas quem se surpreender com sua atualidade é que não
entende nada de capitalismo. Onde o capitalismo estendeu suas presas dilacerantes
dificilmente nascerá igualdade e justiça. Mas fiquemos aqui com Pessoa, que nos
legou esta nota de sabedoria: “Todos somos iguais na capacidade para o erro e para
o sofrimento”. Ao que
podemos acrescentar, citando Clarice Lispector: “viver é luxo”.